Coimbra, 1 de junho de
1989
A
ESFINGE
Sei
a resposta inútil
Que
também vou dar:
O
enigma sou eu.
A
criança, o adulto e o ancião
Que,
sucessivamente,
Sem
perder as feições de cada um,
Atónito,
fui sendo pela vida fora.
Sempre
a sonhar-me, candidamente,
Eterno
e necessário
À
cósmica harmonia,
E
dia a dia
Mais
triste e consciente
Que
de modo nenhum o monstro desumano me pouparia,
Quando
chegasse a hora
Do
nosso encontro.
Quem
se decifra dita a própria sentença.
No
caminho de Tebas principia a morte.
Miguel Torga, Diário XV
A Sombra: O Labor Poético
Esfinge - um
poema que questiona a condição humana, numa referência ao enigma que o monstro
terrível coloca ao Homem, simbolizado pela personagem de Édipo.
Embora pouco relevante na
obra inicial de Torga, o poeta-diarista regressa frequentemente ao mythos da
Esfinge nos Diários XV e XVI (especialmente neste último). Talvez
porque, ancião, pressinta próximo o encontro com o monstro desumano (antítese
de si, que é humano), para o qual caminha triste e consciente.
Assim, qual Édipo (também), conhece antecipadamente que é ele próprio
o enigma. O Homem, à semelhança de uma boneca russa, encaixa em si a
criança, o adulto, o ancião, não tendo perdido nunca o
espanto e a pureza iniciais (atónito; candidamente) nem a
capacidade de sonhar (note-se a expressividade da utilização do pronome
em sonhar-me).
Porque interrogar sobre o animal que tem
quatro patas de manhã, duas à tarde e três à noite, é o mesmo que perguntar
quem é o Homem, conhecer a resposta é estar consciente da sua mortalidade. Verifica-se,
assim, a desconstrução do mito: a resposta é inútil e não
libertadora; o seu portador, ao invés de ser poupado pelo monstro, dita a
sua sentença. No caminho de Tebas principia a morte porque, ainda
criança, o Homem caminha até junto da Esfinge, aprendendo a conhecê-la e a
conhecer-se a cada passo dado. Dia a dia se prepara para a
inevitabilidade do duelo final, cumprindo junto do terrível híbrido um novo
“Ecce homo”.
No Diário VI, respondendo a um
inquérito do Journal des Poètes, Torga reflete sobre o enigma da Esfinge
e sobre a ambiguidade da sua interpretação. Entendendo que todo o Homem é
contemplado pela resposta de Édipo, discorre sobre o humanismo da Poesia e
o poder da palavra poética:
“Sim, a Poesia pode ainda ser a grande
mensagem da Europa ao mundo, e prolongar em liberdade a tradição do seu
humanismo. Mas com a profunda e radical reforma dos seus servidores. Entendendo
que ela é a mais completa pergunta que se pode fazer à humanidade, e a mais
sugestiva resposta que essa mesma humanidade pode dar, nenhum sofisma deve
existir nos termos. Ora os poetas tentam de há muito ouvir incompletamente a
Esfinge e retorquir-lhe com ambiguidade. A expressão desse diálogo é equívoca e
serve ao mesmo tempo Deus e o Diabo. Cada poeta mói no mesmo almofariz o bem e
o mal, sem reparar que desde que o homem é homem o dilema é sempre o mesmo:
todos ou alguns? E se foi possível outrora, por virtude da cegueira desses
tempos, esquecer que o animal de quatro, duas ou três patas do enigma (na
meninice a gatinhar, bípede na maturidade e apoiado no bordão na velhice) não
era apenas um Sócrates de eleição mas também o seu escravo, quer o confesse,
quer não, o Parnaso de agora sabe-o perfeitamente. (…) [É urgente que a Poesia
arranque do homem] Simplesmente a revelação gratuita e maravilhosa da face
permanente do circunstancial, esperança libertadora ansiosamente desejada por
todos os mortais.” (Diário VI)
No Diário XVI,
revela a inquietação:
“Quando se é novo, a esfinge que nos
interpela à entrada das Tebas do mundo é sempre uma mulher. Na velhice, é ainda
um vulto feminino, mas sinistro, vestido de negro e de foice na mão” (Diário
XVI).
Atente-se na transfiguração da Esfinge que,
na juventude é sempre uma mulher. Contudo, pela ação inexorável de
Cronos, transforma-se em espectro, personificando a própria morte.
Ainda neste volume, insertas no discurso
proferido no Instituto Alemão a 23 de novembro de 1990, encontramos as
seguintes palavras:
“As esfinges que interpelam sibilinamente
os viandantes à entrada de todas as Tebas da existência, [sic] são
monstros de carne e osso e papel e tinta. E os seus enigmas, avisos ambíguos e
catárticos que, depois de fielmente decifrados e trasladados, abrem caminho à
ânsia libertadora de Gregos e Troianos.” (Diário XVI).
Esta última Esfinge recupera a do mythos,
que abre caminho à libertação de Tebas. Remete para os escritores, que sibilinamente
nos interpelam com avisos ambíguos e catárticos, e para o
difícil e louvável trabalho dos tradutores, que fielmente decifram e
trasladam os enigmas da escrita literária, permitindo o conhecimento
e a liberdade.
A Esfinge, na sua origem,
encontra-se ligada à poesia. Embora Hesíodo, na Teogonia (326 e sqq.),
a apresentasse apenas como um monstro terrível, devorador dos habitantes da
região de Tebas, é com o texto de Sófocles que a figura mítica vai ser
difundida na posteridade. O Rei Édipo, na discussão com Tirésias, refere
o seu encontro com o “cão de fila” que atormentava a cidade:
“Mas afinal, vamos, dize, em que é que tu
és um adivinho seguro? Quando a cantora, aquele cão de fila, aqui se
encontrava, porque não pronunciaste as palavras que trariam a este povo a
libertação?
E, contudo, o enigma não era para o
primeiro que viesse desvendá-lo: era preciso ter artes divinatórias; delas não
te mostraste possuidor nem por auspício nem por revelação dos deuses, mas fui
eu, ao chegar, eu, Édipo, que nada conhecia, quem a reduziu ao silêncio por
intuição do espírito, não pela ciência dos auspícios (…)” (SÓFOCLES, Rei
Édipo, introdução, tradução e notas de Maria do Céu Fialho. Lisboa: Edições
70, 2006, 81).
Designando a Esfinge, Édipo utiliza a
palavra ῥαυῳδός
(V. 391), remetendo para a sua ligação à
palavra poética a que, dado que é uma criatura fantástica, tem acesso. Édipo
interpreta-a, quando as artes divinatórias de Tirésias não tinham conseguido
fazê-lo. Contudo, sendo homem, fá-lo por meio da sua γνώμῃ κσρήζας (V. 398).
Embora
não saibamos se Miguel Torga leu a versão de Séneca, autor que tanto apreciava233
e cuja filosofia, como já verificámos, conhecia bem, não podemos deixar de
referir que o Édipo latino, em diálogo com Jocasta, designa o enigma
como carmen ou nodosa uerba234. Isto significa
que, também no drama senequiano, a palavra da Esfinge (cujo nó é preciso
deslaçar) possui uma origem poética.
A(s)
Esfinge(s) de Torga contempla(m) a ligação à poiesis. Resolvendo o
enigma, que, simultaneamente, coloca todo o homem no cerne da pergunta e da
resposta, aproxima-se da verdade, dos mistérios da condição humana. Assim, a poesia
surge ainda ligada à filosofia.
No
Diário XVI, de todos os volumes, o mais pungente, aquele em que o bicho
instintivo sente a proximidade da morte, a Esfinge é recuperada duas vezes,
o que não sucede em nenhum dos
outros. Do mesmo modo, o poema analisado surge no tomo XV. Senhora do enigma da
condição humana, é esta figura, já espectral, que o poeta e diarista defronta
nos últimos passos do seu caminho. Assim, o monstro é também expressão do
humanismo que caracteriza a obra torguiana. A interpretação que lhe confere –
de que o Homem é a Esfinge de si próprio – ancora-se em alguns pormenores do
mito, que seleccionou para metaforizar os conceitos que pretende. E foi o lado
negro, o do abismo, de impotência, apesar do conhecimento, que o poeta
recriou.
Não esqueçamos que (e o Édipo senequiano
alerta-nos para este facto235), embora saindo vitorioso do confronto
com a Esfinge, o herói iniciou, ao entrar em Tebas, o caminho do seu destino
funesto, há tanto profetizado. A libertação desencadeou, em última análise, a
desgraça, a queda e a sombra. Em Torga, encontramos o mesmo
processo: a resolução do enigma nodoso conduz à consciência da própria
mortalidade, aproximando o Homem do seu carrasco.
“Ora os poetas tentam de há muito ouvir
incompletamente a Esfinge e retorquir-lhe com ambiguidade.”, contudo,
“Quanto a
ele próprio [Torga], pelo contrário, nenhuma dúvida haverá de que tem sempre
tratado de ouvir a Esfinge completamente e de lhe retorquir com
frontalidade exemplar. Mas, da sua parte, isso não exclui, antes estimula, o
recurso a múltiplos registos. É que a Esfinge é una, mas complexa; singular,
mas versátil; unívoca, mas pluricórdica. Exatamente como a obra do grande poeta
Miguel Torga.”236
Ana
Aguilar, A influência clássica na obra poética de Miguel Torga: o caso
particular do Diário. Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, 2010.
__________
233 Aliás, presta-lhe uma homenagem nos Poemas
Ibéricos, na “História Trágico-Telúrica” (pág. 264), com um poema de título
“Séneca”, que transcrevemos pela sua beleza e simbologia: “Antes da loba tive
mãe humana. / E desse ventre cordovês amado / Recebi o legado / De que Roma se
ufana: // A severa moral, / O estoicismo teimoso da vontade, / E o alto ideal /
Duma pobre e cristã fraternidade… // O mais, a toga e o acto suicida / Imposto
pela dura tirania, / Foi o cenário que na minha vida / A tragédia pedia.”.
234 Séneca, Oedipus, 98-102: “(…) carmen
poposci. Sonuit horrendum insuper, / crepuere malae, saxaque impatiens
morae / reuulsit unguis uiscera expetans mea. / Nodosa sortis uerba et
implexos dolos / ac triste carmen alitis solui ferae”. (O destacado é
nosso.)
235 Op. cit., 106-108: “Ille, ille dirus callidi monstri cinis
/ in nos rebellat, illa nunc Thebas lues / perempta perdit.”
236 MOURÃO-FERREIRA, David, “Poética e poesia
no Diário de Miguel Torga”, Colóquio/Letras 43 (Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1978) 19.
***
Édipo hesita responder à Esfinge
A Esfinge, enviada por
Hera contra Tebas para castigar a cidade pelo crime de Laio – pois amara o
filho de Pélops, Crisipo, em amores culpados –, assolava a região, devorando os
seres humanos que não conseguissem decifrar os enigmas que lhes apresentava. De
entre os vários enigmas, que todos os dias os tebanos, na ágora, tentavam
decifrar em comum mas sem nunca conseguirem, um deles era: “Qual é o ser que
caminha ora com dois pés, ora com três, ora com quatro e que, contrariamente ao
normal, quantos mais pés usa mais fraco é?” A resposta é “o homem” (Outro dos enigmas era: “Há duas irmãs: uma gera a outra e a segunda é gerada pela primeira”. Solução: o dia (feminino em grego) e a noite. ).
No entanto, no poema A
ESFINGE, ao contrário do mito, a resposta ao enigma apresentado não é “o
homem”, mas sim o sujeito poético identificado aqui e em muitos outros lugares
com o poeta: “O enigma sou eu”. É o seu percurso existencial de três fases, “A
criança, o adulto e o ancião”:
A ESFINGE
Sei a resposta inútil
Que também vou dar:
O enigma sou eu.
A criança, o adulto e o ancião
Que, sucessivamente,
Sem perder as feições de cada um,
Atónito, fui sendo pela vida fora.
Sempre a sonhar-me, candidamente,
Eterno e necessário
À cósmica harmonia,
E dia a dia
Mais triste e consciente
Que de modo nenhum o monstro desumano me pouparia,
Quando chegasse a hora
Do nosso encontro.
Segundo o mito, somente
Édipo conseguiu responder-lhe e, como prémio, obteve o trono vagante e a mão da
rainha Jocasta. A resposta, que parecia fazer dele um homem afortunado, mais
não fez do que apressar, tal como ao sujeito poético do poema, a sua desgraça e
permitir que se cumprisse o destino inexorável. É por isso “resposta inútil”:
Quem se decifra dita a própria sentença.
No caminho de Tebas principia a morte.
(M. Torga, Diário XV,
p. 1658).
No entanto, ao contrário
do mito, o Édipo d’A ESFINGE, em Penas do
Purgatório, não responde imediatamente à Esfinge. Sabe a resposta, mas
inicialmente, por covardia, prefere calar. Responder implica revelar-se por completo
e, dessa forma, comprometer o seu futuro. Só posteriormente, num acesso de
coragem, ele perde “o sangue frio masculino” e responde abrupta e
completamente, como se atirasse à Esfinge a resposta, consciente das terríveis
consequências:
A ESFINGE
És tu ainda a mesma astuta
Do caminho de Tebas.
Voz feminina, ambígua,
Materna e sibilina inquisidora.
Paro e oiço a pergunta, a melodia,
O sofisma sonoro,
E tolhe-me tamanha covardia
Que não respondo - coro.
Tão confuso me vejo no dilema
De não ter salvação se me revelo,
E nem sossego enquanto te não diga
De mim tudo o que sei,
Que perco o sangue frio masculino
E, vencido, dou força à eterna lei
Que te manda brincar com o meu destino,
Por seres mulher e porque te encontrei.
(M. Torga, Poesia Completa II, Rio de Mouro, 2002, p. 516)
Manuel Francisco Ramos,
Miguel Torga: manipulação do mito. Edição de Autor, 2013 (ISBN
978-989-98534-7-8)
Poderá também gostar de:
- “A poética torguiana”, Apresentação crítica,
seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga,
por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013
“A
Esfinge, Miguel Torga”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-01. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/a-esfinge-miguel-torga.html