Grandes Portugueses: Catarina Eufémia, símbolo da revolução
Ver, na íntegra, o programa apresentando na RTP, em 1974-05-18, por João Martins, comemorativo do vigésimo aniversário da morte da trabalhadora rural Catarina Eufémia, símbolo da resistência antifascista, a 19 de maio de 1954, em Baleizão, no Alentejo:
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Versos em homenagem a Catarina Eufémia (1928-1954)
CANTAR ALENTEJANO | Vicente Campina
Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na em vida
Baleizão a viu morrer
Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou
Acalma o furor campina
Que o teu pranto não findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou
Aquela pomba tão branca
Todos a querem p’ra si
Ó Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti
Aquela andorinha negra
Bate as asas p’ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar
Vicente Campina
Este poema foi musicado por José Afonso, no álbum «Cantigas de Maio», editado no Natal de 1971
Disponível em: http://www.pcp.pt/actpol/temas/pcp/catarina/index.htm
Gravura de José Dias Coelho, sobre o assassinato de Catarina Eufémia, em Baleizão, em 1954, quando lutava com os operário agrícolas por melhores salários. |
LAIVOS DE AQUENTEJO | Luísa
Vilão Palma
O panal era branco em rendas de suor, como a cal que a Ti
Liberta fervia no azado, ao fundo da rua do monte. O ervaçal no empedrado. O
monte era o rumo dos dias nas tardes calmosas. Deixava a tarimba ao luzir do
buraco, enquanto o cão ansiava a bôla de farelo, impaciente. A cauda do animal
agitava-se na cadência dos passos da mulher.
O patrão podia aparecer a qualquer hora. O cereal amassado a
crescer. O forno em labaredas de coração apaixonado na metáfora do escritor.
— Bom dia, Ti Liberta, já soube da desgraça?
-Oh! home, o que dizes tu?
O olhar da mulher fraquejou, começou a toldar-se, fundindo-se
na sombra da azinheira solitária que o artista empresta à tela camponesa as
tuas mãos em gesto ritmado no movimento da foice as paveias soam a queixume de
quem implora o pão
..hás de fazer do teu lenço vermelho a única bandeira viva
sobre a terra...
Sim, a desgraça, ti Liberta. Ela caiu. Ali mesmo.
Entre a terra e o céu. Lá. Pelo Maio calmoso das aceifas
escureceu o sol tardiamente, beijando-lhe a face pela última vez. Lá. Onde a
imensidão. Vagueiam gestos ousados em lágrimas de sangue da mulher.
O cereal amassado a crescer. O forno em labaredas de ódio no
retrato da tirania.
Ti Liberta, abra os olhos.
Já faz tempo que a ceifeira, na voz de todas as ceifeiras,
deixou rolar a foice entre o trigal, desesperada. Foi por mor do acrescento de
uns tostões à jorna.
Ficou tamanho eco no infinito da gente que lutou até à
exaustão.
A tua foice, Catarina.
Alentejo, vestimos os teus panos. Tu matas-nos a sede
Luísa Vilão Palma
RETRATO DE
CATARINA EUFÉMIA | Ary dos Santos
Retrato de Catarina Eufémia. Edição [Lisboa : s.n., s.d.] Texto do cartaz: [Poema] "Retrato de Catarina Eufémia" de José C. Ary dos Santos URL http://sinbad.ua.pt/cartazes/CT-ML-II-887 |
Da medonha saudade da medusa
que medeia entre nós e o passado
dessa palavra polvo da recusa
de um povo desgraçado.
Da palavra saudade a mais bonita
a mais prenha de pranto a mais novelo
da língua portuguesa fiz a fita encarnada
que ponho no cabelo.
Trança de trigo roxo
Catarina morrendo alpendurada
do alto de uma foice.
Soror Saudade Viva assassinada
pelas balas do sol
na culatra da noite.
Meu amor. Minha espiga. Meu herói
Meu homem. Meu rapaz. Minha mulher
de corpo inteiro como ninguém foi
de pedra e alma como ninguém quer.
José Carlos Ary dos Santos
AO RETRATO DE
CATARINA | Carlos Aboim Inglez
Esses teus olhos enxutos
Num fundo cavo de olheiras
Esses lábios resolutos
Boca de falas inteiras
Essa fronte aonde os brutos
Vararam balas certeiras
Contam certa a tua vida
Vida de lida e de luta
De fome tão sem medida
Que os campos todos enluta
Ceifou-te ceifeira a morte
Antes da própria sazão
Quando o teu altivo porte
Fazia sombra ao patrão
Sua lei ditou-te a sorte
Negra bala foi teu pão
E o pão por nós semeado
Com nosso suor colhido
Pelo pobre é amassado
Pelo rico só repartido
Tanta seara continhas
Visível já nas entranhas
Em teu ventre a vida tinhas
Na morte certeza tenhas
Malditas ervas daninhas
Hão-de ter mondas tamanhas
Searas de grã estatura
De raiva surda e vingança
Crescerão da tua esperança
Ceifada sem ser madura
Teus destinos Catarina
Não findaram sem renovo
Tiveram morte assassina
Hão-de ter vida de novo
Na semente que germina
Dos destinos do teu povo
E na noite negra negra
Do teu cabelo revolto
nasce a Manhã do teu rosto
No futuro de olhos posto
Carlos Aboim Inglez
CATARINA
EUFÉMIA | Francisco Miguel
Na vasta planície os trigos não ceifados.
Ao longe oliveiras batidas pelo sol.
Tu serena caminhas para os soldados
com a ideia, para todos um farol.
A brisa não se levantara.
Ias armada apenas da razão.
Contigo os milhões que têm, fome
contigo o povo que não come e que ali cultiva o nosso pão.
O monstro empunhava as armas de aço.
Tu pedindo a paz serena caminhavas
levando um filho no colo outro no regaço.
As armas dispararam, tu tombaste.
Com teu sangue a terra foi regada.
E ali à luz do sol que tudo ardia
dava mais um passo a nossa caminhada.
Na boca da mulher assassinada
certeza da vitória nos sorria.
o sol que o teu sangue viu correr
que teus camaradas viu ali aflitos
ouvirá amanhã os nossos gritos
quando o novo dia amanhecer
Que nessa terra heróica - Baleizão -
onde se recolhe o trigo branco e loiro
teu nome gravado em letras de oiro
tem já cada um no coração
Francisco Miguel
QUANDO A FLOR
DE TRIGO FOR DE PAZ, BELA CATARINA | Eduardo Fonseca
Eduardo Valente da Fonseca
CATARINA
EUFÉMIA | Sophia Andresen
O primeiro tema da reflexão grega é a justiça
E eu penso nesse instante em que ficaste exposta
Estavas grávida porém não recuaste
Porque a tua lição é esta: fazer frente
Pois não deste homem por ti
E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos
Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro
Porque eras a mulher e não somente a fêmea
Eras a inocência frontal que não recua
Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que
morreste
E a busca da justiça continua
Sophia de Mello Breyner Andresen,
Dual, 1972
ANTÍGONA E CATARINA EUFÉMIA: FIGURAÇÕES DA JUSTIÇA EM SOPHIA DE
MELLO BREYNER ANDRESEN
[…]
Se
observarmos o poema “Carta aos amigos mortos” encontraremos, por sinal, uma imagem
que é notável síntese do enfrentamento realizado nessa poética, a de fazer
frente: “Aqui me resta apenas fazer frente/ Ao rosto sujo de ódio e de
injustiça” (Andresen, 2003 [1962]: 46). O mesmo sintagma, fazer frente, também
está mencionado precisamente no poema “Catarina Eufémia”, que integra a última
parte, intitulada “Em memória”, do volume dual. Trata -se de uma conhecida
personagem histórica que, após ter sido morta em 19 de maio de 1954 por um
membro da Guarda Nacional Republicana, foi consagrada como símbolo de luta do
proletariado rural português durante o regime salazarista. Podemos, inicialmente,
dizer que seu fazer frente resulta em um dos poemas mais explicitamente políticos
do conjunto da obra poética andreseniana. Mas não somente. As noções de justiça
que ali são articuladas talvez sejam as que mais esclarecem que tipos de
reivindicações e protestos Sophia Andresen faz quando demanda justiça em seus
poemas. Primeiramente, podemos apontar, sim, o cunho político, potencializado
pela personagem identificada com uma vítima factual, além da inclusão de várias
informações sobre aquele crime, detalhes perceptivelmente retirados da
imprensa. Devemos apontar também a literal busca de justiça que o último verso
preconiza: “E a busca da justiça continua” (Andresen, 2004 [1972]:74).
Alguns
exemplos confirmam-nos que tal episódio do assassinato daquela trabalhadora transformou-se numa alegoria da luta desigual e da conduta ilibada por parte do lado mais
fraco. Isso é encontrado nos versos de Francisco Miguel, de um poema intitulado
“Catarina Eufémia”, que relata uma exemplaridade em desvantagem: “Tu serena
caminhas para os soldados/com a ideia, para todos um farol” (Miguel, apud PCP).
Nos versos de vicente Campinas, em “Cantar alentejano”, depois musicado por
José Afonso, é sublinhada uma busca de justiça semelhante à referida por
Sophia, mas claramente transferida às mãos de outros trabalhadores, que, por terem
testemunhado o crime, mantêm a mesma luta: “Acalma o furor campina/Que o teu
pranto não findou/Quem viu morrer Catarina/Não perdoa a quem matou” (Campinas,
apud PCP).
Também
nos versos de Ary dos Santos, de “Retrato de Catarina Eufémia”, “Catarina morrendo
alpendurada/do alto de uma foice” é uma imagem da integridade, do
posicionamento político, da atitude de resistência e da dura punição recebida,
“de corpo inteiro como ninguém foi/de pedra e alma como ninguém quer” (Santos,
apud PCP). “Ao retrato de Catarina”, de Carlos Aboin Inglez, aponta um embate e
a ameaça a uma lei ditada pelo poder, conflitos rigorosamente reprimidos:
“Quando o teu altivo porte/Fazia sombra ao patrão/Sua lei ditou-te a
sorte/Negra bala foi teu pão” (Inglez, apud PCP). Se essas leis tortuosas, do
patrão e da guarda, remetem-nos à peça de Sófocles e aos desmandos de Creonte diante
da postura moral de Antígona, percebemos no poema de Sophia uma justiça humana igualmente
corrompida. Já que Díkē já foi exilada, vivemos nós o exílio de sua ausência.
[…]
Temos já
na primeira estrofe [do poema de Sophia Andresen] a informação de que Catarina
ficou exposta e de que estava grávida. A edição de maio -junho de 1954 do
jornal o camponês, “órgão dos Camponeses de Portugal”, portanto, dos próprios
trabalhadores e da época daquela ocorrência, com o título “Uma camponesa”,
afirma que “o ódio dos fascistas pelos camponeses teve a sua mais infame
expressão”, ao que complementa ao relatar que um “grupo de camponeses” foi
recebido a “rajada de metralhadora”, quando “à frente iam camponesas com os
filhos ao colo”. A reportagem menciona Catarina Eufémia ainda como uma dessas
mulheres, das quais se destacou ao dizer “Nós temos fome e queremos é falar com
os de Penedo Gordo”, frase que, segundo esse relato, resultou em uma agressão
que a derrubou: “grávida, caída no chão e segurando um filho que trazia ao
colo, gritou -lhe «nós temos fome e queremos paz»”. De acordo com a publicação,
“o tenente assassino metralhou friamente a camponesa dando-lhe morte imediata e
ao filho que trazia no ventre” (o camponês, apud PCP).
No Diário
do Alentejo, de 21 de maio de 1954, também do mesmo mês do facto ocorrido, é
relatado que “a morte foi provocada pela pistola-metralhadora do sr. Tenente
Carrajola, que comandava a força da G.N.R” e confirma as informações trazidas
no jornal camponês: “No momento em que foi atingida, a infeliz mulher tinha ao
colo um filhinho, que ficou ferido, em resultado da queda. A Catarina Efigénia
[assim aparece o seu nome naquela publicação] tinha mais dois filhos de tenra
idade e estava em vésperas de ser novamente mãe” (Diário do Alentejo,
apud PCP).
O jornal Avante!,
órgão Central do Partido Comunista Português, de abril de 1955, ano seguinte ao
ocorrido, com um subtítulo “Catarina Eufémia não morreu!”, além de mencionar diversas
homenagens realizadas àquela camponesa, narra que essa reportagem de o camponês
foi lida em voz alta a muitos trabalhadores em reuniões em todo o país, do que podemos
deduzir que foi daquele primeiro jornal a versão que a mitificou. No Avante!
de 24 de maio de 1974, sob o título de “Grande jornada popular em memória de
Catarina”, aparece resumido que “Catarina Eufémia, militante do Partido
Comunista Português, caiu, na flor da vida, em Baleizão, à frente de uma greve.
Depois, o seu nome tornou -se bandeira e chegou aos confins do mundo, a toda a
parte onde o proletariado trava a sua luta pela instauração do socialismo” (Avante!,
n. 198, abril de 1955, apud PCP), sublinhando, desse modo, o caráter político e
partidário do fato. Dentre os jornais que compõem o dossiê organizado pelo PCP,
disponível em rede, o periódico Militante, de 1989, confirma tal versão: “grávida
e com o pequenito José Adolfo, de 8 meses, ao colo, esta avança decidida, confiante
e sem temor, para o diálogo” (Militante, apud PCP).
Desse
modo, com base nas informações da imprensa, vemos que os versos de Sophia de
Mello Breyner Andresen exaltam esse fazer frente de Catarina, que ao contrário
da maioria das mulheres de seu tempo, não ficou “em casa a cozinhar intrigas”,
pois “era preciso que alguém não recuasse”, e “Porque eras a mulher e não
somente a fêmea” (Andresen, 2004 [1972]: 74). Chamamos a atenção também para o
contraste entre a frontalidade e a obliquidade, valores estendidos a uma
postura. Fica-nos claro o apoio do poema à posição de reivindicação, à greve,
ao pedido de melhorias do pagamento, ao comprometimento partidário e à
resistência daquela trabalhadora, assim como à denúncia e condenação daquela
morte. Contudo, além de uma leitura político-partidária, encontramos na menção a
Antígona um ponto chave, fundamental para que possamos elucidar a proposta de
justiça desse poema, uma possibilidade de sanar a caótica injustiça
circundante: “Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que
morreste” (Andresen, 2004 [1972]: 74).
Ora,
encontramos na tragédia de antígona a encenação ao extremo do embate entre duas
leis, de um lado, a do soberano, promulgada por um humano, que rege as relações
interfamiliares da cidade, priorizada pela personagem de Creonte, e, do outro,
a lei eterna, de origem divina, prescrições que regem as relações dentro das
famílias, o comportamento na casa, os ritos, defendida pela personagem de
Antígona. Lembremos que essa filha de édipo foi condenada dentro da lei humana
exatamente por ter colocado a lei familiar e sagrada acima dos decretos do
soberano e que a thémis que ela optou por respeitar dizia respeito ao
funeral de um de seus irmãos, a cumprir essa obrigação sagrada, primeira,
ritual. Ao lermos o fim da célebre reportagem de o camponês, n. 44, maio -junho
de 1954, sobre a morte de Catarina Eufémia encontramos uma informação relevante
sobre o desfecho daquele assassinato: “O corpo da camponesa foi levado para
Beja [...]. Depois os fascistas fugiram com o corpo da desventurada camponesa
não deixando que os trabalhadores lhe fizessem o funeral” (o camponês, apud
PCP). Notemos que somente no dia 21 o Diário do Alentejo noticiava seu
enterro: “O funeral realizou -se ontem, saindo do hospital de Beja para o
cemitério de Quintos. Centenas de pessoas vieram de Baleizão para acompanharem o
préstito” (Diário do Alentejo, apud PCP).
Se o rito
funeral de Polinices e o de Catarina Eufémia foram ambos interditados7
por decretos que feriam uma lei primeira e eterna, vemos que Sophia coloca,
indiretamente, como irmãos daquela camponesa todos os trabalhadores que a pretenderam
enterrar com honras, assim como condiciona o próprio poema na função de uma
Antígona, de prestar reverência ritual a um familiar morto, em uma espécie de
epitáfio.
Se
Antígona é o enfrentamento em torno de uma justiça, nos versos andresenianos percebemos
ser essa justiça defendida como prioridade. Portanto, mesmo a justiça que
deveria ser a terrestre, de díkē, com seu mostrar com autoridade como
deve ser (cf. Benveniste, 1995: 110 -111), jamais poderia sobrepujar a de thémis,
um direito fundamental humano. Quando isso ocorre, há um indício de que, de
fato, a personificada díkē foi mesmo exilada da cidade dos homens, da
sociedade, do país, do mundo, como na Idade de Ferro do poema de Hesíodo, o que
nos leva a concordar com Paula Alves (cf. Alves, 2000), com algum acréscimo nosso
no que diz respeito à identificação de uma esperança na obra poética de Sophia.
O que
sobretudo pretendemos apontar com a leitura desse poema, “Catarina Eufémia”, de
maneira central, como uma síntese mesmo do que acontece nessa poesia, é que, ao
exigir justiça, em meio a todo um tempo da enunciação referido como caótico,
ameaçador, injusto, Sophia de Mello Breyner Andresen, acima da questão
política, exige uma ordem hierárquica entre díkē e thémis, de
modo que, à lei do direito, da política e jurídica, jamais possa ser dado o
privilégio de ferir uma lei primeira, eterna, sagrada, dos laços basilares do
homem. Nesse ponto há uma esperança em seus versos.
Virgínia Bazzetti
Boechat, “Antígona e Catarina Eufémia: figurações da justiça em Sophia de
Mello Breyner Andresen”, artigo
baseado na tese de doutorado intitulada Do projeto à forma justa: Sophia de Mello Breyner Andresen, aprovada em 2011, pela USP.
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7 A noção
dessa proibição permanece sobretudo se nos lembrarmos que a reportagem de o
camponês foi largamente divulgada entre os camponeses e proletariado, assim
como entre os membros da esquerda de variadas classes sociais e seus
conhecidos, tendo sido, sem dúvida, a que predominou no imaginário da
população.
POEMAS AOS HOMENS
DE NOSSO TEMPO: A POESIA DE GRADES E O ESTADO NOVO PORTUGUÊS
Além da
ameaça e da opressão, o tema da justiça é trazido a Grades também pelo seu viés
oposto: a injustiça unida à violência. O poema “Catarina Eufémia”, publicado
em 1970 na coletânea e posteriormente em Dual, de 1973, tem seu nome em homenagem
à mulher cuja morte tornou-se símbolo de resistência e contestação do Estado
Novo. Catarina Eufémia Baleizão era uma assalariada rural da cidade de Baleizão,
região alentejana, mãe de três filhos. Nascida em 1928, era muito pobre e assim
viveu, trabalhando em empregos sazonais nos latifúndios do Alentejo, onde, desde
meados da década de 1940, era comum o “clima de agitação social entre os trabalhadores
rurais”.274
Em maio
de 1954, os trabalhadores de Baleizão organizam uma greve e “Catarina integra
uma marcha de resistência até a residência do patrão. Pretendiam aumentar de 16
escudos para 23 escudos a jornada das mulheres na campanha da ceifa”.275
Nesse trajeto, a mulher é morta a tiros pelo Tenente Carranjola, da Guarda Nacional
Republicana. Ela tinha o filho de oito meses no colo quando foi atingida. Alguns
relatos da época, inclusive a notícia que é dada no periódico Diário do
Alentejo, afirmam que a ceifeira estava grávida, mas essa informação não
foi confirmada.
Catarina
é vista como símbolo da mulher forte, mãe e militante, e sua morte tornou-se
tema ligado à justiça, à busca pela igualdade social e ao combate do poder violento
do regime do Estado Novo. É por meio dessa temática que Sophia Andresen apresenta
Catarina […]
É
evidente logo na primeira estrofe que Catarina Eufémia é a mulher que luta pela
justiça, “porque tua lição é esta: fazer frente”. O primeiro tema a que a voz
poética se refere é a justiça, e podemos pensar na reflexão que influencia a
autora, o que a leva a inserir o adjetivo “grega” no poema qualificando a
palavra “reflexão” quando o poema é publicado em Dual, aparecendo desta
maneira: “O primeiro tema da reflexão grega é a justiça”.277
Catarina,
segundo a voz poética, é uma mulher que rompe a condição comum para a época da
mulher que fica em casa, que não tem sua autonomia em relação ao marido: “Pois
não deste homem por ti / E não ficaste em casa a cozinhar intrigas / [...] E não
serviste apenas para chorar os mortos”. Além de ser vista como uma mulher mais independente,
a voz poética também a insere como uma pessoa que não hesitou diante da força
do poder, como sugere a terceira estrofe: “Tinha chegado o tempo / Em que era preciso
que alguém não recuasse”. Mas esse combate teve a morte como preço, e a terra “bebeu
um sangue duas vezes puro”, pois ela estava grávida e era inocente, lutava pela
igualdade.
A voz
poética separa Catarina da condição de fêmea, dizendo “porque eras mulher e não
somente a fémea”, isto é, a trabalhadora foi além da sua condição animal e do
seu instinto, buscando algo que é fundamental para o humano, sobretudo para as mulheres:
sua igualdade. É Importante considerar que a voz poética marca o posicionamento
de Catarina como uma mulher que foi além do seu papel feminino instituído por
uma sociedade pautada na figura do homem. A busca pela justiça e pela igualdade
da ceifeira aproxima-a de Antígona, que não recua diante da decisão de Creonte,
o governador de Tebas, de deixar seu irmão morto Polinices sem os ritos de passagem.
Na tragédia de Sófocles, a mulher tem uma postura de embate ideológico, pois
contesta o valor das ordens terrenas do governador Creonte diante das ordens
dos deuses. Ela também morre por suas crenças e por sua ação desafiadora de
buscar a todo custo aquilo que seria justo, isto é, sepultar seu irmão sob os
ritos da religião.
O poema
se encerra com um único verso, “A busca pela justiça continua”, que pode ser
lido pela busca de justiça em relação à morte de Catarina e aos abusos de poder
em geral cometidos pelo governo que assassina a ceifeira. A morte dessa mulher,
para a voz poética, é um símbolo da justiça e do combate contra as mazelas que
atingem a todos e por isso dá voz ao imaginário daqueles que se opunham ao
regime salazarista.
Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello
Breyner Andresen, Nathália
Nahas. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2015
____________
274 ROSAS, Fernando; BRITO, J. M. Dicionário de História do
Estado Novo. Venda Nova: Bertrand, 1996, vols. I e II, p. 240.
275 Ibidem.
277 ANDRESEN, S., Obra Poética, edição de Carlos Mendes
de Sousa, 2.ª ed. Alfragide: Editorial Caminho, 2011, p. 594
CARREIRO, José. “Catarina Eufémia”. Portugal, Folha de Poesia, 14-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/catarina-eufemia.html