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segunda-feira, 25 de setembro de 2023

AO PRINCÍPIO ERA O LIVRO (Natália Correia)

Tertúlia em casa de Natália Correia.

 

O livro é como um rio. Tem a sua nascente e a sua foz. E assim como o rio se mistura na vastidão oceânica, funde-se o livro na massa do saber universal. A sua nascente é o autor. A foz, o leitor. Mas esse percurso não seria possível se dele não fossem motores o editor e o livreiro, figuras por vezes obscuras, mas não menos importantes na marcha do livro para o seu destino universal.

Contudo não é sem razão que hoje se levanta um alarme. Agouros tecnológicos de entre os quais avulta a aldeia global de MacLuan vaticinam, se não a liquidação do livro pela hipnose dos meios dos meios audio-visuais, pelo menos a grande redução do seu espaço. Ai de nós se assim for. Porque a audiovisualidade por mais apuradamente cultural que seja e dificilmente o será, não permite a retenção da palavra, o voltar atrás que a escrita faculta, elementos indispensáveis à reflexão, do exercício da memória e ao despertar da subjectividade cada vez mais apoucada pela tirania da massificação.

Dignificar o livro e promover a sua expansão é, pois, obra de quantos se empenham em salvaguardar os valores individualizantes que poderão resistir à imbecilização de uma humanidade puerilizada pelo igualitarismo da quantificação tecnológica.

Quando Gutemberg inventou o prelo tipográfico, alguns viram nesse meio de democratização dos conhecimentos obra faustica de um pacto com o diabo. E ainda Lope de Vega nela denunciava o perigo de abandalhar pela quantidade o que devia ser património da qualidade. Contudo, hoje, por ironia da mudança dos tempos e das vontades, é nesse produto nobre da tipografia que residem as virtudes da defesa do qualitativo da tecnologia globalista que despersonaliza e que desidentifica, que anula os indivíduos. Bem hajam, pois, os que nesta ilha confirmam a tradição da bibliofilia que tanto a tem ilustrado e a dotam com mais um instrumento de cultura. Porque esta é a própria condição do fortalecimento da personalidade açórica e da sua invulnerabilidade à usura de um Estado centralizador, que no seu narcisismo, se condena a afundar-se nas águas fatais da autocontemplação, tragicamente alheio a realidades indefectíveis como esta: açorianidade!

Natália Correia, “Ao princípio era o Livro” - discurso proferido aquando da inauguração da livraria Nove Estrelas, dirigida por José de Almeida, em 07-12-1981.

(Partilhado por Carlos Melo Bento, em https://www.facebook.com/carlos.melobento, 23-09-2023)


quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Romance de D. Pedro e Dona Inês (Natália Correia)

Pedro e Inês, os amantes infelizes, por Sérgio Marques, 2021

 

Romance de D. Pedro e Dona Inês

 

Era seu colo de neve
tocado daquela graça
do contorno mais breve
onde o infinito se enlaça.

Morta, em sua fronte uma constelação
era presságio do ritual macabro
duma coroação.

O que bebera em sua carne a claridade
que dos deuses escorre para a mais pura taça
partiu com mãos de tempestade
apressando com ira
e com desgraça
a fatalidade que os ungira.

E só parou quando mudo no espanto
onde o enlevo da morte se adivinha
o fim do mundo ficou esperando
aos pés da mais fantástica rainha.

 

Natália Correia, Poemas (1955)

 

O poema é inspirado na história de amor trágico entre o infante D. Pedro e a sua amante Inês de Castro, que foi assassinada por ordem do rei D. Afonso IV, pai de D. Pedro, em 13551. Após a morte de Inês, D. Pedro declarou que se tinha casado secretamente com ela e mandou coroá-la como rainha, expondo o seu cadáver no trono.

O poema apresenta uma estrutura narrativa, podendo ser dividido em três momentos: a descrição da beleza de Inês (primeira estrofe), o relato do seu assassinato (segunda e terceira estrofes) e a reação de D. Pedro (quarta estrofe).

As imagens da primeira parte parecem ser ambíguas, visto que a neve pode simbolizar a palidez da pele de Inês após a morte, mas também pode simbolizar a brancura e a delicadeza da sua pele em vida. A graça e o contorno podem sugerir a beleza e a delicadeza da sua forma mesmo na morte, mas também podem sugerir a elegância e a perfeição da sua forma em vida. O infinito pode representar a transcendência da beleza de Inês, mesmo após sua morte, mas também pode representar a eternidade do amor entre Inês e D. Pedro.

A meu ver, os versos da primeira estrofe parecem evocar a beleza serena do corpo morto de Inês após a sua morte violenta, usando imagens de pureza e tranquilidade para contrastar com a tragédia que ocorreu. Assim, o contorno breve do corpo mortal demarcaria a fronteira entre o físico e o espiritual, como se estivesse tocando o infinito.

A segunda estrofe introduz elementos sombrios na narrativa, com a menção de uma constelação na sua fronte como presságio do "ritual macabro / duma coroação" póstuma, como de facto veio a acontecer.

A terceira estrofe revela a crueldade do destino, sugerindo que o que atraía a claridade dos deuses na sua carne foi arrancado com fúria e desgraça. O sujeito poético emprega nesta parte do texto uma linguagem bem sombria e dramática para narrar o ato cruel que tirou a vida de Inês. Palavras como "tempestade", "ira", "desgraça" e "fatalidade" são escolhidas cuidadosamente para expressar a fúria e a injustiça que marcaram o crime. A palavra "tempestade" evoca uma sensação de caos e violência, sugerindo que o ato foi tumultuoso e selvagem. "Ira" ressalta a intensidade da raiva subjacente a essa ação violenta, enquanto "desgraça" aponta para o trágico e infortunado destino de Inês. A palavra "fatalidade" enfatiza a inevitabilidade do ocorrido, como se o destino estivesse selado desde o início.

Na quarta estrofe, o sujeito poético retrata a profunda reação de D. Pedro perante o cadáver de Inês, revelando seu espanto e dor de maneira comovente.

A utilização de uma hipérbole, ao afirmar que "o fim do mundo ficou esperando / aos pés da mais fantástica rainha," é notável. Essa expressão enfatiza a intensidade do amor de D. Pedro por Inês e a extensão de seu sofrimento. Ao sugerir que o "fim do mundo" estava à espera, a poeta indica que, para D. Pedro, nada mais importava a não ser o seu amor por Inês. Essa hipérbole realça o aspeto trágico e atemporal do amor do protagonista, como se a própria ordem do mundo estivesse suspensa ou interrompida diante da morte de Inês.

Além disso, ao chamar Inês de "rainha" depois de sua morte, a poeta destaca o caráter fantástico e paradoxal da situação. Inês, embora morta, é descrita como uma rainha, talvez indicando que o seu amor e beleza transcenderam a vida e a morte, conferindo-lhe uma realeza eterna. Esse uso do termo "rainha" também ressalta a importância de Inês na vida de D. Pedro e a profunda reverência que ele sentia por ela, independentemente das circunstâncias.

O poema "Romance de D. Pedro e Dona Inês" de Natália Correia é um texto que evoca uma atmosfera sombria e trágica, mergulhando na lenda histórica do amor proibido entre D. Pedro I de Portugal e Dona Inês de Castro.

 

Túmulos de D. Pedro e D. Inês, dispostos frente a frente, no Mosteiro de Alcobaça



sábado, 18 de março de 2023

O Dever de Deslumbrar - Biografia de Natália Correia

 

O Dever de Deslumbrar. (Imagem: https://www.rtp.pt/acores/cultura/o-dever-de-deslumbrar-e-a-nova-obra-biografica-sobre-natalia-correia_79894)

O Dever de Deslumbrar - Biografia de Natália Correia

Filipa Martins

Contraponto Editores, março de 2023

 

SINOPSE

Intimidando pela verve de aríete e pela beleza, Natália Correia simbolizou, como poucos, as inquietações do século XX português. Precoce e radical no pensamento feminino, vítima de efabulações e de mitos, incompreendida e amada, lançou um olhar oracular sobre o seu tempo. Em tertúlias, que eram verdadeiras olimpíadas da confraternização lisboeta, o seu traço aglutinador envolvia, juntamente com o fumo dos cigarros, intelectuais e admiradores, que se irmanavam com párias e malditos em ideias e poemas de vanguarda.

Mulher deslumbrante e carismática, equiparada às maiores pensadoras europeias e às estrelas de Hollywood, atacou o Regime onde mais lhe doía - na moral caduca -, elegeu o erotismo como arma política e tornou-se a autora mais censurada da ditadura. Já no bar que fundou em Lisboa, fez e desfez governos à batuta da sua boquilha.

Nesta biografia, da autoria de uma das vozes mais seguras da nova literatura portuguesa, convivem a libertária e a conservadora, avessa a expor a sua atribulada vida íntima, a mulher que desprezava a política partidária e que nela viveu, inclusive como deputada; o espírito frágil e o temperamento intempestivo; o polémico exercício de funções diretivas em órgãos de imprensa e a defesa intransigente das causas maiores; e, em todas as páginas, as contradições e coerências de uma pensadora capaz de criar para si própria uma narrativa que não a torturasse pelas escolhas que fez. 

Disponível em: https://www.contrapontoeditores.pt/produtos/ficha/o-dever-de-deslumbrar/21332326


Natália Correia, Lisboa, 1963 (Arquivo de Ivo Machado)


 

NATÁLIA, MAIOR DO QUE A VIDA

Livre, corajosa, visionária, sedutora, complexa. São inesgotáveis os adjetivos que vão bem com Natália Correia (1923-1993), a escritora, a editora, a política, a cidadã, a mulher de armas, a figura maior do que a vida, que atravessou todo o século XX português. “É a mátria portuguesa”, diz Filipa Martins, também ela escritora e, agora, autora da muito aguardada nova biografia de Natália Correia, uma longa investigação de quase seis anos que chega, nesta semana, às livrarias. “Era uma mulher davinciana, que tocava todas as artes, até a política. E a sua história confunde-se com a própria História do País”, acrescenta Filipa Martins, no artigo assinado pela grande repórter da Visão Rosa Ruela, que faz a nossa capa desta semana.

O ano de 2023 é um ano de dupla efeméride no que toca a Natália Correia: a 16 de março, faz 30 anos que morreu; a 13 de setembro, cumpre-se um século após o seu nascimento. Com um pai ausente, Natália foi educada pelas mulheres da família, conforme conta Rosa Ruela, seguindo o relato de Filipa Martins em O Dever de Deslumbrar, que a jornalista pôde ler em primeira mão. Teve uma infância feliz “entre gargalhadas e poucos ralhetes”, escreve a jornalista da Visão. “Natália-adulta iria conseguir ver muito à frente do seu tempo. Era uma visionária, com uma capacidade de antecipação, de perceber o que estava por vir, como quase ninguém. E iria manter-se coerente com os seus princípios e valores, até ao fim.” Uma figura que ainda hoje tem muito por revelar, num trabalho de fôlego que o leitor pode ler a partir da página 32 desta edição.

Visão n.º 1657, editorial de 16-03-2023


Visão n.º 1657, 2023-03-16

 

NATÁLIA, A INDOMÁVEL

Para se perceber Natália, tem de se começar por conhecer as suas origens. Era, aliás, algo que lhe interessava, respondeu quando o escritor Victor de Lima Meireles, seu amigo, lhe propôs investigar a sua genealogia.

Nas suas raízes, tinha, no lado paterno, Duarte Galvão, cronista-mor do reino e embaixador da corte de Dom João II à Etiópia (“Não poderemos dizer menos do que isso sobre Natália”, comenta Filipa Martins). E, no lado materno, tanto houve um antepassado a traçar pescoços numa batalha no Porto, em 1245, como uma sexta avó escrava, Inês de seu nome.

“Não deixa de ser curioso saber que o sangue de Natália fluiu de paragens distantes”, nota a biógrafa. Talvez viesse daí, aventa, a sua curiosidade pelas calafonas (expatriadas que viviam na Califórnia) e pelos gestos que elas faziam quando fumavam. Em pequena, imita-as às escondidas com papelinhos enrolados, “os antepassados precoces das longas boquilhas imortalizadas na pose que lhe conhecemos”.

O pai, Manuel Medeiros Correia, herdara da mãe, professora, “algum traquejo cultural”, que terá encantado Maria José. Apresentava-se como administrador de estufas de ananases e teria prosperado não fosse o gosto por uma vida mundana. Tanto fez que, “carregado de dívidas, deu o salto, indo para o Brasil”, contaria a própria Natália.

Manuel sai dos Açores em 1929, tem ela 6 anos, mas já antes se ausentara, nomeadamente para as Bahamas. Do Brasil, há de enviar-lhe algumas cartas e muitos rosários, bentinhos e missais, até se remeter ao mais completo silêncio. Mesmo Maria José passa décadas sem saber do marido, conseguindo divorciar-se só nos anos 50. “Não tinha pai como todos tinham”, resumirá Natália em Onde Está o Menino Jesus?

Conservador nos costumes, Manuel deixara a gestão das rendas das propriedades ao irmão, Francisco, vigário, o que era uma forma de controlar os comportamentos morais da família. Maria José detestava o cunhado, achava-o “capaz de abençoar com a mesma mão com que às escondidas apalpava o rabo à criada”, lemos.

A escritora seria sempre dura ao falar do pai. Aos amigos, dizia-se traumatizada pelo seu comportamento de alcoólico. Em entrevistas, limita-o ao papel de fecundador e resume-o a pândegas e a playboiadas. Em várias obras, sintetiza-o sem paninhos quentes, nota a biógrafa.

UMA CASA DE MULHERES

Os dois só voltam a encontrar-se nos anos 50, em Lisboa, na mesma altura em que Maria José está de partida para o Brasil, acompanhando a filha Cármen. Seria um reencontro “dolorosamente cerimonioso”, descreveria Natália, já fragilizada com a perspetiva da ausência da mãe, de quem se sentia muito dependente.

Maria José era filha de um liberal com ligações à secreta Carbonária. Professora desde os 21 anos, garantira, até casar, o sustento da sua mãe viúva e das três irmãs solteiras, Santo Cristo, Hortênsia e Amância.

Era uma mãe culta, que educou as filhas para o paganismo e a liberdade. Dava prioridade à mitologia da Antiguidade, à leitura dos clássicos, à criatividade. “A minha mãe alinhava em tudo o que fosse, na altura, modernidade subversiva”, contaria a escritora.

Na ausência do pater familias, a casa “tornou-se um ‘gineceu’”, escreve Filipa Martins. A avó, já com 81 anos quando Natália nasceu, era “a matriarca delirante”, que passava os dias na penumbra do seu quarto, na companhia do Príncipe Sublime, como chamava ao manequim de costureira vestido com um traje de características maçónicas que pertencera ao marido. A tia Hortênsia flagelava-se com cilícios, tendo embora sido sufragista em nova. E a tia Santo Cristo “era a tia boa”, que acabaria por morrer numa casa de saúde mental, na sequência de um desgosto de amor.

Quanto a Cármen, não liga às leituras como ela e a mãe, mas tem ouvido para a música. Nos vários relatórios da PIDE, enquanto Natália é nomeada escritora ou, o mais das vezes, doméstica, a irmã chega a constar como pianista.

As duas tratam-se por “minha adorada irmãzinha” quando se escrevem, mas teriam sempre uma relação ambígua, “entre o amor e o ciúme, a estranheza e a admiração”, conclui a biógrafa. Natália sofreria quando Cármen desapareceu sem deixar rasto no Brasil, depois de se juntar a uma seita religiosa obscura.

MACAMBÚZIA E INDOMÁVEL

Em 1934, vai ser apenas com a mãe e a irmã que ruma a Lisboa, aos 11 anos. A avó teria morrido, a tia Santo Cristo fora internada e as outras duas tias haviam emigrado para o Brasil. Ela própria só voltaria a Ponta Delgada mais de três décadas depois.

Na capital, a mãe começa por dar aulas numa escola pública (mais tarde, fundaria um colégio, o Lusitano), Cármen vai estudar para o Liceu Maria Amália e ela para o Dona Filipa de Lencastre, então no rés do chão de um prédio no bairro da Estrela. Passa muito tempo sozinha, autossegrega-se. Torna-se a “versão macambúzia” da criança açoriana.

Revela novamente uma maturidade invulgar, sublinha Filipa Martins, contando como foi ela quem escreveu, aos 11 anos, um requerimento a pedir à direção da escola a isenção de propinas. “Evoca a sua condição de órfã, por o pai estar ‘ausente em parte incerta na América do Sul’ como razão cimeira.” Maria José ganhava 700 escudos por mês, e só o exame do curso geral (5ª classe) custava 200.

A isenção é-lhe concedida, apesar dos resultados modestos nos estudos, que a própria atribuirá a um temperamento indomável. Nos anos 80, há de contar ter sido expulsa da escola, facto que a biógrafa não conseguiu confirmar (“a memória é barro domável...”). Cármen, ela sim, foi suspensa e afastada por excesso de faltas.

Depois do Filipa, Natália segue para a Escola Industrial Machado de Castro, escapando-se, assim, às aulas de lavores, culinária ou artes domésticas. Nunca saberia estrelar um ovo, chorava para fazer um chá, era incapaz de acender o fogão e contava com Alfredo Machado, o terceiro marido, com quem viveu mais de 30 anos, para lhe comprar até as meias de nylon. “Não sei tratar de nada, na ordem das coisas práticas, não sei assinar um cheque, sou perfeitamente desastrada. Só sei escrever”, confessava.

O BOM SENSO DO CURA

Quando nasceu a Mocidade Portuguesa Feminina, em dezembro de 1938, Natália saiu da Machado de Castro porque Maria José não aceitava que as filhas pertencessem àquela “detestável organização”. Tinha 15 anos, estaria a meio do 3º ciclo e não se sabe se terminou esse ano letivo. “É nessa altura que começa a escolher os seus mestres”, conta Filipa Martins.

São eles alguns amigos da família, como o escritor e professor Manuel Cardoso Marta, que há de mostrar os primeiros poemas de Natália ao escritor José Campos de Figueiredo, e muitos poetas clássicos. Pouco depois, devora as leituras subversivas recomendadas pela mãe, “que a definiram numa altura em que qualquer apertão deixa marca à flor da pele”.

Será desse tempo o exemplar “manuseado com o cuidado dos amantes” de Le Bon Sens du Curé J. Meslier, obra póstuma do sacerdote francês, apontado por alguns historiadores como precursor da doutrina socialista, que a biógrafa encontrou na biblioteca da escritora, agora em Ponta Delgada.

Por altura da guerra civil de Espanha, ouve clandestinamente a BBC com a mãe, “horrorizada pelo espectro nazi”. É também pela mão da mãe que começa a frequentar tertúlias políticas e literárias, “numa antecâmara daquilo em que se viria a transformar a sua casa dos anos 50 e 60”. Já preferia a companhia dos mais velhos, porque eles lhe traziam conhecimento.

Ao mesmo tempo, Natália-adolescente tornou-se uma “exímia patinadora”, segundo as próprias palavras. “Era uma menina bonitinha com um estilo diferenciado” das restantes, “que remédio senão ser namoradeira”.

Logo em 1942, a mãe autoriza o seu casamento com Álvaro dos Santos Dias Ferreira, um escrivão do Tribunal da Boa Hora, mais velho 11 anos. Casa a 2 de setembro, a dias de perfazer 19 anos, pelo civil. Fica, assim, em aberto a hipótese do divórcio.

“Ela casa, e a sua liberdade transita das mãos do pai ausente para as do marido”, sublinha a biógrafa, que vê neste seu primeiro enlace sobretudo a vontade de se emancipar.

“CÉLIA” E O CASAMENTO INFELIZ

Os primeiros meses de casamento deixam-na acabrunhada. Já tinha a convicção de que não queria ser mãe – queria trabalhar. Sente-se “desasada mas decidida”, confirma a biógrafa num diário inédito da escritora.

Natália estreia-se, então, a cantar músicas românticas na Emissora Nacional, sob pseudónimo, porque as cantoras da rádio tinham fama de levianas. Escolhe apresentar-se como Célia Navarro, consta que lhe aplaudem a voz, mas conhece um curto êxito.

Um dia, vai ao Rádio Club Português dizer versos num programa açoriano, descobrem-lhe o timbre declamatório, e de cançonetista passa a locutora, apresentando-se aos microfones com o seu nome de casada: Natália Dias Ferreira. Em ainda menos tempo, torna-se residente no espaço literário noturno, onde rapidamente está a ler poemas da sua autoria.

O casamento também não dura muito. Seja pelos serões passados fora de casa, pelo cansaço dela, pelo facto de ser vítima de violência doméstica (“Mais tarde, confidencia a amigos que Álvaro a violava”, conta-nos a biógrafa), certo é que Natália protagoniza um dos 9 125 divórcios em Portugal da década de 1940. Um divórcio com direito a ação em tribunal e fundamentado na admissão de adultério da mulher e de sevícias por parte do marido.

Tinha sido, entretanto, afastada da rádio, talvez por razões políticas, supõe Filipa Martins. A sua família era vigiada pela PIDE desde março de 1944, e, dois anos depois, ela iria ingressar no MUD (Movimento de Unidade Democrática). Havia agentes da polícia política à porta do colégio da mãe e da sua própria casa.

Meses mais tarde, está a escrever no jornal Portugal, Madeira e Açores, cujo chefe de redação era Artur Geraldo Soares, que se diria apaixonado “até ao delírio” por ela. E, até ao final da década de 1980, nunca deixará de escrever em jornais e revistas.

Começa, então, a olhar para a condição feminina, tema que passa a interessar-lhe como nenhum outro. Não estando ainda divorciada, insurge-se publicamente quando Salazar retira o direito de voto às casadas. “Será que o matrimónio marca uma fase de apatia mental na futura mãe de família?”, escreve, com ironia, em março de 1946. […]

 

Ler mais em: “Natália Correia - a história da poetisa Indomável”, Rosa Ruela. Visão n.º 1657, 16-03-2023

 


“O Dever de Deslumbrar - Biografia de Natália Correia” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 18-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/o-dever-de-deslumbrar-biografia-de.html


domingo, 2 de outubro de 2022

O Bar Botequim de Natália Correia

O Botequim ocupa há décadas o número 79 do Largo da Graça


50 ANOS, 50 RESTAURANTES

1982: Natália Correia, o vulcão açoriano que abriu um bar icónico e deixou a Assembleia da República em alvoroço

 

Botequim, em Lisboa

Ia facilmente da mais olímpica gargalhada à mais eloquente cólera. Ninguém ficava indiferente a Natália Correia e há quem a coloque no grupo dos principais e mais ousados pensadores portugueses do século XX. De alma cheia, indomável e imprevisível, escreveu obras apreendidas pela PIDE e almejou uma revolução “civilizacional” em Portugal a partir do Bar Botequim, que abriu na Graça, em Lisboa. Num debate parlamentar, em 1982, respondeu a um deputado com o poema “Truca-truca”, que entrou para a história. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, vamos viajar no tempo - com o apoio do Recheio - para relembrar os 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal.

 

Natália Correia no lançamento de um livro de Júlia Lello no Botequim

Em 1982, a Assembleia da República foi palco de um inesquecível debate sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. A meio dos trabalhos, o deputado do CDS, João Morgado, adversário do projeto-lei, argumenta que “o ato sexual é para fazer filhos”. Soam, então, os alarmes no espírito inquieto de Natália Correia, então sentada na bancada do PPD/PSD e defensora da despenalização do aborto. Responde-lhe com um poema: "Já que o coito - diz Morgado - /tem como fim cristalino,/preciso e imaculado/fazer menina ou menino;/e cada vez que o varão/sexual petisco manduca,/temos na procriação/prova de que houve truca-truca./Sendo pai só de um rebento,/lógica é a conclusão/de que o viril instrumento/só usou - parca ração! -/uma vez. E se a função/faz o órgão - diz o ditado -/consumada essa exceção,/ficou capado o Morgado".

 

Natália Correia, por Inácio Ludgero


 

Da sátira à gargalhada geral foi um instante. O poema ridicularizava a situação, levando o racional do deputado ao limite e expondo o “conservadorismo moral” de certas franjas parlamentares. “Explorou a natureza contra natura de uma tomada de posição completamente inconcebível”, comenta Daniel Adrião, que conheceu Natália Correia e é membro dos órgãos diretivos do PS. Com um percurso no jornalismo e na literatura, Fernando Dacosta foi outro amigo de Natália e critica a imprudência de Morgado: “Foi muito infeliz. Eu conhecia-o de Lamego, era um bom advogado, um bom chefe de família e um bom católico. A certa altura, quis fazer uma perninha na política e filiou-se no CDS, o partido que mais se coadunava com as suas ideias e postura, vem para Lisboa e também se quer destacar. Aproveita a questão do aborto e tem a infelicíssima ideia de dizer aquele disparate. Deveria ter sido um bocadinho mais prudente e perceber que a Assembleia, naquela altura, não era constituída por matarruanos, mas por grandes vultos da cultura portuguesa. Daí a intervenção da Natália ser imediatamente apoiada e defendida por esses grandes vultos”.

A despenalização do aborto só se concretiza em 2007, após um intenso e prolongado esgrimir de argumentos. O “Sim” venceu no segundo referendo sobre o assunto e a lei foi aprovada no parlamento. Plasmada no debate de 1982 ficou, porém, a certeza de que a liberdade era “o valor supremo” na vida de Natália Correia, para quem “o ser humano tinha o direito de fazer as suas opções em tudo o que dizia respeito ao seu íntimo”, realça Fernando Dacosta.

Bar Botequim em 1973

 

Bparpd, Arquivo Natália Correia



 

Um bar para o futuro de Portugal

Nestes tempos, Natália Correia era já uma figura influente da cultura portuguesa. Natural da Fajã de Baixo, em Ponta Delgada (São Miguel), e estabeleceu-se em Lisboa. Foi jornalista, dramaturga, poeta (não apreciava o termo poetisa por achar a poesia assexuada), deputada e a mais carismática anfitriã da capital. O bar que abriu, em 1969, com Isabel Meyrelles no bairro da Graça - onde a memória de Natália já nomeou uma rua e inspira pinturas murais -, “marcou o século XX português”, afirma Fernando Dacosta na obra “O Botequim da Liberdade”, que escreveu sobre esse local único. Natália queria que fosse a “antevisão de um Portugal que podia haver no futuro, um espaço de convívio, cultura, afetuosidade e de ideias”.

O Botequim mantém o elegante balcão original. Exibe madeiras trabalhadas à mão, livros e revistas nas estantes, fotos de Natália e de Amadeo de Souza-Cardoso. No início, e apesar da claustrofobiaali“as asas, a imaginação e a criatividade não tinham limites”. “Projetava-nos para um espaço libertário, porque a Natália sempre foi uma libertária e uma aristocrata do espírito, como gostava de dizer. O Botequim era um sítio onde se ia beber inspiração, construído à imagem e semelhança da Natália, que era o centro de todas as atenções”, descreve Daniel Adrião, cliente desde o final dos anos 80.

Por norma, as manhãs eram passadas em casa, a escrever. A tarde era para afazeres sociais e, à noite, Natália ia para o Botequim vivenciar cultura. Saciava-se com o primeiro rosbife (também se servia Bacalhau à Brás), as pessoas chegavam e iam “contando as suas coisas”. Havia uma certa mise en scéne, Natália sabia acomodar “as peças do puzzle” pelas mesas e começava a dominar. A partir daí, tudo podia acontecer e, como escreveu Dacosta, em noites de festa “navegava-se delirantemente em demanda de continentes venturosos (ilhas de amores) que nunca se encontravam”. Para Natália o importante não era alcançá-los, “mas procurá-los”, comungando com “pessoas de espírito e ousadia”, realça o autor. Não se discriminavam vias políticas, Natália valorizava sobretudo os criadores, a “cultura e a autenticidade”, o respeito pela “diferença e as minorias”, “tinha urticária à mediocridade e ao carreirismo, a tudo o que cheirasse a oportunismos e a arrivismos”. Topava-os a léguas e punha-os fora do bar, sem delonga.


Fotobiografia de Natália Correia, por Ana Paula Costa

 

Noites longas e o salão literário

As convicções de Natália eram uma fortaleza. “Não gostava de ser contrariada em matérias que considerava sacrossantas”, diz Daniel. Certa vez, entra em choque por causa do Muro de Berlim com o filho do general Costa Gomes, à frente do pai, gelando a sala. O seu espírito vulcânico entrava imenso em erupção e o bar foi “invadido e destruído” algumas vezes, recorda José Manuel dos Santos. À meia noite, muitos acusavam o cansaço, mas viam Natália eufórica: “Além de ter comido o rosbife, tinha-nos absorvido a energia, o Cesariny tinha razão quando dizia que ela era vampírica”, garante um sorridente Fernando Dacosta. Com laivos de magia, foi neste bar que se continuou a tertúlia lisboeta e se “fizeram e desfizeram revoluções e governos, obras de arte e movimentos cívicos”“Só uma pessoa como a Natália era capaz de iluminar algo assim”, refere Fernando Dacosta, para quem os “grandes e mais ousados pensadores portugueses do século XX foram Fernando Pessoa, na primeira metade, e Agostinho da Silva, Natália Correia e Jorge de Sena na segunda”. Defende que os Sonetos Românticos são “uma obra prima”, atingindo a dimensão da lírica camoniana, e lembra um dos conceitos avançados introduzidos por Natália, o “femininismo”, que reivindica a valorização do feminino existente no homem e na mulher.

Fumaradas, taças de champanhe, declamações, cantigas e o piano ampliavam as noites. De madrugada começavam a sair convivas, algo regados. Se o primeiro visse a polícia, avisava os outros, que seguiam de táxi. Natália conduzia “muito mal”, diz Fernando, que amiúde a levava a casa. Numa noite, ela pega no volante e entra “à socapa” numa praceta, vindo um carro com prioridade pela direita. “Só não embateram porque o dono do outro carro parou a tempo e apitou. A Natália sai do carro e atira - “O senhor não sabe dar prioridade a uma senhora?” (risos). Era “repentista” e imprevisível...


Fotografia do Botequim, cedida por Daniel Agrião, à esquerda na imagem, e com Natália Correia ao centro, vestida de azul

 

A casa de Natália Correia, na Rua Rodrigues Sampaio, também era lendária. Divisões amplas e uma zona de estar e receber forrada “a livros, quadros, a fotos, a referências, a recordações” e símbolos, descreve “O Botequim da Liberdade”. Aí se fez um “fascinante” salão literário e se representou, pela primeira vez, a peça Huie Clos, de Sartre, traduzida e protagonizada por Natália. Henry Miller veio de propósito conhecer uma “verdadeira deusa grega”. Numa das idas de Daniel Adrião à sua casa, jantaram um empadão de carne feito com arroz e depois foram à ante-estreia da peça de teatro “A Pécora”. Também em privado Natália se revelava “cativante, fora da caixa, surpreendente e de imaginação vivíssima”. Tinha “o prazer da comida e da bebida” e o hotel do marido, Alfredo Machado, abastecia a mesa. Havia algum aproveitamento... Luiz Pacheco “abria a mala à socapa e pumba, uma lagosta para dentro da mala!”, conta Dacosta. No último piso do hotel funcionava uma roleta clandestina e, como é óbvio, “não havia fortuna suficiente para sustentar uma cambada de comilões e de viciados no jogo, foi tudo à falência”.

Natália Correia sempre vigilante..., Carlos Ribeiro Silva


Amália Rodrigues e a Revolução

Quando entrava outra diva no Botequim, Natália contentava-se porque “dava importância” ao bar, mas era também “uma concorrência que não queria”, considera José Manuel dos Santos. “Acontecia muito com a Graça Lobo”, por exemplo. Os serões em casa de Amália Rodrigues, que tinha a própria corte, davam faísca. Natália começava a dar nas cantigas de amigo e Amália, “enxofrada e manhosa”, pegava na guitarra, dedilhava e cantava. “Ora, entre ouvir a chumbada das cantigas de amigo da Natália ou o fascínio da voz da Amália, virávamo-nos todos para a Amália e a Natália deitava fumo, nem disfarçava (risos)”, recorda Fernando.

Antes da Revolução dos Cravos, Natália organizara a “Antologia de Poesia Erótica e Satírica”, que escandalizou o regime e lhe valeu condenação em tribunal, com pena suspensa. E publicou O Homúnculo, mandado apreender por Silva Pais, da PIDE. Um familiar de Silva Pais, cliente do Botequim, contou a Natália o veredicto de Salazar, que ficou sem dormir: “Apreendam o livro, mas não toquem na Natália Correia, porque é uma mulher muito, muito inteligente”, revela Fernando Dacosta. Para José Manuel dos Santos, não a prendiam por temerem “o escândalo”. Com o 25 de abril, grandes vultos da política e ainda das forças armadas, como Otelo, Vítor Alves ou Melo Antunes, afluem ao Botequim. “Passava lá toda a gente que tinha influência e poder”, confirma José Manuel dos Santos, que começa a frequentar por esta altura. Natália inicia o diário Não Percas a Rosa na noite do golpe. “Era uma oposicionista corajosa, feroz, e por vezes até selvagem, por isso recebe o 25 de Abril com muita alegria. A pouco e pouco, vê sinais de que a Revolução democrática, ou a liberdade, começam a correr riscos, queriam transformar aquilo numa outra coisa, e ela fica na primeira fila do combate. Fui com ela ao decisivo comício da Fonte Luminosa, com o Soares, e a que se juntou a Vera Lagoa”, diz o ex-assessor cultural de Mário Soares e Jorge Sampaio.

 

Arte urbana alusiva a Natália Correia, num mural de Maria Dias Coutinho


Pinturas murais alusivas a Natália Correia, na Graça, em Lisboa


 

Todas as noites chegavam informações ao bar. Melo Antunes vinha “de madrugada, com uma pastinha” e lia um documento que o Grupo dos Nove andava a redigir. Por vezes, Natália indignava-se: “O sujeito não concorda com o predicado! Como é que estes revolucionários não sabem gramática? O Melo Antunes pegava numa borrachinha, ia apagando e lá punha o sujeito a concordar com o predicado. Era todo um surrealismo...”, recorda Dacosta. A seguir ao 25 de Novembro, a Natália “fica contra” Melo Antunes: “Ele tinha dito, na minha opinião bem, que não se podia ilegalizar o PCP, e ela achou que isso era uma cedência”, refere José Manuel dos Santos, que assistiu a uma discussão com oficiais “melo-antunistas”. “Acabou. Não quero falar mais de assuntos políticos, o que me interessa é a literatura, a língua portuguesa e a arte”. Um coronel da aviação afirma, então, que se está “a cagar para a língua portuguesa” e Natália perde a cabeça, dá-lhe “duas chapadas” e confronta-o: “Jurou defender Portugal perante a bandeira e já Fernando Pessoa dizia - A minha pátria é a língua portuguesa! Ele jurou defender a língua e agora está a insultá-la e a conspurcá-la!”. E ainda ligou para o Lemos Ferreira, então Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, incitando-o a expulsar o “energúmeno”, recorda José Manuel dos Santos.


Natália Correia, durante as eleições de 1976, Inácio Ludgero



Natália Correia a dançar com Francisco Sá Carneiro, Inácio Ludgero


Soares, Sá Carneiro e os ódios de estimação

Depois de assistir a um debate tardio na assembleia, no primeiro governo constitucional, José Manuel dos Santos vai para o Botequim e não demorou até uma série de ministros, como Sousa Gomes e Medina Carreira, entrarem para cear. “Foi sempre um dos centros fundamentais de poder”. Tal como sucedeu com o PPD/PSD (em relação a Sá Carneiro), Natália aceitaria ser deputada pelo PRD “não pelo partido, mas pelo general Eanes”, que também considerava. Mário Soares “foi sempre muito amigo dela”, realça o ex-assessor. Um dia, era ele primeiro ministro, e está numa embaixada a tratar de um assunto. Natália interpela-o e Soares diz-lhe que não era “nada assim” como ela dizia. “Não me ouve, não me ouve. Ainda há-de vir rastejar a meus pés...”. Soares contrapõe: “Ó Natália, se fosse há 50 anos talvez, agora não”, comentário que mereceu da visada um queixoso “Ele só olha para mim como uma fêmea!”. Mas Soares “gostava dela, e muito”.Durante a presidência aberta nos Açores, Natália atrasa-se uma manhã e perde o seu avião. Como o voo presidencial era o último, alerta o presidente: “Não tenho avião!”. “Não esteja zangada, tudo se resolve. Sabe que tem sempre um lugar no meu coração”, apazigua o chefe de Estado. “Posso ter lugar no seu coração, mas não tenho nos seus aviões”, acentua Natália, sendo levada para o avião presidencial. Aí, aponta ao Chefe da Casa Militar: “Dê-me o lugar, sou uma senhora!”. O general Carlos Azeredo, que gostava imenso dela, “fez-lhe continência” e cedeu-lhe o lugar, ficando de pé, fardado e com as medalhas.

 

Capa do livro "O Botequim da Liberdade", de Fernando Dacosta

   

 

“O Botequim da Liberdade” inicia com a chegada de Snu Abecassis e Francisco Sá Carneiro, num Volvo escuro, a uma Ceia de Poesia no Botequim. Do interior vêm “notas de piano, tinir de copos, odores de canela” e os convidados trazem um enorme ramo de rosas brancas para a anfitriã, que foi o cupido do primeiro almoço do par: “Ela é uma princesa que jaz adormecida num esquife de gelo à espera do príncipe que a desperte com um beijo de fogo. O príncipe é você. Telefone-lhe e convide-a”, incitou Natália a Sá Carneiro, ligando depois a Snu: “Menina, o príncipe encantado por que esperavas vai aparecer-te”, lê-se. Natália fica arrasada com a tragédia de Camarate. Quando Santana Lopes era secretário de estado da cultura, teve um desaguisadocom Natália e nessa noite apareceu no bar com um ramo de flores. “Eu aceito, você é um estupor mas sabe tratar uma senhora como deve ser”, retribui Natália. Quando ele se foi embora, vaticina: “Este rapaz ainda chega a primeiro-ministro”.

Muitas figuras emergem no Botequim, estabelecendo diferentes ligações e relações de proximidade. De Helena Roseta a Isabel da Nóbrega, de António Vitorino de Almeida a Saramago. Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner e Agustina Bessa-Luís eram “no mundo literário, ódios de estimação” para Natáliaescreve Dacosta.Com Luiz Pacheco e Mário Cesariny começa por dar-se bem, mas os três egos deixam de se “conciliar no mesmo poleiro”, e distancia-se de Ary dos Santos “por desníveis de caráter”. Embirrou com Marcelo Rebelo de Sousa quando ele tomou banho no rio e apoiou Jorge Sampaio na corrida à presidência da Câmara. Irritavam-na, também, algumas abordagens dos média, como uma pergunta sobre a sua simpatia para com Sá Carneiro num debate no Instituto Franco-Português de Lisboa. “Você não passa de uma ignorante, não está preparada para me questionar, estou farta de semelhante marabunta vaginal”, reproduz Dacosta.

 

Fernando Dacosta, autor do livro "O Botequim da Liberdade", era cliente do Botequim


 

Combativa até ao fim

No início da década de 90, Natália percebe que o final se aproxima. Queixava-se mas não a levavam a sério. Não imaginavam “que aquela mulher fosse mortal”. Via-se a braços com a doença, a perda de rendimentos e desencantada com o “liberalismo selvagem” e o retrocesso democrático. O Botequim ia perdendo gás e influência, o que também “a entristece e que lhe tira até energia e força”. Poucos meses antes de Natália morrer, José Manuel dos Santos regressa de um jantar com o presidente Mário Soares e vai ao bar informá-la que, além de um prémio da Associação Portuguesa de Escritores, ia ser condecorada com a Ordem da Liberdade. Na sala está Júlio Pereira (acompanhado), que aparecia para “provocar a Natália”. A anfitriã chegou com o marido, Dórdio Guimarães, Isabel da Nóbrega e a viúva de Fernando Namora, estreante no bar. Esta, senta-se sobre um rolo de papel com um desenho ou pintura de Júlio Pereira, que lança a primeira “ordinarice”. Seguiram-se as “maiores enormidades” contra Natália e Dórdio. Natália tenta conter-se, até à decisiva vileza: “Tu devias era estar a vender castanhas num sítio qualquer, porque como escritora...”. Num ímpeto, salta “como uma leoa” e enraivece: “Deem-me um chicote para eu chicotear este biltre, este energúmeno!”. Embora debilitada, “era a Natália de sempre, com um extraordinário discurso de insulto”, recorda José Manuel dos Santos. No meio da gritaria, Dórdio e Isabel gatinham por trás até ao bar e chamam a polícia. Como não tinham percebido bem a razão da queixa e apanham Natália no auge da sua fúria, os agentes dirigem-se a ela para a prender, e ela vocifera: “Estão a tentar molestar uma senhora, o biltre é aquele e vocês são iguais a ele! É por isso que tudo o que é belo no mundo está a acabar, porque estou rodeada de imbecis e malvados!”. A contenda resolve-se, o instigador abandona, os agentes ficam “boquiabertos”...

 

Natália Correia em casa, Inácio Ludgero

 

“Todas estas personagens, para além de serem grandes escritores, artistas e intelectuais, eram originalíssimas, maravilhosas. Nunca desmentiam a sua obra, eram tão grandes como a sua obra. Eu adorava a Natália. Era, simultaneamente, a pessoa mais colérica e eloquente na cólera, e a pessoa que mais gosto tinha em rir. As suas gargalhadas eram olímpicas, homéricas, históricas. Ela adorava rir e divertir-se”, descreve José Manuel dos Santos. Fernando Dacosta elogia a abrangência e profundidade do seu pensamento, salientando que a amiga se interessou pelo neorromantismo, neoclássico e por tudo o que era diferente. A peça de teatro Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, por exemplo, era sobre o Sebastianismo, que “não significa desistência, apatia e espera pelo salvador”, mas se liga, antes, a um “movimento de resistência”, salienta Dacosta. O Botequim materializava-o e assumiu uma “importância extraordinária na história de Portugal”.

 

Raiava a madrugada de 16 de março de 1993 quando Natália sai do Botequim e chega a casa. “Foi deitar-se, sentiu-se mal, levantou-se e depois é um mistério”. Morria um astro e Fernando ficou “suspenso de tudo”. “É indescritível...”, verbaliza. Daniel Adrião sentiu um “enorme choque” e sugere que o Estado português aproveite os 30 anos da sua morte (e 100 desde o nascimento), em 2023, para a homenagear“enorme urgência de mudança estrutural no país” que Natália ambicionava “está por realizar”. “Era uma revolução civilizacional que elevasse os portugueses a outro patamar de cultura, ao conhecimento, educação, e ao respeito pela diferença e pelas minorias, era até o apoio institucional aos que pensam fora da caixa, aos criadores e artistas, àqueles que fazem com que o mundo avance”, conclui Daniel Adrião.


Área de esplanada e a entrada do Botequim ao fundo


 

A Nova gerência do Botequim

Depois da morte de Natália, o bar funcionou uns meses e fechou. O espaço teve outras existências, até Hugo Santos o reabilitar e reabrir o Botequim em 2010. Ouvira falar da história, mas não lhe imaginava a dimensão. O impacto “foi surreal”, gerando-se uma roda viva de jornalistas e reportagens. “Só ouvia falar na Natália e do Botequim, ela 'viveu' mais dois ou três anos depois da reabertura”, valida. O bar continua defender a liberdade, acolhendo quem vem comer, beber, ler, trabalhar no computador ou “abrir a alma” para o amigo em conversa íntima. Foi complicado no início, os vizinhos chamavam a polícia todos os dias receando o regresso do barulho. “Nos primeiros meses tive aqui uma lanterna vermelha e as velhotas acharam que isto era uma casa de prostituição”, recorda Hugo Santos.

À imagem de Natália, Hugo também já teve de expulsar clientes por virem “levantar a grimpa” e desrespeitarem o local, a vontade ou a orientação sexual alheias. “É um espaço onde és bem recebido e, mais do que isso, onde sentes um prolongamento da tua casa”, comenta Carlos Ribeiro Silva, cliente desde o primeiro dia da nova fase. No Botequim (Largo da Graça 79, Lisboa, Tel. 218888511; encerra à quarta-feira), a cozinha abre das 11h às 02h00. Vendem-se desde cafés a refeições completas, funcionando como bar e restaurante. Forte nas opções vegetarianas, como as Saladas de couscous com seitan (€7,65) e de Ovo com queijo e cogumelos frescos gratinados (€7,65), apresenta ainda Prego em pão alentejano com ovo, queijo e molho de mostarda (€7,85), e os bons folhados: prove o de queijo de cabra com tomate e espinafres (€7,45), o de mozzarella, cogumelos e presunto (7,45) e o de seitan caseiro (€7,65), Sopa de cogumelos frescos (€2,60), tábuas de queijos e enchidos.

Prego em Bolo do Caco do atual Botequim, Carlos Ribeiro Silva


 

Sara Tavares vem tomar café, Frankie Chavez e Nuno Prata já deram concertos na casa onde, por vezes, se acendem discussões sobre teatro, política, música, televisão ou o digital. Há dias em que se juntam mesas e já daí saiu um casamento. De alguma forma, a influência de Natália Correia ainda paira no ar. Hugo sente-se só um “guardião” de uma filosofia pulsante. E se há 'incultos' que estão mais “próximos do mistério do que os racionalistas”, como defendia Natália, se há mistério na criatividade, atente-se à mensagem que deixou a Fernando Dacosta na Lagoa do Fogo. Deve ser visitada às três da madrugada, “altura em que se desoculta aos iniciados”. “Sempre que vier a São Miguel, depois de eu ter morrido, suba à Lagoa do Fogo a essa hora, eu estarei lá”.

Hugo Santos, atual gerente do Bar Botequim


 

Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.

Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:

1972: O restaurante bar de Lisboa que se transformou na segunda casa do Expresso

1973: O tributo a Eusébio e uma mesa para a eternidade

1974: O Pote que ajudou a cozinhar a Revolução dos Cravos

1982: RECHEIO RECEBE DISTINÇÃO

O trabalho desenvolvido pelo Recheio dá frutos, não só com o aumento dos volumes comercializados, mas também a nível internacional. Em 1982, o Recheio recebeu a distinção de “International Food / Europe Award”, durante a Feira de Alimentação em Barcelona. Aquele que se mantém como o mais importante certame do setor agroalimentar em Espanha, e que é bienal, voltou a realizar-se em abril deste ano. Na 23.ª edição da atual “Alimentaria & Hostelco” estiveram representadas cerca de três mil companhias (400 das quais internacionais), dispersas por sete pavilhões expositivos no Fira de Barcelona Gran Via. Com o evento, demonstrou-se que a indústria da comida e hospitalidade “é um pilar da recuperação económica e internacionalização”, sublinha um press kit.

A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.

 

Pedro José Barros, Expresso, 2022-09-28

  

Natália Correia no lançamento de um livro de Júlia Lello no Botequim

 

Bparpd, Arquivo Natália Correia


Funcionários do Bar Botequim Bparpd, Arquivo Natália Correia

Natália Correia ao lado de Dórdio Gumarães no Botequim Bparpd, Arquivo Natália Correia

Natália Correia, por Inácio Ludgero

Natália Correia na sua casa, a 2 de julho de 1982 Inácio Ludgero

Natália Correia fala à comunicação social Inácio Ludgero

José Manuel dos Santos, ex-assessor cultural de Mário Soares e de Jorge Sampaio, era cliente do Botequim


 


“O Bar Botequim de Natália Correia”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-02. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/o-bar-botequim-de-natalia-correia.html