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domingo, 23 de julho de 2023

Proençaes soem mui bem trobar, D. Dinis

 


Proençaes soem mui bem trobar
e dizem eles que é com amor;
mais os que trobam no tempo da frol
e nom em outro, sei eu bem que nom
am tam gram coita no seu coraçom
qual m’eu por mia senhor vejo levar.

Pero que trobam e sabem loar
sas senhores o mais e o melhor
que eles podem, sõo sabedor
que os que trobam quand’a frol sazom
á, e nom ante, se Deus mi perdom,
nom am tal coita qual eu ei sem par.

Ca os que trobam e que s’alegrar
vam eno tempo que tem a color
a frol consigu’e, tanto que se for
aquel tempo, logu’em trobar razom
nom am, nom vivem em qual perdiçom
oj’eu vivo, que pois m’á de matar.

D. Dinis (CV 127, CBN 489)

A Lírica Galego-Portuguesa, 2.ª ed., edição de Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, Lisboa, Comunicação, 1985, p. 286.

 

Notas

soem (verso 1) – costumam.

mais (verso 3) – mas.

frol (verso 3) – flor.

coita (verso 5) – sofrimento amoroso.

levar (verso 6) – suportar; sofrer.

Pero que (verso 7) – embora.

quand’a frol sazom / á (versos 10 e 11) – na estação das flores.

par (verso 12) – igual; semelhante.

Ca (verso 13) – pois; porque.

tanto que se for / aquel tempo, logu’em trobar razom / nom am (versos 15 a 17) – assim que acaba aquele tempo, logo deixam de ter razões para trovar.

 

Análise de uma composição trovadoresca galego-portuguesa

1. Apresentação:

Identificação: «Proençaes soen mui ben trobar»

Género: cantiga de amor e simultaneamente sátira literária

Presença nos cancioneiros: CV 127, CBN 489

Autor: D. Dinis

 

2. Paráfrase da cantiga: (por Natália Correia, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses):

 

Os provençais que bem sabem trovar!
e dizem eles que trovam com amor,
mas os que só na estação da flor
vejo trovar jamais no coração
semelhante tristeza sentirão
qual por minha senhora ando a levar.

Muito bem trovam! Que bem sabem louvar
as suas bem-amadas! Com que ardor
os provençais lhes tecem um louvor!
Mas os que trovam durante a estação
da flor e nunca antes, sei que não
conhecem dor que à minha se compare.

Os que trovam e alegres vejo estar
quando na flor está derramada a cor
e que depois quando a estação se for,
de trovar não mais se lembrarão,
esses, sei eu que nunca morrerão
da desventura que vejo a mim matar.

 

3. Tema/ Assunto: contraposição da sinceridade amorosa peninsular ao artificialismo do amor à maneira provençal.

 

4. Estrutura formal: 3 estrofes uníssonas e «capcaudadas».

10a 10b 10b 10c 10c 10a

 

5. Questionário sobre a cantiga “Proençaes soen mui ben trobar”, de D. Dinis.

5.1. Explicite o contraste que o trovador estabelece, na primeira estrofe, entre a sua prática poética e a dos «Proençaes» (verso 1).

5.2. Analise o valor simbólico atribuído, ao longo do poema, à palavra «frol».

5.3. Refira duas características temáticas que permitem integrar este texto no conjunto das cantigas de amor.

5.4. Neste poema, é possível reconhecer traços de sátira literária.

Comprove esta afirmação, com base em dois aspetos relevantes.

 

Explicitação dos cenários de resposta

5.1. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Na primeira estrofe, o trovador estabelece um contraste entre a sua prática poética e a dos «Proençaes» (v. 1) do modo seguinte:

− a prática poética do trovador, ao contrário da dos «Proençaes» (v. 1), não se limita a uma certa estação do ano (como se subentende por «trobam no tempo da frol / e nom em outro» vv. 3-4);

− o trovador considera que os «Proençaes» (v. 1) sofrem muito menos por amor do que ele («nom / am tam gram coita no seu coraçom» vv. 4-5).

5.2. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Ao longo do poema, a palavra «frol» adquire um valor simbólico:

− como marca da primavera, literariamente conotada com o amor e com a poesia («tempo da frol» v. 3 , aquele em que os «Proençaes» v. 1 costumam trovar);

− como indício da chegada de uma estação do ano («quand'a frol sazom / á» vv. 10-11) propícia ao sentimento amoroso;

− como sugestão de um ambiente alegre e cheio de cor («eno tempo que tem a color / a frol consigu'» vv. 14-15).

5.3. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

O texto pode integrar-se no conjunto das cantigas de amor com base nestas características:

− a afirmação do sofrimento por amor, ou coita amorosa, de que padece o sujeito poético («gram coita» v. 5; «tal coita» v. 12);

− a devoção a uma mulher amada, designada por «mia senhor» (v. 6);

− um sentimento tão intenso que leva o sujeito poético a prever a sua morte por amor («em qual perdiçom / oj’eu vivo, que pois m’á de matar» vv. 17-18).

5.4. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A presença de traços de sátira literária neste poema pode ser comprovada com base nos aspetos seguintes:

− a expressão «dizem eles» (v. 2) sugere uma desconfiança irónica no que respeita à motivação dos «Proençaes» (v. 1);

− ao longo do poema, a prática poética dos «Proençaes» (v. 1) é desdenhada pelo sujeito poético (por nela reconhecer sinais de artificialismo).

(Questionário disponível no Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa. Prova 734 | 2.ª Fase | Ensino Secundário | 2023 | 11.º Ano de Escolaridade | Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 22/2023, de 3 de abril. República Portuguesa – Educação / IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P.)

 

 

   Poderá também gostar de:

 

Lição n.º 43 de Português – 7.º e 8.º anos (Projeto #EstudoEmCasa), sobre "Os provençais que bem sabem trovar" e "Cantiga sua, partindo-se", 2021-04-20.

► Assistir à aula da Professora Tereza Cadete Sampainho, em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e538278/portugues-7-e-8-anos

 

“Poesia trovadoresca galego-portuguesa”, José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-18. Síntese didática disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/poesia-trovadoresca-galego-portuguesa.html



quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Manifesto Anti-Leitura, de José Fanha


José Fanha nasceu em Lisboa e licenciou-se em arquitetura. Porém, é muito mais conhecido como inspirado poeta e declamador, animador cultural por excelência, criativo por vocação, interventivo até dizer basta. É autor de contos e de poesias para crianças, dramaturgo e ator. Foi professor do ensino secundário, é mestre em Educação e Leitura e doutorando na área da História da Educação e da Cultura Escrita.
Tendo como modelo e inspiração o Manifesto Anti-Dantas, célebre texto de Almada Negreiros onde, pela mordaz ironia, este zurze o academismo e o tradicionalismo instalados, sobretudo na pessoa e na obra do escritor Júlio Dantas, José Fanha construiu o Manifesto Anti-Leitura, igualmente corrosivo e irreverente, sobretudo nestes tempos em que a crise serve de desculpa para oficialmente a cultura ser posta em causa.
Este texto foi publicamente apresentado sob o patrocínio da Rede de Bibliotecas Municipais de Lisboa, durante a II Arruada da Leitura, que teve lugar no dia 21 de abril de 2012. Na tarde desse dia, ao fundo da Rua do Carmo, em Lisboa, o ator Manuel Coelho, do Teatro Nacional D. Maria II, declamou o Manifesto Anti-Leitura.
Pelo seu óbvio interesse e oportunidade, e com a justa e devida vénia para com o seu autor, aqui se partilha esta magnífica criação de José Fanha.





ABAIXO A LEITURA, PIM!
Andam por aí elementos suspeitos que se escondem nas sombras das bibliotecas e chegam a ir às escolas para espalhar um vício terrível e abominável especialmente junto dos mais novos! Dos mais tenros! Dos mais ingénuos! Um vício que se chama
LEITURA!
Os passadores dessa droga dura, os dealers da leitura transformam simples cidadãos em leitores! Em mortos vivos! Em gente que entrega a sua vida aos livros, às histórias, aos romances, aos poemas, gente que se esquece de tudo o mais!
Abaixo a leitura, pim! Abaixo os leitores, pum!
O leitor é um doente!
O leitor é um viciado!
O leitor se esquece de tudo mais só para ler!
Cuidado com eles! Porque o pior de tudo é que a leitura pega-se! Cuidado com os leitores! Afastai-os de vós! Protegei os vossos filhos!

Morra a leitura, morra! EPim!

Uma geração que lê é uma geração que pensa!
Uma geração que lê é uma geração que duvida!
Uma geração que lê é uma geração que questiona!
Uma geração que lê é uma geração que critica!
Uma geração que pensa e duvida e questiona e critica não engole qualquer patranha que lhe queiram enfiar! Não obedece! Não se baixa! Não se cala! Uma geração que lê e pensa é um perigo para a civilização ocidental e para o país!

Abaixo os leitores! Morra a literatura! Morra! Pum!

Esta gentinha põe-se a ler em vez de trabalhar, de verter o seu suor a bem da nação, de aceitar paciente e responsavelmente que lhe retirem a assistência médica, o subsídio de doença, a reforma, o teatro, a música! As cuecas, se for preciso!
Esta gentinha que lê perde-se a interrogar as medidas necessárias e urgentes para o bem do mercado, dos bancos, dos acionistas que são quem faz andar o país!
Quem lê ainda por cima diverte-se! Entretém-se!
A ler, os leitores viajam! E aprendem! E refletem! E riem! Choram! E sonham!

Morra a leitura, pim! Pam! Pum!

A leitura faz conhecer personagens imorais como o débil Carlos da Maia e a desavergonhada Eduarda da Maia,
e bruxas repelentes como a Dama de Pé de Cabra do Alexandre Herculano ou a Blimunda do “Memorial do Convento”

Seres inúteis e irreais como o Gato Zorbas da “Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar”.
Criaturas atrevidas, desobedientes e revolucionárias como o João-Sem-Medo, o Pinóquio, o Tom Sawyer, o Oliver Twist!

E loucos como o cigano Melquíades e o coronel Buendía dos “Cem anos de Solidão”.

A leitura faz-nos viajar por lugares mal frequentados como a Ilha do Tesouro, o Beco das Sardinheiras do Mário de Carvalho, os Mares do “Mobby Dick”, a Buenos Aires de Borges, a Paris de Marcel Proust, a Londres de Oscar Wilde, a Moscovo de Tolstoi!

A leitura faz-nos rir de pessoas sérias como o Conde de Abranhos, o Sancho Pança ou o Escriturário Barthleby.

Já para não falar dos autores, meu Deus! Esses seres abjetos! Os escritores que escrevem livros e livros sem um pingo de vergonha! Deviam ser presos! Encerrados num jardim zoológico! Condenados aos trabalhos forçados! À morte! À cadeira elétrica!

Camões, por exemplo, era um marginal que andava sempre à espadeirada. E se fosse só isso, ainda podíamos perdoar. A luta, a pancadaria, a guerra não são reprováveis. Podem até ter uma função muito positiva na nossa sociedade!
Mas esse tal Camões escrevia entre espadeiradas!!! Escrevia estrofes e mais estrofes! Sonetos que enchem livros e que continuam a gastar papel que podia ser poupado para fazer pacotes de castanhas ou relatórios anuais da administração das empresas.
E o Bocage? Dizia impropérios! Palavrões! E até na poesia deixava a marca da sua pouca vergonha! Se escrevesse pornografia nós aceitávamos esses palavrões! Tinham uma função social! Mas poesia…!
E não esqueçamos essa histérica e louca Florbela Espanca, essa desavergonhada, essa grande doida, que queria amar! Deixai-nos rir! Se amasse o seu marido uma vez por semana cumpria a sua obrigação! Se fosse amante do chefe lá do escritório, estava a contribuir para uma gestão equilibrada do produto interno bruto! Mas não! Ela vertia nos versos o seu desejo de amar este, aquele, e mais o outro!
E lembremos Álvaro de Campos que é uma invenção torpe, um sujeito que nunca existiu de facto! Puro delírio! Personagem frágil e contraditória! E Ricardo Reis que também não existia! Nem Alberto Caeiro! Nem Bernardo Soares!
O Sr. Fernando Pessoa que escrevia cartas de amor devia ter tido vergonha e dedicar-se à sua profissão pobre mas honrada de escriturário! E de muitos mais escritores poderíamos falar! Gente horrível, que só gosta de mexer na miséria e na lama, gente carregada de maldade que nos fala da Queda dos Anjos e de Amores de Perdição, de Barrancos de Cegos, de Lobos que Uivam, de Versículos Satânicos!
E até quando escrevem sobre gente feliz, tem de ser gente feliz com lágrimas!

E há quem os leia! Quem sofra com eles! Quem os desfolhe carinhosamente sem saber que o veneno entra pelos olhos que leem e pelos dedos que folheiam! E depois da leitura de uma página, por vezes depois da leitura de um só parágrafo já não há remédio! Eles já são leitores! Estão apanhados irremediavelmente pelo canto de sereia da leitura! A possibilidade de salvação é extremamente diminuta!
Os livros deviam ser reciclados e transformados em lenços de papel! Em solas de sapatos! Em bolas de futebol! Mas livrai-vos de os ler! Ou melhor! Queimem-nos! Lembrem-se daqueles que ao longo da história tentaram salvar-nos queimando pilhas e pilhas de livros!

Abaixo os livros! Morra a leitura! Morra, E pim!

Os livros fazem-nos afastar da realidade, da economia! Do mercado! Do futuro!
Uma ponte é feita com ferro e cimento e não com livros!
No tribunal, o advogado não defende um criminoso com poesia!
Na sala de operações o cirurgião não abre os órgãos de um doente com um romance!
Ninguém se deixa corromper por um soneto!

Abaixo a prosa! E a poesia! E o ensaio!

Morra a leitura, morra! E Pim!

E temos de falar das bibliotecas, essas casas sombrias onde o vício é permitido! Pais! Protegei os vossos filhos! As bibliotecas são autênticas salas de chuto de porta aberta ao público! E estão carregadas e alto abaixo de livros! E os livros estão à vista! Pior ainda, os livros estão à mão de qualquer criança ingénua! E alguns até têm ilustrações, bonecos que tornam a leitura mais fácil e a perdição mais próxima! E o pior é que podem ser requisitados e levados para a casa, para o seio da família onde vão espalhar a sua ação desagregadora e malfazeja!

Morra a leitura! Abaixo as bibliotecas! Pum!

Mas há esperanças para o futuro!

Por alguma razão muitos dos nossos melhores e mais impolutos dirigentes só leem resumos! Ou extratos da conta bancária! Quanto ao resto, nada! Nem uma palavra! Nem uma linha!
E quando lhes perguntam o que andam a ler, muito perspicazmente, eles inventam títulos de livros que não existem para lançar o engano e, quiçá, salvar alguém dos terríveis vícios da leitura!

Sigamos o exemplo que muitos dos nossos dirigentes e gerentes e gestores nos apontam! Há que ter a coragem de dizer bem alto:

A leitura prejudica gravemente a ignorância!

E sem ignorância o país não progride! Não crescem os juros! Não se investe nas offshores! O estado não vende empresas abaixo do preço aos particulares! O preço da gasolina não sobe!

Acabemos de vez com a leitura! Abaixo a leitura! E Pim!

Se puserem um livro à vossa frente, caros amigos, cuidado! Desviem o olhar! Não abram nem uma página! Pode bastar um verso para vos contaminar! Um homem que lê pode desejar viver num mundo melhor! Pode de repente sentir as lágrimas correrem-lhe pela cara abaixo! Pode querer subitamente ajudar os aflitos! Pode abraçar estupidamente um amigo ou beijar os lábios de uma rapariga bela como um raio de sol a iluminar a mais bela rosa do jardim!

Por isso é preciso fechar as portas aos antros de leitura! Sabemos que pode parecer doloroso mas é fundamental arrancar de vez os livros das mãos dos viciados e impedi-los de ler uma linha sequer! Se for preciso tapai-lhes os olhos! É preciso preparar o futuro dos nossos filhos! Não lhes dar ilusões, nem sonhos, nem alegrias! Nem dúvidas, nem sabedoria, nem nada!

Abaixo as bibliotecas! Abaixo os livros! Morra a leitura! Morra!
Fim!
José Fanha
Poeta do séc. XXI
e
tudo










LUSOFONIA Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/ 
 

CARREIRO, José. “Manifesto Anti-Leitura, de José Fanha”. Portugal, Folha de Poesia, 05-02-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/02/manifesto-anti-leitura-de-jose-fanha.html


 

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A nêspera deitada, muito calada, a ver o que acontecia


MÁRIO VIEGAS diz “Uma nêspera que fica deitada”. 
Adaptado de Mário Henrique Leiria, Novos contos do gin tonic, 1974
              


RIFÃO QUOTIDIANO1

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece


Mário Henrique Leiria, Novos Contos do Gin, 1978, p. 31.


______________________
(1) Rifão: ditado popular, provérbio.




Mário Henrique Leiria

Nasceu em Lisboa em 1923. Frequentou por pouco tempo a Escola de Belas Artes. Entre 1949 e 1951 participou nas atividades da movimentação surrealista em Portugal. Teve vários empregos: marinha mercante, caixeiro de praça, operário metalúrgico, construção civil. Viajou. Em 1961 foi para a América Latina onde desenvolveu várias atividades, entre as quais a de encenador de teatro e de diretor literário de uma editora. Voltou nove anos depois. Colaborou em várias revistas e jornais nacionais.
Obras principais: A Afixação Proibida (manifesto surrealista de vários autores), 1949; Contos do Gin Tonic, 1973; Novos Contos do Gin, 1978; Imagem Devolvida, 1974.

Geraldo Augusto Fernandes, Surrealismo português (1947-1974)


Leituras

O humor, de que este texto é exemplo, é uma constante na obra do autor de Contos do Gin-Tonic, chegando, por vezes, a atingir o famoso humor negro surrealista.

Maria de Fátima Aires Pereira Marinho Saraiva, O Surrealismo em Portugal e a Obra de Mário Cesariny de Vasconcelos. Porto, FLUP, 1986, p. 236.

***

Em “Rifão quotidiano”, é ilustrado o destino de todos os que se deixam, de modo passivo, conduzir por desígnios superiores.

Num primeiro momento, atente-se no título deste rifão. Ao qualificá-lo de «quotidiano», é expressa a ideia de uma vivência pobre porque repetitiva e comum, reforçando-se a ideia de não-realização da vida pelo estado «vegetativo» em que a nêspera se encontra.

A diferença principal entre estes dois textos está intrinsecamente associada às consequências distintas provocadas por um semelhante instrumento de opressão e as diferentes atitudes que se adotam na presença dele: se, na cegarrega, tal como constatámos, a solução levada a cabo passa pela fuga, que acaba por ter um papel de insubordinação ante o poder vigente, já no Rifão quotidiano a inação e a passividade conduzem à morte do sujeito – expressa eufemisticamente pelo uso do vocábulo comer. Esta última é obviamente a atitude que melhor convém a um poder político autoritário, que manobra melhor ante uma postura pouco reivindicativa dos elementos que constituem a sociedade que governa.

 

“O jogo na literatura de Mário-Henrique Leiria”, Marta Braga. In: O Jogo do Mundo, coord. Margarida Alpalhão, Carlos Carreto e Isabel Dias. Lisboa, IELT - NOVA FCSH, 2017.


***

"Uma nêspera estava na cama, deitada, muito calada, a ver o que acontecia. Chegou a Velha e disse: olha uma nêspera e zás comeu-a! É o que acontece às nêsperas que ficam deitadas, caladas, a esperar o que acontece!" O poema de Mário Henrique Leiria também nos pode recordar que, em democracia, não somos clientes. Nem temos sempre razão, nem estamos aqui para ser servidos. Ou servimos a democracia ou outros se servem dela. Quem fica deitado, calado, a ver o que acontece, terá sempre um triste fim.

A nêspera deitada, muito calada, a ver o que acontecia”, Daniel Oliveira. Expresso, 2012-06-19


 Ilustração de Marta Madureira, 2012, para "Rifão Quotidiano"



Questionário de leitura orientada do “Rifão quotidiano”

1. Leia o título do poema e sugira uma possível intenção comunicativa por parte do sujeito poético. Depois, leia o poema e diga se a leitura confirma, ou não, a sua sugestão.

2. Como se posiciona o sujeito poético em relação à atitude da nêspera? E que palavras do poema nos revelam esse seu posicionamento?

3. Tratando-se de um rifão, a situação particular descrita na primeira estrofe é depois apresentada como uma ideia geral. Em que versos se faz essa generalização?

3.1. Parece-lhe que a moralidade deste rifão se mantém atual para o sujeito poético? Justifique.

4. Do seu ponto de vista, que tipo de pessoas são satirizadas neste poema?

Cenário de respostas

1. A presença da palavra “rifão” no título do poema poderá apontar para a intenção de transmitir uma lição de moral, o que se confirma na leitura do poema.
2. Posiciona-se criticamente afirmando que acontecera àquela nêspera o que acontece às que têm a mesma atitude: “É o que acontece / às nêsperas […]”.
3. Nos versos da última estrofe.
3.1. Mantém-se atual, tal como indicam o adjetivo “quotidiano”, usado no título do poema, e as formas verbais dos verbos ser, acontecer e ficar conjugados no presente do indicativo (“é o que acontece / às nêsperas / que ficam deitadas / […] o que acontece”).

(In: P8 Português – 8.º Ano, Ana Santiago e Sofia Paixão, Texto Editora, 2012)








  
               


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/08/14/nespera.aspx]

quinta-feira, 20 de março de 2014

CICCIOLINA, A SACERDOTISA DE EROS.

              

receção de Cicciolina em Portugal, Foto de Luís Vasconcelos
           
                  

       NOTÍCIA DE UM CASO TREMENDO
QUE ABALOU O PARLAMENTO     
                                         
Estava o Parlamento em tédio morno
Do Processo Penal a lei moendo
Quando carnal a deputada porno
Entra em S. Bento. Horror! Caso tremendo!

Leda à tribuna dos solenes sobe
A lasciva onorevole Cicciolina
E seus pares saudando ali descobre
O botão rosado da tettina.

Para que dos pais da Pátria o pudor vença,
Do castro bracarense o verbo chispa:
«Cesse a sessão em nome da decência
Antes que a Messalina mais se dispa.»

Mas - ó partidas que prega a estatuária! -
Que fazer no hemiciclo avesso ao nu
Daquela estátua que a nudez plenária
Ali ostenta sem pudor nenhum?

Eis que o demo-cristão então concebe
As vergonhas velar da escultura.
Honesta inspiração do céu recebe
E moção apresenta de censura:

«Poupado seja à nudez viciosa
O olhar parlamentar votado ao bem.
Da estátua tapem-se as partes vergonhosas.
Ponham-lhe cuequinhas e soutiens.»
         
Natália Correia, “Inéditos (1979/91)” ‑ “Cantigas de Risadilha
O sol nas noites e o luar nos dias. Lisboa, Círculo de Leitores, 1993 (1ª ed.)
      

Cicciolina na Assembleia da República Portuguesa.

Vídeo disponível no Arquivo RTP, 1987-11-19




       MAMINHA ESQUERDA
OU A POLÍTICA DE PEITO ABERTO DE CICCIOLINA 

Hoje vou recordar outro episódio, também passado na nossa Assembleia da República.
Quem não se lembra da Cicciolina e alguns filmes porno que ela protagonizou? Os mais novos talvez não...
Pois então...
Registada com o nome Anna Ilona Staller, adotou o nome artístico de Cicciolina na década de 70 quando participa num programa de rádio que a tornou famosa: “Voulez vous coucher avec moi?” (Queres deitar-te comigo?).
Filiada no primeiro partido ambientalista italiano – Lista do Sol – adere ao Partido Radical em 1985, sendo eleita deputada ao parlamento italiano, sem por isso abandonar a carreira de artista porno.
É nessa dupla qualidade, de artista e de deputada, que Cicciolina visita Portugal em 17 de novembro de 1987, como artista atuando no Coliseu dos Recreios, e como política visitando a Assembleia da República, ambos em Lisboa.
Por ocasião de sua visita ao Parlamento a então deputada italiana, em plena escadaria, apresentou os atributos "político/peitorais" que, certamente, contribuíram para a sua eleição em Itália.
Deixou descair a alça do vestido, mostrou o seio e... imaginem as reações imediatas por parte dos nossos Senhores Deputados mais conservadores, os do partido da democracia cristã.
Os pobres nem se lembraram das estátuas existentes na Sala do Plenário, nem sequer de uma das imagens mais paradigmáticas da República Portuguesa.
Natália Correia, sempre atenta a estes episódios e com aquele humor cáustico que a caracterizava, escreveu o poema “Estava o Parlamento em tédio morno”.

Jorge Costa Reis, “O humor de Natália Correia”, .Blog, 2008-10-12
        
          
CICCIOLINA
           
          
Cicciolina esteve cá por duas ocasiões, que eu me lembre. À segunda, veio como convidada especial do Salão Erótico de Lisboa. Sempre generosa, mostrou as mamas aos românticos que quiseram matar saudades das gloriosas sarapitolas que bateram na década de 70; em entrevista, disse que os filmes pornográficos portugueses eram «bonitos e simples».
Não é todos os dias que vemos um estrangeiro valorizar o que se faz por cá. Os portugueses têm esta mania de achar que a pornografia americana é que é boa, a nossa não presta, é sempre muito chata, mal se conseguem ouvir os gemidos. Como se os nossos broches e minetes não fossem também merecedores de fazer parte do património cultural da Humanidade.
De qualquer modo, prefiro evitar encontros com a Cicciolina atual: aos 61 anos, ex-deputada mas ainda com vontade de intervir politicamente no mundo, recebe uma respeitável reforma de 3000 euros mensais. As mamas ativistas que outrora tentaram mudar o mundo estão hoje em dia irreconhecíveis, convertidas ao silicone burguês: ela mostra-as, mas já não sou capaz de acreditar nelas.
Da primeira vez que cá esteve, Portugal era um país diferente: a 19 de novembro de 1987, muitos achavam que Cavaco Silva era o melhor primeiro-ministro da História e poucos meses depois haveriam de oferecer-lhe uma maioria absoluta. Bem, talvez não seja assim um país tão diferente porque o homem é agora presidente da República. Mas hoje em dia os deputados já não usam fatos comprados na Maconde – sempre é uma evolução.
Cicciolina veio por iniciativa de um semanário entretanto extinto, o Tal & Qual, que lhe seguiu os passos todos como um caniche ganzado e capitalizou, em manchetes, vendas e gargalhadas, o enorme investimento que fez.
Penso que até os mais novos devem ter a noção de que a visita dela à Assembleia da República provocou um escândalo nacional quando Cicciolina se mostrou na bancada e, generosa como sempre, presenteou os austeros deputados com a visão dos seus bonitos e diplomáticos seios.
A esmagadora maioria dos representantes do povo abriu a boca e protestou como um grupo de beatas escandalizadas, mas estou convencido de que muitos, se tivessem tido oportunidade, não desdenhariam ter feito à Cicciolina aquilo que há muito tempo já andavam a fazer ao país. Perguntem a qualquer economista se foram as mamas da Cicciolina as responsáveis pela crise em que vivemos.
As mamocas nunca fizeram mal a ninguém, mas os deputados revoltaram-se e condenaram a afronta, como se a República alguma vez tivesse usado soutien. Valeu-nos a deputada e poetisa Natália Correia, que não só recebeu Cicciolina com a simpatia e cordialidade que a simpática e cordial rapariga merecia, como escreveu um delicioso poema a evocar a ocasião e a gozar o prato.
E como sempre me ensinaram que fica bem acabar um texto com uma citação, deixo-vos o relato desta talentosa e corajosa mulher:


            
SACERDOTISAS DO AMOR
Ao entrar, de madrugada, na rua onde vivia (zona de fecunda prostituição), Natália Correia abria a janela do carro e exortava: “Meninas, não se deixem humilhar, lembrem-se que são sacerdotisas do Amor!”
Logo era rodeada de estrídulas afetuosidades das prostitutas, dos prostitutos, dos travestis, dos chulos, dos vadios, dos guardas-noturnos, rendidos ao incitamento da “senhora poeta” a falar-lhes como ninguém lhes falava – os dignificava, os elevava.
Quase ao mesmo tempo, outro poeta de génio e de provocação, Jorge de Sena, perguntava através dos jornais, nessa altura bastante mais ousados: “Se se faz amor por tanta coisa, porque não fazê-lo por dinheiro?”, e reivindicava “o direito de todo o ser humano à liberdade de se relacionar intimamente com quem quiser ou puder”. “Se não fossem os profissionais do sexo, que seria dos velhos, dos disformes, dos tímidos?”
Quando a política (a religião, a justiça) entra na cama das pessoas, dá asneira. É o caso, agora, do Parlamento Europeu ao querer penalizar os clientes das prostitutas.
Entre nós, um depurado do PSD, Duarte Marques, insurgiu-se, no entanto, contra semelhante projeto e, sem papas na língua nem beatice nas ideias, declarou tal ser “um disparate”, até porque, pessoalmente, defendia “a legalização da prostituição”, “porque nunca se vai acabar com ela” – revelando-se mais progressista que muitos dos colegas à esquerda.
Desassombrado, Jorge de Sena rematava sobre estes temas: “Se a vocação dos portugueses é serem prostitutas, como mostra a história” – e ele não viu a nossa horizontalidade ante a troika – “por que razão as prostitutas não podem sê-lo com os seus apegados clientes?”
       
Fernando Dacosta, 2014-03-06
http://www.ionline.pt/iopiniao/sacerdotisas-amor
      
            
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  Comunicado da Informação Documentação Mulheres (IDM) sobre a receção de Cicciolina na Assembleia da República e a ausência de qualquer comunicado pelas organizações de mulheres representadas no Conselho Consultivo da Comissão da Condição Feminina (CCF). Informação, Documentação, Mulheres (IDM). - Lisboa : [s.n.], 01.12.1987

«Cicciolina. "Vivi sempre a mil, fiz sempre tudo com prazer e sem qualquer arrependimento"», in https://observador.pt/especiais/cicciolina-adorei-essa-lisboa-das-buganvilias/, Rui Miguel Tovar, 2017-11-25


 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/europa-galiza-e-portugal-continental-e-ilhas/Lit-Acoriana/Natalia_Correia, 2021 (3.ª edição).


► Lx 80 - Lisboa Entre Numa Nova Era, Joana Stichini Vilela, Pedro Fernandes. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2016
   





[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/20/cicciolina.aspx]