Deixem-no lá, deixem-no lá, o papagaio!
Deixem-no lá, bem preso à terra,
vibrando!
Aos arranques,
a fazer tremer a terra,
a querer voar
pelo ar
até pertinho do Céu...
Deixem-no lá, deixem-no lá, o papagaio!
Deixem-no lá viver a sua inquietação
e ser verdade aquela ânsia
de fugir.
Não lhe cortem o cordel!
Poupem o papagaio à dor enorme
de cair,
papel inútil roto, pelo chão.
Não lhe ensinem,
ao pobre papagaio de papel,
que a sua inquietação
é a única força que ele tem.
Deixem-no lá,
naquela ânsia de fuga,
no sonho (a que uma navalha
pode dar o triste fim)
de fazer ninho no Céu:
Sempre anda longe da terra, assim,
o comprimento do cordel...
Deixem-no lá, deixem-no lá,
o papagaio de papel!...
Sebastião da Gama, Itinerário
Paralelo. Lisboa, Edições Ática, 1967
I - Esquema
interpretativo do poema “O papagaio”, de Sebastião da Gama
II - Questionário sobre o poema “O
papagaio”, de Sebastião da Gama
1. Indica a
quem se dirige o sujeito poético.
2. Explicita
o(s) apelo(s) que faz.
2.1. Regista
os versos em que surge(m) esse(s) apelo(s).
2.2. Identifica
o tipo de frase presente nesses versos.
2.3. Identifica
o tempo e o modo utilizados.
3. Descreve
o comportamento do papagaio que o sujeito poético quer proteger.
3.1. Explica o
que esse comportamento simboliza.
Fonte:
Projeto #EstudoEmCasa – Aula n.º 48 de Português dos 7.º e 8.º
anos sobre os poemas "O papagaio", de Sebastião da Gama, e "As
minhas asas", de Almeida Garrett, 2021-05-07. Disponível em: https://estudoemcasa.dge.mec.pt/2020-2021/7o-e-8o/portugues/48
Sugestão de respostas:
1. O sujeito
poético dirige-se ao leitor ou a quem possa interferir com o papagaio,
pedindo-lhes que não o perturbem.
2. O apelo
principal que o sujeito poético faz é para que deixem o papagaio em paz, sem
cortar o cordel que o liga à terra, permitindo-lhe viver a sua inquietação e
sonho de voar alto.
2.1. Os apelos
surgem nos seguintes versos:
«Deixem-no lá, deixem-no lá, o
papagaio!» (v. 1)
«Deixem-no lá viver a sua
inquietação» (v. 10)
«Não lhe cortem o cordel!» (v. 13)
«Deixem-no lá, deixem-no lá, / o
papagaio de papel!...» (vv. 28-29)
2.2. O tipo de
frase presente nesses versos é imperativa.
2.3. O tempo e
modo utilizados são o presente do modo conjuntivo (com valor imperativo).
3. O
comportamento do papagaio que o sujeito poético quer proteger é o de vibrar,
tentar voar, tremer a terra, viver na ânsia de fuga, e manter o sonho de
alcançar o céu, mesmo estando preso à terra pelo cordel.
3.1. Esse
comportamento simboliza a aspiração humana, a busca de liberdade, o desejo de
alcançar objetivos elevados e de sonhar, mesmo diante das limitações e
restrições impostas pela realidade. Enquanto o cordel representa as restrições
e as amarras que todos enfrentamos na vida, o papagaio de papel representa a
força do sonho e da inquietação como motivadores para tentar superar as
limitações. Assim, o poema convida-nos a valorizar a inquietação e a busca por
algo mais, mesmo que isso signifique permanecer distante do chão seguro e
conhecido.
Crepita a madeira na lareira
crepita a velha ameixieira
seus veios são as minhas próprias veias
vejo arder as ameixas e o verão
crepita aquela que deu sombra e agora dá calor
crepita o melro o verdilhão o rouxinol
e em cada tronco palpita
o próprio sol.
Crepita o sumo que escorria
pelo seu rosto onde o tempo também ardeu
crepita a velha ameixieira
e quem com ela crepita
sou eu.
Águeda, Natal, 2001
Manuel
Alegre, Doze Naus. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2007
Leitura
"Requiem
pela velha ameixieira" é uma elegia que celebra a vida e a morte da velha
ameixieira, a árvore que em vida proporcionou sombra e frutos e que agora
aquece a casa com o seu fogo, e, no seu crepitar, o sujeito poético encontra
reflexões sobre a sua própria existência e a passagem do tempo.
O poema inicia com a imagem da
madeira a crepitar na lareira, estabelecendo um ritmo constante e evocativo. A
repetição da palavra “crepita” nos versos 1, 2, 5, 6, 9 e 11 cria uma musicalidade que imita o som
do fogo, reforçando a sensação de inevitabilidade e continuidade.Além
disso, a rima no final dos versos como "lareira"
com "ameixieira" e
"rouxinol"
com "sol",
assim como a rima interna no verso "Crepita a madeira na lareira",
contribui para a harmonia e fluidez do poema, tornando a leitura uma experiência quase auditiva.
A ligação
entre a árvore e o sujeito poético é explicitada no verso "seus veios são
as minhas próprias veias". Esta metáfora indica uma interdependência entre
a vida da árvore e a do sujeito poético, sugerindo que a morte da ameixieira
representa a morte de parte do próprio poeta. De igual modo, a referência ao sumo que escorria pelo
rosto da árvore sugere uma ligação íntima, quase como se a árvore fosse uma
extensão do próprio poeta. A árvore é um símbolo da sua juventude, dos
verões passados, das experiências e momentos que jamais se repetirão.
Observe-se ainda a simbologia
do verão da vida, que também arde, e da entrada numa fase de declínio - o outono.
Esta
estação, tradicionalmente associada ao auge da vitalidade e do crescimento,
transforma-se em combustível para o fogo que aquece o presente, simbolizando a
entrada do poeta numa fase de declínio, o outono de sua vida.
O poema é
uma oração pelo passado, uma aceitação do presente e uma contemplação do
inevitável futuro, convidando o leitor a refletir sobre a passagem do tempo e a
inevitabilidade da mudança.
Tens cabelos brancos.
Mas porquê, avô?
Caiu muita neve
na estrada onde vou.
Tens rugas na face.
Mas porquê, avô?
Bateu muito sol
na estrada onde vou.
Tens olhos baços.
Mas porquê, avô?
Pousou nevoeiro
na estrada onde vou.
Tens calos nas mãos.
Mas porquê, avô?
Parti muita pedra
na estrada onde vou.
Tens coração grande.
Mas porquê, avô?
Nele mora a gente
que por mim passou.
Luísa
Ducla Soares, A Cavalo no Tempo. Porto, Porto Editora, 2019
Proposta de escrita
O
poema “Diz o avô” in A Cavalo no Tempo de Luísa Ducla Soares mostra um grande
carinho pelo avô.
Escolhe
uma pessoa da tua família ou do teu grupo de amigos que admires muito.
Escreve
um poema semelhante ao de Luísa Ducla Soares, no qual faças a caracterização
dessa pessoa.
(Recurso complementar do Bloco n.º 59 de Português 5.º ao 6.º ano. Projeto #EstudoEmCasa,
09-06-2021)
O avô e o neto | FERNANDO PESSOA
Ao ver o neto a brincar,
Diz o avô, entristecido:
“Ah, quem me dera voltar
A estar assim entretido!
“Quem me dera o tempo quando
Castelos assim fazia,
E que os deixava ficando
Às vezes p’ra o outro dia;
“E toda a tristeza minha
Era, ao acordar p’ra vê-lo,
Ver que a criada já tinha
Arrumado o meu castelo."
Mas o neto não o ouve
Porque está preocupado
Com um engano que houve
No portão para o soldado.
E, enquanto o avô cisma, e, triste,
Lembra a infância que lá vai,
Já mais uma casa existe
Ou mais um castelo cai;
E o neto, olhando afinal,
E vendo o avô a chorar,
Diz, “Caiu, mas não faz mal:
Torna-se já a arranjar."
Fernando
Pessoa (1926), in Poesia 1018-1930, Manuela Parreira da Silva, Ana M.ª
Linhas de leitura
do poema “O avô e o neto”, de Fernando Pessoa
O avô sente tristeza e
saudade. Sente também o desejo impossível de regressar à infância, ao tempo das
brincadeiras, em que a única tristeza era alguém poder estragar-lhe uma
brincadeira começada.
O neto não ouve o avô
exatamente porque as suas preocupações são apenas as brincadeiras, tudo o resto
é para ele incompreensível ou mesmo inexistente.
A criança, sempre
preocupada com a sua brincadeira, pensa que as lágrimas do avô se devem ao
facto de o castelo ter caído. É por isso que, para o consolar, o neto lhe diz
que não faz mal, que se torna a montar.
O poema mostra-nos a
grande diferença entre o mundo dos idosos e o mundo das crianças, um cheio de
tristeza, solidão e melancolia, outro cheio de despreocupação e alegria.
Mostra-nos também uma realidade a que ninguém pode fugir - a passagem do tempo
- porque o avô também já foi menino e o menino há de ser velho também.
Relativamente à estrutura
formal, o poema é constituído por seis estrofes de quatro versos (quadras): os
versos são de redondilha maior (sete sílabas métricas); a rima é cruzada, pois
apresenta o esquema rimático abab.
(Adaptado de
Plural 7 – Manual. Língua Portuguesa. 7.º ano do Ensino Básico [Exemplar do
Professor], ElisaCosta Pinto e Vera Saraiva Baptista. Lisboa,
Lisboa Editora, 2011, p. 185. ISBN 978-972-680-642-4)
O avô minguante, Daniela
Leitão. Iilustração de Catarina Silva. ISBN 978-989-777-626-7
Daniela Leitão, O avô minguante. Lisboa, Planeta de
Livros Portugal para Pingo Doce – Distribuição Alimentar, SA, 2022
Iilustração de Catarina Silva
Crítica ao livro O avô
minguante, de Daniela Leitão
O tempo encolheu o avô
Um avô contido nas palavras, mas que sabia todas as respostas. O tempo
fê-lo minguar. Para o neto, será sempre grande. Imenso.
De
nome Mário, o avô desta história colhe laranjas e lê poesia. Fora carteiro e
marinheiro. O neto descreve-o assim: “O meu avô era muito grande e muito alto.
Tinha braços tão longos que um dia lhe perguntei se poderiam dar a volta ao
mundo. Respondeu-me que o mundo andava tão pequenino que talvez até fosse possível.”
Respondia
a tudo o que o neto lhe perguntava, exceto no dia em que evitou dizer-lhe o que
tinha feito em África: “A esta pergunta o meu avô não respondeu logo. Guardou devagar
o mapa por entre as páginas de um livro. Olhava para mim, ainda mais sério do que
o costume, quando me disse que em África não tinham feito nada de bom. Pelo
silêncio que se seguiu, percebi que era melhor não fazer mais perguntas sobre
as viagens e as marés.”
Com
o avançar do tempo, à medida que o menino crescia, o avô parecia encolher. “Antigamente,
o cadeirão não tinha espaço para tanto avô, mas agora parecia engoli-lo quase
por inteiro (…) Disse-me que todos os avós são
minguantes porque todos os netos são crescentes e é nesse cruzamento que se
encontram tão bem. Apertei-lhe a mão com força e quis
ficar ali para sempre. Queria que o meu avô fosse aquele avô para sempre.”
Um
livro terno sobre o avançar do calendário, sobre livros e palavras e ainda
sobre as relações especiais entre avós e netos.
“O
Avô Minguante não é o resultado de uma experiência
específica com um avô, mas sim uma colagem que construí com base em referências
indiretas que tenho dessa relação, por falta de ter tido a oportunidade de
experienciar essa palavra, isto é, de ter conhecido os meus avôs. É a história
de uma relação imaginada entre um avô e um neto e, no fundo, um
conto sobre a passagem do tempo e sobre a forma como significamos as nossas palavras”,
descreve por e-mail a
autora deste texto vencedor da 9.ª edição do Prémio de Literatura Infantil do
Pingo Doce, Daniela Leitão.
Natural
de Almada e licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, diz ainda: “Este avô e este neto têm uma
relação muito especial, que gira em torno dos livros, das histórias de vida do
avô e das memórias que os dois constroem em conjunto. É nesse entendimento
mútuo que ambos encontram serenidade no confronto inevitável com a passagem do
tempo e o ciclo onde uns crescem e outros minguam.”
Pretende
então com este livro “relembrar-nos que é nas histórias que ouvimos e nas memórias
que protagonizamos que damos significado às nossas palavras, de tal forma que elas
se tornam só nossas e, por isso, resistentes a tudo e impossíveis de
desaparecer”.
Diz
ter esta narrativa guardada há muito tempo: “Queria acima de tudo que a
história que escrevi pudesse ter uma vida para além da vida que tem em mim.”
Muito contente com a edição final do texto, não consegue imaginá-lo de outra
forma. E louva o trabalho da ilustradora, Catarina Silva: “A Catarina conseguiu
captar maravilhosamente a mensagem do texto e vê-lo reescrito pelo seu olhar
sensível e talentoso deixou-me muito emocionada.”
Sobre
si própria, recorda: “Sou uma pessoa para quem as histórias habitam as suas memórias
de infância mais felizes. A minha mãe apresentava-me muitos livros e o meu pai lia-me
uma história todas as noites. Foi um ritual que durou alguns anos e que me
levou a conhecer muitas histórias, a repetir a leitura de muitas outras e, em
última instância, a desenvolver uma relação muito emocional com os livros. Foi
na partilha oral de histórias e na leitura que surgiu a primeira invocação para
o sonho da escrita.” Daí a dedicatória feliz: “À
minha mãe, que me ensinou os livros. Ao meu pai, que mos leu.”
Iilustração de Catarina Silva
Celebrar
o primeiro livro
Catarina
Silva, também vencedora do prémio pela ilustração (são 25 mil euros para cada
uma), diz ao Público que se identificou logo com o texto: “É um texto
muito bonito e sensível que fala sobre a finitude do ser humano e da forte
relação de neto e avô. Também eu sou neta de uma avó que
considero muito minha amiga e que vejo ficar mais pequenina com o passar do
tempo.”
À
pergunta sobre se foi fácil ilustrar a história, responde: “Não diria fácil, eu
ainda estou a começar o meu caminho neste mundo da ilustração, ainda tenho
muitos medos e inseguranças e ainda estou à procura e a experimentar linguagens
gráficas.”
E
diz ter-se divertido: “Assim que cheguei à linguagem que queria e que soube que
tinha vencido a fase de ilustração, comecei logo a trabalhar as imagens com
muito afinco, fiquei muito entusiasmada, então trabalhava de manhã à noite, as
imagens foram surgindo e o livro foi-se construindo assim, fluiu bem.” E
acrescenta: “A Daniela deu-me muita liberdade e confiou no meu trabalho, isso
foi importante para mim.”
Ainda
que pudesse, não alteraria nada ao trabalho feito, mesmo se considera que “há sempre
coisas que com o passar do tempo vamos encontrando e que podiam ser alteradas ou
melhoradas”. No entanto, conclui: “Foi o
nosso primeiro livro e devo celebrá-lo como tal e sentir orgulho por ser o
primeiro — não alteraria nada agora.”
Formada
em Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, tem desenvolvido
projetos na área de cenografia e figurinos, movimento e performance.
Mais recentemente, descobriu “um enorme carinho pela ilustração, pelos álbuns
ilustrados e pela cerâmica”.
Neste
trabalho, usou técnica mista, fez as composições a lápis e depois trabalhou a cor
digitalmente.
Sobre
os planos para aplicar o dinheiro ganho, discorre: “São tempos difíceis os que estamos
a viver agora. Certamente que o dinheiro vai dar muito jeito para a vida
acontecer e também gostava de investir uma parte em
livros de artistas que me inspiram e material para conseguir produzir mais
trabalho e projetos.”
Segundo
a organização do prémio, “as oito obras previamente premiadas traduziram-se em mais
de 149 mil livros lidos por milhares de crianças”. Para esta edição, houve
cerca de “4 mil candidaturas, repartidas pelas categorias de texto e
ilustração”. Títulos premiados nas anteriores edições, da mais antiga para a
mais recente: De onde Vêm as Bruxas?; Orlando — O Caracol
Apaixonado; O Meu Livro Tem Bicho; Há Monstros no Túnel; O Narciso com Pelos no
Nariz; O Protesto do Lobo Mau; Leituras e Papas de Aveia; Assim como Tu.
Quanto
ao avô Mário e a muitos outros, mesmo minguantes, continuarão enormes na memória
dos netos.
Tinham
ido à praia, porque estava uma manhã bonita. A avó vestia uma saia clara e
levava o neto pela mão. Ia muito contente, e o seu coração cantava.
O neto
levava um balde, porque se propunha apanhar conchas e búzios, como já fizera de
outras vezes em que tinha ido à praia com a avó.
Ir à
praia com a avó era uma das melhores coisas que lhe podiam acontecer nos dias
livres. Por isso também ele ia contente, e o balde dançava-lhe na mão.
A praia
estava como devia estar, com sol e ondas baixas. Quase não havia vento, e a
água do mar não estava fria. Por isso o neto teve muito tempo de procurar
conchas e búzios e de tomar banho no mar. A avó sentou-se num rochedo, e ficou
a olhar o neto, por detrás dos óculos. Nunca se cansava de olhá-lo, porque o
achava perfeito. Se pudesse mudar alguma coisa nele, não mudaria nada.
Olhava
para ele, também, para que não se perdesse. A mãe do neto confiava nela.
Deixava-o à sua guarda, em manhãs assim. A avó sentia-se orgulhosa: ainda era
suficientemente forte para ter alguém por quem olhar. Ainda era uma avó útil,
antes que viesse o tempo que mais temia, em que poderia tornar-se um encargo
para os outros. Mas na verdade essa ideia não a preocupava muito, porque
tencionava morrer antes disso.
Estava
uma manhã tão boa que também a avó tirou a blusa e a saia e ficou em fato de
banho. Depois tirou os óculos, que deixou em cima de um rochedo, e entrou no
mar, atrás do neto, que nadava à sua frente, muito melhor e mais depressa do
que ela.
– Não te
afastes, dizia a avó, um pouco ofegante. Volta para trás!
A avó
fazia gestos com as mãos, para que voltasse, o neto ria-se, mergulhava e nadava
para a frente, e depois regressava, ao encontro dela.
A avó não sabia
mergulhar, mas deixava o neto mergulhar sozinho. Ele só tinha cinco anos,
mas nadava como um peixe.
No entanto nunca ia
demasiado longe, nem mergulhava demasiado
fundo, para não
assustar a avó. Sabia que ela era um bocado assustadiça, e ele gostava de
protegê-la contra os medos.
A avó tinha medo de
muitas coisas: dos paus que podiam furar os olhos, das agulhas e alfinetes que
se podiam engolir se se metessem na boca, das janelas abertas, de onde se podia
cair, do mar onde as pessoas se podiam afogar. A avó via todos esses perigos e
avisava. Ele ouvia, mas não ligava muito. Só o suficiente.
Não tinha medo de
nada, mas, apesar disso, gostava de sentir o olhar da avó. De vez em quando
voltava a cabeça, para ver se ela lá estava sentada, a olhar para ele. Depois
esquecia-se dela a voltava a ser o rei do mundo.
Por isso se sentiam
tão bem um com o outro.
Quando saía com o
neto, a avó tinha a sensação de entrar para dentro de fotografias, tiradas nos
mesmos lugares, muitos anos antes. Era uma sensação de deslumbramento e de
absoluta segurança, porque as coisas boas já vividas ninguém as podia mudar:
eram instantes absolutos, que durariam para sempre.
Outras vezes a avó
pensava que a vida era como uma lição já tão sabida, tão aprendida de cor e
salteada, que ela se sentia verdadeiramente mestra. Mestra em quê? Ora, em tudo
e em nada: nascimento, morte, amor, filhos, netos, tudo, enfim. A avó tinha a
sensação de entender o mundo.
Embora lhe parecesse
que o via agora desfocado. Sobretudo ao longe. Ah, meu Deus, tinha-se esquecido
dos óculos, em cima do rochedo. Tinham de lá voltar, e depressa, a avó sem os
óculos não via nada. Mas quando chegaram ao local, não estavam lá. A avó não
entendia como isso pudera acontecer. Não teria sido naquele rochedo? Teria a
maré subido e uma onda os arrastara? Passara alguém que os levasse? Mas a
ninguém aproveitavam, e provavelmente nem tinha passado ninguém, a praia estava
quase deserta, porque ainda não era verão. Ora, não era grave, pensou a avó,
quando se cansou de procurar. Arranjaria outros óculos.
Contos & Recontos 7. Lisboa, Asa, 2013
Caminhou com o neto
à beira das ondas, e depois subiram para as dunas à procura de camarinhas que a
avó não via, mas o neto apanhava logo. Passou muito tempo e nem deram conta de
se terem afastado. O neto cada vez mais feliz, com o balde onde pusera os
búzios acabado de encher com camarinhas. Apesar da falta dos óculos, pensou a
avó, não deixava de ser, como das outras vezes, uma manhã perfeita.
Até se levantar o
vento.
Na verdade não se
percebeu por que razão o céu se toldou e se levantou cada vez mais vento.
Deixou de se ver o azul, debaixo de nuvens carregadas, e a areia começou a
zunir em volta. O vento levantava a areia, cada vez mais alto, a areia batia na
cara e era preciso semicerrar as pálpebras para não a deixar entrar nos olhos.
– Que coisa, disse a
avó.
A manhã acabara, e
agora iam depressa para casa.
Estariam bem, em
casa, jogando às cartas atrás de uma janela fechada.
Mas, de repente, a
avó não sabia onde estava. As dunas eram altas e não sabia que direção tomar.
Caminharam ao acaso, voltando as costas à praia. Mas deveriam virar à esquerda
ou à direita? A avó não sabia onde ficavam as casas. Não se via nada na linha
do horizonte, a não ser as dunas. E, sem óculos, a avó sentia-se perdida.
– Dói-me o pé, disse
o neto. Espetei um pico no pé.
– Calça as sandálias,
disse a avó. Calçaram ambos as sandálias, que traziam na mão.
– Ainda dói, disse o
neto. Dói o pé.
– Deixa ver, disse a
avó tirando-lhe outra vez a sandália. É um espinho, sim, disse a avó, que sem
óculos via bem ao perto. Mas está muito enterrado e não consigo tirá-lo. Em
casa eu tiro, com um alfinete. Agora vamos depressa.
– Dói o pé, disse o
neto começando a chorar.
– Já passa, disse a
avó.
O vento levava-lhe a
saia, a areia batia-lhes nos braços e nas pernas, subia até à cara e queria
entrar nos olhos. O neto esfregava os olhos, com as mãos sujas de areia.
– Não posso andar,
disse ele. Dói o espinho.
– A avó não pode
levar-te ao colo, disse ela. Não tem os ossos fortes.
Arrastou-o alguns
passos, pela mão. Ele chorava e escondia a cara na saia dela, para proteger os
olhos do vento.
– Não posso andar,
disse ele sentando-se e tapando a cara com o chapéu. Dói o pé.
– Eu levo-te um
bocadinho, cedeu a avó. Mas só um bocadinho.
Contos & Recontos 7. Lisboa, Asa, 2013
Levantou-o nos
braços e avançou contra o vento. Uns metros mais adiante, deviam chegar ao fim
das dunas e saberia a direção das casas.
O neto era muito
pesado, mas a avó não se dava por vencida. Caminhava resoluta, enterrando as
sandálias na areia. Agora o caminho entre as dunas começava a subir.
E depois dessa duna,
havia ainda outra duna. A avó começou a ter medo de estar perdida.
Muitos anos atrás, a
avó perdera uma criança. A lembrança veio subitamente e ela não conseguia
afastá-la. Sempre quisera esquecê-la, mas de repente ela voltava. Mesmo em
sonhos. Uma criança ardendo em febre, e ela correndo com ela nos braços,
através de um hospital labiríntico. E depois os dias passavam e ela perdia a
criança.
Durante muito tempo,
não soube onde estava, quando lhe vieram dizer que perdera a criança.
E agora estava outra
vez perdida, com uma criança nos braços.
Já tinha vivido algo
assim. A vida era só vento e areia e ela arrastando-se, lutando em vão, contra
o vento e a areia.
Doíam-lhe os ossos,
não aguentava carregar o peso dele. E se de repente ficasse imobilizada,
estendida no chão, como já lhe sucedera mais do que uma vez? Aquela hérnia na
coluna podia sair do lugar e ela ficar sem conseguir mexer-se. E se isso
acontecesse e ela ficasse ali, sem poder andar? E se a criança se afastasse,
sozinha, à procura de socorro, e se perdesse? Se ela perdesse a criança?
Pousou o neto, e
sentou-se a seu lado na areia.
– Vamos descansar um
pouco, disse ela ofegante. Põe a cabeça no meu ombro, para fugir do vento.
Apetecia-lhe chorar,
mas não podia dar-se por vencida. Ele estava à sua guarda e ela encontraria
maneira de voltar a casa.
Mas sentia-se
perdida. O mundo era uma coisa sem direções, e desfocada.
Já vivera isso
antes. Uma longa extensão de areia, deserta. E ela tão desamparada como a
criança que levava. Ambas perdidas, no vento e na areia.
– Avó, olha o cão do
senhor Lourenço! apontou de repente o neto, recomeçando a andar, na direção de
um cão que corria para eles.
– Louvado Deus,
disse a avó recomeçando também a andar. Porque então estariam salvos. O café do
senhor Lourenço iria aparecer, como um farol, no meio das dunas. Bastava seguir
o cão.
O neto esquecia o
espinho e esquecia a dor no pé, e quase corria, alegremente, atrás do cão.
Em breve se sentavam
à mesa do café, e viam o vento levantar a areia. Mas agora isso passava-se lá
fora, do lado de lá da janela.
A avó pediu um café
e o neto um chocolate quente. Sorriram um para o outro e o mundo voltou a ser
perfeito.
Aflijo-me demais e
dramatizo as coisas, pensou a avó. Afinal atravessámos o vento e a areia. E,
amanhã de manhã, vou ao oculista.
Teolinda Gersão, A
mulher que prendeu a chuva e outras histórias. Lisboa, Sextante Editora, 2013, pp. 77-84.
Avó, fala-me de ti https://www.familiam.pt/inicio/20-avo-fala-me-de-ti-9788090789005.html