Marc Chagall, “Les amoureux de Vence” |
Creio que está em "O Pároco da Aldeia”, de Alexandre Herculano. Um dos paroquianos do já idoso sacerdote, trabalhador no campo, apaixona-se por uma rapariga da mesma aldeia. Era no tempo da cerimónia conhecida como pedir namoro, ao pai da rapariga ou a quem lhe fizesse as vezes. O moço não ia, ficava quieto no seu canto. Pelo menos assim é no conto de Herculano. Em tão momentos a situação, o futuro namorado fazia-se representar por uma espécie de embaixador de cujos bons ofícios se esperava feliz desenlace.
Ora, o nosso apaixonado não tinha, ao que parece, parente de sangue ou por afinidade, nem padrinho, nem quem quer que fosse capaz de encarregar-se do recado. Solicita, assim, a colaboração do pároco que, antes de sim ou sopas, quer ver onde se mete. E indaga: “Tu ama·la?" Resposta: "Amar não amo, pois não sei as palavras. Mas preciso muito dela."
A minha citação, feita de memória, deve estar desrespeitando os termos precisos atribuídos, por Herculano, à sua personagem. Mas à ideia sou fiel: “não amo porque não sei, ou não tenho, as palavras...”
Uma formulação como essa não traria desprimor a filósofos da linguagem, sendo muito significativo que Herculano, por instinto ou de caso pensado, a tenha posto na boca de uma personagem rural. Referindo carecer das palavras para amar, o nosso jovem revela uma extraordinária consciência retórica. No caso, manifesta-se essa consciência pela percepção de que as palavras fazem falta não apenas para expressar o amor (ou qualquer outro sentimento ou emoção) mas, e sobretudo, para experimentar, para viver, sentimentos e emoções.
Tendemos a crer, e talvez creiamos sempre, que o sentir é separado de, e preexistente a, qualquer verbalização. Primeiro sentimos, acreditamos nós, só depois nos vindo as palavras que serviriam, apenas, para fazer transitar o sentimento para um destinatário que até pode ser o mesmo emissor... Ora, as coisas não são assim, como atinou a personagem de Herculano. Na verdade, o sentimento, na acepção de "afecto, afeição, amor", nasce de aprendizados: do totalmente informal ou do mais formalizado. No primeiro caso, o informal, os convívios do quotidiano são decisivos para dar nascimento, e crescimento, ao conjunto de palavras que, ditas para nós mesmos, nos permitirão, ao longo da vida, sentir o sentimento. Essa gestação verbal, em primeira instância, faz-se na família próxima ou alargada, ouvindo, falando, acarinhando, tocando O corpo do outro.
Modo mais formal de adquirir palavras para ter o sentimento é a leitura literária. Esse aprendizado pode começar muito cedo, primeiro pelas histórias contadas oralmente, depois pelos livrinhos que vamos lendo e onde contactamos não com uma pessoa na sua humanidade, mas com uma representação da humanidade da pessoa. É o que chamamos personagem. [...]
Maria Lúcia Lepecki
Super Interessante n.º 148, agosto 2010, Portugal.
Super Interessante n.º 148, agosto 2010, Portugal.
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/08/23/lepecki.aspx]