Linhas
de leitura do poema "Natal... Na província neva" de Fernando Pessoa
O
primeiro verso do poema, "Natal... Na província neva," estabelece um
cenário que combina um tempo específico, o Natal, com um espaço concreto, a
província. Este verso carrega uma expressividade rica em conotações afetivas: o
Natal, com as suas conotações de união e fraternidade, e a província, evocando a
ideia de tradições e cenários pitorescos típicos da época natalícia. A imagem
da neve reforça a atmosfera de um inverno típico, contrastando com o calor e
aconchego dos lares.
O verso
"Os sentimentos passados" refere-se à reemergência das emoções
associadas a experiências e memórias antigas, que se intensificam durante o
Natal. Esta época do ano, tradicionalmente ligada à família, desperta
sentimentos nostálgicos, reavivando laços afetivos que se fortalecem
com a proximidade dos entes queridos.
A frase
exclamativa "Como a família é verdade!" (v. 6) sugere uma afirmação
intensa e emocional sobre a importância e a autenticidade da família. Este tipo
de construção frásica sublinha o valor que o eu lírico atribui ao ambiente
familiar, visto como um refúgio verdadeiro e seguro, em contraste com o mundo
exterior, frequentemente percebido como hostil e falso.
A figura
de estilo presente no verso "’Stou só e sonho saudade" é a
aliteração, com a repetição dos sons sibilantes 's'. Esta repetição cria um
efeito sonoro que evoca a sensação de solidão e melancolia, intensificando o
sentimento de saudade. A escolha de palavras reforça a profundidade do
isolamento sentido pelo eu poético, que sonha com um passado perdido e
inacessível.
O último
verso, "Do lar que nunca terei!", resume a temática central do poema:
a nostalgia e o anseio por um ideal de felicidade familiar que parece
inalcançável. Esta expressão final evidencia a desilusão do eu poético, que
sonha com um lar acolhedor e uma plenitude de vida que ele acredita nunca
alcançar. Esta desesperança e a idealização de um passado feliz perdido são
características marcantes da obra de Pessoa.
Quanto à análise
formal, este poema é composto por três quadras, cada uma com versos de sete
sílabas métricas (redondilha maior), uma forma tradicionalmente ligada ao lirismo
popular português. A rima é cruzada (ABAB), conferindo ao poema uma
musicalidade suave. O uso do transporte, em que uma frase ou ideia se estende
para o verso seguinte, é observado nos versos 3-4, 9-10 e 11-12, contribuindo
para a fluidez e ritmo do poema.
O poema
exibe várias características temáticas e formais típicas da poesia de Fernando
Pessoa ortónimo:
Temáticas:
- Distância entre o sonho e a realidade: o desejo de um lar idealizado nunca alcançado.
- Evocação da infância: a
felicidade perdida que é rememorada com saudade.
- Solidão e melancolia: a
sensação de isolamento e a busca por um aconchego emocional.
- Desesperança: a consciência da
impossibilidade de reviver o passado ou atingir a plenitude desejada.
Formais:
- Aproximação ao lirismo
tradicional: uso da quadra, redondilha maior e rima cruzada.
- Linguagem simples e clara:
facilidade (aparente) de compreensão e espontaneidade.
- Uso do presente do indicativo:
a intensidade dos sentimentos é capturada no momento presente.
- Pontuação emotiva: utilização
de exclamações que enfatizam as emoções.
- Suavidade rítmica: aliterações,
ritmo cadenciado e transportes que contribuem para a musicalidade do poema.
Ricardo Reis, Poesia, edição de Manuela
Parreira da Silva,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, pp. 13-14.
NOTAS:
1Adónis – jovem da mitologia grega,
símbolo de beleza masculina.
2volucres –
efémeras.
3Apolo – deus grego do sol.
4Inscientes –
ignorantes.
Questionário
1.
Explicite
a importância da referência aos elementos da natureza para o desenvolvimento do
pensamento do sujeito poético.
2.
Explique
os quatro últimos versos do poema, tendo em conta o ideal de vida defendido
pelo sujeito poético.
3.
Complete
as afirmações abaixo apresentadas, selecionando a opção adequada a cada espaço.
No poema
apresentado, constata-se o classicismo da poesia de Ricardo Reis, nomeadamente
através do recurso à metonímia
/ perífrase / hipérbole, nos versos 7 e 8.
O
carácter moralista da poesia deste heterónimo pessoano é indiciado pelo uso de
verbos conjugados na primeira pessoa do modo conjuntivo, como ocorre no verso1 / 9 / 12.
Explicitação dos cenários de respostas:
1. Explicita
a importância da referência aos elementos da natureza para o desenvolvimento do
pensamento do sujeito poético, abordando, adequadamente, os dois tópicos de
resposta, ou outros igualmente relevantes:
− as rosas representam
a beleza e, simultaneamente, são comparáveis, na sua efemeridade, à vida humana
(vv. 3 e 4);
− o curso diurno do sol
representa a duração da vida: para a rosa, um dia; para o ser humano, uma duração
sempre limitada e efémera («O pouco que duramos» ‒ v. 12).
2. Explica, tendo em conta o ideal
de vida defendido pelo sujeito poético, os quatro últimos versos do poema,
abordando, adequadamente, os dois tópicos de resposta, ou outros igualmente
relevantes:
Face
à constatação da efemeridade da vida, o sujeito poético aconselha Lídia a que,
tal como ele próprio (e à semelhança das rosas dos «jardins de Adónis» ‒
v. 1):
− viva o momento
presente («Assim façamos nossa vida um dia» ‒ v. 9), de acordo com
o princípio epicurista do carpe
diem (único caminho para a felicidade e para a
ausência de dor), assumindo uma atitude de indiferença face à passagem do
tempo, num esforço de autodisciplina;
− assuma uma atitude
deliberada de aceitação da efemeridade da vida e da inevitabilidade da morte
(«há noite antes e após / O pouco que duramos» ‒ vv. 11-12).
3. No poema apresentado, constata-se
o classicismo da poesia de Ricardo Reis, nomeadamente através do recurso à perífrase, nos versos 7 e 8.
O
carácter moralista da poesia deste heterónimo pessoano é indiciado pelo uso de
verbos conjugados na primeira pessoa do modo conjuntivo, como ocorre no verso 9.
Fonte:
Exame Final Nacional de Português | Prova 639 | 2.ª Fase | Ensino Secundário - 12.º
Ano de Escolaridade | República
Portuguesa – Educação, Ciência e Inovação / Instituto de Avaliação Educativa,
I. P. (IAVE), 2024 (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho; Decreto-Lei n.º
62/2023, de 25 de julho) – VERSÃO 1
Os
pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem.
Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes.
Pássaros selvagens de repente,
Atirados contra a luz como pedradas,
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.
As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas.
E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
Baloiça nos pinheiros.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Coral, 1.ª ed., 1950,
Porto, Livraria Simões Lopes; 2.ª ed., s/d [c. 1979], Lisboa, Portugália
Editora; 3.ª ed., s/d [c. 1980], Lisboa, Portugália Editora, ilustrações de
José Escada; 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho; 5.ª ed.,
revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho. 1.ª edição na Assírio & Alvim
(6.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Manuel Gusmão.
Intertextualidade
O poema “Praia”, de Sophia
Andresen, estabelece um diálogo intertextual com os poemas “Horizonte” e “D.Dinis”, de Fernando Pessoa, ambos presentes na Mensagem.
D.
DINIS
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio1, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho2 obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
9-2-1934 Mensagem.
Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934
HORIZONTE
Ó
mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração3,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério4
Esplendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria5 do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos6 merecidos da Verdade7.
s.d. Mensagem. Fernando Pessoa. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1934
(Lisboa: Ática, 10ª ed. 1972).- 58. Disponível
em: http://arquivopessoa.net/textos/2380
____________
Notas: 1 Arroio:
regato. 2 Marulho: mar + barulho; agitação das ondas. 3 Cerração: nevoeiro denso; escuridão; trevas. 4 Sidério:
sidéreo; sideral, astral, celeste. 5 “aquela fria / luz que precede
a madrugada, / E é já o ir a haver o dia / Na antemanhã, confuso nada” (in
“Viriato”) – fronteira entre o desconhecido e o conhecido. 6 Beijos
– recompensa. 7Verdade – conhecimento.
Para
identificar as imagens no poema “Praia” de Sophia de Mello Breyner Andresen que
parecem ter sido inspiradas pelos poemas “Horizonte” e “D. Dinis” de Fernando
Pessoa, é importante analisar os temas e as metáforas partilhadas entre os
textos.
A "antiquíssima nostalgia de ser mastro" (v.
11) que baloiça nos pinheiros sugere uma ligação com o passado marítimo de
Portugal, evocando a era dos Descobrimentos e a exploração dos mares. Esta
linha de pensamento liga-se com os poemas “D. Dinis” e “Horizonte”.
No poema “D. Dinis”, Pessoa explora a ligação entre a
terra e o mar, simbolizada pelos pinhais que "ondulam sem se poder
ver". A imagem dos pinhais, presente em ambos os poemas, serve como um
ponto de conexão. Em “Praia”, os pinheiros baloiçam com nostalgia, enquanto em
“D. Dinis”, eles são a voz da terra ansiando pelo mar. Ambos os textos utilizam
a natureza para meditar sobre a história e a identidade nacional, evocando um
sentimento de saudade em “Praia” e o desejo de exploração em “D. Dinis”.
“Horizonte” também reflete um desejo de descoberta e
transcendência. A ideia de um mar mítico e ancestral presente em
ambos os poemas sugere uma intertextualidade. Pessoa escreve sobre o mar como um espaço anterior a nós, cheio de medos e
mistérios que, uma vez desvendados, revelam uma beleza sublime. A descrição da linha
severa da costa que se revela em árvores, aves e flores quando a nau se
aproxima reflete um processo de revelação e desvendamento. Os
pássaros de Sophia, apesar de terem uma conotação mais trágica, ainda se
relacionam com a descoberta e a revelação, semelhante ao desembarque descrito
por Pessoa. As ondas de Sophia (vv. 9-10) quebram contra a luz, criando uma
imagem forte e arquitetónica, enquanto Pessoa descreve a revelação da paisagem
à medida que a nau se aproxima (vv. 8-10). Em ambos os casos, há uma
transformação visual da natureza com a proximidade e a luz.
No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada —
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...
No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela —
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...
No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não —
No comboio descendente
De Palmela a Portimão...
s.d.
Quadras
ao Gosto Popular. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido e
prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática,
1965. (6ª ed., 1973).- 117.
Análise
do poema "No comboio descendente" de Fernando Pessoa
Estrutura
e forma
O poema "No comboio
descendente" de Fernando Pessoa é estruturado em três estrofes, cada uma
com seis versos. A forma fixa do poema destaca-se pela ênfase na sonoridade das
rimas, incluindo as internas. A repetição é um elemento crucial, visível na
métrica, no ritmo, na estrutura sintática e nos recursos sonoros, como
assonâncias e aliterações.
Função
da repetição
A repetição no poema tem o
propósito de induzir um estado de sonolência, semelhante às canções de ninar. A
repetição sintática e semântica cria um efeito de relaxamento, que acalma e
adormece os leitores, como se fossem crianças.
Primeira estrofe: de Queluz à Cruz Quebrada
Na primeira estrofe, o tom é de
alegria e animação:
Sonoridade vibrante: A
aliteração com a consoante /k/ e os encontros consonantais /kr/ e /br/ no verso
"De Queluz à Cruz Quebrada" evocam o som e a confusão típicos de uma
viagem animada de comboio.
Rima interna: A rima
entre "Queluz" e "Cruz" reforça a ideia de repetição e
alegria entre os passageiros.
Segunda estrofe: de Cruz Quebrada a Palmela
Na segunda estrofe, a atmosfera
começa a acalmar:
Transição para a calma: A
sonoridade indica uma diminuição na agitação, sugerindo que os passageiros
estão a acalmar à medida que a viagem continua.
Terceira estrofe: de Palmela a Portimão
Na terceira estrofe, há uma
mudança de tom:
Quebra da repetição: A
estrutura paralela dos versos é interrompida pela expressão "Mas que
grande reinação!", usada de forma irónica para indicar que, apesar da
frase, a atmosfera agora é de sono.
Sonoridade nasal: O último
verso "De Palmela a Portimão" destaca sons nasais, que sugerem um
ambiente tranquilo e os passageiros adormecidos.
Análise alegórica
O poema não descreve apenas uma
viagem de comboio animada e barulhenta, mas também representa alegoricamente o
processo de adormecimento:
Transição de animação para sonolência: A
sonoridade e a escolha das palavras ao longo do poema ilustram a transição da
vivacidade para a calma e, finalmente, para o sono dos passageiros.
Linguagem infantil:
Expressões coloquiais como "reinação" e "dar-lhes trela" evocam
uma linguagem simples e infantil, reforçando a sensação de uma canção de ninar.
Conclusão
Fernando Pessoa, no poema "No
comboio descendente", utiliza a repetição em múltiplos níveis para criar
um efeito tranquilizante. O poema leva o leitor de um estado de
alegria e excitação para uma serenidade sonolenta, refletindo o processo de
adormecimento. A estrutura sonora e a escolha das palavras contribuem para essa
transformação gradual, fazendo do poema uma rica alegoria do cair no sono.
Depus a
máscara e vi-me ao espelho...
Era a criança de há quantos anos...
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que fica,
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor.
Assim sou a máscara.
E volto à normalidade como a um términus de linha.
Álvaro de Campos, Poesia, edição de Teresa
Rita Lopes,
Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 514.
QUESTIONÁRIO
1.
Explique a importância da máscara na construção
da dualidade do sujeito poético, tal como é apresentada ao longo do poema.
2.
Depois de tirar a máscara, o sujeito poético opta por tornar a pô-la.
Justifique
essa opção, com base em dois aspetos significativos.
3.
Considere as afirmações seguintes sobre o poema.
I. O
ato de se ver ao espelho sugere o desejo de autoconhecimento por parte do
sujeito poético.
II. O
sujeito poético anseia voltar a viver o seu tempo de infância.
III. A
coexistência de versos longos e de versos curtos contribui para o ritmo do
poema.
IV. O
recurso às reticências, no verso 3, indicia a frustração sentida pelo sujeito
poético.
V. No
texto, evidenciam-se características da linguagem poética de Álvaro de Campos,
como a liberdade formal e o uso de anáforas.
Identifique
as três afirmações verdadeiras.
CRITÉRIOS DE CORREÇÃO
1. Explica a importância da máscara na construção da dualidade do
sujeito poético, abordando, adequadamente, os dois tópicos de resposta.
- a máscara esconde o Eu
associado à infância, num jogo entre ser e parecer/passado e presente, no qual
a permanência do Eu passado surge quando a máscara é retirada;
- a duplicidade permite que o sujeito poético mantenha o seu ser
autêntico e, simultaneamente, que desempenhe o papel social associado à máscara
(optando pela identidade adquirida pela máscara).
2. Justifica a opção do sujeito poético por tornar a pôr a máscara,
abordando, adequadamente, dois dos tópicos de resposta.
- a criança
que a máscara oculta representa a vulnerabilidade do sujeito poético associada
à infância;
- o Eu
sente-se mais confortável quando coloca a máscara, na medida em que a imagem
que dá a ver aos outros é a de alguém normal («E volto à normalidade» ‒ v. 11);
- a normalidade (o «términus de linha» ‒ v. 11) é
construída
através
do recurso à máscara na viagem de autoconhecimento
que o sujeito poético realiza, o que implica viver o presente, aceitando as
convenções sociais.
3.
I, III e V.
Fonte:
Exame Final Nacional de Português | Prova 639 | 1.ª Fase | Ensino Secundário - 12.º
Ano de Escolaridade | República
Portuguesa – Educação, Ciência e Inovação / Instituto de Avaliação Educativa,
I. P. (IAVE), 2024 (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho; Decreto-Lei n.º
62/2023, de 25 de julho) – VERSÃO 1
***
A INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL AO SERVIÇO DA EDUCAÇÃO: explicação sistematizada do poema de Álvaro
de Campos que saiu no exame 12.º ano.
1. **Tirar a
máscara**
- O autor tira a máscara.
- Olha-se ao espelho.
- Vê-se como era em criança.
- A essência dele não mudou.
2. **Vantagem
de tirar a máscara**
- Ao tirar a máscara, redescobre-se
a criança interior.
- A verdadeira identidade, pura e
intocada, permanece.
3. **Voltar a
pôr a máscara**
- O autor decide voltar a pôr a
máscara.
- Sente-se mais confortável e
seguro assim.
- A máscara torna-se a sua
personalidade.
4.
**Aceitação**
- Aceita que vai continuar a usar a
máscara.
- É assim que consegue viver e
funcionar na sociedade.
Partilhado por Lúcia Vaz
Pedro, in Pulsações Escritas - Facebook, 22/06/2024
Tens cabelos brancos.
Mas porquê, avô?
Caiu muita neve
na estrada onde vou.
Tens rugas na face.
Mas porquê, avô?
Bateu muito sol
na estrada onde vou.
Tens olhos baços.
Mas porquê, avô?
Pousou nevoeiro
na estrada onde vou.
Tens calos nas mãos.
Mas porquê, avô?
Parti muita pedra
na estrada onde vou.
Tens coração grande.
Mas porquê, avô?
Nele mora a gente
que por mim passou.
Luísa
Ducla Soares, A Cavalo no Tempo. Porto, Porto Editora, 2019
Proposta de escrita
O
poema “Diz o avô” in A Cavalo no Tempo de Luísa Ducla Soares mostra um grande
carinho pelo avô.
Escolhe
uma pessoa da tua família ou do teu grupo de amigos que admires muito.
Escreve
um poema semelhante ao de Luísa Ducla Soares, no qual faças a caracterização
dessa pessoa.
(Recurso complementar do Bloco n.º 59 de Português 5.º ao 6.º ano. Projeto #EstudoEmCasa,
09-06-2021)
O avô e o neto | FERNANDO PESSOA
Ao ver o neto a brincar,
Diz o avô, entristecido:
“Ah, quem me dera voltar
A estar assim entretido!
“Quem me dera o tempo quando
Castelos assim fazia,
E que os deixava ficando
Às vezes p’ra o outro dia;
“E toda a tristeza minha
Era, ao acordar p’ra vê-lo,
Ver que a criada já tinha
Arrumado o meu castelo."
Mas o neto não o ouve
Porque está preocupado
Com um engano que houve
No portão para o soldado.
E, enquanto o avô cisma, e, triste,
Lembra a infância que lá vai,
Já mais uma casa existe
Ou mais um castelo cai;
E o neto, olhando afinal,
E vendo o avô a chorar,
Diz, “Caiu, mas não faz mal:
Torna-se já a arranjar."
Fernando
Pessoa (1926), in Poesia 1018-1930, Manuela Parreira da Silva, Ana M.ª
Linhas de leitura
do poema “O avô e o neto”, de Fernando Pessoa
O avô sente tristeza e
saudade. Sente também o desejo impossível de regressar à infância, ao tempo das
brincadeiras, em que a única tristeza era alguém poder estragar-lhe uma
brincadeira começada.
O neto não ouve o avô
exatamente porque as suas preocupações são apenas as brincadeiras, tudo o resto
é para ele incompreensível ou mesmo inexistente.
A criança, sempre
preocupada com a sua brincadeira, pensa que as lágrimas do avô se devem ao
facto de o castelo ter caído. É por isso que, para o consolar, o neto lhe diz
que não faz mal, que se torna a montar.
O poema mostra-nos a
grande diferença entre o mundo dos idosos e o mundo das crianças, um cheio de
tristeza, solidão e melancolia, outro cheio de despreocupação e alegria.
Mostra-nos também uma realidade a que ninguém pode fugir - a passagem do tempo
- porque o avô também já foi menino e o menino há de ser velho também.
Relativamente à estrutura
formal, o poema é constituído por seis estrofes de quatro versos (quadras): os
versos são de redondilha maior (sete sílabas métricas); a rima é cruzada, pois
apresenta o esquema rimático abab.
(Adaptado de
Plural 7 – Manual. Língua Portuguesa. 7.º ano do Ensino Básico [Exemplar do
Professor], ElisaCosta Pinto e Vera Saraiva Baptista. Lisboa,
Lisboa Editora, 2011, p. 185. ISBN 978-972-680-642-4)
O avô minguante, Daniela
Leitão. Iilustração de Catarina Silva. ISBN 978-989-777-626-7
Daniela Leitão, O avô minguante. Lisboa, Planeta de
Livros Portugal para Pingo Doce – Distribuição Alimentar, SA, 2022
Iilustração de Catarina Silva
Crítica ao livro O avô
minguante, de Daniela Leitão
O tempo encolheu o avô
Um avô contido nas palavras, mas que sabia todas as respostas. O tempo
fê-lo minguar. Para o neto, será sempre grande. Imenso.
De
nome Mário, o avô desta história colhe laranjas e lê poesia. Fora carteiro e
marinheiro. O neto descreve-o assim: “O meu avô era muito grande e muito alto.
Tinha braços tão longos que um dia lhe perguntei se poderiam dar a volta ao
mundo. Respondeu-me que o mundo andava tão pequenino que talvez até fosse possível.”
Respondia
a tudo o que o neto lhe perguntava, exceto no dia em que evitou dizer-lhe o que
tinha feito em África: “A esta pergunta o meu avô não respondeu logo. Guardou devagar
o mapa por entre as páginas de um livro. Olhava para mim, ainda mais sério do que
o costume, quando me disse que em África não tinham feito nada de bom. Pelo
silêncio que se seguiu, percebi que era melhor não fazer mais perguntas sobre
as viagens e as marés.”
Com
o avançar do tempo, à medida que o menino crescia, o avô parecia encolher. “Antigamente,
o cadeirão não tinha espaço para tanto avô, mas agora parecia engoli-lo quase
por inteiro (…) Disse-me que todos os avós são
minguantes porque todos os netos são crescentes e é nesse cruzamento que se
encontram tão bem. Apertei-lhe a mão com força e quis
ficar ali para sempre. Queria que o meu avô fosse aquele avô para sempre.”
Um
livro terno sobre o avançar do calendário, sobre livros e palavras e ainda
sobre as relações especiais entre avós e netos.
“O
Avô Minguante não é o resultado de uma experiência
específica com um avô, mas sim uma colagem que construí com base em referências
indiretas que tenho dessa relação, por falta de ter tido a oportunidade de
experienciar essa palavra, isto é, de ter conhecido os meus avôs. É a história
de uma relação imaginada entre um avô e um neto e, no fundo, um
conto sobre a passagem do tempo e sobre a forma como significamos as nossas palavras”,
descreve por e-mail a
autora deste texto vencedor da 9.ª edição do Prémio de Literatura Infantil do
Pingo Doce, Daniela Leitão.
Natural
de Almada e licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, diz ainda: “Este avô e este neto têm uma
relação muito especial, que gira em torno dos livros, das histórias de vida do
avô e das memórias que os dois constroem em conjunto. É nesse entendimento
mútuo que ambos encontram serenidade no confronto inevitável com a passagem do
tempo e o ciclo onde uns crescem e outros minguam.”
Pretende
então com este livro “relembrar-nos que é nas histórias que ouvimos e nas memórias
que protagonizamos que damos significado às nossas palavras, de tal forma que elas
se tornam só nossas e, por isso, resistentes a tudo e impossíveis de
desaparecer”.
Diz
ter esta narrativa guardada há muito tempo: “Queria acima de tudo que a
história que escrevi pudesse ter uma vida para além da vida que tem em mim.”
Muito contente com a edição final do texto, não consegue imaginá-lo de outra
forma. E louva o trabalho da ilustradora, Catarina Silva: “A Catarina conseguiu
captar maravilhosamente a mensagem do texto e vê-lo reescrito pelo seu olhar
sensível e talentoso deixou-me muito emocionada.”
Sobre
si própria, recorda: “Sou uma pessoa para quem as histórias habitam as suas memórias
de infância mais felizes. A minha mãe apresentava-me muitos livros e o meu pai lia-me
uma história todas as noites. Foi um ritual que durou alguns anos e que me
levou a conhecer muitas histórias, a repetir a leitura de muitas outras e, em
última instância, a desenvolver uma relação muito emocional com os livros. Foi
na partilha oral de histórias e na leitura que surgiu a primeira invocação para
o sonho da escrita.” Daí a dedicatória feliz: “À
minha mãe, que me ensinou os livros. Ao meu pai, que mos leu.”
Iilustração de Catarina Silva
Celebrar
o primeiro livro
Catarina
Silva, também vencedora do prémio pela ilustração (são 25 mil euros para cada
uma), diz ao Público que se identificou logo com o texto: “É um texto
muito bonito e sensível que fala sobre a finitude do ser humano e da forte
relação de neto e avô. Também eu sou neta de uma avó que
considero muito minha amiga e que vejo ficar mais pequenina com o passar do
tempo.”
À
pergunta sobre se foi fácil ilustrar a história, responde: “Não diria fácil, eu
ainda estou a começar o meu caminho neste mundo da ilustração, ainda tenho
muitos medos e inseguranças e ainda estou à procura e a experimentar linguagens
gráficas.”
E
diz ter-se divertido: “Assim que cheguei à linguagem que queria e que soube que
tinha vencido a fase de ilustração, comecei logo a trabalhar as imagens com
muito afinco, fiquei muito entusiasmada, então trabalhava de manhã à noite, as
imagens foram surgindo e o livro foi-se construindo assim, fluiu bem.” E
acrescenta: “A Daniela deu-me muita liberdade e confiou no meu trabalho, isso
foi importante para mim.”
Ainda
que pudesse, não alteraria nada ao trabalho feito, mesmo se considera que “há sempre
coisas que com o passar do tempo vamos encontrando e que podiam ser alteradas ou
melhoradas”. No entanto, conclui: “Foi o
nosso primeiro livro e devo celebrá-lo como tal e sentir orgulho por ser o
primeiro — não alteraria nada agora.”
Formada
em Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, tem desenvolvido
projetos na área de cenografia e figurinos, movimento e performance.
Mais recentemente, descobriu “um enorme carinho pela ilustração, pelos álbuns
ilustrados e pela cerâmica”.
Neste
trabalho, usou técnica mista, fez as composições a lápis e depois trabalhou a cor
digitalmente.
Sobre
os planos para aplicar o dinheiro ganho, discorre: “São tempos difíceis os que estamos
a viver agora. Certamente que o dinheiro vai dar muito jeito para a vida
acontecer e também gostava de investir uma parte em
livros de artistas que me inspiram e material para conseguir produzir mais
trabalho e projetos.”
Segundo
a organização do prémio, “as oito obras previamente premiadas traduziram-se em mais
de 149 mil livros lidos por milhares de crianças”. Para esta edição, houve
cerca de “4 mil candidaturas, repartidas pelas categorias de texto e
ilustração”. Títulos premiados nas anteriores edições, da mais antiga para a
mais recente: De onde Vêm as Bruxas?; Orlando — O Caracol
Apaixonado; O Meu Livro Tem Bicho; Há Monstros no Túnel; O Narciso com Pelos no
Nariz; O Protesto do Lobo Mau; Leituras e Papas de Aveia; Assim como Tu.
Quanto
ao avô Mário e a muitos outros, mesmo minguantes, continuarão enormes na memória
dos netos.
Tinham
ido à praia, porque estava uma manhã bonita. A avó vestia uma saia clara e
levava o neto pela mão. Ia muito contente, e o seu coração cantava.
O neto
levava um balde, porque se propunha apanhar conchas e búzios, como já fizera de
outras vezes em que tinha ido à praia com a avó.
Ir à
praia com a avó era uma das melhores coisas que lhe podiam acontecer nos dias
livres. Por isso também ele ia contente, e o balde dançava-lhe na mão.
A praia
estava como devia estar, com sol e ondas baixas. Quase não havia vento, e a
água do mar não estava fria. Por isso o neto teve muito tempo de procurar
conchas e búzios e de tomar banho no mar. A avó sentou-se num rochedo, e ficou
a olhar o neto, por detrás dos óculos. Nunca se cansava de olhá-lo, porque o
achava perfeito. Se pudesse mudar alguma coisa nele, não mudaria nada.
Olhava
para ele, também, para que não se perdesse. A mãe do neto confiava nela.
Deixava-o à sua guarda, em manhãs assim. A avó sentia-se orgulhosa: ainda era
suficientemente forte para ter alguém por quem olhar. Ainda era uma avó útil,
antes que viesse o tempo que mais temia, em que poderia tornar-se um encargo
para os outros. Mas na verdade essa ideia não a preocupava muito, porque
tencionava morrer antes disso.
Estava
uma manhã tão boa que também a avó tirou a blusa e a saia e ficou em fato de
banho. Depois tirou os óculos, que deixou em cima de um rochedo, e entrou no
mar, atrás do neto, que nadava à sua frente, muito melhor e mais depressa do
que ela.
– Não te
afastes, dizia a avó, um pouco ofegante. Volta para trás!
A avó
fazia gestos com as mãos, para que voltasse, o neto ria-se, mergulhava e nadava
para a frente, e depois regressava, ao encontro dela.
A avó não sabia
mergulhar, mas deixava o neto mergulhar sozinho. Ele só tinha cinco anos,
mas nadava como um peixe.
No entanto nunca ia
demasiado longe, nem mergulhava demasiado
fundo, para não
assustar a avó. Sabia que ela era um bocado assustadiça, e ele gostava de
protegê-la contra os medos.
A avó tinha medo de
muitas coisas: dos paus que podiam furar os olhos, das agulhas e alfinetes que
se podiam engolir se se metessem na boca, das janelas abertas, de onde se podia
cair, do mar onde as pessoas se podiam afogar. A avó via todos esses perigos e
avisava. Ele ouvia, mas não ligava muito. Só o suficiente.
Não tinha medo de
nada, mas, apesar disso, gostava de sentir o olhar da avó. De vez em quando
voltava a cabeça, para ver se ela lá estava sentada, a olhar para ele. Depois
esquecia-se dela a voltava a ser o rei do mundo.
Por isso se sentiam
tão bem um com o outro.
Quando saía com o
neto, a avó tinha a sensação de entrar para dentro de fotografias, tiradas nos
mesmos lugares, muitos anos antes. Era uma sensação de deslumbramento e de
absoluta segurança, porque as coisas boas já vividas ninguém as podia mudar:
eram instantes absolutos, que durariam para sempre.
Outras vezes a avó
pensava que a vida era como uma lição já tão sabida, tão aprendida de cor e
salteada, que ela se sentia verdadeiramente mestra. Mestra em quê? Ora, em tudo
e em nada: nascimento, morte, amor, filhos, netos, tudo, enfim. A avó tinha a
sensação de entender o mundo.
Embora lhe parecesse
que o via agora desfocado. Sobretudo ao longe. Ah, meu Deus, tinha-se esquecido
dos óculos, em cima do rochedo. Tinham de lá voltar, e depressa, a avó sem os
óculos não via nada. Mas quando chegaram ao local, não estavam lá. A avó não
entendia como isso pudera acontecer. Não teria sido naquele rochedo? Teria a
maré subido e uma onda os arrastara? Passara alguém que os levasse? Mas a
ninguém aproveitavam, e provavelmente nem tinha passado ninguém, a praia estava
quase deserta, porque ainda não era verão. Ora, não era grave, pensou a avó,
quando se cansou de procurar. Arranjaria outros óculos.
Contos & Recontos 7. Lisboa, Asa, 2013
Caminhou com o neto
à beira das ondas, e depois subiram para as dunas à procura de camarinhas que a
avó não via, mas o neto apanhava logo. Passou muito tempo e nem deram conta de
se terem afastado. O neto cada vez mais feliz, com o balde onde pusera os
búzios acabado de encher com camarinhas. Apesar da falta dos óculos, pensou a
avó, não deixava de ser, como das outras vezes, uma manhã perfeita.
Até se levantar o
vento.
Na verdade não se
percebeu por que razão o céu se toldou e se levantou cada vez mais vento.
Deixou de se ver o azul, debaixo de nuvens carregadas, e a areia começou a
zunir em volta. O vento levantava a areia, cada vez mais alto, a areia batia na
cara e era preciso semicerrar as pálpebras para não a deixar entrar nos olhos.
– Que coisa, disse a
avó.
A manhã acabara, e
agora iam depressa para casa.
Estariam bem, em
casa, jogando às cartas atrás de uma janela fechada.
Mas, de repente, a
avó não sabia onde estava. As dunas eram altas e não sabia que direção tomar.
Caminharam ao acaso, voltando as costas à praia. Mas deveriam virar à esquerda
ou à direita? A avó não sabia onde ficavam as casas. Não se via nada na linha
do horizonte, a não ser as dunas. E, sem óculos, a avó sentia-se perdida.
– Dói-me o pé, disse
o neto. Espetei um pico no pé.
– Calça as sandálias,
disse a avó. Calçaram ambos as sandálias, que traziam na mão.
– Ainda dói, disse o
neto. Dói o pé.
– Deixa ver, disse a
avó tirando-lhe outra vez a sandália. É um espinho, sim, disse a avó, que sem
óculos via bem ao perto. Mas está muito enterrado e não consigo tirá-lo. Em
casa eu tiro, com um alfinete. Agora vamos depressa.
– Dói o pé, disse o
neto começando a chorar.
– Já passa, disse a
avó.
O vento levava-lhe a
saia, a areia batia-lhes nos braços e nas pernas, subia até à cara e queria
entrar nos olhos. O neto esfregava os olhos, com as mãos sujas de areia.
– Não posso andar,
disse ele. Dói o espinho.
– A avó não pode
levar-te ao colo, disse ela. Não tem os ossos fortes.
Arrastou-o alguns
passos, pela mão. Ele chorava e escondia a cara na saia dela, para proteger os
olhos do vento.
– Não posso andar,
disse ele sentando-se e tapando a cara com o chapéu. Dói o pé.
– Eu levo-te um
bocadinho, cedeu a avó. Mas só um bocadinho.
Contos & Recontos 7. Lisboa, Asa, 2013
Levantou-o nos
braços e avançou contra o vento. Uns metros mais adiante, deviam chegar ao fim
das dunas e saberia a direção das casas.
O neto era muito
pesado, mas a avó não se dava por vencida. Caminhava resoluta, enterrando as
sandálias na areia. Agora o caminho entre as dunas começava a subir.
E depois dessa duna,
havia ainda outra duna. A avó começou a ter medo de estar perdida.
Muitos anos atrás, a
avó perdera uma criança. A lembrança veio subitamente e ela não conseguia
afastá-la. Sempre quisera esquecê-la, mas de repente ela voltava. Mesmo em
sonhos. Uma criança ardendo em febre, e ela correndo com ela nos braços,
através de um hospital labiríntico. E depois os dias passavam e ela perdia a
criança.
Durante muito tempo,
não soube onde estava, quando lhe vieram dizer que perdera a criança.
E agora estava outra
vez perdida, com uma criança nos braços.
Já tinha vivido algo
assim. A vida era só vento e areia e ela arrastando-se, lutando em vão, contra
o vento e a areia.
Doíam-lhe os ossos,
não aguentava carregar o peso dele. E se de repente ficasse imobilizada,
estendida no chão, como já lhe sucedera mais do que uma vez? Aquela hérnia na
coluna podia sair do lugar e ela ficar sem conseguir mexer-se. E se isso
acontecesse e ela ficasse ali, sem poder andar? E se a criança se afastasse,
sozinha, à procura de socorro, e se perdesse? Se ela perdesse a criança?
Pousou o neto, e
sentou-se a seu lado na areia.
– Vamos descansar um
pouco, disse ela ofegante. Põe a cabeça no meu ombro, para fugir do vento.
Apetecia-lhe chorar,
mas não podia dar-se por vencida. Ele estava à sua guarda e ela encontraria
maneira de voltar a casa.
Mas sentia-se
perdida. O mundo era uma coisa sem direções, e desfocada.
Já vivera isso
antes. Uma longa extensão de areia, deserta. E ela tão desamparada como a
criança que levava. Ambas perdidas, no vento e na areia.
– Avó, olha o cão do
senhor Lourenço! apontou de repente o neto, recomeçando a andar, na direção de
um cão que corria para eles.
– Louvado Deus,
disse a avó recomeçando também a andar. Porque então estariam salvos. O café do
senhor Lourenço iria aparecer, como um farol, no meio das dunas. Bastava seguir
o cão.
O neto esquecia o
espinho e esquecia a dor no pé, e quase corria, alegremente, atrás do cão.
Em breve se sentavam
à mesa do café, e viam o vento levantar a areia. Mas agora isso passava-se lá
fora, do lado de lá da janela.
A avó pediu um café
e o neto um chocolate quente. Sorriram um para o outro e o mundo voltou a ser
perfeito.
Aflijo-me demais e
dramatizo as coisas, pensou a avó. Afinal atravessámos o vento e a areia. E,
amanhã de manhã, vou ao oculista.
Teolinda Gersão, A
mulher que prendeu a chuva e outras histórias. Lisboa, Sextante Editora, 2013, pp. 77-84.
Avó, fala-me de ti https://www.familiam.pt/inicio/20-avo-fala-me-de-ti-9788090789005.html