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sábado, 6 de julho de 2024

Fundo do Mar, Sophia de Mello Breyner Andresen


 

Vamos analisar como a imagem do "fundo do mar" é trabalhada como metáfora em cinco poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen ("Fundo do Mar", "Gráfico", "Assassinato de Simonetta Vespucci", "Caminho da Índia" e "Da Transparência"), revelando-se como um símbolo de beleza e perigo, renascimento, desolação, memória histórica ou introspeção.

 

FUNDO DO MAR

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora; 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., Poesia I, 1975, Lisboa, Edições Ática; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho; 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.

 

No poema "Fundo do Mar", Sophia de Mello Breyner Andresen pinta o fundo do mar como um local de maravilha e de terror simultâneos. O sujeito poético descreve um mundo onde "as plantas são animais / E os animais são flores", subvertendo as expectativas do leitor sobre a ordem natural das coisas. Este mundo subaquático é silencioso, afastado da agitação da superfície, e habitado por criaturas como o cavalo-marinho e o polvo, cujos movimentos são retratados com uma graça quase etérea. Contudo, a beleza deste lugar esconde um perigo latente, simbolizado pelo "monstro em si suspenso". A imagem do "tempo poisa / Leve como um lenço" sobre a areia sugere uma passagem tranquila do tempo, mas não elimina a presença constante do perigo. Este poema utiliza o fundo do mar como uma metáfora para a dualidade da existência, onde a beleza e a ameaça coexistem.

 

Cianómetro 


GRÁFICO

I

Curva dos espaços, curva das baías,
Vida que não é vida com os gestos inúteis,
Quem me consolará do meu corpo sepultado?

II

Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais
Do fundo do mar.
Eu nasci há um instante.

III

A mulher branca que a noite traz no ventre
Veio à tona das águas e morreu.

IV

Chego à praia e vejo que sou eu
O dia branco.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.

 

No poema "Gráfico", o fundo do mar aparece na segunda estrofe como um local de nascimento e descoberta: "Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais / Do fundo do mar. / Eu nasci há um instante." Aqui, o fundo do mar é associado com o início da vida e a novidade, contrapondo-se à sensação de sepultamento do corpo mencionada na primeira estrofe. A referência a este espaço subaquático sugere uma busca por renovação e um desejo de ligação à essência primordial da vida. O fundo do mar torna-se, assim, um símbolo de regeneração e exploração, contrastando com a estática e a inutilidade dos "gestos inúteis" da superfície.

 

ASSASSINATO DE SIMONETTA VESPUCCI

[I]

Homens
No perfil agudo dos quartos
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.

Vê como as espadas nascem evidentes
Sem que ninguém as erguesse — de repente.

Vê como os gestos se esculpem
Em geometrias exatas do destino.

Vê como os homens se tornam animais
E como os animais se tornam anjos
E um só irrompe e faz um lírio de si mesmo.

Vê como pairam longamente os olhos
Cheios de liquidez, cheios de mágoa
De uma mulher nos seus cabelos estrangulada.

E todo o quarto jaz abandonado
Cheio de horror e cheio de desordem.
E as portas ficam abertas,
Abertas para os caminhos
Por onde os homens fogem,
No silêncio agudo dos espaços,
Nos ângulos mortais da sombra com a luz.

[II]

Caminhava fito.
Sobre o seu ombro esquerdo
Um pássaro noturno e verde não cantava.
Obscuras correntes,
Desconhecidas direções do vento,
Secreto curso de estrelas invisíveis.

[III]

Tu e eu vamos
No fundo do mar
Absortos e correntes e desfeitos.
Agora és transparente
À tona do teu rosto vêm peixes
E vens comigo
Morto, morto, morto,
Morto em cada imagem.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, CORAL, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.



 

No terceiro segmento do poema "Assassinato de Simonetta Vespucci", o fundo do mar é utilizado para evocar um sentido de desolação e morte: "Tu e eu vamos / No fundo do mar / Absortos e correntes e desfeitos." A imagem é carregada de melancolia e resignação, sugerindo uma união na morte ou no esquecimento. Os versos seguintes reforçam esta visão de desintegração: "Agora és transparente / À tona do teu rosto vêm peixes / E vens comigo / Morto, morto, morto". A repetição da palavra "morto" intensifica o sentimento de aniquilação. Neste contexto, o fundo do mar serve como um cenário de perda e de dissolução da identidade, em contraste com a vida vibrante e a descoberta presentes em outros poemas.

Retrato póstumo de Simonetta Vespúcio por Sandro Botticelli


Trata-se de um poema ambíguo, pois Simonetta Vespucci (1453-1476), embora tenha sido uma figura histórica real, não morreu assassinada, mas sim de tuberculose. Conhecida como uma das mulheres mais belas de Florença, Simonetta foi musa de artistas como Sandro Botticelli (1445-1510), que supostamente a retratou como figura central em suas obras "A Primavera" e "O Nascimento de Vénus" (ambas na Galleria degli Uffizi, Florença, Itália). A hipótese de que Sophia de Mello Breyner Andresen "assassina" Simonetta metaforicamente no poema pode ser explorada como uma maneira de abordar a destruição de uma idealização ou a confrontação de uma beleza eterna e imaculada com a realidade da morte e da desintegração. Esta "morte" poética de Simonetta pode representar a tentativa da autora de desconstruir a imagem idealizada e intocável que Botticelli e outros artistas perpetuaram, trazendo à tona a mortalidade e a vulnerabilidade inerentes a qualquer ser humano, por mais idealizado que seja. 

 

CAMINHO DA ÍNDIA

I

Ante o seu rosto pára a história
E detém-se o exército dos ventos
Tinha o futuro por memória.

Coração atento em frente à linha lisa
Do horizonte
Vontade inteira e precisa
Exato pressentimento.

II

Que no largo mar azul se perca o vento
E nossa seja a nossa própria imagem.

Desejo de conhecimento
As tempestades deram-nos passagem.

E os lemes quebrados dos capitães mortos
E os náufragos azuis do fim do mundo
Na rota de todos os portos
No fundo do mar profundo
Com os seus braços ossos
E seus verdes destroços
Marcaram o caminho.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, NO TEMPO DIVIDIDO, 1.ª ed., 1954, Lisboa, Guimarães Editores; 2.ª ed., 1985, in No Tempo Dividido e Mar Novo, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Arpad Szenes; 3.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 4.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Federico Bertolazzi.

 

No poema "Caminho da Índia", o fundo do mar aparece como um local histórico e mítico: "E os lemes quebrados dos capitães mortos / E os náufragos azuis do fim do mundo / Na rota de todos os portos / No fundo do mar profundo". Aqui, o fundo do mar é um repositório de memórias e de restos de jornadas passadas. É um lugar onde se depositam os vestígios das grandes explorações e das tragédias marítimas. A imagem dos "lemes quebrados" e dos "náufragos azuis" evoca a história e a tragédia dos exploradores que se aventuraram nas águas desconhecidas. O fundo do mar, neste poema, é uma metáfora para o legado da exploração e para a inevitável mortalidade daqueles que ousam desafiar o desconhecido.

 

 

DA TRANSPARÊNCIA

Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência
No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, GEOGRAFIA, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições Ática; 2.ª ed., 1972, Lisboa, Edições Ática; 3.ª ed., 1990, Lisboa, Edições Salamandra, ilustração de Xavier Sousa Tavares; 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Frederico Lourenço.

 

Por fim, em "Da Transparência", o fundo do mar é utilizado como uma metáfora para a alma humana: "No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios / Mas sufocado sonho". A ausência de corais e búzios — elementos típicos e belos do fundo do mar — sugere uma profundidade interna que é dominada pelo sonho e pela introspeção. Estes sonhos são descritos como "condutores silenciosos canto surdo / Que um dia subitamente emergem / No grande pátio liso dos desastres". A imagem do fundo do mar serve aqui para ilustrar a profundidade e a complexidade dos sonhos e desejos humanos, que são ocultos e só emergem em momentos de crise ou de revelação.

 


sexta-feira, 5 de julho de 2024

Praia (Os pinheiros gemem quando passa o vento), Sophia de Mello Breyner Andresen


 

 

PRAIA

 

Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.

Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.

Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.

As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.

E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral, 1.ª ed., 1950, Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim (6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.

 

 

Intertextualidade

O poema “Praia”, de Sophia Andresen, estabelece um diálogo intertextual com os poemas “Horizonte” e “D.Dinis”, de Fernando Pessoa, ambos presentes na Mensagem. 

 

D. DINIS 

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio1, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho2 obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.

9-2-1934
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934

 

HORIZONTE 

Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração3,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério4
Esplendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria5 do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos6 merecidos da Verdade7.

s.d.
Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934 (Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).  - 58. Disponível em:
http://arquivopessoa.net/textos/2380

 

____________

Notas: 1 Arroio: regato. 2 Marulho: mar + barulho; agitação das ondas. 3 Cerração: nevoeiro denso; escuridão; trevas. 4 Sidério: sidéreo; sideral, astral, celeste. 5 “aquela fria / luz que precede a madrugada, / E é já o ir a haver o dia / Na antemanhã, confuso nada” (in “Viriato”) – fronteira entre o desconhecido e o conhecido. 6 Beijos – recompensa. 7 Verdade – conhecimento.

 

 

Para identificar as imagens no poema “Praia” de Sophia de Mello Breyner Andresen que parecem ter sido inspiradas pelos poemas “Horizonte” e “D. Dinis” de Fernando Pessoa, é importante analisar os temas e as metáforas partilhadas entre os textos.

A "antiquíssima nostalgia de ser mastro" (v. 11) que baloiça nos pinheiros sugere uma ligação com o passado marítimo de Portugal, evocando a era dos Descobrimentos e a exploração dos mares. Esta linha de pensamento liga-se com os poemas “D. Dinis” e “Horizonte”.

No poema “D. Dinis”, Pessoa explora a ligação entre a terra e o mar, simbolizada pelos pinhais que "ondulam sem se poder ver". A imagem dos pinhais, presente em ambos os poemas, serve como um ponto de conexão. Em “Praia”, os pinheiros baloiçam com nostalgia, enquanto em “D. Dinis”, eles são a voz da terra ansiando pelo mar. Ambos os textos utilizam a natureza para meditar sobre a história e a identidade nacional, evocando um sentimento de saudade em “Praia” e o desejo de exploração em “D. Dinis”.

Horizonte” também reflete um desejo de descoberta e transcendência. A ideia de um mar mítico e ancestral presente em ambos os poemas sugere uma intertextualidade. Pessoa escreve sobre o mar como um espaço anterior a nós, cheio de medos e mistérios que, uma vez desvendados, revelam uma beleza sublime. A descrição da linha severa da costa que se revela em árvores, aves e flores quando a nau se aproxima reflete um processo de revelação e desvendamento. Os pássaros de Sophia, apesar de terem uma conotação mais trágica, ainda se relacionam com a descoberta e a revelação, semelhante ao desembarque descrito por Pessoa. As ondas de Sophia (vv. 9-10) quebram contra a luz, criando uma imagem forte e arquitetónica, enquanto Pessoa descreve a revelação da paisagem à medida que a nau se aproxima (vv. 8-10). Em ambos os casos, há uma transformação visual da natureza com a proximidade e a luz.

 

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sábado, 22 de julho de 2023

Os Biombos Nambam, Sophia de Mello Breyner Andresen

Observe a imagem de um biombo Namban, abaixo apresentada. Leia o poema e as notas. 


Maria Helena Mendes Pinto, Biombos Namban, 4.ª ed., MNAA, Lisboa, 1993, p. 49

 

OS BIOMBOS NAMBAM

Os biombos Nambam contam
A história alegre das navegações
Pasmo de povos de repente
Frente a frente

Alvoroço de quem vê
O tão longe tão ao pé

Laca e leque
Kimono camélia
Perfeição esmero
E o sabor do tempero

Cerimónias mesuras
Nipónicas finuras
Malícia perante
Narigudas figuras
Inchados calções

Enquanto no alto
Das mastreações
Fazem pinos dão saltos
Os ágeis acrobatas
Das navegações

Dançam de alegria
Porque o mundo encontrado
É muito mais belo
Do que o imaginado

Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética, edição de Carlos Mendes de Sousa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015, p. 806.

 

Notas

Biombos Nambam (título) – peças de mobiliário formadas por painéis móveis e articulados, de importância histórica e artística, que retratam a chegada ao porto de Nagasáqui dos namban jin (os bárbaros do sul, como eram designados, no Japão, os portugueses). No poema, manteve-se a grafia utilizada pela autora («Nambam»).

Laca (verso 7) – verniz originário da China e do Japão; material ou objeto revestido por esse verniz.

Kimono (verso 8) – o mesmo que quimono; túnica longa, com mangas largas, usada no Japão.

camélia (verso 8) – flor da cameleira ou da japoneira, semelhante à rosa, também conhecida por rosa-do-japão.

mesuras (verso 11) – vénias em sinal de cortesia.

mastreações (verso 17) – conjunto de mastros de uma embarcação.

 

Questionário

1. Explicite o sentido das palavras «Pasmo» (verso 3) e «Alvoroço» (verso 5), tendo em conta o contexto em que se inserem.

2. Analise o valor expressivo da enumeração presente na terceira estrofe.

3. O primeiro verso da última estrofe contribui para acentuar uma visão festiva das «navegações» (versos 2 e 20).

Justifique esta afirmação, referindo dois aspetos que a comprovem.

4. Observe as imagens, que reproduzem pormenores de dois biombos Namban.

Estabeleça uma relação entre as figuras humanas representadas nas imagens e as características atribuídas, no poema, aos navegadores.

Pormenor da chegada de uma nau portuguesa vinda de Goa

Pormenor do cortejo do capitão-mor

 

Explicitação de cenários de resposta

1. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Tendo em conta o contexto em que se inserem, as palavras «Pasmo» (v. 3) e «Alvoroço» (v. 5) sugerem:

− o espanto motivado pelo primeiro encontro de povos com hábitos e culturas diferentes («Pasmo» v. 3);

− o movimento e a excitação associados ao ambiente descrito no poema («Alvoroço» v. 5).

2. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Na terceira estrofe, a enumeração:

− remete para o exotismo oriental, através da referência a materiais e a objetos característicos do Japão (por exemplo, «Laca e leque» v. 7), assim como à flora («camélia» v. 8);

− introduz elementos associados às navegações para o Oriente e às relações (diplomáticas, comerciais e culturais) estabelecidas com outros povos («Perfeição esmero» v. 9; «E o sabor do tempero» v. 10);

− gera uma cadência melódica marcada pela aliteração e por um ritmo predominantemente binário («Laca e leque / Kimono camélia» vv. 7-8).

3. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A afirmação pode ser justificada com base nos aspetos a seguir enunciados:

− no primeiro verso da última estrofe, o sentimento de «alegria» é associado ao ato de dançar, sugerindo um ambiente de celebração, que tem como protagonistas os «ágeis acrobatas / Das navegações» (vv. 19-20);

− a introdução da palavra «alegria», no primeiro verso da última estrofe, reforça o sentido do adjetivo «alegre», que, no segundo verso da primeira estrofe, é usado para qualificar a «história [...] das navegações» (v. 2);

− a dança de «alegria» irrompe da experiência, única e surpreendente, de encontrar um «mundo» (v. 22) que supera, pela sua beleza, a própria imaginação.

4. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A relação entre as figuras humanas representadas nas imagens e as características atribuídas, no poema, aos navegadores pode ser estabelecida com base nos aspetos seguintes:

− os traços fisionómicos que se salientam na representação visual dos portugueses podem ser associados à sua descrição como «Narigudas figuras» (v. 14);

− no vestuário, tal como é representado nas imagens, destaca-se a forma arredondada das calças, que, no poema, encontra correspondência em «Inchados calções» (v. 15);

− a posição dos corpos dos marinheiros, no pormenor da chegada da nau portuguesa, sugere movimentos de agilidade acrobática («Fazem pinos dão saltos / Os ágeis acrobatas» vv. 18-19).

Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa. Prova 734 | 1.ª Fase | Ensino Secundário | 2023 | 11.º Ano de Escolaridade | Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 22/2023, de 3 de abril. República Portuguesa – Educação / IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P.

  

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Perfil poético e estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de Poesia, 2020-07-17


quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Procelária, Sophia Andresen

Procelária, Paz Mera, 2013 (adaptado)



 

PROCELÁRIA

 

É vista quando há vento e grande vaga

Ela faz o ninho no rolar da fúria

E voa firme e certa como bala

 

As suas asas empresta à tempestade

Quando os leões do mar rugem nas grutas

Sobre os abismos passa e vai em frente

 

Ela não busca a rocha o cabo o cais

Mas faz da insegurança sua força

E do risco de morrer seu alimento

 

Por isso me parece imagem justa

Para quem vive e canta no mau tempo

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

GEOGRAFIA, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições Ática • 2.ª ed., 1972, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., 1990, Lisboa, Edições Salamandra, ilustrações de Xavier Sousa Tavares • 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Frederico Lourenço

 

Poema “Procelária”, de Sophia, dito por Pedro Lamares, in Literatura Aqui, IV, 11, 2018-04-03. Disponível em https://www.rtp.pt/play/p4370/e339493/literatura-aqui


 

A tensão entre a espessura do mal e a «imaginária linha»

Quando o sujeito é confrontado com a realidade do mal e com a falta de liberdade, o «inaudito» bate à sua porta, levando-o a pôr em causa o seu mundo habitual e a procurar a reconstrução de um outro mundo (ideal). E, de facto, nos escritos de Sophia encontramos uma tensão permanente entre dois mundos: o mundo circunstancial e histórico, marcado por grandes injustiças, e o mundo intemporal e eterno, recriado pelos versos da poetisa. Aliás, como já vimos no capítulo anterior, «a reconstrução do mundo» é o grande ofício da poetisa, sendo no limite entre estes dois mundos que a poetisa vive e escreve, fazendo da «insegurança a sua força» e do «risco de morrer seu alimento», como nos dá a entender a metáfora da «Procelária», que é uma imagem justa «Para quem vive e canta no mau tempo». […]

Desta forma, podemos concluir que foi o confronto com uma situação de extrema injustiça, de violência e de mentira a que o povo português estava sujeito, por um regime totalitário opressor, que levou Sophia a instaurar na sua poesia «um percurso permanente de quem sempre procura a verdade e a justiça»774, como escreve Helena Langrouva. A procura de rigor, de justiça e de verdade assume-se desta forma, citando novamente Helena Langrouva, como «a espinha dorsal» da obra de Sophia, particularmente patente na antologia Grades. Missão que pode conduzir à própria destruição daquele que luta, bem simbolizada na alegoria da «procelária», que é imagem justa de quem ousa lutar, arriscando-se permanentemente a ser destruído:

Por isso me parece imagem justa

Para quem vive e canta no mau tempo

 

Emanuel Sousa, Poesia e Transcendência: Uma leitura teológica da obra de Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto, Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, 2010.

 

 

A poesia e a política

Nomear a nação em meio a um contexto sociopolítico conturbado é, de facto, uma função que não se configura como fácil para Sophia Andresen. Em uma correspondência a Jorge de Sena, datada de 1961, a autora afirma que sente aumentar a presença da raiva nas ruas de Portugal, pois as pessoas olham os escritores com ódio nas “grossas mãos fascistas” (ANDRESEN, S.; SENA, J., 2010, p. 51). Além disso, havia o cerceamento ideológico causado pela censura e pelo controle sistemático dos meios de comunicação, o que impedia drasticamente o debate político entre a sociedade e a formação de um senso crítico mais apurado em relação ao que se vivia. Essa limitação ainda era intensificada pela atmosfera de medo e ameaça que predominava no país. É nesse cenário que surge o poema “Procelária”.

Publicado no livro Geografia, de 1967, ele aparece como o primeiro poema da seção homónima. Na antologia Grades, ele é inserido após o ensaio Arte Poética III. O título do poema, o qual, aliás, não volta a ser citado no corpo do texto, refere-se a uma ave comum nas regiões oceânicas. Sua descrição é familiar para aqueles que costumam andar à beira-mar: de porte médio, a ave tem penas acinzentadas, mas o dorso branco e uma cauda alongada, assemelhando-se a um leque. Sua imagem é parte indissociável das paisagens marítimas.

O termo procelária vem do latim procellae, que significa “tempestade no mar”. A palavra aproxima-se de “procela”, a qual, por sua vez, nomeia as intensas tempestades no oceano, com ventos muito fortes e ondas muito grandes, as famosas e temíveis tormentas. As procelárias são assim nomeadas, pois são pássaros que voam na ventania, as quais geralmente antecedem a chuva. O voo delas é bem próximo ao mar, e, como elas têm uma envergadura média, definida por asas compridas e estreitas, conseguem se locomover com facilidade mesmo no mau tempo. Em consequência dessa habilidade de voo e do hábito pelágico304, as procelárias são conhecidas, na cultura popular, como um aviso de tempestades. Para os marinheiros, o pássaro costumava ser sinal de má sorte, justamente porque sua presença alertava-os da chuva iminente.305

Essa descrição do termo, contudo, parece quase dispensável quando iniciamos a leitura do poema, o qual apresenta onze versos divididos em três trípticos e um dístico ao final. Logo na primeira estrofe, a voz poética apresenta a procelária como a ave que vive na instabilidade da natureza: é um animal das ventanias e da grande vaga, ou seja, onda. Não somente vive nesse espaço agitado como também “faz o ninho no rolar da fúria”. O ninho é uma estrutura elaborada para receber os ovos, mas é frágil, feito de pedacinhos de madeira e folhas secas. O ninho da procelária, porém, é feito no “rolar da fúria”, uma imagem antitética. Nesse sentido, temos a imagem do animal unida, ao mesmo tempo, à fragilidade e à força.

De certa forma, a imagem da procelária também indica essa oposição: em um primeiro momento, a ave é uma imagem de calma e de leveza. Mas esse ser aparentemente sereno vive na tensão da ventania e da força do oceano. O seu voo é firme, pois aquele que anda na instabilidade não pode se deixar levar, precisa ser objetivo, certeiro “como uma bala” para conseguir continuar seu caminho.

A segunda estrofe segue o esquema da anterior na aproximação da ave à instabilidade do ambiente em que vive. Novamente, a voz poética aproxima uma imagem de fragilidade comum aos pássaros a um caráter de força e determinação, em um tom antitético. Aqui, enquanto os leões marinhos – cuja imagem é robusta, forte – estão abrigados em grutas, rugindo diante do mau tempo e da violência das águas, a procelária – apesar de uma aparente fragilidade – encara a ventania e empresta à tempestade suas asas. Enfrenta o abismo, vai adiante.

A imagem da procelária é, ao longo do poema, descrita por meio de mais oposições: um pássaro que faz do risco sua sobrevivência e “faz da insegurança a sua força”. Ele vive na instabilidade e torna-se forte exatamente por isso. Não busca abrigo: ao contrário, vive do arriscar-se. Para a voz poética, a procelária é a imagem justa para quem vive e canta no mau tempo. A ave canta, o poeta também. E o poeta do tempo de Sophia Andresen é aquele que “vive e canta no mau tempo”, por isso a procelária parece para a voz poética imagem justa.

Diferentemente dos leões marinhos que se abrigam da tempestade, a voz lírica abandona seu abrigo e o que lhe é conhecido para poder, de fato, sobreviver no mundo e assim, como as procelárias, faz da ventania sua força de vida: “E aprendi a viver em pleno vento” (Poema “Para atravessar contigo o deserto do mundo”. In: ANDRESEN, S., 2011, p. 417). Os leões marinhos podem ser lidos, se recuperarmos o contexto ditatorial, como os políticos, que “rugem”, salvos e seguros em suas grutas, ou seja, expressam-se livremente escondidos pela proteção que o poder político oferece. Assim, em “Procelária”, «A imagem do poeta ou do escritor comprometido regressa aqui de forma veemente, quase épica, contrapondo-se à dupla metáfora que animaliza uma vez mais os políticos, transformando-os em leões do mor que ‘rugem nas grutas’ como verdadeiros leões mamíferos» (MALHEIRO, H., 2008, p. 101).

Os leões do mar podem também ser lidos como aqueles indivíduos coniventes, que refutam a ocupação do medo e da ameaça que ocorre em seu país. No poema “Porque”, publicado originalmente em Mar Novo, de 1958, a voz lírica também traz a oposição, na estrofe final, daqueles que se abrigam do perigo e daqueles que o enfrentam, mostrando que o esquivar é o que torna o indivíduo enfraquecido:

[...]

Porque os outros são os túmulos calados

Onde germina calada podridão.

Porque os outros se calam mas tu não.

[...]

Porque os outros vão à sombra dos abrigos

E tu vais de mãos dadas com os perigos.

Porque os outros calculam mas tu não.

 

O momento da tempestade é também, conforme Sophia Andresen explica em entrevista a Maria Arminda Passos, um momento em que a autora tomou consciência da necessidade dos outros, como vimos no início deste capítulo. Na violência da tempestade, a imagem dos pescadores que lutavam por suas vidas e por seu retorno a terra inspirava na autora uma ideia de força e de salvação.

Como ocorre em outro famoso poema selecionado por Sophia Andresen para a antologia Grades, temos em “Procelária” uma ave como elemento central da metáfora criada, aumentando o conjunto de animais que aparece na coletânea. Em “O velho abutre”, como visto anteriormente, o pássaro também aparece em uma possível analogia a Salazar. Nesse poema, a autora cria uma relação metafórica a partir da personificação, ou seja, ela dá ao abutre traços dados ao homem, misturando-os com elementos do animal.

O abutre é sábio (qualidade dada aos homens), alisa suas penas (ação praticada pelo animal), a podridão lhe agrada (o abutre é um animal que se alimenta de carniça e dejetos) – ambivalência de sentidos: a podridão denotativamente agrada ao abutre, pois é dela que ele se alimenta, agradando o abutre metafórico, Salazar, cujos discursos “têm o dom de tornar as almas mais pequenas”. Em “Procelária”, contudo, a construção metafórica mantém-se mais implícita. Apesar de Sophia Andresen elaborá-la, a voz lírica indica a comparação de forma clara apenas no dístico final, quando afirma explicitamente que a imagem da ave é justa para aquele que canta e vive no mau tempo.

Nas três primeiras estrofes, a voz lírica apresenta a condição da procelária, de uma forma quase narrativa. Diferentemente de “O velho abutre”, há somente no quarto verso a personificação da ave, mas o recurso é desenvolvido de forma muito sutil: a ave empresta suas asas à tempestade. Essa imagem é muito visual, dá ao leitor a ideia de movimento – tanto da ventania como da própria ave. O movimento do animal funde-se ao do ambiente. Porém, essa fusão é ambígua: arrisca-se para viver. É essa tensão que oferece para a voz poética a possibilidade de comparação: da mesma forma que, em momentos de tormenta, a maioria das pessoas busca abrigo, há aqueles que fazem do risco, do perigo e do medo o único caminho de sobrevivência e superação.

Podemos pensar nos outros animais que aparecem em Grades. Além do abutre, encontramos, na terceira estrofe no poema “Esta Gente”, mais alguns animais que são metáforas para comportamentos e defeitos ligados a personalidades do contexto político:

[...]

Faz renascer meu gosto

De luta e de combate

Contra o abutre e a cobra

O porco e o milhafre

[...]

A cobra pode ser lida no excerto como imagem da traição e de falsidade, pois é um animal que engana sua presa ao dar o bote. Já o porco, por seu habitat, pode ser relacionado, muitas vezes, à sujeira, à imundície. O milhafre, por sua vez, pode ser ligado à ideia de perspicácia e da corrupção, uma vez que o animal, uma espécie de gavião ou de águia, é uma ave caçadora de voo alto, golpe certeiro, que “rouba” suas presas. Está ligada também ao orgulho e a opressão em razão de aparecer em diversos símbolos imperiais, sendo assim, “a perversão do poder” (CHEVALIER, J., 1986, p. 61.). O tempo que as vozes poéticas desses poemas relatam é, assim, repleto de aspetos que sugerem a ameaça, o controle, a corrupção e a mentira.

Temos, assim, abutres, chacais, porcos, cobras e milhafres que representam aqueles que detêm o poder, e esse discurso opõe-se à presença da procelária na coletânea. O bestiário de animais vistos por seu aspeto mais negativo são inseridos “para denunciar de forma violenta e agressiva a ditadura dos poderosos e a miséria física e moral de um povo recalcado e humilhado” (MALHEIRO, H., 2008, p. 101), como observa Malheiro. Por sua vez, a procelária rompe com esse recurso, sendo a imagem do poeta que denuncia, resiste e ousa cantar um país ocupado pelo medo e pelo terror. Nesse sentido, «a imagem de ‘resistência’ e de ‘combate’ resulta poeticamente perfeita neste alegorismo prosopopeico... [...] A estrutura metafórica que expressa a prepotência instigadora das forcas adversas ao sujeito, opostas à liberdade do seu ‘canto’, surge neste poema [...] intimamente ligada a um bestiário imagístico redutível aos traços sémicos da irracionalidade e da violência [...]» (PEREIRA, Luís Ricardo. Inscrição da Terra. Lisboa: Instituto Piaget, 2003, p. 80, apud MALHEIRO, H., op. cit, p. 101).

Essa característica da procelária – ou seja, de viver nas fúrias das ventanias e na incerteza do mar aberto – é uma qualidade valorizada para a voz poética, sendo a imagem adequada para aquele que canta no mau tempo, porque, assim, como a ave, deve passar sobre os abismos e seguir em frente. Tal valentia é anteriormente marcada pela voz poética: a ave joga-se no vai-e-vem das ondas e do vento ao invés de buscar um lugar seguro para estar: “Ela não busca a rocha o cabo o cais / Mas faz da insegurança a sua força”. Observam-se, nos versos, dois recursos importantes: primeiramente, a enumeração não pontuada, comum aos poemas de Sophia, que dá força e intensidade à ação de não buscar refúgio, levando à valorização desse traço da ave. A repetição, em decorrência da ausência de vírgula, cria para a leitura uma afirmação mais direta e incisiva.

Em seguida, a voz poética intensifica essa impressão por meio da oração adversativa unida pelo “mas”. Diferentemente daqueles que, vendo a tempestade se aproximar, procurariam por proteção, a procelária fortalece-se pela instabilidade e não segurança oferecida pelos ventos e pela tempestade. Por meio da oração coordenada adversativa e da enumeração direta, a voz poética permite uma leitura que reconhece o feitio corajoso da ave, valorizando-o ao relacioná-los àqueles que também tornam-se mais bravios no mau tempo.

A descrição da vivência da ave chama atenção para a concretude da imagem. De fato, a riqueza dos detalhes no desenvolvimento do poema exprime ao leitor uma ideia objetiva da procelária no mar, como uma tela ou um filme. Temos diferentes substantivos concretos que constroem a imagem do pássaro, e, assim como em “Pátria”, eles imprimem aos olhos de quem lê o poema a realidade da procelária. Essa imagem muito concreta da ave que vive no tempo das tormentas nos leva a compreender a comparação criada nos versos finais sem que haja a necessidade de falar mais de quem “vive e canta no mau tempo”.

Assim como a ave necessita das tempestades para viver, o poeta necessita da poesia. Porém, no contexto em que a autora está inserida, o fazer poético é cerceado, diferentemente da procelária. Se para o animal o perigo vem da ventania e do mar, para os escritores vem da ameaça da censura, da PIDE e de um Estado que não lhes oferece a possibilidade de fazer do seu canto parte da sociedade sem que haja pavor e coerção. Por isso cantam em tempos ruins. Para os homens da nação portuguesa, a violência, a opressão e a miséria são riscos às suas vidas, mas eles voltam seus rostos para o dia claro, pois são iguais ao Sol e ao vento, como vimos em “Regresso” e “Pátria”. É desses perigos que os homens tiram força para viver e, assim como o pássaro, fortalecem-se nas condições mais instáveis à sua vivência.

Há ainda o adjetivo “justa” – que qualifica o termo imagem –, o qual pode ser lido de duas maneiras distintas. Temos, inicialmente, a ideia de “adequação”, afinal a procelária, como metáfora do poeta, é uma imagem justa, adequada, para representá-lo. Em um segundo momento, podemos ir além da ideia de justeza e pensar na noção de justiça: a imagem da ave que canta no mau tempo é justa – no sentido de equidade – para aquele que deve cantar em tempos sombrios. O poeta é aquele que está implicado no mundo, e nesse caso no “mau tempo”, e tem a necessidade de cantar essa realidade. É por meio do seu canto que ele busca a justiça em momentos obscuros, assim como a ave busca sua sobrevivência nas tormentas. A necessidade de poesia da qual fala Sophia Andresen em Poesia e Realidade é também essa busca pela justiça. Por isso sua luta não é somente por sua sobrevivência, mas pela verdade, justiça e liberdade de seu país.

Além da antítese fundamental que orienta o poema, ou seja, o ser aparentemente frágil, mas forte na realidade, que consegue, assim, viver no perigo, podemos perceber que, no âmbito da composição do poema e do tema por ele abordado, há também uma oposição. As palavras usadas por Sophia Andresen são, como vimos, claras e objetivas. Os versos são curtos, formados por períodos divididos de forma simples. Há três períodos compostos por subordinação e três períodos compostos por coordenação e somente um período simples. Ainda assim, a linguagem é muito simples, de uma clareza que permite a objetividade do discurso. A pontuação é ausente, o que torna a leitura ainda mais fluida. Toda essa clareza, objetividade e fluidez do poema contrastam com o conteúdo mais tenso da vivência da procelária, criando, assim, uma espécie de antítese entre forma e temática.

 

Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015

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304 Pelágico: que vive em alto-mar, só vindo a terra no período da reprodução (diz-se de aves marinhas, como os albatrozes e pardelas). In: Dicionário Eletrônico Houaiss.

305 BEJCEZ, Vladimír; STASTNY, Karel, Enciclopédia das aves: as várias espécies e seus habitats. Florianópolis: Livros e Livros, 2002. CASTRO, Peter; HUBER, Michael E., Biologia Marinha. 8.ª ed. São Paulo: AMGH Editora, 2012.

 


 

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“Procelária, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-03. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/procelaria-sophia-andresen.html