O Arquivo Digital do “Livro do Desassossego” já está online. E tem muitas histórias para contar
Depois de seis anos de trabalho, o Arquivo Digital Colaborativo do "Livro do Desassossego" está pronto e permite consultar e comparar as quatro principais edições da obra de Bernardo Soares.
Manuel Portela apresentou o projeto durante o Congresso Internacional Fernando Pessoa, em fevereiro deste ano.
HUGO AMARAL/OBSERVADOR
Quando se inscreveu no Congresso Internacional Fernando Pessoa, Manuel Portela tinha a certeza que, por essa altura, já teria uma versão definitiva do seu projeto para apresentar no auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Mas estava enganado: contratempos vários obrigaram-no a adiar a apresentação e a falar antes dos “atos de escrita” na obra de Bernardo Soares, recorrendo a uma versão de teste da plataforma que estava a desenvolver com a ajuda de um grupo de investigadores da Universidade de Coimbra, onde dá aulas, para mostrar os diferentes manuscritos. Na verdade, seriam precisos mais dez meses até estar tudo pronto e o professor universitário poder anunciar ao mundo o arranque oficial do Arquivo Digital Colaborativo do Livro do Desassossego, uma plataforma interativa que permite consultar e comparar as quatro principais edições da obra de Bernardo Soares e também criar edições virtuais.
O Arquivo Digital Colaborativo do Livro do Desassossego — ou, simplesmente, Arquivo LdoD — já está online e será oficialmente apresentado esta quarta-feira, pelas 11h30, no Anfiteatro III da Faculdade de Letras de Coimbra. Mas a ideia é muito mais antiga: “Nasceu em 2009”, contou Manuel Portela ao Observador. Foi aprovado para financiamento pela FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologiadois anos depois e começou a ser desenvolvido em 2012, por uma equipade investigação composta por especialistas em literatura e computação da Universidade de Coimbra em estreita colaboração com António Rito Silva, do Instituto Superior Técnico (IST) de Lisboa, que desenhou e programou todo o sistema de software, e também com a Biblioteca Nacional de Portugal, que tem na sua posse os manuscritos referentes à obra de Bernardo Soares.
Apesar de Manuel Portela, coordenador do projeto, não trabalhar no âmbito da literatura portuguesa, escolheu o Livro do Desassossego para a criação de uma plataforma interativa de literatura por causa das suas características peculiares. “A minha área de investigação é a literatura inglesa mas, quando em 2009, comecei a pensar em desenvolver um projeto que tirasse partido do dinamismo do meio digital, achei que o Livro do Desassossego era ideal para fazer esta experiência porque tem um carácter semi-estruturado, uma natureza quase modelar”, confessou ao Observador. “Podemos entrar num texto sem ter de entrar nos outros.” É que, apesar de existir “uma rede de relações” entre as centenas de fragmentos que constituem a obra, estes podem ser lidos e até estudados isoladamente.
[Teaser do Arquivo Colaborativo do Livro do Desassossego com Jerónimo Pizarro e Teresa Sobral Cunha]
Quando morreu, Fernando Pessoa deixou centenas de obras inacabadas no fundo da sua arca. Contudo, nenhuma se parece com o Livro do Desassossego. Escrito em duas fases distintas — de 1913 a 1920 e de 1929 a 1934, um ano antes da morte de Pessoa —, o Livro é composto por mais de 500 fragmentos, distribuídos por 30 mil documentos manuscritos ou dactilografados, que, apesar de não terem qualquer ligação entre si, funcionam como um todo. A obra manteve-se em boa medida inédita até 1982, altura em que Jacinto do Prado Coelho publicou a primeira edição do Livro do Desassossego, em dois volumes, pela editora Ática (com recolha e transcrição de textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha). Em vida, Pessoa publicou apenas cerca de 12 textos em revistas literárias. Nos últimos 30 anos, o Livro foi traduzido em dezenas de línguas e reconhecido como uma das grandes obras-primas do poeta português.
Para Manuel Portela, o Livro do Desassossego pode ser encarado de duas formas. “O Livro do Desassossego é um projeto autoral. O Livro do Desassossego é uma construção editorial”, escreveu num artigo de introdução ao Arquivo LdoD. “Enquanto projeto autoral, pode ser descrito como um trabalho desorganizado e inacabado escrito entre 1913 e 1935”, composto por documentos dactilografados, manuscritos e textos impressos. “Enquanto construção editorial, é o conjunto de edições impressas feitas com base nesse projeto autoral. Estas podem variar em termos de seleção, transcrição e também em divisão e organização das unidades textuais.”
Isto porque, uma vez que não existe uma ordem estabelecida por Pessoa, a organização fica sempre a cargo do editor responsável. Neste sentido, cada edição do Livro do Desassossego é diferente, até mesmo quando o editor é o mesmo. Outra questão diz respeito à atribuição autoral. Nalgumas edições, o Livro é atribuído a Vicente Guedes, heterónimo que começou por assinar os manuscritos, de 1913 a 1920, enquanto noutras a autoria pertence inequivocamente a Bernardo Soares, o “ajudante de guarda-livros” que foi responsável pela escrita do Livro do Desassossegode 1929 até ao final da vida de Fernando Pessoa, que morreu em finais de 1935.
Um projeto para tirar o Livro do Desassossego do papel
Foi enquanto preparava o projeto que Manuel Portela se apercebeu que “as dinâmicas do Arquivo LdoD podiam ser expandidas para lá do conceito inicial de comparação das múltiplas versões do Livro de maneira a transformar o arquivo num espaço participativo de edição e escrita”, explicou no mesmo artigo. “Partindo das intenções originais de usar o trabalho de Pessoa como sonda de pesquisa para a imaginação modernista do Livro, chegámos a esta noção do Livro do Desassossego como um lugar textual para a simulação literária“, referiu no mesmo artigo. O Arquivo LdoD deixou assim de ser apenas um meio interativo de comparação de edições, para se tornar num espaço onde os leitores podem construir o seu próprio Livro digitalmente.
Desde então, passaram cinco anos. O motivo da demora no lançamento tem a ver com a complexidade do projeto e também porque a codificação “é sempre um processo moroso”. “O Livro do Desassossego tem entre 500 a 700 textos mas, como temos cinco transcrições para cada texto, equivale a cerca de três mil e tal textos”, salientou o coordenador do projeto ao Observador. “E, ao mesmo tempo, tem tudo de ser codificado manualmente, o que implicou um grande período de trabalho.”
Além de imagens de documentos autografados, o Arquivo LdoD — um recurso multiplataforma e multidispositivo, que pode ser acedido através de um smartphone, tablet ou computador, em acesso aberto — inclui ainda novas transcrições dos manuscritos e das quatro principais edições do Livro do Desassossego — a de Jacinto do Prado Coelho (1982), já referida, a de Teresa Sobral Cunha (publicada em dois volumes em 1990 e 1991), a de Richard Zenith (1998) e a de Jerónimo Pizarro (2010). “Estas quatro edições são todas diferentes entre si”, afirmou Manuel Portela. “O princípio de organização é diferente e tem um modelo do Livro que não é exatamente coincidente. Agora, podemos observar de uma forma muito precisa essas diferenças.”
[Manuel Portela explica como é que funciona o arquivo “dinâmico”]
Para isso, foi preciso codificar “todas as variações que existem no texto”. “Quando há, por exemplo, uma quebra de parágrafo, um sinal de pontuação, uma leitura ou uma divisão de fragmento diferente. Todas estas diferenças estão marcadas. No fundo, é como se tivéssemos agarrado em cada um dos textos, os tivéssemos cortado e os tivéssemos misturado entre si, mas de uma maneira em que é sempre possível perceber que texto ou palavra pertence a que edição.”
Pode parecer complexo, mas Manuel Portela garante que não o é. “Uma das coisas que refiro sempre é que o nosso desafio é tornar isto inteligível para fora, para os utilizadores. Não queremos assustar as pessoas, porque o Arquivo pode parecer demasiado complexo. Tem muita informação, muitas camadas, mas pode-se entrar nele como se entra numa página do Livro que se abre ao calhas e se lê. As funcionalidades são, em geral, bastante simples. Algumas requerem alguma aprendizagem, mas não é muito diferente do que acontece com um jogo de computador. Quem quiser usar o Arquivo de uma forma mais profunda, precisa de algumas horas para aprender a mexer nele, mas isso também acontece com um jogo.”
Além do mais, o professor da Faculdade de Letras de Coimbra admite que tentaram “dar-lhe uma estrutura que permita vários tipos de aproximação”. “Isto pode servir para quem quer ler alguns textos do Livro, para quem está a estudá-lo e quer conhecer o Livro em mais profundidade, mas também para especialistas que estudam a história da edição e até para quem quiser fazer novas edições”, explicou. “Uma das coisas que o Arquivo vai permitir, e que não tem tanto a ver com os leitores gerais, é que os especialistas compreendam melhor a história das edições e o que cada um dos editores fez para organizar o Livro.”
Um arquivo que não é apenas para especialistas
De um modo geral, o Arquivo LdoD tem cinco grandes funcionalidades: a da leitura da obra “de acordo com diferentes sequências”, a “listagem de todos os fragmentos e informação acerca das fontes” do Livro do Desassossego, a “visualização dos originais e comparação das transcrições”, a possibilidade de selecionar “fragmentos de acordo com múltiplos critérios” e ainda a “criação de edições virtuais”. Esta é a única funcionalidade para a qual é preciso criar uma conta de utilizador e é uma das principais inovações do Arquivo.
[Aprender, investigar e criar com Arquivo Colaborativo do Livro do Desassossego]
“Tem uma dimensão lúdica porque as pessoas podem brincar, no sentido de selecionar e reorganizar o texto, anotá-lo e criar as suas próprias antologias e publicá-las na plataforma. Podem fazer uma pesquisa sobre um tema — o sonho, por exemplo —, fazer um texto, anotá-lo e depois publicar. E depois fica disponível para outros utilizadores”, frisou Manuel Portela. Mas há outros aspetos inovadores como, por exemplo, “o dinamismo que introduzimos no sistema, que permite comparar as diferentes edições, ver os originais, novas transcrições e pesquisar de uma forma muito granular, muito específica, todos os textos”.
Apesar de o Arquivo LdoD ser dirigido a todos, Manuel Portela admite que pode acontecer que este só seja consultado por investigadores e especialistas. “Estamos a tentar chamar a atenção para o facto de o nosso desafio ser mostrar às pessoas quais são as potencialidades, o que é que se pode fazer e, sobretudo, não as assustar”, afirmou o coordenador, acrescentando que estão previstas para várias iniciativas de divulgação do projeto. Outra dificuldade é, de acordo com o professor da Faculdade de Letras de Coimbra, “mostrar que isto não é apenas um repositório, um sítio onde os textos estão, mas que é também um sítio onde as pessoas se podem relacionar com os textos de uma forma muito dinâmica” através das pesquisas, comparações e organizações. “O Arquivo está concebido para criar uma relação dinâmica com o texto, para pensar o texto menos coo um objeto, mas mais como uma coisa que podemos modelar, em que podemos mexer.”
O trabalho continua
Apesar de o Arquivo Digital Colaborativo do Livro do Desassossego já estar online, ainda há muito trabalho pela frente. “Temos ainda previsto o desenvolvimento não só da edição, mas também da escrita virtual, permitindo que os utilizadores escrevam variações com base em fragmentos”, explicou Manuel Portela. “A nossa ideia é reconfigurar o Livro do Desassossego como ambiente textual dinâmico, que permita que os utilizadores se situem em relação ao texto em várias posições — como leitores, editores, escritores. No fundo, simular o espaço literário e a performance literária.”
De acordo com o coordenador do projeto, “no fundo, isto é uma espécie de primeira fase”. “Depois, numa segunda fase, durante os próximos dois, três anos, vamos desenvolver algumas funcionalidades que já estão concebidas. Vamos também integrar aquilo a que chamamos a ‘receção do Livro’.” Nesta secção, serão integrados os principais ensaios críticos sobre o Livro, que serão depois interligados com os textos da obra de Bernardo Soares que referem, estabelecendo “uma rede de relações”. Além disso, serão criadas duas comunidades de utilizadores — uma universitária e outra numa escola secundária —que serão monitorizadas ao longo de um ano. “Vamos observar a utilização do arquivo a longo de um ano e vamos também aprender como é que podemos desenvolver melhor as interfaces.” Por outras palavras: o trabalho ainda agora começou.
As funcionalidades de edição virtual e de escrita virtual são parte integrante das camadas dinâmicas do ambiente textual colaborativo do Arquivo LdoD. Destinam-se a ser usadas em práticas de aprendizagem, investigação e criação. Os utilizadores registados podem criar, anotar e publicar suas próprias edições virtuais livremente. Quando a funcionalidade de escrita virtual estiver disponível, poderão também escrever e publicar variações com base em referências textuais específicas do Livro do Desassossego. Todos os utilizadores registados no Arquivo LdoD devem respeitar as regras de conduta definidas neste documento.
Ao registar-se como utilizador do Arquivo LdoD, concorda em não usar a plataforma para:
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as quatro edições dos peritos transcritas no Arquivo LdoD apenas podem ser usadas no contexto da plataforma, tal como definido no Aviso de Copyright.
Os editores do Arquivo LdoD reservam o direito de:
apagar qualquer conteúdo gerado pelos utilizadores que não cumpra este código de conduta.
impedir os utilizadores registados que desrespeitem este código de conduta de aceder às funcionalidades virtuais de edição e de escrita da plataforma.
No
ensaio Filosofia da Composição (1846),
o escritor norte-americano Edgar Allan Poe desnuda o percurso da criação
poética, servindo-se do seu célebre poema “O Corvo” – “The Raven” na língua
original – como meio para explicar a criação artística.
Refletindo
sobre as motivações da produção literária, o autor assinala que as narrativas
tendem a fornecer uma tese, bem como a assumirem-se como um relato de
experiências vivenciais, às quais se aliam as descrições, os diálogos e os
comentários do escritor. Poe, que interpreta as respetivas motivações como um
erro, defende essencialmente a importância do efeito, que deverá acarretar um
outro traço relevante: a originalidade.
O
escritor norte-americano destaca o quão interessante seria chegar até ao leitor
um artigo – que nem um diário de bordo – no qual cada autor registasse todos os
passos da sua produção literária de modo a desmitificá-la. Porém, parece-lhe
que o desejo em manter uma perceção romântica da produção artística tende a
imperar, fazendo dominar a ideia de criação inspirada e intuitiva.
Contrariando
este paradigma, Poe apresenta o modus operandi utilizado para construir um dos seus poemas mais afamados: “O
Corvo”. A questão está colocada: como se elabora um poema? Na perspetiva do
autor, não há obra que não seja meticulosamente pensada, estabelecendo até um
paralelismo entre um poema e “a lógica rigorosa dum problema matemático”.
Em
primeiro lugar, o escritor deverá focar-se na extensão da obra, que deverá
fazer jus à elevação ou excitação que o poema comporta e proporciona. Por
conseguinte, a extensão da obra poética será crucial na difusão do seu efeito.
Poe propõe a solução: o seu poema deverá conter cerca de cem versos; cento e
oito, com precisão.
A
segunda questão que se impõe é a escolha da impressão, ou seja, que efeito o
escritor pretende disseminar no âmago do leitor. Para o autor norte-americano,
é fundamental que um poema seja “universalmente apreciável”, outorgando à beleza o traço medular da poesia. Portanto, se o belo é a expressão mais eloquente da poesia, “qual
será o tom da sua mais alta manifestação”? Esta nova inquietação traz consigo
uma resposta que toca todo o ser humano: a tristeza e a melancolia.
Tendo
em conta que a extensão, a impressão e o tom estão pensados, segue-se uma quarta
reflexão: a chave para a elaboração de um poema. Na perspetiva
de Poe, não há nada mais universal do que um estribilho singular que, de modo a
equilibrar a facilidade de variação e a brevidade da frase, se resumiria a uma
só palavra. Ao construir o seu poema com um refrão, torna-se imprescindível que
a obra se divida em estâncias, sendo estas concluídas pelo mesmo.
Consequentemente, Poe deduz que, de modo a atribuir ênfase ao estribilho,
tornou-se premente escolher sons que fizessem jus à melancolia do poema. Opta,
portanto, por um o extenso que associa a um r bem vigoroso. A junção
destes sons encaminhou o autor para a palavra nevermore (nunca mais).
O desideratum seguinte foi selecionar o pretexto em
que a respetiva palavra fosse empregada continuamente. Pareceu-lhe mais sensato
que fosse proferida por um animal dotado de palavra, tendo considerado o
papagaio, mas rapidamente substituído pelo corvo, que, também dotado de
palavra, se adequa mais ao tom melancólico do poema.
Qual
seria, por conseguinte, o topus mais poético e universal de todos? A morte surge-lhe como resposta. Morte de uma mulher
bela, morte chorada por um amante que se vê privado do seu amor. Um cadáver, um
amante martirizado e um corvo que profere nevermore são os elementos que
constituem o poema. Porém, como combinar os três eixos? Resguardando-se da
escuridão e da tempestade, o corvo entraria pela janela e viria responder às
questões apaixonadas, supersticiosas e desesperadas de um amante derrotado no
seu quarto, espaço este santificado.
A
deceção, o desgosto e a raiva do sujeito avolumam-se quando o termo evocado
continuamente pelo corvo o privam todas as esperanças de rever a mulher amada.
Quando o poema se encontra no apogeu está, assim, pronto a ser terminado, pois
“até ao momento, cada coisa ficou nos limites do explicável, do real.” Em suma,
na perspetiva de Poe, um poema deverá mesclar um tanto de complexidade e um
tanto de sugestividade, procurando que o “excesso de sentido sugerido” seja uma
subcorrente do tema e não a sua corrente superior.
Ao
longo d’A Filosofia da Composição, Poe opõe-se, assim, à
conceção romântica da criação artística, deslindando e desmistificando a origem
do trabalho poético, configurando-o como um processo árduo e de reflexão.
Numa
meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste, Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais, E já quase adormecia, ouvi o que parecia O som de alguém que batia levemente a meus umbrais. "Uma visita", eu me disse, "está batendo a
meus umbrais. É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro, E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais. Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais
- Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais! Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo, "É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais; Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais. É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante, "Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me
desculpais; Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo, Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais, Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus
umbrais. Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando, Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais. Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita, E a única palavra dita foi um nome cheio de ais - Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais. Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo, Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais. "Por certo", disse eu, "aquela bulha é na
minha janela. Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais." Meu coração se distraía pesquisando estes sinais. "É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça, Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais. Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento, Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais, Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais, Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura Com o solene decoro de seus ares rituais. "Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de
nobre e ousado, Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais! Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais." Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro, Inda que pouco sentido tivessem palavras tais. Mas deve ser concedido que ninguém terá havido Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais, Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais, Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto, Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais. Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento Perdido, murmurei lento, "Amigos, sonhos - mortais Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais". Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida, "Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais, Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais, E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura, Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais; E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais, Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais, Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo À ave que na minha alma cravava os olhos fatais, Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais, Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais, Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais. "Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por
anjos concedeu-te O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais, O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!" Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou
ave preta! Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais, A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo, A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais! Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou
ave preta! Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais. Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!" Disse o corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu
disse. "Parte! Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais! Não deixes pena que ateste a mentira que disseste! Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais! Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!" Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais. Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha, E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais, E a minhalma dessa sombra que no chão há mais e mais, Libertar-se-á... nunca mais!
Edgar Alan Poe, “O Corvo” (Tradução de Fernando Pessoa)
Foi vendedor de máquinas de pastilhas elásticas, paquete, estivador. Libertário e explosivo, acabaria por se tornar um dos mais populares poetas e letristas do seu tempo. Recordamos José Carlos Ary dos Santos nos 80 anos do seu nascimento
Ary dos Santos (7 de Dezembro de 1936 - 18
Janeiro de 1984) afirmou com veemência a sua virilidade de poeta. Pela voz de
Simone de Oliveira fez a apologia do corpo e do prazer femininos («Desfolhada
Portuguesa», 1969), certamente por distracção da Censura, arrebatando o primeiro
lugar no Festival RTP da Canção. Quatro festivais depois, arrasava a tourada na voz de Fernando Tordo e, na mesma
faena, vencedora, investia sobre a primavera marcelista e apelava à
resistência. As suas origens aristocrático-burguesas também não foram poupadas,
como testemunha o conhecido poema «O Burguês», figura tratada a ferros
sarcásticos. A salvo ficou A Bandeira Comunista (1977), corajosa e muito
pessoalmente hasteada: «o meu comunismo vem-me por via Czarista!».
Ary dos Santos: o nome – do poeta e declamador carismático, conhecido do
grande público como autor das letras de algumas das mais populares canções das
décadas de ’60, ’70 e começos de ’80 – não faz jus a uma personalidade
explosiva, irreverente, de humor sulfúrico e de grande turbulência imaginativa,
capaz mesmo de fazer detonar «O Bombista».
Nasceu em Lisboa, um ano antes daquele que sempre afirmou. Quando, com
apenas 16 anos, sai de casa em ruptura com o pai, traçara já, num soneto de um
livro dedicado à mãe («pela infinita dor de a ter perdido» pouco antes), um
programa de vida: «E canto na certeza do porvir,/ Que todo o mundo é meu e eu
vou partir/ À conquista dos reinos da poesia!». Mal sonhava o jovem Zé Carlos
que a poesia tinha reinos, uns mais nobres que outros. Natália Correia, que
manterá com ele uma relação de amor-ódio, não se cansará de lho lembrar.
Insuficientemente amadurecido, claro, esse primeiro livro que quis apagado
da sua bibliografia, Asas (1952), antecedendo bastante Liturgia do Sangue
(1963), considerada a sua estreia literária efectiva, incubava já o seu tom
excessivo e rasgado, o seu estilo transgressor, a rasar o libertário.
Compreensivelmente, quando em 1966 Natália Correia preparar a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica,
celebrizada pelo veredicto do Tribunal Plenário, Ary dos Santos não poderá ser
dispensado.
À saída de casa seguiram-se anos financeiramente difíceis, de embates
quotidianos, e sucederam-se empregos: vendedor de máquinas de pastilhas
elásticas, paquete na Sociedade Nacional de Fósforos, escriturário no Casino
Estoril e estivador (a crer no seu testemunho, nem sempre fiel). «Isto vai meus
amigos isto vai/ um passo atrás são sempre dois em frente» – dirá mais tarde no
poema «O Futuro», de «Tríptico do Trabalho». Chegou a
frequentar as Faculdades de Direito e de Letras da Universidade de Lisboa, mas
«com toicinho e talento ambas partes» (palavras do seu «Auto-Retrato») e uma
criatividade extraordinária, Ary dos Santos depressa as trocou pelo mundo da
publicidade, área que em Portugal revoluciona, alcançando reconhecido êxito.
A criação poética, com comprazimento no ludismo verbal e disponibilidade
metafórica, decorre paralela a uma vida profissional com cobranças difíceis e
artes de espantar. Adereços Endereços (1965), Fotos-Grafias (1970), As Portas Que Abril Abriu (1975), O
Sangue das Palavras (1978), 20 anos de Poesia (1983)
são algumas das obras daquele que reuniu num único terceto as três linhas que
reconhecidamente perfazem o todo que é a sua poesia: a interventora, a satírica
e a lírica: «Poeta de combate disparate/ palavrão de machão no escaparate/
porém morrendo aos poucos de ternura».
Tinha em preparação um livro de poemas intitulado As Palavras das
Cantigas (publicação póstuma, 1989), onde reuniu os melhores poemas
dos últimos quinze anos, e um outro intitulado Estrada da Luz – Rua da
Saudade, que pretendia que fosse uma autobiografia romanceada, mas não
houve tempo. O excesso, a solidão e o gim foram a mistura explosiva.
«Quando eu morrer – afirmou um dia – vai ser em glória. Vai a classe
operária toda ao meu funeral, e eu sentado no muro do cemitério, a vê-los
passar!». O desígnio cumpriu-se quase inteiramente.
Teresa Carvalho, "Ary dos Santos. Um transgressor à conquista dos reinos da poesia", https://ionline.sapo.pt/537479, 2016-12-09
O Café Chegam uns meninos de mota, Com a china na bota e o papá na algibeira São pescada marmota que não vende na lota Que apodrece no tempo e não cheira Porque o tempo É a derrota Chegam criaturas fatais Muito intelectuais tal como a fava-rica Sabem sempre de mais, Escrevem para os jornais com canetas molhadas na bica E a inveja (sim, a inveja!) É quanto fica Como quem está num chá dançante Duas velhas de penante depenicam uma intriga Debicando bolinhos vários Dizem mal dos operários que são a espécie inimiga Chegam depois boas maneiras Com anéis e pulseiras e sapatos de salto São as bichas matreiras que só dizem asneiras São rapazes pescado do alto E o que resta É pó de talco Chegam depois os vagabundos Que por falta de fundos não ocupam a mesa Têm olhos profundos, Vão atrás de outros mundos que pagaram com sono e beleza Mas o troco É a pobreza Chegam finalmente os cantores Os que fazem as flores neste mundo de gente São os modernos trovadores Que adormecem as dores numa bica bem quente Como quem está num chá dançante Duas velhas de penante depenicam uma intriga Debicando bolinhos vários Dizem mal dos operários que são a espécie inimiga Chegam depois boas maneiras Com anéis e pulseiras e sapatos de salto São raposas matreiras que só dizem asneiras Sâo rapazes pescado do alto E que resta (Evidentemente que é) Pó de talco Chegam depois os vagabundos Que por falta de fundos não ocupam a mesa Têm olhos profundos, Vão atrás de outros mundos que pagaram com sono e beleza Mas o troco É sempre a pobreza Chegam finalmente os cantores Os que fazem as flores neste mundo de gente São os modernos trovadores Que adormecem as dores numa bica bem quente
José Carlos Ary dos Santos fez história em Portugal. Deu
a voz a muita poesia portuguesa mas, e acima de tudo, compôs imensas canções que
fizeram do fado ser quem é atualmente. Acima de tudo, um género musical
identitário, com um repertório relativamente amplo e bem conseguido. Para este,
contribuiu muito o génio criativo, que, para além de proporcionar quatro
canções que representaram Portugal no Festival Eurovisão da Canção, deu o mote
para o sucesso da carreira de fadistas consagrados atualmente, como Amália Rodrigues ou
Carlos do Carmo. Esquecido por via da sua morte precoce, é portador de um
legado que importa ser relembrado e bem louvado.
José Carlos Pereira Ary
dos Santos nasceu em Lisboa, no dia 7 de dezembro de 1937. Seria nesta mesma
cidade que viria a partir, aos 46 anos de idade, no dia 18 de janeiro de 1984.
Nasceu numa família de raiz aristocrata, descendentes do Conde de Palmela e do
Visconde de Manique, importantes figuras nobiliárquicas no século XIX. Começou
a sua formação no Colégio Infante Sagres, mas o seu comportamento irrequieto e
rebelde levá-lo-ia a ser expulso. Um breve período num colégio jesuíta a norte,
em Santo Tirso, permitiu que regressasse a Lisboa, onde estou no Colégio São
João de Brito. A morte da sua mãe e a relação distante com o pai – saiu de casa
ainda adolescente – obrigou-o a procurar o seu sustento como escriturário no
Casino Estoril e no ramo das vendas e da publicidade, onde usufruiu de algum
sucesso criativo. Ainda chegaria a ingressar na Faculdade, em Direito e, algum
tempo depois, em Letras, mas deixaria por terra os seus intentos académicos.
Lançaria, porém, o seu primeiro livro em 1963, com pouco mais de vinte anos,
com a coletânea de poesia “A Liturgia do Sangue”, assim como a peça “Tempo da
Lenda das Amendoeiras” no ano seguinte. A poesia seria algo incentivado pela
sua família desde cedo mas Ary não gostava do que escrevia, tanto que se
chateou quando a sua família publicou “Asas” (1953) quando este tinha somente
14 anos. Seis anos depois, a sua vida conheceria um novo contributo ao seu
caráter irascível quando se juntou à Comissão Democrática Eleitoral e ao
Partido Comunista, com quem pôde usufruir de sessões de poesia que cativaram o
seu gosto pela escrita e declamação.
A poesia e, a
juntar a esta, a música seriam as vias pelas quais chegaria a um público cada
vez mais amplo, ajudando a renovar o panorama da música portuguesa. Em muito
contribuiu ter composto quatro canções bem-sucedidas para o Festival da Canção.
“Desfolhada Portuguesa” (1969, interpretada por Simone de Oliveira), “Menina do
Alto da Serra” (1971, na voz de Tonicha), “Tourada” (1973, cantada por Fernando
Tordo), e “Portugal no Coração” (1977, dada a conhecer pela banda Os Amigos,
que juntou nomes como Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e Ana Bola) foram os
quatro êxitos que compôs, com um tom ousado para então, que tocava em temas
sensíveis e até tabu então. A estes, juntou-se uma relação de colaboração com
Tordo que ascendeu a mais de 100 poemas para músicas. “Estrela da Tarde”,
“Lisboa Menina e Moça” ou “Cavalo à Solta” são algumas das canções que viriam a
advir dessa frutífera parceria, às quais se juntaram outras, como “Os Putos” ou
“Quando um Homem Quiser”, aqui com a voz de Paulo de Carvalho.
Músicas como “Fado do
Campo Grande”, “Um Homem na Cidade”, “Namorados de Lisboa” ou “Fado Varina”
dariam um contributo forte para a consolidação do fado como género musical e
fariam parte de uma compilação de outra voz bem conhecida, a do fadista Carlos
do Carmo, num álbum de seu nome “Um Homem na Cidade” (1977, toda ela com
composições de Ary dos Santos). A particularidade da sua composição passava por
um registo leve mas cuidado, atento àquilo que seria, para si, a voz de um povo
e o que este merecia. “Ary Por Si Próprio” (1970) e, já depois da queda do
Estado Novo, “Poesia Política (1974) e “Ary por Ary” (1979) exemplificam essa
voracidade. A sua criação fora da música também merecia alguma atenção por
parte da televisão, como a representação de “Azul Existe” no Teatro Tivoli a
ser transmitida na RTP. A notoriedade que conseguiu fez com que se movimentasse
muito dentro do país, recitando poesia e envolvendo-se em eventos
protagonizados com outros cantores de intervenção, como Zeca Afonso ou José Mário Branco.
Nesta fase, já
havia chegado o 25 de abril, que marcou o fim do regime ditatorial e o início
da democracia, que abriu portas à afirmação da esquerda, à qual Ary dos Santos
procurou emprestar a sua voz e, por vezes, a sua presença em manifestações e
até assaltos de forças mais radicais. Tinha sido visado pela Censura,
nomeadamente com a publicação de livros de poesia como “Adereços, Endereços”
(1965), “Insofrimento in Sofrimento” (1969) e “Fotos-grafias” (1971), revendo
os ganhos de abril com “As Portas que Abril Ganhou” (1975). Cada vez mais
se foi tornando numa figura incontornável da cultura portuguesa enquanto foi
redigindo mais centenas de poemas e gravando inúmeras declamações, tanto de
prosa como de poesia, com nomes consagrados da música nacional, como José Mário Branco ou
até António Victorino d’Almeida, e os intérpretes Amália Rodrigues (destaque
para “Cantigas de Amigos, álbum de 1971 que também contou com a participação da
autora Natália Correia) e Tony de
Matos. Um dos destaques a solo desta senda discográfica foi a leitura de “O
Sermão de Santo António aos Peixes”, do Padre António Vieira, uma das obras de
referência do barroco português. Antes da sua morte se fazer chegar, prepararia
uma antologia dos últimos quinze anos da sua carreira lírica com “As Palavras
das Cantigas” (lançado postumamente em 1984) e não chegaria a concluir a sua
autobiografia, mais romanceada que meramente fictícia, em “Estrada da Luz – Rua
da Saudade”.
Seria vítima dos seus
vícios, do tabaco e, especialmente, do álcool e de gim, tendo sido vítima de
uma cirrose no início do ano de 1984. Foi uma perda inconsolável para a cidade
de Lisboa e para Portugal, mas a capital do país sentiu-a como ninguém deste
seu filho, que, mesmo sendo um choque para a falange mais conservadora do país
– era homossexual -, granjeou um estatuto marcante para a cultura popular. Em
Alfama, foi dado o seu nome a um largo e foi homenageada a sua residência de
longa data, na Rua da Saudade – rua que iria dar nome ao seu retrato literário.
As homenagens por parte de ex-colegas seus tornaram-se incontáveis, sendo
vários os discos de homenagem ao seu trabalho e à sua pessoa, nomeadamente de
Fernando Tordo ou de Carlos do Carmo. O “poeta do povo” chegaria à honra de
grande-oficial da Ordem do Infante D. Henrique em 2004, no meio de todas essas
considerações.
Ary dos Santos
permanece, ainda hoje, como uma referência na composição musical em Portugal
nos meados do século XX. Influenciou a música popular, desde as típicas baladas
até ao fado, para além de se esforçar por aproximar a poesia do povo. O seu
envolvimento político e social é disso exemplo, socorrendo-se dos seus dotes
criativos para criar e entoar a poesia como música, com uma pujança que
ressoava na voz estridente de Ary. A sua memória, por mais que esquecido seja o
seu nome, permanece bem viva, ainda ao som dos atuais fadistas, mas também de
outros artistas lusófonos, admiradores da sua veia lírica. Uma veia que criou e
declamou com a força de poucos e com a virtude de ainda menos.