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quarta-feira, 3 de julho de 2024

Bucólica (A vida é feita de nadas), Miguel Torga


 

BUCÓLICA

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra duma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

 

Miguel Torga, Diário I, Coimbra, 1941.
Poesia Completa, Círculo de Leitores, 2002

 

 

Comentário literário

Miguel Torga, conhecido pela sua poesia ligada à terra, oferece-nos em "Bucólica" uma reflexão sobre a essência da vida e os seus detalhes aparentemente insignificantes. O poema, publicado no Diário I em 1941, convida-nos a valorizar os pequenos momentos e a encontrar beleza nas coisas simples.

Desde o início, o sujeito poético afirma que "A vida é feita de nadas" (v. 1), um verso que contém a filosofia subjacente ao poema. Os "nadas" aos quais se refere são descritos ao longo das estrofes: as "grandes serras paradas", as "searas onduladas pelo vento", as "casas de moradia caídas", a "poeira", a "sombra de uma figueira", e o momento sublime de "ver esta maravilha: / Meu pai a erguer uma videira" (vv. 12-13). Estes elementos, aparentemente simples e despretensiosos, ganham vida através da poesia de Torga, que os eleva à condição de símbolos poéticos.

Os "sinais/ De ninhos que outrora havia/ Nos beirais" (vv. 7-9) assumem uma importância particular dentro do poema. Representam não apenas um passado físico, mas também um passado emocional, relembrando espaços habitados e memórias que persistem no presente do sujeito poético.

O clímax emocional do poema surge no verso 13, onde o eu poético expressa admiração ao observar o pai a cuidar da videira. Este momento é carregado de ternura e reverência, destacando a figura paterna não apenas como um agricultor, mas como um ser profundamente conectado à terra e à vida que ela sustenta.

A figura de estilo presente no último verso, uma comparação entre o ato do pai e a ação maternal de trançar o cabelo de uma filha, revela a habilidade de Torga em unir o natural com o humano, sublinhando a relação íntima entre o homem e a natureza. Esta comparação não só enriquece o poema com um sentido de familiaridade e afeto, mas também ressalta a importância do trabalho árduo e do amor no ciclo da vida.

 

Proposta de escrita

Num texto bem estruturado, reflete sobre os ‘nadas’ de que a tua vida é feita, ou seja, os pequenos detalhes aparentemente insignificantes que carregam um significado profundo.

 


Poderá também gostar de:

  •  A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 


sábado, 1 de outubro de 2022

A Esfinge, Miguel Torga


 

 

Coimbra, 1 de junho de 1989

 

A ESFINGE

 

Sei a resposta inútil

Que também vou dar:

O enigma sou eu.

A criança, o adulto e o ancião

Que, sucessivamente,

Sem perder as feições de cada um,

Atónito, fui sendo pela vida fora.

Sempre a sonhar-me, candidamente,

Eterno e necessário

À cósmica harmonia,

E dia a dia

Mais triste e consciente

Que de modo nenhum o monstro desumano me pouparia,

Quando chegasse a hora

Do nosso encontro.

Quem se decifra dita a própria sentença.

No caminho de Tebas principia a morte.

 

Miguel Torga, Diário XV

 

 

A Sombra: O Labor Poético

Esfinge - um poema que questiona a condição humana, numa referência ao enigma que o monstro terrível coloca ao Homem, simbolizado pela personagem de Édipo.

Embora pouco relevante na obra inicial de Torga, o poeta-diarista regressa frequentemente ao mythos da Esfinge nos Diários XV e XVI (especialmente neste último). Talvez porque, ancião, pressinta próximo o encontro com o monstro desumano (antítese de si, que é humano), para o qual caminha triste e consciente. Assim, qual Édipo (também), conhece antecipadamente que é ele próprio o enigma. O Homem, à semelhança de uma boneca russa, encaixa em si a criança, o adulto, o ancião, não tendo perdido nunca o espanto e a pureza iniciais (atónito; candidamente) nem a capacidade de sonhar (note-se a expressividade da utilização do pronome em sonhar-me).

Porque interrogar sobre o animal que tem quatro patas de manhã, duas à tarde e três à noite, é o mesmo que perguntar quem é o Homem, conhecer a resposta é estar consciente da sua mortalidade. Verifica-se, assim, a desconstrução do mito: a resposta é inútil e não libertadora; o seu portador, ao invés de ser poupado pelo monstro, dita a sua sentença. No caminho de Tebas principia a morte porque, ainda criança, o Homem caminha até junto da Esfinge, aprendendo a conhecê-la e a conhecer-se a cada passo dado. Dia a dia se prepara para a inevitabilidade do duelo final, cumprindo junto do terrível híbrido um novo “Ecce homo”.

No Diário VI, respondendo a um inquérito do Journal des Poètes, Torga reflete sobre o enigma da Esfinge e sobre a ambiguidade da sua interpretação. Entendendo que todo o Homem é contemplado pela resposta de Édipo, discorre sobre o humanismo da Poesia e o poder da palavra poética:

“Sim, a Poesia pode ainda ser a grande mensagem da Europa ao mundo, e prolongar em liberdade a tradição do seu humanismo. Mas com a profunda e radical reforma dos seus servidores. Entendendo que ela é a mais completa pergunta que se pode fazer à humanidade, e a mais sugestiva resposta que essa mesma humanidade pode dar, nenhum sofisma deve existir nos termos. Ora os poetas tentam de há muito ouvir incompletamente a Esfinge e retorquir-lhe com ambiguidade. A expressão desse diálogo é equívoca e serve ao mesmo tempo Deus e o Diabo. Cada poeta mói no mesmo almofariz o bem e o mal, sem reparar que desde que o homem é homem o dilema é sempre o mesmo: todos ou alguns? E se foi possível outrora, por virtude da cegueira desses tempos, esquecer que o animal de quatro, duas ou três patas do enigma (na meninice a gatinhar, bípede na maturidade e apoiado no bordão na velhice) não era apenas um Sócrates de eleição mas também o seu escravo, quer o confesse, quer não, o Parnaso de agora sabe-o perfeitamente. (…) [É urgente que a Poesia arranque do homem] Simplesmente a revelação gratuita e maravilhosa da face permanente do circunstancial, esperança libertadora ansiosamente desejada por todos os mortais.” (Diário VI)

No Diário XVI, revela a inquietação:

 

“Quando se é novo, a esfinge que nos interpela à entrada das Tebas do mundo é sempre uma mulher. Na velhice, é ainda um vulto feminino, mas sinistro, vestido de negro e de foice na mão” (Diário XVI).

 

Atente-se na transfiguração da Esfinge que, na juventude é sempre uma mulher. Contudo, pela ação inexorável de Cronos, transforma-se em espectro, personificando a própria morte.

Ainda neste volume, insertas no discurso proferido no Instituto Alemão a 23 de novembro de 1990, encontramos as seguintes palavras:

“As esfinges que interpelam sibilinamente os viandantes à entrada de todas as Tebas da existência, [sic] são monstros de carne e osso e papel e tinta. E os seus enigmas, avisos ambíguos e catárticos que, depois de fielmente decifrados e trasladados, abrem caminho à ânsia libertadora de Gregos e Troianos.” (Diário XVI).

Esta última Esfinge recupera a do mythos, que abre caminho à libertação de Tebas. Remete para os escritores, que sibilinamente nos interpelam com avisos ambíguos e catárticos, e para o difícil e louvável trabalho dos tradutores, que fielmente decifram e trasladam os enigmas da escrita literária, permitindo o conhecimento e a liberdade.

A Esfinge, na sua origem, encontra-se ligada à poesia. Embora Hesíodo, na Teogonia (326 e sqq.), a apresentasse apenas como um monstro terrível, devorador dos habitantes da região de Tebas, é com o texto de Sófocles que a figura mítica vai ser difundida na posteridade. O Rei Édipo, na discussão com Tirésias, refere o seu encontro com o “cão de fila” que atormentava a cidade:

 

“Mas afinal, vamos, dize, em que é que tu és um adivinho seguro? Quando a cantora, aquele cão de fila, aqui se encontrava, porque não pronunciaste as palavras que trariam a este povo a libertação?

E, contudo, o enigma não era para o primeiro que viesse desvendá-lo: era preciso ter artes divinatórias; delas não te mostraste possuidor nem por auspício nem por revelação dos deuses, mas fui eu, ao chegar, eu, Édipo, que nada conhecia, quem a reduziu ao silêncio por intuição do espírito, não pela ciência dos auspícios (…)” (SÓFOCLES, Rei Édipo, introdução, tradução e notas de Maria do Céu Fialho. Lisboa: Edições 70, 2006, 81).

 

Designando a Esfinge, Édipo utiliza a palavra αυδς (V. 391), remetendo para a sua ligação à palavra poética a que, dado que é uma criatura fantástica, tem acesso. Édipo interpreta-a, quando as artes divinatórias de Tirésias não tinham conseguido fazê-lo. Contudo, sendo homem, fá-lo por meio da sua γνώμ κσρήζας (V. 398).

Embora não saibamos se Miguel Torga leu a versão de Séneca, autor que tanto apreciava233 e cuja filosofia, como já verificámos, conhecia bem, não podemos deixar de referir que o Édipo latino, em diálogo com Jocasta, designa o enigma como carmen ou nodosa uerba234. Isto significa que, também no drama senequiano, a palavra da Esfinge (cujo é preciso deslaçar) possui uma origem poética.

A(s) Esfinge(s) de Torga contempla(m) a ligação à poiesis. Resolvendo o enigma, que, simultaneamente, coloca todo o homem no cerne da pergunta e da resposta, aproxima-se da verdade, dos mistérios da condição humana. Assim, a poesia surge ainda ligada à filosofia.

No Diário XVI, de todos os volumes, o mais pungente, aquele em que o bicho instintivo sente a proximidade da morte, a Esfinge é recuperada duas vezes, o que não sucede em nenhum dos outros. Do mesmo modo, o poema analisado surge no tomo XV. Senhora do enigma da condição humana, é esta figura, já espectral, que o poeta e diarista defronta nos últimos passos do seu caminho. Assim, o monstro é também expressão do humanismo que caracteriza a obra torguiana. A interpretação que lhe confere – de que o Homem é a Esfinge de si próprio – ancora-se em alguns pormenores do mito, que seleccionou para metaforizar os conceitos que pretende. E foi o lado negro, o do abismo, de impotência, apesar do conhecimento, que o poeta recriou.

Não esqueçamos que (e o Édipo senequiano alerta-nos para este facto235), embora saindo vitorioso do confronto com a Esfinge, o herói iniciou, ao entrar em Tebas, o caminho do seu destino funesto, há tanto profetizado. A libertação desencadeou, em última análise, a desgraça, a queda e a sombra. Em Torga, encontramos o mesmo processo: a resolução do enigma nodoso conduz à consciência da própria mortalidade, aproximando o Homem do seu carrasco.

“Ora os poetas tentam de há muito ouvir incompletamente a Esfinge e retorquir-lhe com ambiguidade.”, contudo,

“Quanto a ele próprio [Torga], pelo contrário, nenhuma dúvida haverá de que tem sempre tratado de ouvir a Esfinge completamente e de lhe retorquir com frontalidade exemplar. Mas, da sua parte, isso não exclui, antes estimula, o recurso a múltiplos registos. É que a Esfinge é una, mas complexa; singular, mas versátil; unívoca, mas pluricórdica. Exatamente como a obra do grande poeta Miguel Torga.”236

 

Ana Aguilar, A influência clássica na obra poética de Miguel Torga: o caso particular do Diário. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2010.

 

__________

233 Aliás, presta-lhe uma homenagem nos Poemas Ibéricos, na “História Trágico-Telúrica” (pág. 264), com um poema de título “Séneca”, que transcrevemos pela sua beleza e simbologia: “Antes da loba tive mãe humana. / E desse ventre cordovês amado / Recebi o legado / De que Roma se ufana: // A severa moral, / O estoicismo teimoso da vontade, / E o alto ideal / Duma pobre e cristã fraternidade… // O mais, a toga e o acto suicida / Imposto pela dura tirania, / Foi o cenário que na minha vida / A tragédia pedia.”.

234 Séneca, Oedipus, 98-102: “(…) carmen poposci. Sonuit horrendum insuper, / crepuere malae, saxaque impatiens morae / reuulsit unguis uiscera expetans mea. / Nodosa sortis uerba et implexos dolos / ac triste carmen alitis solui ferae”. (O destacado é nosso.)

235 Op. cit., 106-108: “Ille, ille dirus callidi monstri cinis / in nos rebellat, illa nunc Thebas lues / perempta perdit.”

236 MOURÃO-FERREIRA, David, “Poética e poesia no Diário de Miguel Torga”, Colóquio/Letras 43 (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1978) 19.

 

***

 

Édipo hesita responder à Esfinge

A Esfinge, enviada por Hera contra Tebas para castigar a cidade pelo crime de Laio – pois amara o filho de Pélops, Crisipo, em amores culpados –, assolava a região, devorando os seres humanos que não conseguissem decifrar os enigmas que lhes apresentava. De entre os vários enigmas, que todos os dias os tebanos, na ágora, tentavam decifrar em comum mas sem nunca conseguirem, um deles era: “Qual é o ser que caminha ora com dois pés, ora com três, ora com quatro e que, contrariamente ao normal, quantos mais pés usa mais fraco é?” A resposta é “o homem” (Outro dos enigmas era: “Há duas irmãs: uma gera a outra e a segunda é gerada pela primeira”. Solução: o dia (feminino em grego) e a noite. ).

No entanto, no poema A ESFINGE, ao contrário do mito, a resposta ao enigma apresentado não é “o homem”, mas sim o sujeito poético identificado aqui e em muitos outros lugares com o poeta: “O enigma sou eu”. É o seu percurso existencial de três fases, “A criança, o adulto e o ancião”:

 

A ESFINGE

 

Sei a resposta inútil

Que também vou dar:

O enigma sou eu.

A criança, o adulto e o ancião

Que, sucessivamente,

Sem perder as feições de cada um,

Atónito, fui sendo pela vida fora.

Sempre a sonhar-me, candidamente,

Eterno e necessário

À cósmica harmonia,

E dia a dia

Mais triste e consciente

Que de modo nenhum o monstro desumano me pouparia,

Quando chegasse a hora

Do nosso encontro.

 

Segundo o mito, somente Édipo conseguiu responder-lhe e, como prémio, obteve o trono vagante e a mão da rainha Jocasta. A resposta, que parecia fazer dele um homem afortunado, mais não fez do que apressar, tal como ao sujeito poético do poema, a sua desgraça e permitir que se cumprisse o destino inexorável. É por isso “resposta inútil”:

 

Quem se decifra dita a própria sentença.

No caminho de Tebas principia a morte.

(M. Torga, Diário XV, p. 1658).

 

No entanto, ao contrário do mito, o Édipo d’A ESFINGE, em Penas do Purgatório, não responde imediatamente à Esfinge. Sabe a resposta, mas inicialmente, por covardia, prefere calar. Responder implica revelar-se por completo e, dessa forma, comprometer o seu futuro. Só posteriormente, num acesso de coragem, ele perde “o sangue frio masculino” e responde abrupta e completamente, como se atirasse à Esfinge a resposta, consciente das terríveis consequências:

 

A ESFINGE

 

És tu ainda a mesma astuta

Do caminho de Tebas.

Voz feminina, ambígua,

Materna e sibilina inquisidora.

Paro e oiço a pergunta, a melodia,

O sofisma sonoro,

E tolhe-me tamanha covardia

Que não respondo - coro.

 

Tão confuso me vejo no dilema

De não ter salvação se me revelo,

E nem sossego enquanto te não diga

De mim tudo o que sei,

Que perco o sangue frio masculino

E, vencido, dou força à eterna lei

Que te manda brincar com o meu destino,

Por seres mulher e porque te encontrei.

 

(M. Torga, Poesia Completa II, Rio de Mouro, 2002, p. 516)

 

Manuel Francisco Ramos, Miguel Torga: manipulação do mito. Edição de Autor, 2013 (ISBN 978-989-98534-7-8)


  

Poderá também gostar de:

  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013




A Esfinge, Miguel Torga”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-01. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/a-esfinge-miguel-torga.html



sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Memorando, Miguel Torga

"Quem adormece em democracia acorda em ditadura"
Grupo Antifascista Miguel Torga, https://www.facebook.com/grupoantifa.migueltorga, 2021-01-17

 

 

Coimbra, 16 de dezembro de 1952

 

MEMORANDO

 

Senhor,

Se o meu tempo é de campos de concentração,

De bombas de hidrogénio e de maldição,

E de cruéis tiranos

Com pelos nos ouvidos e no coração,

Que ando eu a fazer aqui,

Funâmbulo de angústia

Com miragens de esperança?

Pois que não há lugar neste universo imundo

Para bucólicos prados de trigo e calhandras,

E foguetes festivos,

E chefes que eu eleja e destitua,

Corta lá no canhenho do destino

A humana condição de ser poeta!

Sinto em nome de todos que se calam

As vergastadas de absurdo e medo

Que consentes na alma dos mortais.

E como nada posso, senão isto:

Protestar, protestar,

Desta maneira inútil que tu vês

E o rebanho pressente,

Risco na ardósia dos obreiros laicos,

Que procuram sentido à tua obra,

O sagrado condão de dedilhar

Nas grades da gaiola que fizeste

Quando eras rapaz

E mal sonhavas quanto mal fazias.

Jovem deus criador,

Assombrado de cada imperfeição

Do barro da olaria,

Ias doirando esses desenganos

Com milagres gratuitos e originais.

Saía-te das mãos, cercada de incertezas,

A redonda amargura deste mundo;

Que remédio senão alguns harpistas

A entoar harmonias ideais!

Mas o tempo passou. Envelheceste.

Morreu-te a fantasia.

E queres a repressão dos que te negam

Ou te corrigem.

Eu e outros, perdidos neste inferno

Onde nenhum Plutão nos ouve ou nos tolera,

Somos a consciência atormentada

Pelos anjos da guarda que te servem,

A trair os irmãos, tão condenados

Como eles.

Por caridade, pois,

E divina lisura,

Apaga lá no céu

A luz que representa

A vida destas pobres criaturas

Cuja missão traíste, por decrepitude.

Bardos da luz que punham nos teus olhos

E da graça do mágico universo

Que generosamente

Como um pomo irreal viam na tua mão,

Rangem agora os dentes de revolta

A falar de justiça,

De igualdade,

E de amor,

Coisas que já nem tu

Sabes que valores são.

Risca! Risca no livro etéreo

O infeliz e belo

Nome de Orfeu!

 

Miguel Torga, Diário VI

 

Silenciar Deus para ouvir o Poeta – e o homem

Ao primeiro verso, sabemos que ele dirige uma mensagem ao Senhor. O poeta questiona a Deus sobre os tempos difíceis e destaca o seu papel de homem esperançoso no meio de tanta tragédia. Se ele o está a questionar sobre isso, é porque acusa Deus de permitir que momentos cruéis desesperem a humanidade e pergunta-se por que, em meio a toda desgraça permitida por Ele, ainda assim mantém esperanças de modificar um quadro fatalista. Deus torna-se culpado por permitir que exista no mundo o que faz sofrer um coração humano e, então, o poeta culpa a um “Jovem deus criador, / Assombrado de cada imperfeição” de que ele na verdade tem medo de que conheçam sua imperfeição e não mais acreditem nele. Mas é o que acontece, inevitavelmente, em algum momento da vida do ser humano. Este cresce, evolui no tempo, começa a pensar e questionar e, não surpreendentemente, questiona também quem ou o que seja Deus. Isso não O não agrada muito e então reage: “Morreu-te a fantasia. / E queres a repressão dos que te negam / Ou te corrigem.”. Diante de tal impasse entre Deus e o homem consciente da imperfeição da divindade, o poeta pede a este que se esqueça dele e que não mais faça parte do mundo da fantasia divina: “Risca! Risca no livro etéreo / O infeliz e belo / Nome de Orfeu!”.

A mensagem não é dirigida a Deus, mas para quem nele crê e quem tem olhos de ver. Miguel Torga, ao começar aos poucos a desacreditar do divino até tornar-se descrente dos métodos que levam ao sagrado, não faz disso um alarde e tampouco tenta convencer a todos os outros de que também não devam acreditar. Seu humanismo é verdadeiro e respeita quaisquer escolhas que se façam que não fira a integridade humana no seu sentido pleno. Mas isto não o impede de escrever em forma de contos, poesia ou até mesmo em relatos intimistas nos Diários sobre o que vê e pensa. E o que vê é uma humanidade sofredora e o que pensa é que não se trata de punições ou avisos celestes.

Ainda no cenário introduzido pelo poema, vemos uma guerra em que os direitos humanos foram violados em todas as suas instâncias e das formas mais cruéis e dolorosas. Arbitrariamente a dignidade humana foi levada ao chão e a vida de um ser humano passava arrastada em humilhação sem motivos. A torpeza mostrou-se num nível que jamais se havia visto e jamais imagina-se que possa repetir-se igual ou pior. No comando de toda essa atrocidade, estava um “líder” intolerante, justificando suas ações de domínio com algumas razões ditas religiosas.

Mas antes mesmo de considerar a origem ou a motivação de tal barbárie que certamente não foi apenas religiosa o que choca e admira é o facto de haver homens a destruir outros homens, em tudo iguais: mesmos direitos de viver, dividindo o mesmo espaço, com capacidade de pensar suas escolhas antes de agir. Segundo a filosofia existencialista, todo homem faz as suas escolhas individual e livremente, mas tudo reflete-se na coletividade. Por existirmos, somos livres para dar o real valor às coisas, ou melhor, “Se a existência, por outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo que construímos nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda nossa época.” (SARTE, 1973, p. 13) Portanto, se a humanidade passou por esse e tantos outros tempos tormentosos, é porque, a começar pela escolha de um homem, acabou por levar outros para a mesma escolha, e então acabou por criar tais épocas sofredoras à humanidade.

O modo como Torga escolhe demonstrar o que pensa é utilizando em sua literatura através da representação do imaginário do sagrado dominante, afinal, não adiantaria remar contra uma maré muito mais forte. O escritor pode nos emocionar em seus contos com narrativas tocantes de gente humilde, como as da sua terra, que, por vezes, acaba por agir mal com o próximo. Também pode ser irónico, como no poema Memorando”, e de alguma forma também em Nihil Sibi, numa breve narrativa quase mítica. Mas a mensagem do poeta transmontano sobre a relação de Deus com o homem busca ser sempre a mesma: a de não se deixar inutilizar a sua liberdade natural, posto que o homem é o único ser que existe antes de tudo. E, principalmente, não permitir isso em nome de uma essência externa, que advém de um produto do imaginário, formulado posteriormente à sua existência, e não anterior a ela.

 

Juliana Morais, Humanamente divino: o poeta transcendido e transfigurado em Nihil Sibi (1948), de Miguel Torga. Viçosa, MG, 2015.


"P'ra cá no Marão fachos não entrarão"
https://www.facebook.com/grupoantifa.migueltorga, 2021-01-17


 

Orfeu e Plutão

Orfeu, que desceu ao mundo de Plutão, surge agora a seu lado no longo poema “Memorando”, espécie de prece num mundo aterrador e incompreensível, que não é digno de poesia.

Ao longo deste poema, Torga regista disforicamente as características dos nossos tempos, como se vivêssemos na era de Plutão. Neste século infernal, tempo de campos de concentração, de bombas de hidrogénio, de cruéis tiranos com pelos no coração (note-se a grande expressividade do disfemismo), não há espaço para a beleza (bucólicos prados de trigo), para a alegria (foguetes festivos), para a democracia (chefes que eu eleja e destitua), em suma, não há espaço para a coexistência da Poesia. O deus a quem se ora, ou a quem se dirige o lamento, outrora foi jovem e, quando criou a humanidade (barro da olaria), era capaz de milagres gratuitos e originais. Contudo, o ideal, o sonho, a fantasia, morreram. A utopia deu lugar à repressão e à censura. Os Orfeus deste mundo, poetas rebeldes e revoltados, são a consciência atormentada da humanidade. Os que já foram fonte da luminosidade apolínea (luz, bardos de luz, graça, mágico universo, generosamente, justiça, igualdade, amor), rangem agora os dentes de revolta, pois o deus criador esqueceu e apagou os valores. Perdidos neste inferno / onde nenhum Plutão os ouve ou os tolera, subversão da tradição ovidiana e vergiliana do mito, os poetas querem tornar-se umbra, recusando pactuar com a degradação das aetates (recuperação de Hesíodo e de Ovídio). O poeta quer deixar registada esta prece, para que seja recordada pelos vindouros (não é por acaso que este memorandum surge inscrito num Diário, com todas as implicações simbólicas que tal possa acarretar). A sua prece é também um manifesto – o Poeta prefere ver extinta a sua voz, a vê-la subjugada pelos horrores de um deus envelhecido e sem ideais. Assim, grita das profundezas do seu ser: Risca! Risca no livro etéreo / o infeliz e belo / nome de Orfeu, porque este é permanente e eterno, porque é portador da Beleza e dos Valores, e não quer ver-se amesquinhado pela degradação dos tempora e dos mores, no dizer ciceroniano.

Uma vez mais, Orfeu metaforiza o Poeta e a Poesia, que, embora portadores da mensagem e da Beleza apolíneas, são empurrados, qual Eurídice puxada para o abismo pelas forças infernais, para as sombras, não possuindo já a capacidade de serem o farol, o facho de luz que orienta e guia a escuridão da humanidade.

Em dois diferentes discursos, registados no Diário, um proferido em Roma, em 1952, e o outro em Bruxelas, em 1977, o poeta associou a poesia à liberdade e à oposição aos poderes obscuros que tentam controlar (ou até silenciar) as vozes dos filhos de Orfeu. Transcrevemos os excertos de ambos os discursos por ordem cronológica:

“A poesia aproxima-se das Catacumbas! O espaço social reduz-se de tal maneira à sua volta, que será no subsolo dos impérios que a pequena família dos crentes manterá aceso o seu culto, vivendo e morrendo na graça duma fidelidade sem quebras, à espera do grande dia em que a luz do sol seja de novo o resplendor de Apolo. Os Césares do transitório decretaram-lhe o fim, temerosos da sua radiante inutilidade, homens de má consciência que são votados a um arranjo do mundo onde só consentiriam o cântico dos próprios crimes que ninguém canta. E como fora da lei só há o recurso à clandestinidade, eis os iluminados de agora, os filhos de Orfeu, em vésperas duma comunhão secreta nas galerias subterrâneas do mundo. (…)” (Diário VI)

 

“Ao mesmo tempo incómoda e sedutora, a poesia foi sempre um pesadelo e uma fascinação para os poderosos. Em todas as épocas os césares pretenderam simplesmente aniquilá-la ou, mais argutamente, utilizá-la, até ao ponto de usurpar-lhe os méritos. Confusamente conscientes de que para cada verso existe um eco, que o verbo se faz carne em cada poema, que onde esteja um poeta e haja quem saiba ouvi-lo se gera uma corrente de comunicação a partir da qual já nenhuma inquietação se deixa iludir de boa fé, nada mais natural do que o desejo de mobilizar essa força em proveito próprio, arremedando-lhe os processos encantatórios ou prestigiando os vates oficiais, promovidos a príncipes da rima.” (Diário XII).

 

A poesia, à semelhança do que sucede no poema “Ariane”, adquire o estatuto de anti-poder. Embora forjada por vezes nas catacumbas, na sombra, reveste-se de luz e ilumina os homens. Tal como em “Memorando”, não é compatível com os horrores cometidos pelos Césares do transitório. Pertencente ao reino de resplendor de Apolo, sucessivamente tem sofrido tentativas de aniquilamento. Contudo, não sucumbe nunca aos poderes instituídos pelo nigri fera regia Ditis (Ovídio, Metamorfoses, IV, 438. Tradução (op. cit., 117): “selvagem palácio do negro Dite [Plutão]”).

 

Ana Aguilar, A influência clássica na obra poética de Miguel Torga: o caso particular do Diário. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2010.

 

"E em qualquer fresta estava a Liberdade", Miguel Torga,
https://www.facebook.com/grupoantifa.migueltorga
, 2022-02-23


 

Poderá também gostar de:


  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013

 


 


Memorando, Miguel Torga”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-09-30. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/memorando-miguel-torga.html


quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Sísifo, Miguel Torga

 



Coimbra, 27 de dezembro de 1977


SÍSIFO

Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga [1977], Diário: Vols. XIII a XVI. Lisboa: D. Quixote, [1983], p. 20.






Lê atentamente o poema “Sísifo” de Miguel Torga e responde de modo estruturado às perguntas abaixo apresentadas.

1. Explicita o sentido da primeira estrofe.

2. Mostra em que medida o sujeito poético sobrepõe o sonho à sua realização.

3. Interpreta o significado subjacente aos três versos finais do poema.

4. Justifica o título, relacionando-o com o conteúdo poema e com o mito de Sísifo.

5. Explica de que modo este poema pode ser considerado um “hino à condição humana”.

Fonte: Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 34 de Português – 12.º ano, sobre a poesia de Miguel Torga: Os poemas "Sísifo" e "A um negrilho", 2021-03-24. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7907/e532506/portugues-12-ano - inicia no minuto 10’37’’:





Texto de apoio 1

Este poema não devia ter sido esquecido, porque ajuda quem o leia a perceber que não há nada de errado em começar de novo, pelo contrário, e também porque sugere que a loucura talvez seja a forma mais sã de sermos humanos.
Através da interpelação de uma segunda pessoa que tanto pode ser o próprio poeta, que consigo fala, como o leitor, que assim é implicado por aquele, este breve poema retoma o mito de Sísifo para construir uma espécie de hino à vida tal como ela se afigura à maioria de nós: uma demanda pejada de vicissitudes.
Todavia, este é um hino bastante melancólico, até porque, associado ao mito mais óbvio, surge outro, o de Tântalo, cujo castigo consiste na perpétua tentativa frustrada de alcançar os frutos que saciariam a sua fome. Assim se justifica que o poeta se/nos aconselhe a ir “colhendo / Ilusões sucessivas no pomar”: trata-se de frutos que, se não são proibidos, pelo menos são apetecíveis. Porém, não são totalmente satisfatórios: por mais que desfrutemos deles, “nenhum fruto” se exime da sua falsidade. Daí que o poeta/leitor/ser humano “nunca [fique] saciado”.
Dir-se-ia que o que sucede neste poema é semelhante ao que se passa no conto “Cegarrega”, também de Miguel Torga: retomam-se as narrativas clássicas para lançar sobre elas uma luz renovada, que tende a pôr em causa interpretações levianas ou pré-fabricadas a que nos tenhamos, porventura, habituado. O conto de Os Bichos recupera a fábula de Esopo, elogiando a louvável perseverança da cigarra, com a qual o poeta se identifica, e pondo em evidência a mesquinha insensibilidade da formiga, que não sabe (ou não quer) apreciar o triunfo que representa esse ruído estridente, que “até azamboa a gente”. O poema “Sísifo”, por seu turno, retoma o mito do rei de Éfira, condenado a empurrar um rochedo até ao topo de uma colina, no Inferno, durante toda a eternidade, já que este rolaria pela encosta abaixo sempre que estivesse prestes a chegar ao cume.
Recomeçar, nesta lenda grega (tal como no suplício de Tântalo), é, pois, uma terrível condenação. No poema, contudo, surge como uma espécie de conselho sábio oferecido por alguém que, desde logo, recomenda que a tarefa seja encarada com tranquilidade e vagar (“Se puderes, / Sem angústia e sem pressa”). E podemos concluir que existe a intenção de suavizar o carácter árduo e possivelmente frustrante de um percurso continuamente repetido, por meio de uma atitude mais optimista, que valoriza os aspectos positivos do esforço empreendido: o “homem” a quem o poeta se dirige é incentivado a assumir-se como senhor do seu destino e a usufruir das sucessivas oportunidades que a vida lhe oferece, na busca de realização.
Assim, o verbo recomeçar vê-se aqui aliviado da carga pesada, negativa, que os dois mitos gregos lhe conferem, para se converter numa poderosa forma de exercer a vontade própria, através da qual é possível alcançar a valorização pessoal e moral, por meio da autonomia (“os passos que deres […] Dá-os em liberdade”), da perseverança (“Enquanto não alcances / Não descanses”), da exigência (“De nenhum fruto queiras só metade”), da sabedoria (“Vendo / Acordado, / O logro da aventura”) e da hombridade (“És homem, não te esqueças!”).
Esta “aventura” não deixa de ser uma armadilha de enganos permanentes: o “pomar” está cheio de frutos que, mesmo depois de alcançados e degustados na totalidade, deixarão na boca humana um sabor a falsidade. As “Ilusões sucessivas” são para “colher”, sim. Porém, é crucial que as saibamos identificar como tal. Digamos que esse é o primeiro patamar da lucidez.
Condicionados que somos por toda a espécie de limitações, fraudes e quimeras, podemos, ainda assim, orgulhar-nos do “caminho” que escolhemos, contanto que saibamos ter a sensatez necessária para nos aceitarmos (ou reconhecermos) como somos, por mais insano que o nosso percurso de vida se afigure: “Vendo / Acordado, o logro da aventura”. Cada um de nós pode sentir-se infeliz, mas poderá sempre encontrar dentro de si a satisfação de se saber livre e saudavelmente louco. É esse o segundo patamar.
“És homem, não te esqueças!” – isto é: humanidade não é apenas consciência, é também livre arbítrio. É através da lucidez que se adquire o direito de ser dono da sua própria loucura: «Só é tua a loucura / Onde, com lucidez, te reconheças». E neste aparente paradoxo reside o expoente máximo da liberdade humana, e mesmo da humanidade, o traço distintivo da nossa espécie. Afinal, graças ao dom da consciência, só nós temos a capacidade para reconhecermos que somos insanos. De resto, sem loucura, o homem não seria mais do que um ser puramente racional. Ou, nas palavras de D. Sebastião, escritas pela pena de Fernando Pessoa: «besta sadia, / Cadáver adiado que procria».



***

Texto de apoio 2

Maria Helena da Rocha Pereira entende que no poema [“Sísifo”] “se combinam o nunca desmentido espírito de resistência do poeta, simbolizado no retomar sucessivo da tarefa de empurrar a pedra até ao cume da montanha, não obstante saber que a cada tentativa se seguirá nova queda, com a indomável ânsia de prosseguir o seu sonho”.206

José Carlos Seabra Pereira postula que “(…) em Miguel Torga justifica-se que consideremos que Anteu e Sísifo, Prometeu e Orfeu, Cristo e Camões, são estações analógicas na via crucis da agónica glorificação identitária.”208 Na nossa opinião, as figuras míticas, para além de o identificarem enquanto Homem, revelam-no também enquanto Poeta.

Aqui encontramos Sísifo, depois de a pedra ter inevitavelmente rolado pela escarpa abaixo. Recomeça…, incita o sujeito poético, usando contudo, as reticências, pois a ação implica construir e fazer um caminho que já se percorreu e conhecer de antemão que, depois de tudo, tem de se reconstruir e refazer. O eu lírico reconhece que é um caminho duro, mas os passos devem ser dados em liberdade. Conselheiro, e de forma quase sentenciosa, afirma: Enquanto não alcances / Não descanses. Ora, o verbo alcançar, aqui privado da sua transitividade, permite-nos completar a frase com o complemento direto que considerarmos adequado. Pode ser a ilusão, sonho ou a aventura da segunda estrofe. Pode ainda ser a loucura humana, aqui positivamente encarada. Recordando-nos Horácio ou Ricardo Reis, a primeira estrofe termina proverbialmente: De nenhum fruto queiras só metade.

O início da segunda estrofe remete-nos novamente para o mito de Tântalo, embora aqui o homem seja mais ativo, colhendo os frutos do pomar, mesmo que sejam ilusões. Consciente (vendoacordadolucidezreconheças) do seu fracasso, do seu logro, o ser humano deve continuamente, orgulhoso da sua condição (És homem, não te esqueças!), carregar a sua pedra.

Este poema é um hino à condição humana. Ao homem que cai e se levanta, continuando a carregar a sua cruz, referência bíblica tantas vezes recuperada por Torga. Ao Sísifo que, com suor e sangue, fez rolar a pedra até ao cimo do monte e agora a vê deslizar uma vez mais. Mas que, não mecânica, mas conscientemente, a recupera e recomeça o seu trabalho infinito. Não o faz resignado, pelo contrário, é sem angústia e sem pressa que retoma os seus passos no mesmo trilho. Assim é o Homem. Assim, o Poeta. O seu trabalho, manual e visceral, nunca está acabado.

Este Sísifo, pleno de sabedoria de vida, recupera os primórdios do mito. Segundo Pierre Brunel, discorrendo sobre a figura mítica, o antropónimo teria sido criado através de si syphos, ou seja, “redoublement intensif de sophos209, designando alguém muito sábio e subtil. “Sisyphe serait alors une manière de super-Ulysse”210. Por isso, esta figura é frequentemente associada aos poetas.

Sísifo empurra a pedra eternamente, mas porque dá continuidade às ações que praticara em vida, ele que foi o construtor de Acrocorinto. Pierre Brunel desfaz as dúvidas sobre eventuais paradoxos na análise da figura que tem um trabalho manual, mas que se religa ao intelectual:

“Désespérément retenu au sol par la pierre, et peut-être aussi par cette pensée de la terre qui lempêchait daspirer à lInconnu, il est lanti-poète par excellence. Tout au plus en fera-t-on le patron des ouvriers du verbe, de ceux qui manient les mots et les tropes comme il transportait les lourds moellons vers le sommet de lAcrocorinthe.211

No poema apresentado, Torga, embora mantenha Sísifo na sombra de supliciado que é, acende nele os sonhos possíveis à humanidade.

O poeta conheceu em Homero, pela boca de Ulisses, este eterno condenado:

“Vi Sísifo a sofrer grandes tormentos,

Tentando levantar com as mãos uma pedra monstruosa. 112

Esforçando-se para empurrar com as mãos e os pés,

conseguia levá-la até ao cume do monte; mas quando ia

a chegar ao ponto mais alto, o peso fazia-a regredir,

e rolava para a planície a pedra sem vergonha.

Ele esforçava-se de novo para a empurrar: dos seus membros

escorria o suor; e poeira da sua cabeça se elevava.”212

 

Ovídio também retrata este suplício e, embora o faça de forma muito sucinta (“Aut petis aut urges rediturum, Sisyphe, saxum”213), a repetição, as aliterações e o ritmo do único verso recuperam a mecanização da tarefa.

Contudo, conhecendo as duas versões do mito, de que Torga dispunha, entendemos que foi da Odisseia que ele bebeu a sua essência. Sísifo é o que sofre grandes tormentos (κραηρ λγε τονηα)214, o que carrega, com os seus próprios mãos e pés (τερζίν ηε ποζίν)215, a pedra monstruosa αν πελώριον)216. O Sísifo de Torga executa um esforçado trabalho manual, que, orgânico, lhe faz escorrer o suor (δρς)217 pelo rosto, levantando a poeira (κονίη)218 do chão. E, no entanto, esta visão do mito não o afasta da poesia. Muito pelo contrário, este condenado realiza um labor infindável muito semelhante ao que o poeta Miguel Torga tem com as palavras. Clara Rocha chega mesmo a afirmar que “o poeta é condenado da escrita”, “corta a pedra dos versos e afeiçoa-a num esforço de chegar ao cume da Poesia absoluta”219

Este é o ser que reencontramos em “Cantilena da Pedra”, poema que encerra o Diário X:

 

Coimbra, 30 de julho de 1968

 

CANTILENA DA PEDRA

 

Sem musa que me inspire,

Canto como um pedreiro

Que, de forma singela,

Embala a sua pedra pela serra fora…

Upa! que lá vai ela!

Upa! que vai agora!

A pedra penitente que eu arrasto

Tem o tamanho duma vida humana.

E só nesta toada a movimento,

Embora o salmo já me saia rouco.

Upa! meu sofrimento!

Upa! que falta pouco…”220

 

O canto do poeta, sem musa que inspire, é o de um simples obreiro, que, no seu labor manual quotidiano, transporta a sua pedra. Numa relação quase amorosa, o pedreiro-poeta não empurra já a pedra-poesia… Embala-a. E o cuidado que lhe dedica leva-o a usar a hipálage (pedra penitente), transferindo o seu sofrimento e condenação para a pedra poética. O pedreiro-Sísifo-poeta não para nunca, apesar do salmo rouco ou do seu sofrimento. A anáfora da interjeição, as exclamações e reticências, os versos curtos e oralizantes, dão-nos conta do percurso iterativo e sem fim.

A figura mítica é, para Torga, aquele que nunca tem descanso, nem em férias, chegando mesmo a empurrar-se a si mesmo, como as seguintes entradas do Diário demonstram:

“E tento refazer com a imaginação o mundo fraterno e nobilitador que a realidade destruiu. Um destino de Sísifo, com intervalos em que é ele próprio que roda desamparado pelos abismos. E que, quando se levanta do trambolhão, tem de redobrar a energia para se empurrar e à pedra.”221

“Sísifo em férias, tento manter a forma a fazer abanar esta turística penedia em equilíbrio precário, metendo-lhe os ombros. Não posso acostumar mal o corpo.”222

Embora não presente em nenhum dos poemas selecionados, ou mesmo nos do Diário, consideramos pertinente, uma vez que discorremos sobre a palavra trabalhada artesanalmente, referir brevemente a figura de Hefesto ou Vulcano. Também ele metaforiza o poeta. À semelhança do deus ou de Sísifo, o poeta é o que põe mãos à obra, é o artífice, o que realiza o trabalho manual árduo (à semelhança do lavrador223, atividade que Torga tanto gostava de realizar e de que não abdicava nem na sua casa, em Coimbra – para tal, fez um pequeno quintal à volta do edifício, imergindo em Geia, mesmo estando na urbe). Contrasta, neste aspeto, com Orfeu, o músico. Vejamos as palavras que o próprio autor nos legou no prefácio da sua Antologia:

“A vivência a comunicar formulada de uma vez para sempre, numa linguagem ao mesmo tempo tributária e original, transparente e críptica, que diga esperança quando nomeia o desespero e nimbe os esplendores do progresso dum halo sagrado. Ora semelhante milagre apenas se consegue, se se consegue, mediante um trabalho aceso de muitas horas, muitos dias, muitos anos – o ferro cada vez mais incandescente e o forjador aureolado das chispas que saltam da bigorna.”224

A Poesia é, assim, também obra manual, orgânica e visceral, esforçadamente empurrada por um condenado ou minuciosamente forjada pelo deus ferreiro.

 

Ana Aguilar, A influência clássica na obra poética de Miguel Torga: o caso particular do DiárioFaculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2010.

_________

206 PEREIRA, Maria Helena da Rocha, “Os mitos clássicos em Miguel Torga”, Novos Ensaios sobre Temas Clássicos na Poesia Portuguesa (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988) 291.

208 PEREIRA, José Carlos Seabra, “Identidade autoral e identidade nacional em Miguel Torga”, in AA. VV., Miguel Torga e a Literatura Intimista - Actas do Colóquio (Coimbra: Câmara Municipal de Coimbra – Departamento de Cultura, 2005) 10.

209 BRUNEL, Pierre (dir.), “Sisyphe”, Dictionnaire des Mythes Littéraires (s/l: Editions du Rocher, 1994) 1295.

210 Ibidem.

211 Idem, 1300.

212 Odisseia, XI, 593-600. Tradução in op. cit., 197.

213 Metamorfoses, IV, 460.

214 Odisseia, XI, 593.

215 Idem, v. 595.

216 Idem, v. 594.

217 Idem, v. 599.

218 Idem, v. 600.

219 ROCHA, Clara, “A paz possível é não ter nenhuma”, in AA. VV., Sou Um Homem de Granito: Miguel Torga e o Seu Compromisso, seleção, organização e apresentação de Francisco Cota Fagundes (Lisboa: Salamandra, 1997) 97 e 98, respetivamente.

220 Diário X, 1136.

221 Diário VI, 656.

222 Diário XV, 1665.

223 “Nestes dias assim (e nos outros) o que me apetecia era acabar com a literatura por uma vez, e ir para S. Martinho cavar. Mas depois ponho-me a pensar se, no meio da lavoura, o meu destino de poeta me não faria erguer os olhos da leiva, contemplar o céu ou a alma, e escrever a seguir um poema na pá da enxada.”, in Diário II, 189.

224 Antologia, 24.



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  • O mito de Sísifo e o poema de Miguel Torga: o "até breve" de José Alberto Carvalho | Jornal das 8 | TVI Player: No final do Jornal das 8 de domingo, José Alberto Carvalho fez uma alusão ao mito de Sísifo: a lenda da mitologia grega acerca do mais arguto dos seres do Olimpo, que enganou o próprio Zeus e também o deus da morte, representado "numa espécie de escultura cinética que representa um movimento perpétuo". A escultura em Lego inspirou um poema profundo e nobre do português Miguel Torga, que o jornalista partilhou nesta altura, à luz da experiencia social e individual que temos vivido.  É com isto que quero dizer "até breve", concluiu José Alberto Carvalho.

 



  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013


 


 


CARREIRO, José. “Sísifo, Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia, 29-09-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/09/sisifo-miguel-torga.html