Cantos da Tristeza1
I |
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Talvez já te
não lembres, triste Helena, |
Cesário Verde
Porto, Diário da Tarde,
14 de fevereiro de 1874
Edição utilizada: “II - Poesias
não incluídas em O Livro de Cesário Verde” in Obra completa de
Cesário Verde, 4.ª edição organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão.
Lisboa, Livros Horizonte, 1983, pp. 150-154
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Esta poesia, amputada de 9
quadras, que se assinalam aqui, foi publicada em O Livro de Cesário Verde com
o título «Setentrional». Acontece que todas as quadras dadas a lume por Silva
Pinto - e só essas - haviam sido já transcritas num artigo da autoria do
organizador de O Livro sob o título de «Cesário Verde», estampado em Diário
da Tarde (20-03-1874), ou seja, pouco mais de um mês após a publicação integral
dessa poesia no mesmo jornal. Em suma: em 14 de fevere1ro de 1874, Cesário
publica a poesia Cantos da Tristeza, tal como agora se reproduz; em 20
de março do mesmo ano, sem qualquer menção a esse respeito, Silva Pinto
exemplifica a poesia do seu amigo com as mesmíssimas quadras que 13 anos depois
haveriam de aparecer em O Livro.
Nota de Joel Serrão, na
edição de Obra completa de Cesário Verde. Lisboa, Livros Horizonte, 1983
(4.ª ed.), p. 150.
Helena de Tróia, Robert Wise (1956) |
Numa perspetiva ainda
romântica, Cesário vê no campo uma fonte de prazer único: o campo permite a
aproximação entre dois seres.
A cidade, em
contrapartida, é vista como um espaço de Morte, de Sofrimento, de Solidão
calada.
Aliás, esta dicotomia
campo/cidade é acentuada pelo contraste entre o tempo presente (o tempo da narrativa
ou da escrita do poema) e o passado (o tempo recordado no poema): o presente é
triste, o passado foi feliz, Dirigindo-se à mulher, o sujeito poético evoca o
tempo feliz em que eta fugiu com ele da "Babel" e viveu só com ele,
no campo. A fuga da cidade está, assim, imediatamente associada à felicidade
amorosa passada, vivida no campo e recordada no poema na imagística tradicional
do campo romântico: "brancas noites de mistério", "doce
aragem", "borboletas doudejantes", "os meigos ditirambos /
Que os rouxinóis teciam nas olaias".
No campo, o sujeito
poético e a amada estiveram "unidos ambos / Num amor grande como um mar
sem praias". Esta imagem, que caracteriza a experiência do amor, em termos
espaciais, como uma ausência de limites, sugere que, ao deixarem a cidade, os
amantes escaparam ao confinamento que a cidade significa e que, ao fugirem para
o campo, entraram num espaço intemporal, livre de todos os confinamentos.
Mas o sujeito poético regressou
á cidade e a amada entrou num equivalente "claustro das Fiéis
emparedadas". E nota-se um paralelismo entre a situação dos dois:
- a amada é emparedada num
claustro; o eu regressa ao aglomerado de paredes que é a cidade;
- ela sepultou-se viva;
ele anda na cidade como um morto;
- ela escondeu a face num
véu negro; ele passa numa cidade que é sombria.
Na última quadra, há uma
súbita viragem de tom: a imagem irónica de um frade. Esta abrupta mudança é
característica da poesia da juventude de Cesário, onde a ironia é usada como um
travão ao sentimentalismo romântico. Traia-se de um desejo de autocorreção emocional
num poema cujo tom é predominantemente romântico.
Nota: Veja-se que ao
contrapor-se cidade e campo não se está a contrapor duas realidades objetivas.
Trata-se de dois espaços vividos subjetivamente porque relacionados com
experiências individuais subjetivas.
MACEDO, Helder. Nós:
uma leitura de Cesário Verde. 4.ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 1999
(adaptado)
Busto de Helena de Troia, Antonio Canova. Victoria and Albert Museum, Londres |
O poema “Cantos da Tristeza”, também
conhecido n’ O Livro de Cesário Verde com o
título de “Setentrional”, introduz a
dicotomia cidade-campo na poesia de Cesário. […]
A primeira quadra introduz a questão da solidão.
Apesar da possibilidade de a leitura considerar um monólogo dirigido ao Outro (no
caso a ‘triste Helena’), é uma rememoração que já se sabe ausente de
solidariedade. E esta questão repetir-se-á por diversas vezes: “Talvez já te
não lembres, triste Helena,” / “Talvez já te não lembres, pesarosa,” / “Talvez
já te esquecesses, ó bonina”, só para citar as três primeiras quadras. Das
vinte e duas quadras (considerando o poema na integra), oito delas tem,
literalmente, expressões que demonstram que o Outro já se esqueceu ou não se
lembra mais.
Este Outro, nomeado Helena por este Eu
reminiscente, é descrita como uma “Mulher como não há nem na Circássia”, de
“boca purpurina”, “cabelos de âmbar, desmanchados”. O aspeto da cor do cabelo é
repetido na quadra adiante: “Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,/
Pousarem borboletas doudejantes/ Nas tuas formosíssimas madeixas,/ Daquela cor das
messes lourejantes”. Ela acompanha o Eu nesta fuga da Babel,70para o locus
amenus que o campo representa, descrito como “terra
amena”, de “ribeiros remansosos”, das “verdes selvas”, e no “tempo da colheita
dos bons vinhos”, do “tempo em que eu vivia nos teus seios/ quando as aves
cantando entre as ramagens/ O teu nome diziam nos gorjeios.” […]
Encarando-se então que tais imagens poéticas são
fugas não só da Babel-cidade, mas também desta Babel-homem, em direção à
conciliação com o Outro, tem-se o testemunho deste desconcerto duplo: ao
mergulhar em si, ele encontra não a saudade de um passado objetivamente real,
mas o devaneio que romantiza estas recordações, e ao mesmo tempo, coloca em
dúvida o caráter de tais lembranças enquanto ‘sinceras’.
André Ozawa, Cesário Verde e o desconcerto do eu. São Paulo, FFLCH-USP,
2008
Helena de Tróia, Anthony Frederick Augustus Sandys, 1866 (Walker Art Gallery, Liverpool, Reino Unido) |
A última estrofe escrita
no tempo passado [estrofe XX], declara a razão da separação dos amantes. A
mulher entrou num equivalente claustro das Fiéis emparedadas e escondendo o seu
rosto de marfim/No véu negro acabou por ser sepultada. Podemos ver também um
certo simbolismo no seu desaparecimento. Ela era uma flor, bonina, que passou
com o seu amado até os momentos da brisa outoniça, mas é certo que uma flor
dessas não é capaz de sobreviver o tempo frio de inverno, e assim, é
predestinada a desaparecer. Neste sentido o véu negro pode implicar uma
mortalha mas também uma capa de terra que sepulta as flores mortas. É preciso acrescentar
que podemos sentir uma certa passividade desta mulher ou pelo menos resignação com
o seu destino.
Os amantes fugiram juntos
da cidade mas ele sozinho regressou ao lugar ausente de amor e neste
paralelismo metafórico do poema podemos observar que “a amante é emparedada num
claustro, o poeta regressa ao aglomerado de paredes que é a cidade; ela sepultou-se
viva, ele anda na cidade como um morto; ela escondeu a face num véu negro, a cidade
onde ele passa é sombria; finalmente, a resignação religiosa atribuída à amante
corresponde ao não menos religioso cálix da agonia prelibado pelo poeta na
cidade.” (MACEDO, Helder: Nós uma leitura de Cesário Verde. Editorial
Presença, Lisboa, 1999, p. 52).
Na última estrofe o eu
lírico confessa que se pudera na terra achar suplícios, também se faria gordo
frade e podemos dizer que, embora ele passasse pela cidade como a Morte, acha
um certo otimismo na vida que lhe impede ultrapassar as paredes da cidade, para
as paredes de um claustro. Ele não se resigna com o seu destino como o fez ela.
Fugindo ao sentimentalismo, termina o poema virando a última estrofe para a
ironia. Segundo Helder Macedo, este procedimento é “uma táctica de choque que
sacode o leitor desprevenidamente embalado no sentimentalismo fácil.” (ibidem,
p. 54). Podemos dizer que já neste poema imaturo, Cesário sente uma necessidade
de se afastar do Romantismo. A última quadra representa uma “autonegação de uma
poesia sentimental por um desfecho de farsa.” (SACRAMENTO, Mario: Lírica e
dialectica em Cesário Verde – folheto. Separata dos nº 163, 165 e
166 da revista Vértice, p. 4).
Segundo Joel Serrão este
poema é “a evocação de um amor quase infantil desenrolado no ambiente
campesino. Os adolescentes teriam vivido uma experiência de que os ribeiros
remansosos, os astros luminosos, o chorar das fontes, os cânticos das rãs, a fresquidão
das verdes selvas comparticiparam largamente.” (SERRÃO, Joel: Interpretação, poesias
dispersas e cartas. Editorial Minerva, Lisboa, 1957, p. 53). Esta opinião pode ser sublinhada
não só pelo facto da idade do poeta, mas também por ele não ter feito neste
poema nenhuma referência às qualidades pessoais da mulher mas, pelo contrário,
há várias indicações às características físicas dela. A bonina “não tem
personalidade verdadeira, somente uma identidade física, aliás estilizada e
cheia de encanto.” (TORRES,
Alexandre Pinheiro: A paleta de Cesário Verde, Estudos de literatura
portuguesa. Editorial Caminho, Lisboa, 2003, p. 61)
Neste poema, a cidade está
presente só na medida em que evoca uma infelicidade que se opõe à felicidade
dos momentos de campo que o poeta revive. O poeta remete-nos para uma cidade
que ainda não é especificamente Lisboa, mas sim uma cidade moderna qualquer. Ao
nomeá-la Babel, Cesário parece ver o campo como espaço positivo em contraste
com a cidade, vista como lugar de vício ou de corrupção.
Olga
Poláková, Mulher na poesia de Cesário Verde. Brno, Faculdade de Filosofia da
Universidade de Masaryk - Instituto de Línguas e Literaturas Românicas, 2008
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- “Para uma síntese da obra de Cesário Verde” - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Cesário Verde, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-04-22. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/cesario-verde.html
“Cantos da Tristeza / Setentrional,
de Cesário Verde” in Folha de Poesia, José Carreiro.
Portugal, 03-12-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/12/cantos-da-tristeza-setentrional-de.html