Segundo o Courrier internacional (nº 91), neste final de 2006, os escritores parecem estar combinados, pois os seus “romances mais recentes exploram o tema da família, frequentemente abordado do ponto de vista das relações pai-filho ou pai-filha. Sobre ele escrevem autores tão diferentes como o mexicano Carlos Fuentes, os americanos Cormac McCarthy e Edward P. Jones, o italiano Niccolò Ammaniti ou o holandês Arnon Grunberg, retratando a família enquanto metáfora da sociedade, mas também como último refúgio num mundo violento que perdeu as referências.”
Vejamos, nós também, alguns retratos de família de ontem e de hoje.
“Retirantes” (1944), Candido Portinari (1903-1962)
Óleo sobre tela 190 x 180 cm.
Colecção do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, Brasil
A pintura com o título “Retirantes” (1944) de Portinari capta um momento em que uma família miserável de camponeses foge da seca que assolou o nordeste brasileiro.
“Regressados”, Paiva de Carvalho (1930-2006)
Este retrato de família
Está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
Quanto dinheiro ele ganhou.
Nas mãos dos tios não se percebem
As viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela,
Sem memórias da monarquia.
Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranquilo,
Usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.
O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
É um oceano de névoa.
No semicírculo das cadeiras
Nota-se um certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
Mas sem barulho: é um retrato.
Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
Outra, sorrindo, se propõe.
Esses estranhos assentados,
Meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
Numa sala que se abre pouco.
Ficaram traços de família
Perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
Que um corpo é cheio se surpresas.
A moldura deste retrato
Em vão prende seus personagens.
Estão ali voluntariamente,
Saberiam – se preciso – voar.
Poderiam subtilizar-se
No claro-escuro do salão,
Ir morar no fundo dos móveis
Ou no bolso de velhos coletes.
A casa tem muitas gavetas
E papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
Quando a matéria se aborrece?
O retrato não me responde,
Ele me fita e se contempla
Nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam
Os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
Dos que restaram. Percebo apenas
A estranha ideia de família
viajando através da carne.
Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo, 1945
Em “Retrato de família”, Carlos Drummond de Andrade tematiza o olhar debruçado sobre um instantâneo fotográfico.
A constatação de duplo envelhecimento – a ideia do retrato perecível (“um tanto empoeirado”) e a incompatibilidade de situações comparativas desgastadas pelo distanciamento do tempo (“Os meninos, como estão mudados”) – faz com que o sujeito poético confirme a noção de fotografia como arranjo iconográfico e como elemento reducionista e imperfeito na reprodução do conteúdo familiar.
Neste caso, a possibilidade de movimento foto-cinematográfico obedece a um ritmo interior e bastante específico. O sujeito percebe de imediato a incapacidade da fotografia em registrar a passagem do tempo. Através da verbalização do conteúdo particular do retrato, instaura-se uma espécie de movimento pendular de imagens fixas em imagens móveis, que vão encontrar sua síntese na percepção final da “estranha ideia de família/viajando através da carne”. A partir do momento que o sujeito poético recupera a consciência diante do carácter restrito e selectivo da foto que se encontra à sua frente, inaugura-se a ideia de animação do conteúdo do quadro familiar.
No semicírculo das cadeiras
nota-se um certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
Mas sem barulho: é um retrato.
A única solução para encontrar semelhanças entre os “traços da família” no retrato e as implicações e as especificidades do momento em que se narra é justamente insistir na estratégia de verbalização das mudanças de cada membro familiar (a tranquilidade do rosto de Pedro, a mudança dos meninos, a “verdade” de João). Ou seja, a sensação de movimento está na atitude de mover-se (pela palavra) para se distanciar do aspecto reducionista e imobilizador do congelamento do quadro, ao mesmo tempo que se estabelecem comparações entre os dois tempos distintos. Para o sujeito poético, verbalizar significa “fotografar” as modificações dos traços familiares e justapor esta nova fotografia ao lado daquela que originou este processo. Daí resulta o sucesso dessa estratégia: a impossibilidade de diferenciar os “parentes mortos” (traços congelados e não reproduzidos pelo tempo da foto) dos “parentes vivos” (traços do mundo visível modificados de acordo com o efeito da intensidade da passagem do tempo). É desse jogo infinito de comparações e alternâncias entre o estado anterior e o actual que vai surgir a sugestão de movimento. Da justaposição das diversas imagens verbalizadas pelo sujeito resultam reproduções infinitas dos diferentes momentos de convivência familiar. “Bastante para sugerir/que um corpo é cheio de surpresas”.
Toda essa estratégia de movimento só se torna possível diante da noção de enquadramento. “A moldura deste retrato/em vão prende suas personagens”. Ao aproximar a noção de enquadramento da noção de moldura, o sujeito poético percebe o carácter selectivo a que os elementos de cena estão subordinados. No entanto, supõe o que se encontra implícito no enquadramento: a realidade da foto se estende para além desse aprisionamento específico. Se este sujeito diante do retrato contrapõe a micropaisagem dos rostos e gestos familiares à imensidão do além-quadro, reconhece a tensão que se estabelece entre o que é infinitamente pequeno e o que é infinitamente grande, retomando a ideia de aprisionamento selectivo e específico da fotografia. À proporção que o observador da foto vai verbalizando seus conteúdos, engendrando movimento conforme vimos, sua atitude leva à superação dos limites impostos pela moldura (como se o quadro transbordasse: “saberiam – se preciso – voar”).
Folhear o álbum, engendrar fotogramas.
Sérgio Mota (Professor da PUC-Rio)
ALCEU - v.3 - n.5 - p. 22 a 40 - jul./dez. 2002
Miguel Esteves Cardoso
As relações afectivas também estão passando por profundas transformações e revolucionando o conceito de amor. O que se busca hoje é uma relação compatível com os tempos modernos, na qual exista individualidade, respeito, alegria e prazer de estar junto... e não mais uma relação de dependência em que um responsabiliza o outro pelo seu bem-estar.
A ideia de uma pessoa ser o remédio para nossa felicidade, que nasceu com o romantismo, está fadada a desaparecer neste início de século. O amor romântico parte da premissa de que somos uma fracção e precisamos encontrar a nossa outra metade para nos sentirmos completos. Muitas vezes ocorre até um processo de despersonalização que, historicamente, tem atingido mais a mulher.
Ela abandona suas características para se amalgamar ao projecto masculino.
A teoria da ligação entre opostos também vem dessa raiz: o agressivo, e assim por diante... uma ideia prática de sobrevivência e pouco romântica, por sinal.
A palavra de ordem deste século é parceria. Estamos trocando o amor de necessidade pelo amor de desejo. Eu gosto e desejo a companhia, mas não preciso, o que é muito diferente. Com o avanço tecnológico, que exige mais tempo individual, as pessoas estão perdendo o pavor de ficar sozinhas e aprendendo a conviver melhor consigo mesmas. Elas estão começando a perceber que se sentem fracção, mas são inteiras. O outro, com o qual se estabelece um elo, também se sente uma fracção. Não é príncipe ou salvador de coisa nenhuma. É apenas um companheiro de viagem.
O homem é um animal que vai mudando o mundo, e depois tem de ir se reciclando, para se adaptar ao mundo que fabricou. Estamos entrando na era da individualidade, o que não tem nada a ver com egoísmo. O egoísta não tem energia própria, ele alimenta-se da energia que vem do outro, seja ela financeira ou moral.
A nova forma de amor, ou mais amor, tem nova feição e significado. Visa a aproximação de dois inteiros e não a união de duas metades. E ela só é possível para aqueles que conseguirem trabalhar a sua individualidade.
Quanto mais o indivíduo for competente para viver sozinho, mais preparado estará para uma boa relação afectiva. A solidão é boa, ficar sozinho não é vergonhoso!
Ao contrário, dá dignidade à pessoa. As boas relações afectivas são óptimas, são muito parecidas com o ficar sozinho, ninguém exige nada de ninguém e ambos crescem. Relações de dominação e de concessões exageradas são coisas do século passado.
Cada cérebro é único. O nosso modo de pensar e agir não serve de referência para avaliar ninguém. Muitas vezes, pensamos que o outro é nossa alma gémea e, na verdade, o que fizemos foi inventá-lo ao nosso gosto. Todas as pessoas deveriam ficar sozinhas de vez em quando, para estabelecer um diálogo interno e descobrir sua força pessoal. Na solidão, o indivíduo entende que a harmonia e a paz de espírito só podem ser encontradas dentro dele mesmo e não a partir do outro. Ao perceber isso, ele se torna menos crítico e mais compreensivo quanto às diferenças, respeitando a maneira de ser de cada um.
O amor de duas pessoas inteiras é bem mais saudável. Nesse tipo de ligação, há o aconchego, o prazer da companhia e o respeito pelo ser amado. Nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém, algumas vezes você tem de aprender a perdoar a si mesmo...
Chamo também a atenção para um novo livro que tem por título Sexo e amor, editado, em Portugal, neste final de 2006, pelo sociólogo Francesco Alberoni. A obra surge quase três décadas após a publicação de Enamoramento e amor.
"Pensei que valeria a pena estudar as várias sociedades, as várias combinações entre sexo e sociedade. Fiz vários retratos, a partir de centenas de entrevistas, e com eles tentei transmitir aquilo que os homens e as mulheres de hoje sentem, desejam, querem, repudiam", ou seja, mostra as nossas mais secretas motivações e os nossos desejos mais contraditórios, assim como os factos que preferimos ignorar e os pensamentos que desejávamos não ter.
Para Francesco Alberoni, "o amor hoje em dia só acontece se houver uma extraordinária intimidade física e espiritual”.
CARREIRO, José. “Retrato de Família”. Portugal, Folha
de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 21-12-2006. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2006/12/retrato-de-familia.html
(2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2006/12/21/retratodefamilia.aspx)