terça-feira, 14 de março de 2023

Não és tu, Almeida Garrett

 



                NÃO ÉS TU





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Era assim, tinha esse olhar,
A mesma graça, o mesmo ar,
Corava da mesma cor,
Aquela visão que eu vi
Quando eu sonhava de amor,
Quando em sonhos me perdi.

Toda assim; o porte altivo,
O semblante pensativo,
E uma suave tristeza
Que por toda ela descia
Como um véu que lhe envolvia,
Que lhe adoçava a beleza.

Era assim; o seu falar,
Ingénuo e quase vulgar,
Tinha o poder da razão
Que penetra, não seduz;
Não era fogo, era luz
Que mandava ao coração.

Nos olhos tinha esse lume,
No seio o mesmo perfume,
Um cheiro a rosas celestes,
Rosas brancas, puras, finas,
Viçosas como boninas,
Singelas sem ser agrestes.

Mas não és tu... ai! não és:
Toda a ilusão se desfez.
Não és aquela que eu vi,
Não és a mesma visão,
Que essa tinha coração,
Tinha, que eu bem lho senti.

 

Flores sem Fruto e Folhas Caídas de Almeida Garrett, edição de Paula Morão, 3.ª ed., Lisboa, Comunicação, 1984, pp. 116-117

 

_________

1 semblante (verso 8) – rosto.

2 boninas (verso 23) – florzinhas campestres.

3 Singelas (verso 24) – simples.

 

I - Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Na primeira estrofe do poema, o «eu» começa a desenvolver uma comparação entre a imagem feminina dos sonhos e a mulher real.

Explicite os aspetos que evidenciam essa comparação, tendo em conta a estrofe referida.

2. Indique um dos efeitos de sentido produzidos pela anáfora presente nos versos 5 e 6.

3. Refira quatro das características da figura que surge na «visão» do sujeito poético.

4. Analise a relação que a última estrofe do texto estabelece com as anteriores.

 

Explicitação de cenários de resposta

1. Explicita, adequadamente, os aspetos que evidenciam a comparação estabelecida na primeira estrofe do poem.

A imagem que constitui o sonho do sujeito poético, e que começa a ser descrita na primeira estrofe, é a de uma mulher que lembra a figura da amada devido às semelhanças existentes entre ambas, como se constata pela ocorrência das palavras «mesma» (vv. 2-3) e «mesmo» (v. 2). Assim, a imagem feminina vista no sonho apresenta o modo de «olhar» (v. 1) particular da mulher amada, uma atitude graciosa similar («A mesma graça, o mesmo ar» – v. 2), bem como timidez e recato idênticos («Corava da mesma cor» – v. 3).

2. Indica, adequadamente, um dos efeitos de sentido produzidos pela anáfora presente nos versos 5 e 6.

Sendo uma figura de repetição, a anáfora reforça o sentido dos versos, enfatizando-o. Neste caso, em particular, produz os seguintes efeitos de sentido:

− marca o tempo do sonho (passado), quando o «eu» teve a «visão» (v. 4);

− salienta o efeito da figura feminina sobre o «eu»;

− sublinha o enamoramento do sujeito poético pela mulher com que sonhou;

− reitera a importância do amor vivido «em sonhos», conferindo um eco melódico aos versos.

3. Refere, adequadamente, quatro das características da figura que surge na «visão» do sujeito poético.

A imagem feminina que surgia nos sonhos do sujeito poético caracteriza-se por ser:

− graciosa («graça» – v. 2);

− recatada («Corava» – v. 3);

− altiva («porte altivo» – v. 7);

− meditativa («semblante pensativo» – v. 8);

− melancólica («suave tristeza» – v. 9);

− delicada («Que lhe adoçava a beleza» – v. 12);

− ingénua, com discurso simples («o seu falar, / Ingénuo e quase vulgar» – vv. 3-14);

− racional («poder da razão» – v. 15), capaz de persuadir, mais que de seduzir («Que penetra, não seduz» – v. 16);

− celestial («luz» – v. 17; «rosas celestes / Rosas brancas, puras, finas» – vv. 21-22);

− esplendorosa («Viçosas» – v. 23);

− simples, como as flores campestres, sem ser rude («Singelas sem ser agrestes» – v. 24);

− sensível ao amor do sujeito poético («tinha coração» – v. 29).

4. Analisa, adequadamente, a relação que a última estrofe do texto estabelece com as anteriores.

A relação que a última estrofe do poema estabelece com as anteriores é de oposição, introduzida pela conjunção coordenativa adversativa «Mas» (v. 25), colocada no início da sextilha. Essa conjunção e as expressões de negação, sucessivamente repetidas (vv. 25, 27 e 28), remetem para o fim do sonho, constatando o sujeito poético que o «Tu» não é a mulher idealizada no passado. Enquanto esta tem «coração» (v. 29), tal não acontece com a mulher real («Não és aquela que eu vi, / Não és a mesma visão» – vv. 27-28). Assim, o sonho do sujeito transformou-se numa realidade decetiva («Não és a mesma visão, / Que essa tinha coração» – vv. 28-29), acentuando-se a oposição sonho/realidade.

 

Fonte: Exame Final Nacional do Ensino Secundário n.º 734 - 11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Prova Escrita de Literatura Portuguesa. Portugal, IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2014, 2.ª Fase

 




II - Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- partes lógicas constitutivas do texto;

- caracterização física e psicológica do «tu»;

- recursos estilísticos relevantes;

- traços característicos do Romantismo.

 

Explicitação de cenários de resposta

 

Partes lógicas constitutivas do texto

O poema estrutura-se em duas partes, correspondendo a primeira aos versos 1-24 e a segunda aos versos 25-30, separadas pela conjunção adversativa «Mas», que marca uma mudança no discurso.

Ao longo da primeira parte, a sujeito poético desenvolve uma comparação entre a imagem resplandecente da figura feminina vislumbrada «em sonhos» «de amor» e o «tu» que, aparentemente, possui os mesmos atributos e provoca os mesmos efeitos da «visão». Na segunda parte, a contraposição da positividade dessa «visão» à negatividade da presença real do «tu» torna irremediável a confissão de um profundo desencanto, de uma desilusão sentida.

 

Caracterização física e psicológica do «tu»

A figura central consiste numa mulher possuidora de uma beleza assinalável («graça», «porte altivo») e dotada de um forte magnetismo (vv. 13-18). Certos traços psicológicos, que denunciam retraimento e introversão («Corava da mesma cor», «O semblante pensativo, / E uma suave tristeza / Que por toda ela descia»), combinam-se com uma imagem física mais vívida e sensorial («o seu falar, / Ingénuo e quase vulgar», «No seio o mesmo perfume, / Um cheiro a rosas celestes, / Rosas brancas, puras, finas»), embora não menos espiritualizada. Assim, nas quatro primeiras estrofes, os processos utilizados na caracterização resultam numa vibrante exaltação da figura feminina, elevando-a ao nível celeste de anjo.

Mas a verdadeira natureza do «tu» revela-se na última estrofe do poema: à aparência angelical exterior, intensificada no passado pelo carácter velado da representação do «tu» («um véu que lhe envolvia, / Que lhe adoçava a beleza»), opõe-se, no presente, uma imagem indelevelmente marcada pela ausência de sentimentos, de «coração».

 

Recursos estilísticos relevantes

Exemplos de recursos estilísticos:

- adjetivação – «porte altivo», «semblante pensativo», «suave tristeza», «Ingénuo e quase vulgar», «rosas celestes, / Rosas brancas, puras, finas, / Viçosas»;

- comparação – «Como um véu que lhe envolvia, / Que lhe adoçava a beleza», «Viçosas como boninas»;

- metáfora - «Não era fogo, era luz / Que mandava ao coração», «Nos olhos tinha esse lume»;

- anáfora - «Quando eu sonhava de amor, / Quando em sonhos me perdi», «Não és aquela que eu vi, / Não és a mesma visão»;

- …

 

Traços característicos do Romantismo

Destacam-se, entre outros, os seguintes traços:

- imagem dúplice da mulher (angelical/demoníaca);

- sentimento de perdição provocado pelo amor;

- confessionalismo;

- tom melancólico;

- …

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 637. Curso Complementar Licear Nocturno. Prova Escrita de Português (Índole Literária). Portugal, 1999, Militares

 

 


CARREIRO, José. “Não és tu, Almeida Garrett”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 14-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/nao-es-tu-almeida-garrett.html


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