Ó retrato da
Morte, ó Noite amiga,
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha de meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!
Pois manda Amor que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio1 agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel que a delirar me obriga.
E vós, ó cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!
Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.
Bocage, Sonetos, Lisboa, Bertrand,
s. d.
_________
1 pio: piedoso, compassivo.
Elabore um comentário do poema que integre o tratamento
dos seguintes tópicos:
-
modos de representação da Noite;
-
relação entre a natureza representada e o estado emocional do sujeito poético;
-
recursos estilísticos relevantes;
-
traços característicos do Pré-Romantismo.
Explicitação de
cenários de resposta:
Modos de
representação da Noite
A Noite aparece como imagem («retrato») da
Morte a que o «eu» aspira, como confidente («amiga», «testemunha»,
«secretária») e protetora («Dá-lhes pio agasalho no teu manto»), como rainha
das trevas e dos seus habitantes (os «cortesãos da escuridade» ). Através da
personificação, combinada com um conjunto de metáforas, a noite configura uma
dupla alegoria: nas quadras, é a noite eterna e arquetípica, entidade maternal
que envolve no seu piedoso «manto» os seres que sofrem; nos tercetos, é antes a
noite terrível e infernal («horrores»), associada ao reino dos inimigos da
claridade. Entre estas duas representações da Noite, ligadas pela omnipresença
da Morte, estabelece-se uma relação de complementaridade.
Relação entre a
natureza representada e o estado emocional do sujeito poético
A natureza é figurada como lugar de abrigo
e de apaziguamento e também como locus horrendus, espelho do sofrimento
amoroso do sujeito poético: uma paisagem noturna, tenebrosa, povoada de entidades
hostis à luz do dia, com as quais o «eu» se identifica («Inimigos, como eu, da
claridade»). Acompanha a expansão alegórica do simbolismo da Noite, atrás
referida, um crescendo na expressão da dor. Essa expressão começa, em tom de
lamento, pela metáfora inicial (vv. 1-2); transforma-se em súplica, quase numa
prece (v. 6); irrompe em apelos aos «cortesãos da escuridade» (vv. 9-11 ); por fim,
lança-se em invocações («Em bandos acudi aos meus clamores») dos «horrores» noturnos
(vv. 12-14).
Recursos
estilísticos relevantes
São relevantes, entre outros, os seguintes
recursos estilísticos:
-
metáfora: «retrato da Morte», «cortesãos da escuridade»;
-
personificação: «Morte»; «Noite»; «Amor»;
-
apóstrofe: «Ó retrato da Morte, ó Noite amiga»; «E vós, ó cortesãos da
escuridade»;
-
anáfora: «Quero» (v. 13) /«Quero» (v. 14);
-
…
Traços
característicos do Pré-Romantismo
-
representação da natureza como locus horrendus;
-
obsessão da morte;
-
confessionalismo;
-
veemência dos sentimentos;
-
exacerbação passional;
-
misticismo;
-
…
Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 637. Curso
Complementar Licear Nocturno. Prova Escrita de Português (Índole Literária).
Portugal, 2000, 1.ª Fase, 2.ª Chamada
ó Noite amiga, picsart.com 2023-03-08 |
Comentário do poema “Ó retrato da Morte, ó Noite amiga”, de Bocage
I- Introdução
|
O soneto «Ó retrato da Morte!
Ó Noite amiga» é da autoria de Bocage, poeta pré-romântico do final do séc.
XVIII. |
II- Desenvolvimento: tema e assunto
|
Nesta composição é abordado o
tema do sofrimento por amor e, quanto ao assunto, comporta uma sucessão de
apóstrofes a elementos noctívagos e medonhos, no sentido de só junto a estes
o sujeito lírico conseguir algum alento para o seu desespero. |
estrutura externa |
Trata-se de um poema composto
por duas quadras e dois tercetos, que se denomina soneto. Os versos são
isométricos, sendo todos decassilábicos. O esquema rimático é o seguinte: abba/abba/cdc/dcd,
havendo rima interpolada, emparelhada e cruzada, respectivamente, a, b, c e d.
Todos os versos possuem rima grave e consoante. Apenas o grupo de versos 9,
11 e 13 contém rima completa; nos grupos de versos 2 e 3, 6 e 7, 10 e 12 a
rima é rica, sendo pobre nos outros casos. Todas as rimas são perfeitas. |
estrutura interna e enunciado descritivo
|
As duas quadras pertencem à
tentativa de contacto que o Eu estabelece com a noite, contendo a
caracterização desta (amiga, escura, testemunha, confidente, protetora),
assim como o pedido explícito que lhe é dirigido (compreensão, apoio,
companhia); os tercetos correspondem igualmente a uma tentativa de contacto,
sendo os recetores os «cortesãos da escuridade», seguindo-se a mesma
estrutura: caracterização destes (assustadores, sombrios) e apelo que lhes é
enviado (compreensão, companhia). Assim sendo, as estrofes pares, por serem
apelativas, distinguem-se das ímpares, onde o poeta estabelece a
identificação entre si e o ambiente noturno. |
análise e interpretação: importância do 1.º v. na mensagem do poema
|
O primeiro verso assume grande
importância dentro da mensagem do poema, pois revela a presença de uma
entidade abstrata («Noite») que adquire uma força concreta e humana, tendo
papel de destaque dentro das relações do sujeito («amiga») – note-se a
personificação – e fazendo a maiúscula inicial adivinhar o seu protagonismo.
Conduz a uma identificação da noite com a morte – note-se a metáfora – o que
deixa antever uma situação de sofrimento/desespero por parte do sujeito
poético, pela invocação de duas entidades ligadas à escuridão, à solidão, à
fuga; sugere o estado de pessimismo, dramatismo em que o Eu se encontra. |
papel da noite
|
O facto de
este ansiar pelo momento da noite deve-se à sua vontade de estar só, isolado
e afastado daquela que perturba o seu estado de espírito («[…] a
cruel que a delirar me obriga», v. 8), à necessidade de encontrar a
tranquilidade e a acalmia próprias da noite, propícias à introspeção, à
intenção de pretender refletir e analisar os seus sentimentos («meu pranto»,
v. 3; «[…]
meus desgostos […]»,
v. 4) e de desejar conviver com elementos noturnos («Fantasmas vagos, mochos
piadores», v. 10) que, pelo seu aspeto assustador e sombrio, não convivem com
elementos diurnos, o que os torna recetores para quem não deseja ver os seus
sentimentos divulgados (v. 3). |
função apelativa
|
Regista-se
a função apelativa da linguagem nas estrofes pares na medida em que o sujeito
lírico apela a alguém/algo, neste caso à «Noite amiga», por incumbência de
«Amor», aqui também personificado, para que o ampare, deixando-o desabafar na
sua presença («Dá-lhes pio agasalho[…]», v. 6, «Ouve-os»,
«ouve», v. 7), bem como aos elementos da noite, pedindo-lhes que o deixem
fazer parte do seu grupo para com eles exteriorizar a sua mágoa («Em bandos
acudi aos meus clamores», v. 12). Usa, assim, num tom pesaroso, nesta
situação, um discurso apelativo, cujas formas verbais estão no imperativo; o
discurso é de 2ª pessoa, uma vez que é direcionado para o destinatário das
palavras proferidas. |
causa do sofrimento
|
Para além
da repetição retórica do verbo ouvir no v. 7, o tom lamentoso é acentuado com
o uso do vocábulo «pio» que vitimiza o sujeito perante «a cruel». A angústia
do sujeito poético ocorre em simultâneo com a tranquilidade, despreocupação
da amada («delirar» vs. «dorme»), aqui apresentada com o convencional traço
da típica mulher fatal. Note-se a ambiguidade existente no verbo dormir que é
sinónimo de sossego para um e desassossego para outro, surgindo reforçado
pela expressão «me obriga» – não é voluntário, não é pacífico, não é indolor.
Note-se, ainda, que a forma verbal «dorme» pode referir-se também à própria
morte ou ausência da amada. |
masoquismo
ultrarromantismo
|
Pode
considerar-se masoquista o conteúdo dos dois últimos versos, nos quais o
sujeito manifesta o desejo de se encontrar no meio de fantasmas e mochos,
apesar de ter consciência do carácter horrível e mórbido que lhes é inerente:
«Quero a vossa medonha sociedade» (v. 13). Na base deste masoquismo, está o
desejo de se flagelar, talvez numa tentativa de exteriorizar a sua revolta, a
sua angústia ou até de acabar com o sofrimento («Quero fartar meu coração de
horrores», v. 14). O sujeito deseja castigar o seu coração, provavelmente por
se ter deixado envolver numa relação que o desiludiu e arruinou
psicologicamente ou que abruptamente foi quebrada (pela morte/ausência).
Hernâni Cidade, a este propósito, afirma que «o último verso deste soneto
ultrapassa as medidas românticas, chega aos excessos do ultrarromantismo, de
cuja poesia podia ser adotado como legenda». |
pré-romantismo
|
Bocage é um
autor de transição, assumindo a sua obra e este texto também características
neoclássicas e românticas: por um lado, a forma poética (o soneto); a
presença da mitologia («Amor»); as alegorias maiusculadas que correspondem à
personificação dos conceitos de «Morte» e «Noite»; o hipérbato e quiasmo
(«Calada testemunha de meu pranto/ De meus desgostos secretária antiga»); as
repetições retóricas («Ouve-os, como costumas, ouve […]»); a adjetivação e
substantivação convencional («calada testemunha», «secretária antiga», «pio
agasalho», «cruel»). Por outro lado, a predileção pelos elementos noctívagos,
soturnos, fantasmagóricos e inspiradores de medo e horror («locus horrendus»)
está em clara evidência ao longo de quase todos os versos do soneto (por
exemplo, vv. 9-14); o sofrimento advindo de desgosto amoroso é também uma
temática frequente da produção desta corrente estética. Este conduz a estados
de solidão, isolamento, os quais são propícios a reflexão, a introspeção,
canalizando a atenção para si, para ao seu estado de espírito e sentimentos;
note-se, por exemplo, a presença no poema de cinco formas verbais e seis
pronomes/determinantes na 1.ª pessoa do singular («suspiro», v. 2; «diga», v. 5;
«obriga», v. 8; «Quero», vv.13-14; «meu», v.3; «meus», v. 4; «me», v. 8; «eu»,
v. 11; «meus», v. 12; «meu», v. 14). |
III - Conclusão
|
O sujeito
poético encontra-se em estado de espírito de profunda angústia e desilusão,
daí a obsessão pela morte, solução derradeira para os seus problemas. |
(Adaptação de: Sugestões de análise com propostas
de resolução de textos líricos, Dulce Teixeira e Lurdes Trilho, Porto Ed.,
1999)
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