domingo, 27 de fevereiro de 2011

MULHERES DE ABRIL | A REPÚBLICA DAS MULHERES


A República das Mulheres I 
        
         
COMUNICAÇÃO
         
Tudo chegava pelo lado da sombra, do terror, da pegajosa ignomínia. Os esbirros amordaçavam a luz. Com as mãos mergulhadas nas estrelas que escondia nos bolsos o poeta assobiava uma pátria de brancura e paz. E deu flor: um poema para ensinar risadas de camélias aos animais do medo. O poema foi arrastado para a treva onde os estranguladores das palavras constroem o silêncio da sala de espelhos onde o tirano se masturba. O poema atravessou o inferno e alguns dos seus sons ficaram queimados.
     
Uma vez exalado o grito de libertação que fez entrar a Cidade no exercício dos seus timbales o poema pediu ao poeta que lhe arrancasse as folhas mais ressequidas e em seu lugar pusesse as gotas de água do canto que quer correr para a vida. E o poeta fez a vontade ao poema que queria cantar. E aqui e além o corrigiu dotando-o da actualidade que as máquinas do inferno lhe roubaram.
          
Natália Correia, 1959
in O Sol nas Noites e o Luar dos Dias Is/l, Círculo de Leitores, 1993, p. 229.
         
              
A República das Mulheres I (ciclo de conferências, 2011) 
                  
        
          
BASTA
        
Basta.
– digo –
que se faça
do corpo da mulher:
      
a praça – a casa
a taça
         
A ÁGUA
           
Com que se mata
a sede
do vício e da desgraça
             
Maria Teresa Horta, Mulheres de Abril
Lisboa, Ed. Caminho, 1977.
         
***

PRANTO PELO DIA DE HOJE
        
Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por trocas por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas.
         
Sophia de Mello Breyner Andresen
Livro Sexto, 1962

O poema [“Pranto pelo dia de hoje”, de Sophia de Mello Breyner Andresen,] apresenta-se em uma forma simples, um bloco de oito versos maioritariamente decassílabos que trazem a angústia daqueles que ousam lutar e criar em um ambiente marcado pela coerção e cerceamento ideológico. Nos dois versos dodecassílabos que se repetem, “Nunca choraremos bastante quando vemos”, observamos a voz poética afirmar que nenhum pesar é suficiente para um gesto criador que é cerceado e nenhuma lamentação soluciona a luta daqueles que foram destruídos por sua ação. A referência à censura pode ser lida por meio dos verbos “impedir”, que se associa à limitação da liberdade de expressão praticada pelo governo do Estado Novo, e “destruir”, que sugere a violência com que é executada a ação de controle político.

Há, novamente, o aspeto de falsidade, perversão moral e traição, que aparecem nas imagens de “insídia” e “venenos”. O termo “insídia” significa “espera às escondidas do inimigo, para investir sobre ele; tocaia, emboscada, cilada; falta de lealdade; traição, cilada; ardil, estratagema, intriga” (Dicionário Eletrônico Houaiss). Assim, temos uma espécie de antítese na aproximação do verbo “lutar”, com aspeto positivo – aquele que resiste e que busca romper o cenário da coerção e da ameaça –, e dos termos “destruído”, “insídia” e “venenos”. Esse contraste revela a tentativa de resistência diante de um contexto que ameaça e cerceia aqueles que se expressam de forma contrária ao governo e que, muitas vezes, não conseguem vencer a força dos que detêm o poder.

Os últimos três versos do poema reforçam o tom de denúncia na medida em que a voz poética afirma que há outras maneiras “tão sábias tão subtis e tão peritas” de destruir quem luta “que nem podem sequer ser bem descritas”. O verbo descrever oferece ao poema uma perspetiva mais objetiva, distanciando a voz poética de um relato subjetivo, o que garante aos versos um forte viés de denúncia e de relato de alguém(*) que sofreu com a censura e com a tortura. O título, que insere o pesar no dia de hoje, fortalece essa ideia de denúncia das ações arbitrárias e opressoras da censura em Portugal […].

 

Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015

 

___________

(*) Nas cartas trocadas com o autor Jorge de Sena, Sophia Andresen revela algumas situações em que sofreu com a censura e a ação da PIDE. Em 11 de outubro de 1962, a polícia esteve em sua residência e confiscou toda a correspondência enviada por Sena. (ANDRESEN, S.; SENA, J., 2010, p.65). Em 10 de junho de 1963, a autora relata que deixou a direção da revista Távola Redonda, por problemas com a censura. (Ibidem, p. 76). Em 14 de maio de 1966, ela relata ter recebido da União Nacional dois comunicados de insultos, ameaças e acusações de ligação aos comunistas e glorificação de terroristas. (Ibidem, p.93). A autora também relata, em entrevista dada a Eduardo Prado Coelho, que chegou a escrever dois atos de uma peça teatral sobre os irmãos Graco, mas, em uma busca da PIDE entre 1969 e 70, ela escondeu os escritos e nunca mais os achou. (ANDRESEN, S., 1986, p. 68).

 



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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/02/27/republica.das.mulheres.aspx]

domingo, 6 de fevereiro de 2011

ANDEI POR MONTES E VALES

José Carreiro, “vale encantado” in Olhares
          
          
          
          
«Andei por montes e vales,
Sem dormir, nem descansar;
O comer, da carne crua,
No sangue a sede matar.
Sangue vertiam meus pés
Cansados de tanto andar;
E os sete anos cumpridos
Sem a poder encontrar.»

         
«Dom Gaifeiros», Romanceiro,
recolha de Almeida Garrett publicada entre 1843 e 1851.
             
         [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/02/06/vale.encantado.aspx]

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

LILAC WINE (James Shelton/Nina Simone)



   
    
I lost myself on a cool damp night
I gave myself in that misty light
Was hypnotized by a strange delight
Under a lilac tree
I made wine from the lilac tree
Put my heart in its recipe
It makes me see what I want to see
be what I want to be
When I think more than I want to think
I do things I never should do
I drink much more than I ought to drink
Because it brings me back you...
               
Lilac wine is sweet and heady, like my love
Lilac wine, I feel unsteady, like my love
Listen to me... I cannot see clearly
Isn't that he* coming to me nearly here?
Lilac wine is sweet and heady, where's my love?
Lilac wine, I feel unsteady, where's my love?
Listen to me, why is everything so hazy?
Isn't that he, or am I going crazy, dear?
Lilac Wine, I feel unready for my love,
feel unready for my love.
           
"Lilac Wine" (1950), letra de James Shelton,
* na versão de Nina Simone para o album Wild Is The Wind (1966).
    
    
    


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/02/04/LilacWine.aspx]