Big Bend National Park Texas. - NPS Photo/Ann Wildermuth
O RIO
Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu, da terra.
Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino
Distante milénios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.
Leitura orientada do poema "O rio", de Vinicius de Moraes
Em "O
rio", Vinicius de Moraes apresenta uma descrição poética da formação de um
rio. No início do poema, o nascimento do rio é simbolizado por "uma gota
de chuva". Esta gota, que fertiliza o "ventre grávido da terra",
sugere o processo de infiltração da água no solo, crucial no ciclo hidrológico.
A metáfora do "ventre grávido" evoca a ideia de fertilidade e
criação, estabelecendo um elo entre o fenómeno natural e a gestação da vida.
A
descrição dos "antigos / Sedimentos, rochas / Ignoradas, ouro, / Carvão,
ferro e mármore" indica que o rio percorre diversas camadas geológicas,
desde os sedimentos mais recentes até aos minerais mais antigos do
subsolo. Esta passagem sugere um processo lento de erosão e
sedimentação, moldando a paisagem ao longo de milénios e criando o leito por
onde o rio fluirá. Aliás, a escolha de palavras como "antigos",
"distante milénios" e "sequioso de espaço" sublinha a ideia
de que o nascimento de um rio é um evento que transcende gerações e até eras
geológicas
O rio é retratado como um ser vivo, com uma trajetória e um propósito. O sujeito poético atribui características humanas ao rio nascente,
descrevendo-o como "fragilmente / Sequioso de espaço / Em busca de
luz". Essas expressões conferem ao rio desejos e necessidades humanas,
como a sede ("sequioso") e a busca por luz, que simboliza vida,
crescimento e direção.
O poema
termina com o verso "Um rio nasceu" que marca o culminar do processo
descrito no poema. Ele representa o momento em que todas as forças e elementos
naturais se combinam para dar origem ao rio. Esse nascimento é o resultado de
uma série de eventos e transformações, desde a gota de chuva inicial até à
passagem por sedimentos e rochas.
O poema de Vinicius de Moraes
ilustra como um pequeno começo pode levar a algo grandioso. O
nascimento do rio representa não apenas o início de uma nova entidade, mas
também o culminar de um processo de transformação e crescimento. É um ponto de
partida que carrega consigo a história e a energia de tudo o que veio antes.
Neste sentido, o poema pode ser interpretado, ainda, como uma metáfora para a vida humana. Assim como o rio, cada pessoa nasce de uma pequena mudança e
atravessa desafios e obstáculos em busca de crescimento e realização. A busca
por “luz” pode ser vista como a busca por conhecimento, verdade ou propósito.
O rei atirou
Seu anel ao mar
E disse às sereias:
- Ide-o lá buscar,
Que se o não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!
Foram as sereias,
Não tardou, voltaram
Com o perdido anel
Maldito o capricho
De rei tão cruel!
O rei atirou
Grãos de arroz ao mar
E disse às sereias:
- Ide-os lá buscar,
Que se os não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!
Foram as sereias
Não tardou, voltaram,
Não faltava um grão.
Maldito capricho
De mau coração!
O rei atirou
Sua filha ao mar
E disse às sereias:
- Ide-a lá buscar,
Que se a não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!
Foram as sereias...
Quem as viu voltar?...
Não voltaram nunca!
Viraram espuma
Das ondas do mar.
Manuel Bandeira, Lira
dos Cinquent’Anos, 1940
Leitura orientada da "Balada do rei das sereias", de Manuel Bandeira
A
"Balada do rei das sereias" é um poema de crítica social em
que o sujeito poético conta a história de um rei que, na sua crueldade e
arrogância, desafia as sereias do mar.
O texto
inicia com o rei a atirar o seu anel ao mar e a ordenar às sereias que o
recuperem, sob a ameaça de transformá-las em espuma caso falhem. Este gesto
inicial estabelece o tom de tirania do monarca, que usa o seu
poder para impor tarefas absurdas e desumanas. As sereias, figuras mitológicas
associadas ao encanto e à sedução, aqui são reduzidas a serviçais, obedecendo
aos caprichos do rei. O anel, símbolo de poder e aliança, é recuperado sem
demora, o que demonstra a competência e a submissão das sereias ao poder
régio.
A
situação repete-se com grãos de arroz, um símbolo de fertilidade e vida,
atirados ao mar. Novamente, as sereias cumprem a tarefa dificílima ao retornarem com todos os grãos, reforçando, assim, o domínio do rei e a extensão da sua crueldade.
Este segundo ato do poema intensifica a sensação de injustiça e abuso de poder,
enquanto as sereias continuam a cumprir as suas ordens, agora sem o mesmo
significado de resistência ou contestação.
É na
terceira e última parte do poema que se revela o verdadeiro clímax da
narrativa. O rei, na sua insensatez máxima, joga a própria filha ao mar,
exigindo que as sereias a tragam de volta. Este ato extremo de desumanidade não
é atendido; as sereias desaparecem, transformando-se na espuma das ondas. A
metamorfose das sereias em espuma pode ser interpretada como um ato de vingança
e liberdade final contra a tirania do rei. Elas escolhem não retornar, não
aceitar mais as ordens absurdas, e assim subvertem a relação de poder que o rei
imaginava imutável.
A
conclusão do poema, com a ausência das sereias e a transformação em espuma,
evoca a lenda do nascimento de Afrodite, a deusa grega do amor e da beleza, que
surgiu da espuma do mar. Esta referência mitológica adiciona uma camada de
profundidade ao poema, sugerindo que há forças e poderes além da compreensão e
controle do rei, e que a beleza e a justiça podem surgir dos atos de
resistência e sacrifício.
Manuel Bandeira,
através desta balada, tece uma crítica àqueles que abusam do seu poder e não
percebem a resiliência e a força daqueles que eles subjugam. O poema é uma
alegoria sobre a ilusão do controlo absoluto e a inevitável consequência da
opressão. O jogo de submissão revela-se uma armadilha para o próprio rei, que
perde algo infinitamente mais valioso do que um anel ou grãos de arroz: a sua
própria filha e a fidelidade das sereias. Portanto, o autor alerta para os
perigos da arrogância e da crueldade, mostrando que o verdadeiro poder reside
na liberdade e na justiça.
(teadoro,
Teadora, in Diálogos 7. Ilustração: Luís Henriques, Manuel Cruz/WHO,
Maria Fernand)
NEOLOGISMO
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana1.
inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo
Teadoro, Teodora.
Manuel Bandeira,
Petróplis, 1947
Poesias
completas, acrescidas de Belo belo.Rio de
Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1948
_________
1A palavra “cotidiana”
corresponde a “quotidiana”, na variedade do português europeu (isto é,
português de Portugal).
Questionário sobre o poema "Neologismo", de Manuel Bandeira
1. O poema chama-se “Neologismo”, pois:
a) dá ideia de coisa
ultrapassada;
b) encerra uma mensagem otimista;
c) apresenta características de
versos soltos;
d) introduz palavras novas na
língua.
e) contesta as regras
gramaticais.
2. Manuel
Bandeira é um dos nomes mais importantes da poesia da primeira fase do
modernismo brasileiro; em seu poema “Neologismo”, o eu lírico
a) fala de situações inusitadas
da vida do ser humano.
b) expressa a abundância em seu quotidiano.
c) denota acanhamento em suas
atitudes.
d) demonstra falta de
produtividade.
e) encontra reciprocidade em seus
sentimentos.
3. “Beijo
pouco, falo menos ainda” (verso 1)
3.1.
Considerando
estas palavras do “eu” poético, como o caracterizas?
3.2.
De
que forma exprime, então, o sujeito poético os seus sentimentos?
4.
O
sujeito poético inventou o verbo teadorar, que afirma ser um verbo
intransitivo. Justifica esta classificação.
A alternativa A está incorreta, pois o eu lírico
inventa palavras que traduzem a “ternura mais funda e mais cotidiana”, ou seja,
não traduzem situações inusitadas e incomuns, falam de situações do dia a dia.
A alternativa B está incorreta, pois o eu lírico
utiliza os termos “pouco” e “menos”, revelando parcimônia e moderação no beijar
e no falar, demonstrando uma postura de humildade em seu dia a dia.
A alternativa C está correta, pois o eu lírico
declara que beija pouco e fala menos ainda, o que pode ser entendido como
timidez e acanhamento, permitindo, ainda, a inferência de que há um certo
constrangimento; conhecendo a história de Manuel Bandeira, da tuberculose que o
acometeu ainda jovem, debilitando-o durante toda a vida, também, podemos
entender o poeta expressa, através desse eu lírico, a convivência com uma
debilidade que o impede de viver plenamente.
A alternativa D está incorreta, pois o eu lírico
inventa palavras que traduzem os sentimentos do cotidiano, elaborando uma
metáfora sobre o fazer poético; portanto, há produtividade.
A alternativa E está incorreta, pois o eu lírico criou
um verbo intransitivo, ou seja, que não tem um complemento; desse modo,
entende-se que não há reciprocidade, não há correspondência para o verbo que
criado, o verbo “teadorar”.
3.1. O “eu”
poético apresenta-se como tímido, introvertido.
3.2. O
sujeito poético inventa palavras “Que traduzem a ternura mais funda / E mais
cotidiana.” (versos 3-4).
4. O verbo
teadorar é intransitivo, porque nele aparece “incorporado” o ser adorado:
teadorar significa adorar Teodora. Isto é, pode-se “adorar” qualquer
pessoa, mas teadorar designa uma ação exclusiva, que não transita.
(Fonte: Diálogos 7, Fernanda Costa e Luísa Mendonça.
Porto Editora, 2011, p. 199)
Texto de apoio
No poema "Neologismo" de Manuel Bandeira, o eu-poético começa com uma confissão: "Beijo pouco, falo menos ainda." Esta declaração inicial sugere uma introspeção que revela a dificuldade em demonstrar afeto através de gestos comuns e da fala. A seguir, o sujeito poético revela a sua solução para essa limitação: "Mas invento palavras que traduzem a ternura mais funda e mais cotidiana." Aqui, é introduzida a ideia central do poema: a criação de palavras como meio de expressar sentimentos que a linguagem quotidiana não consegue captar plenamente.
A invenção do verbo "teadorar" é o ápice do poema. Esta palavra combina o pronome pessoal átono "te" e o verbo "adorar", criando um neologismo que, segundo Eduardo Guimarães, no seu artigo Sentidos no texto - uma análise de “Neologismo”, de Bandeira, é formado a partir da expressão de um sentimento específico ("dizer te adoro") e não simplesmente pela combinação de palavras existentes. Assim, "Teadoro, Teodora" não é apenas um jogo de palavras, mas uma manifestação de amor e afeto entre o eu-lírico e a amada.
Pasquale Cipro Neto afirma que “ao inventar a palavra teadorar, nosso grande poeta inclui nesse verbo o objeto (o alvo) da adoração, daí uma das razões da intransitividade de teadorar. O verbo é intransitivo porque já contém seu suposto objeto.” (…) E por que eu disse uma das razões? Porque outra delas talvez seja o facto de que, sendo intransitiva, a adoração não se materializa, fica presa, contida, fechada no interior de quem a sente. A adoração existe, mas, por alguma razão, não transita, não chega ao ser adorado. Não custa lembrar que, em ‘Beijo pouco, falo menos ainda, o próprio poeta dá uma pista dessa intransitividade de seus sentimentos.” (Folha de São Paulo, 22-05-2003).
A estrutura do poema também é relevante. Começando com a constatação de limitações pessoais, seguido por uma adversativa que introduz a criação linguística, e culminando com o neologismo que encerra o poema, o sujeito poético guia o leitor através de um processo de autoconhecimento e expressão. Essa progressão estrutura o poema de forma a enfatizar a inovação linguística como um meio essencial de expressão emocional.
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
- e estais no bico das penas,
- e estais na tinta que as molha,
- e estais nas mãos dos juízes,
- e sois o ferro que arrocha,
- e sois barco para o exílio,
- e sois Moçambique e Angola!
Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra.
Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?
- Acusações, sentinelas;
bacamarte, algema, escolta;
- o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
- a umidade dos presídios,
- a solidão pavorosa;
- duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
- e a sentença que caminha,
- e a esperança que não volta,
- e o coração que vacila,
- e o castigo que galopa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão, podíeis ter sido!
- sois madeira que se corta,
- sois vinte degraus de escada,
- sois um pedaço de corda...
- sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
- sois um homem que se enforca!
Cecília
Meireles (1901-1964), “Romance 53 ou Das Palavras Aéreas” in Romanceiro da Inconfidência, Parte 3. Rio de Janeiro: Livros
de Portugal, 1953
Análise dos principais aspetos do poema
O poema
“Romance LIII ou das palavras aéreas”, de Cecília Meireles, faz parte do Romanceiro
da Inconfidência, uma coleção de poemas inspirada na Conjuração Mineira,
uma rebelião fracassada contra o domínio colonial português no Brasil no século
XVIII.
No poema é explorada a dualidade das palavras como instrumentos de criação e destruição, de
liberdade e opressão, refletindo-se sobre o seu impacto profundo e muitas vezes
imprevisível na vida e história humanas.
O sujeito
poético começa por enfatizar a natureza fugaz das palavras. Elas são comparadas
ao vento que não retorna, indicando a sua transitoriedade e a rapidez com que
tudo pode ser formado e transformado por elas.
Apesar da
sua fugacidade, as palavras possuem uma potência estranha. Elas são capazes de
iniciar e direcionar o sentido da vida, cristalizar emoções como o amor,
incitar sonhos e audácias, mas também disseminar calúnias e causar derrotas.
As
palavras são descritas como frágeis como o vidro, mas poderosas como o aço.
Elas têm o poder de mover reis, impérios e povos, moldando o curso da história
e influenciando destinos.
O poema
aborda também a responsabilidade que vem com o uso das palavras. Elas podem
acusar, vigiar, prender, julgar e condenar. Podem ser usadas como instrumentos
de opressão ou libertação, dependendo de como são utilizadas.
Há um
contraste entre a leveza aparente das palavras, como "tênue seda", e a
sua capacidade de serem instrumentos de poder e justiça. Elas são tanto
símbolos de liberdade quanto de opressão, dependendo do contexto e da intenção
de quem as usa.
O poema termina
com uma reflexão sobre a ironia das palavras. Onde poderia haver perdão, elas
se tornam instrumentos de punição e sofrimento, exemplificado na imagem final
de "um homem que se enforca", mostrando como palavras mal empregadas
podem ter consequências trágicas e irreversíveis.
Exploração
de um fragmento do poema
AI, PALAVRAS!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Cecília Meireles, Obra
Poética
O título
da poesia está plenamente justificado nos três versos em que o vocativo comandado
pela interjeição aparece seis vezes e isto na 1.ª parte da composição, antes da
autora se espraiar em imagens significantes deste extraordinário e indefinível
significado que ela tenta sugerir, desde que, na 1.ª estrofe, diz «sois de
vento» , tentando já objetivar o referido significado numa imagem - o vento -
que, como as palavras, não se pode agarrar, o que aponta já para a incontável e
variada gama de signos que podem ser transmitidos pelas palavras.
Em toda a
poesia é evidente um misto de censura, acusação, elogio e angústia em que a
autora envolve - as palavras - intensificando esses sentimentos com o
emprego da referida interjeição.
O ritmo
ligeiro da poesia em verso de redondilha maior, sem rima consoante, e apenas, aqui
e além, uma certa musicalidade dada pela rima toante em o aberto - vossa,
retorna, transforma, nova, vossa,
porta, rosa, derrota, elabora,
retorta, poderosa, rodam - que
aparece alternadamente ao longo da poesia, está ao serviço da ideia que a
poetisa desenvolve desde o 3.° verso - a palavra é incorpórea, não se apanha,
não se vê, é efémera, móvel, na sua pronunciação, leve como o vento. No
entanto, à medida que o pensamento se desentranha, a poetisa vai concretizando
a afirmação do 2.° verso do 1.º dístico - «que estranha potência a vossa!» - e,
daí, a sucessão de valores denotativos e conotativos contidos nas - palavras.
A
pontuação colabora com a linguagem para traduzir o pensamento. Abundam as frases
exclamativas e reticentes que apontam para a função emotiva da linguagem ao
serviço desta mensagem poética que está, de certo modo, empenhada numa subtil denúncia
- o que está sugerido principalmente no último conjunto de versos.
«A Liberdade das almas.
ai! com letras se elabora .. »
Predomina
no texto o tempo verbal presente, o qual aponta para a intemporalidade das
afirmações da autora: foi, é e será sempre «estranha a potência das palavras».
A poetisa
debruça-se sobre este sugestivo signo - a palavra - e vai desdobrar em sucessivos
versos aquilo que ela pensa, em linguagem direta. Daí, os vocativos, os verbos na
2.ª pessoa e o possessivo vossa também na 2.ª pessoa.
A
obsessão com que se debruça sobre o tema é marcada:
- pelo
paralelismo: sois de vento, ides no vento
- pelas
repetições: há um verso que se repete três vezes - «Ai, palavras, ai,
palavras,»; o 1.º dístico repete-se no começo da 3.ª estrofe; o 4.º verso da 1.ª
estrofe também se repete integralmente no dístico que constitui a 2.ª estrofe
um tanto desgarrada, só formada de dois versos, mas fortemente incisiva no
contexto. Estas repetições transmitem à poesia um acentuado paralelismo
ideológico e uma cadência rítmica sugestivos do assombro que a poetisa sente e
deixa transparecer.
Vejamos
como justifica Cecília Meireles a significativa afirmação que faz no dístico exclamativo
com que inicia a poesia.
Note-se
que a poetisa diz: «Que estranha potência, a vossa!» e nesta expressão o significante
potência já, por si, mais quantitativo e ressonante que - poder -
vem ampliado pela expressão quantitativa - que - e qualificado pelo adjetivo
- estranha - que também aponta para uma indefinição, alargando o seu
sentido; e, de certo modo, prepara o qualificante do 4.° verso - «Sois de
vento». No mesmo verso, transpõe o possessivo - vossa - para o fim, o
que, numa frase elíptica do predicado, e alargada pela anástrofe - pois a ordem
direta seria - «Que estranha é a vossa potência!» transpõe o pensamento mais
para o indefinido e alonga-o mais do que se o possessivo acompanhasse o
substantivo.
«Sois de
vento, ides no vento» - Primeira definição que contrasta com a afirmação do 2.°
verso e que sugere a vaga, rápida, duração da palavra, quando
emitida oralmente, embora o seu efeito seja violento, forte, potente,
e tanto, que condiciona a vida do mundo. Por meio dela «tudo se forma e
transforma».
Logo
nesta estrofe, pois, paradoxalmente, diz das palavras - «sois de vento, ides no
vento». Note-se que neste verso, nas duas frases marcadas pelo paralelismo já
sugerido, se aponta para a fluidez da palavra, o que é reforçado pela repetição
do signo – vento – em especial à maneira de leixa-pren do 4.º para o 5.º verso
- ides no vento / no vento que não retorna. E, no entanto, apesar
da fugacidade da sua existência, é à custa dela, palavra, já se disse, que
«tudo se forma e transforma». Note-se, nestes dois últimos versos, o contraste entre
rápido e tudo, o jogo etimológico – forma e transforma
– e a rima interna, a fazer incisão sobre o poder da palavra e, de raspão, a
apontar, mesmo aqui, para o tema da mudança e para a irreversibilidade - no
vento que não retorna. O tempo passa, as palavras ficam, mas ajustadas a
novas ideias. O que foi denotação pode vir a ser conotação, mas fica.
No
dístico que constitui a 2.ª estrofe, a autora leva-nos a constatar mais um
paradoxo que é vincado pelo emprego de um verbo de movimento - ides - em
antítese com um verbo de estabilidade - quedais. Afinal, a palavra é
frágil - «Sois de vento, ides no vento -» (verba volant - as
palavras voam, diziam os latinos) e (contudo) «quedais com sorte nova!» Vai,
mesmo, mais longe e o ponto de exclamação traduz o espanto experimentado: não
só quedam, como quedam com sorte nova - isto significa a possibilidade que a
mesma palavra tem de se aplicar a sentidos vários e renovados, e de passar de
elemento caduco a elemento renovado, sempre rico de seiva que queda teimosamente.
Alarga, pois, neste dístico, o pensamento que começou a desdobrar-se com o
mesmo verso na 1.ª estrofe.
Na 3.ª
estrofe só aparece um adjetivo - estranha - num verso de um dístico que
se repete como um refrão, obsessivamente. A justificação da afirmação feita no
1.° dístico é transmitida, aqui, por substantivos predominantemente abstratos -
amor, sonho, audácia, calúnia, fúria, derrota... e outros não expressos,
mas que as reticências deixam supor. Note-se que, nesta série de definições
sugestivas de palavras, umas apontam para o seu aspeto positivo - amor,
sonho, audácia; outras para o negativo – calúnia, fúria, derrota – os
dois primeiros com a tónica em u e terminados em ditongo decrescente
fazem rima e anotam o sinal negativo que transmitem, e marcam uma certa
gradação crescente pois a calúnia leva à fúria e sucessivamente à
derrota onde a tónica em o aberta aponta para o nada, a
destruição. Serve-se, assim, de várias conotações mais restritivas que
desdobram a 1.ª afirmação de sentido genérico, coisificando a palavra
quando a faz - porta de saída para a expressão do pensamento. Também,
nesta estrofe, coisifica o estranho poder das palavras com uma imagem
sinestésica - gustativa (mel) e olfativa (perfume), a exprimir o amor
que sugestivamente cristaliza na objetivação expressiva da metáfora - em
vossa rosa. Através desta sugestiva e poética perífrase, traduz
simplesmente a força expressiva do sentimento que a palavra amor
significa numa gama variada de sensações. Note-se a sugestão dada pelo verbo cristalizar
- o qual polariza a fina essência do sentimento amoroso.
Nesta
mesma estrofe merecem um comentário especial os dois últimos versos «Sois o
sonho e sois o audácia». É, aparentemente, um verso mais curto, a sugerir a
rapidez do sonho e a violência da audácia, é um verso copulado, marcado pelo
paralelismo em que o 2.º membro marca já a transição para a série de sugestões
expressivas do último verso, as quais se desbobinam em frase assindética,
dissociando os vários momentos negativos do emprego das palavras, numa
gradação crescente, como já sugerimos.
É, porém,
na última estrofe que o pensamento da poetisa se vai abrir definitivamente a
transmitir a mensagem poética que vem sendo anunciada desde o princípio. A
poesia é uma chamada de atenção para a estranha potência das palavras,
não empenhada, fundamentalmente, como Manuel Alegre no soneto intitulado - As
Palavras - que é poesia de combate, de denúncia, ou como Eugénio de Andrade
que, com a poesia, igualmente intitulada, se situa no cruzamento dos dois, numa
poesia carregada de conotação e, por isso, menos objetiva na sua mensagem, mais
próxima da pintura abstrata e mais pessoal. Também Ruy Belo em «Homens de
palavra(s)» e Egito Gonçalves no poema «Com palavras» põem à nossa
consideração a referida estranha potência das palavras que de cada um de
nós faz um dicionário (mais ou menos volumoso). como diz o prosador, ou um
arquivo, como sugere o segundo. O mesmo tema inspira, pois, cinco artistas que,
embora se toquem em alguns pontos, têm, contudo, uma marca própria.
Cecília
Meireles oferece ao nosso pensamento uma poesia, fruto de uma análise marcadamente
objetiva, alertando-nos, sem nos obrigar a esforços para descobrir o que ela não
teve interesse em esconder.
Por isso
a 4.ª estrofe é a cúpula e sugestivamente nela predomina a imagem concreta para
provar essa estranha potência das palavras. Novamente o contraste entre:
- o
valor positivo delas - pois que, com letras - com palavras - se dá
ou se tira a liberdade (note-se o seu quê de amargura que traduz a
interjeição ai! e a insegurança sugerida pejas reticências);
- e o
valor negativo - são fina retorta onde se contêm os venenos humanos. Na química,
é a retorta elemento de trabalho para o bem e para o mal. Pois a autora conota,
com este objeto. o poder destruidor, negativo das palavras. O seu aspeto
negativo é significado concretamente e conotativamente por uma retorta onde se
fabricam os venenos humanos - alguns dos quais já foram sugeridos no
último verso da estrofe anterior. E, novamente, a poetisa nos leva a constatar
essa estranha potência, nas duas comparações concretizantes e paradoxais
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
a primeira superlativada pela
repetição do adjetivo frágil onde a comparação é feita com o vidro,
estabelecendo o mesmo grau de fragilidade; a segunda, determinada pelo adjetivo
poderosa, faz-se com o aço (e aço, aqui, pode conotar, por sinédoque, armas)
e marca a superioridade das palavras em relação às armas. A exclamação que
fecha estes quatro versos vinca bem o assombro que tal paradoxo determina.
Assinale-se,
nestes dois versos comparativos, uma espécie de quiasmo: - os adjetivos estão
nos extremos e os substantivos no meio, obrigando o 2.º verso a uma anástrofe
um tanto violenta. Colocando os adjetivos em lugar de relevo, a nosso ver,
torna mais expressivo o paradoxo.
A poesia
termina com dois versos que polarizam o pensamento que, gradualmente, se foi
desentranhando - as palavras são o grande motor do mundo -, pensamento que é transmitido
num crescendo de valores que o penúltimo verso sugere: os Reis são superados pelos
impérios e tudo pelos tempos. Veja-se a ligação assindética destes quatro
elementos que, dissociados. marcam melhor os quatro valores.
Estes
dois versos são reticentes pois que o que foi enunciado no penúltimo verso não
abarca toda a incalculável missão das palavras. Muito mais situações poderiam
ser equacionadas, e, mesmo assim, nunca cobririam toda a estranha potência das
palavras. Até o verbo rodar indica essa gravitação do mundo rotativamente a
partir do centro vital que são as palavras.
Poucos
são os adjetivos no texto e os poucos que há são abstratizantes.
Predominam
os substantivos, marcadamente abstratos, ao serviço da mensagem poética que
roda em torno de uma definição, o que solicita, naturalmente, o predomínio do
substantivo.
Dois sons
têm um certo relevo na poesia: a sibilante e a labiovelar (f, v). Parece-nos que
eles poderão ajudar a sugerir a mobilidade e a fluidez das palavras e também a
sua potência, (f. v.) - o que é principalmente sensível nas duas primeiras
estrofes.
Cecília
Meireles foi, pois, muito feliz nesta poesia, quer pelo rico conteúdo
ideológico que encerra, quer pela leveza e naturalidade com que conseguiu
sugeri-lo.
Lilás
Carriço, “Exploração do poema – Ai, Palavras!” in Literatura Prática
11.º Ano. Porto, Porto Editora, 1986 (4.ª ed.) (1.ª ed.: 1977)
Havia
uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.
E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também
a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,
e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,
ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
Cecília Meireles,
Ou Isto ou Aquilo, 1964
Questionário
Classifica as afirmações em falsas (F) ou verdadeiras (V). Corrige as falsas.
1. O poema "A Língua do Nhem" é predominantemente descritivo.
2. As primeiras estrofes do poema apresentam a solidão como um problema sem solução.
3. A partir da terceira estrofe, os animais começam a imitar a velhinha, modificando o cenário de solidão.
4. A velhinha permanece triste mesmo com a companhia dos animais.
5. O poema é composto por seis quadras com versos de sete sílabas métricas.
6. A onomatopeia "nhem" é repetida seis vezes em várias estrofes do poema.
7. O uso de diminutivos como “gatinho” no poema expressa afetividade e intimidade.
8. Os artigos definidos e os diminutivos no poema indicam a proximidade e importância da relação entre a velhinha e o gato.
9. A onomatopeia “nhem” no poema representa a fala dos jovens.
10. Cecília Meireles utiliza os animais no poema para destacar a falta de comunicação e o descaso com os idosos.
11. Termos como “aborrecida”, “sozinha” e “ninguém” no poema reforçam a temática da solidão.
12. O poema não utiliza a personificação como recurso estilístico.
13. A repetição de sons e rimas no poema não tem importância estilística.
14. O poema apresenta influências da literatura oral.
15. O final do poema, com a velhinha contente, se assemelha ao "final feliz" dos contos de fada.
16. "A Língua do Nhem" é um poema que não se relaciona com o público juvenil.
Correção do questionário
1. Falso. O poema é narrativo, embora o título sugira uma ênfase descritiva.
2. Verdadeiro.
3. Verdadeiro.
4. Falso. A velhinha fica contente porque os animais a acompanham no "nhem-nhem-nhem".
5. Falso. O poema é composto por oito quadras com versos de seis sílabas métricas.
6. Verdadeiro.
7. Verdadeiro.
8. Verdadeiro.
9. Falso. “Nhem” representa a fala dos idosos e a solidão resultante da falta de interação.
10. Verdadeiro.
11. Verdadeiro.
12. Falso. A personificação é um dos expoentes do texto poético, mudando a língua dos animais.
13. Falso. A repetição é um recurso estilístico utilizado para criar ritmo e reforçar o tema.
14. Verdadeiro.
15. Verdadeiro.
16. Falso. A temática e a forma do poema capturam o interesse do público jovem, ligando-se a tradições populares.
Texto de apoio - análise
literária do poema “A língua do nhem”
O poema intitulado “A língua do
nhem” versa sobre a solidão e, simultaneamente, sobre a necessidade inerente ao
ser humano de relacionar-se com outro ser vivo.
Trata-se de um poema narrativo,
embora o título sugira que a ênfase se dará no plano descritivo. Portador de
uma estrutura do tipo começo-meio-fim, a história apresenta uma sucessão de
momentos encadeados entre si, deixando-nos informados do passado, do presente e
do futuro. E, segundo Tavares (2005, p. 65), essa
é uma das estruturas mais elementares que aprendemos na infância, e é de acordo
com ela que interpretamos nossa vida e tudo que acontece à nossa volta.
A problemática da solidão é
apresentada nas duas primeiras estrofes, como se não houvesse solução.
Entretanto, na terceira estrofe, o quadro começa a se modificar. O gato começa
a imitar a velhinha e os demais animais da história fazem o mesmo.
Embora a rotina se instale
novamente, minimizando, de certa forma, a solidão, a velhinha fica contente por
que todos os a acompanham no “nhem-nhem-nhem” (na última estrofe).
“A língua do nhem” se constitui de
oito quartetos constituídos por versos com seis sílabas métricas. O número de
sílabas, coincidentemente ou não, corresponde a seis vozes expressas em uma
linguagem onomatopaica “nhem” (reiterada também seis vezes) por todos os seres
animados no texto. A velhinha, o gato e os outros animais como cachorro, pato,
cabra e galinha interagem por meio do monossílabo “nhem” que finaliza quatro
estrofes, alternando com os oxítonos terminados em “ém” – “alguém”, “também”,
“além”, “ninguém”.
Essa seqüência dos animais talvez
represente uma gradação no tocante ao grau de aproximação existente entre o ser
humano e os bichos mencionados.
O uso dos artigos definidos a em
“a boa da velhinha” (segundo verso da segunda estrofe) e o em “ O gato que dormia”
(primeiro verso da terceira estrofe) e “ o gatinho a acompanhava” (terceiro
verso da quarta estrofe) denotam o facto de que a velhinha e o gato pareciam se
mais próximos ou então considerados os sujeitos mais importantes na comunicação
que se estabeleceu.
O diminutivo em “gatinho” expressa
a afetividade e a intimidade que se desenvolveu na relação velhinha-gatinho.
Acrescenta-se o respeito às pessoas de maior idade se expressa no uso do
diminutivo “velhinha” na primeira, segunda, terceira e sétima estrofes.
O “nhem”, onomatopéia bastante
utilizada pelos idosos, resultante, biologicamente explicitando, de uma espécie
de destruição progressiva e contínua dos neurônios, compõe o título como uma
constatação de uma seqüela dos vários anos vividos e da ausência de maior interação
humana.
Impressiona-nos a maneira em que
Cecília desnuda essa realidade dessa fase da vida, a gravada pelo desuso da
fala ou por não ter com quem falar, ou por ter sua fala ignorada ou reprimida
pelos mais jovens.
A autora envolve os animais (os
bichos) na “comunicação” com a velhinha, na tentativa, talvez, de minimizar o
estado de aborrecimento desta e de, ao mesmo tempo, protestar contra o descaso
ao idoso, que se inicia no âmbito familiar.
A solidão em que se encontra a
velhinha vai sendo descrita através da relação paradigmática marcada pela
associação semântica entre a temática solidão e termos presentes no poema que
denotam esse estado. Vocábulos como “aborrecida” (primeira estrofe), “resmungando”
e “sozinha” (segunda estrofe), “canto” (terceira estrofe), “resmungava” (quarta
estrofe), “padecia” e “ninguém” (sétima estrofe).
Os termos em destaque associados à
situação de solidão são representados por noções de estado
como em “aborrecida”, “sozinha”,
de ação como
em de companhia,
no caso de “ninguém”.
Estilisticamente, a personificação
é um dos expoentes desse texto poético, chegando a mudar a língua dos animais.
Como se tivessem se divertindo com a nova língua – “a do nhem” – o gato, o
cachorro, o pato, a cabra e a galinha passaram “noite e dia/naquela melodia/nhem,
nhem, nhem, nhem, nhem, nhem”.
Excetuando o gato, os outros
bichos vieram “de cá, de lá, de além” (último verso da quinta estrofe), do
mesmo modo que vêm nossos costumes, tradições, comportamentos, por meio,
também, da literatura oral a qual tem como significativo elemento a memória,
que vai sendo preservada pelo recontar o que ouviu – agregar
histórias de outros – considerada uma das necessidades
do ser humano por Araújo (2005).
Para evidenciar a relevância da
memória, Tavares (2005, p.106) traça um paralelo entre o mundo da cultura
escrita e o mundo da cultura oral, ao qual vai ao encontro da permanência da
Literatura Oral. Cecília, em Problemas
da literatura infantil, afirma: (...) é a Literatura
Tradicional a primeira a instalar-se na memória da criança. Ela representa o
seu primeiro livro, antes mesmo da alfabetização, e o único, nos grupos sociais
carecidos de letras.
Se visualizando de fora se vê
“mesmice”, reprodução, repetição, de dentro (como se fôssemos um deles) parecia
haver prazer naquele comportamento reiterado.
A repetição é um outro recurso
estilístico utilizado por Cecília. Essa, por sua vez, neste contexto se dá no
plano sonoro e vocabular. Os sons das rimas aborrecida/vida
(primeira estrofe), velhinha/sozinha
(segunda estrofe), cozinha/velhinha
(terceira estrofe), resmungava/acompanhava
(quarta estrofe), vizinha/galinha
(quinta estrofe), dia/melodia
(sexta estrofe), padecia/companhia
(sétima estrofe), abria/respondia
(oitava estrofe) e em estrofes, a
partir de palavras que estão na mesma estrofe e em estrofes diferentes (último verso
de todas as estrofes) “alguém / nhem / também / nhem / além / nhem / ninguém / nhem”
somado ao termo “nhem” repetido seis vezes consecutivas em quatro dos oito
versos, de forma alternada.
O tempo passado típico das narrativas,
tendo o imperfeito do indicativo do verbo “haver”
no início do poema indica uma situação que se sustenta há certo tempo e nos
remete a “Era uma vez...”, “Há muito tempo atrás...” Esse brincar com outros
tipos de texto promove o diálogo entre os tempos e conseqüentemente com o
sócio-cultural. A brincadeira com a linguagem associada ao se evidencia em
outros textos Especificamente, é possível estabelecer uma relação entre “A
língua do nhem” e a história “Os músicos de Bremen” e a canção “ A velha debaixo
da cama” do cancioneiro popular.
Os músicos de Bremen, do original
The Bremen Town – Musicians, dos Irmãos Grim, Jacob e Wilhelm, trata da
desvalorização de um asno, quando este chega à velhice. Seu dono o destrata e o
animal resolve abandonar a casa, em busca de dignidade, por meio da sua liberdade.
Talvez o nome dado pelos autores a
esse clássico da literatura infantil “Bremen” seja atribuído à Cidade
Hanseática Livre de Bremen, cidade alemã, localizada após San Marino, sendo a
mais antiga cidade-república do mundo. Conquistou sua emancipação política em 1646,
por ter demonstrado já em 1405 sua pretensão de autonomia.
Assim como os animais chegaram à
casa da “velhinha do nhem”, com exceção do gato por que já vivia com ela,
talvez por não forem respeitados e amados em suas próprias casas, os animais (o
asno, o cão, o gato e o galo) também buscaram um ao outro, como forma de combaterem
o desrespeito, a ingratidão e a solidão.
O enredo dessa estória estrangeira
é semelhante ao poema nacional – “A língua do nhem” e que merece um estudo
comparativo mais aprofundado.
O final do poema, assemelhando-se
ao clássico “final feliz” dos contos de fada, só aparece depois de um certo
suspense na penúltima estrofe com o uso do conectivo com a idéia de consecução
“De modo que...”, iniciando a estrofe, põe em dúvida o desfecho do que está sendo
narrado poeticamente, como um tom de ameaça. Esse suspense é explicitado por Tavares
(2005, p.67) ao discorrer sobre poema narrativo.
O diálogo entre esses dois gêneros
literários – o conto e o poema – um europeu e o outro nacional serve para
ilustrar, talvez, a influência européia que Cecília Meireles recebeu, já
mencionada no Capítulo II deste texto.
“A Língua do Nhem” remete também
ao cancioneiro popular “A velha a fiar” – um dos maiores clássicos que retrata,
de forma simples e recreativa, o interminável ciclo vicioso no qual estamos
presos. Ele funciona bem como jogo de memória.
Segundo o blog de Juliana (www.
Marmota.org/blog/2005/07/01/1315), surgiu a primeira vez em 1964, em um curta
metragem dirigido pelo cineasta Humberto Mauro. No blog há menção de ter sido
veiculado no programa Rá-Tim-Bum (TV cultura) e no Programa Os Trapalhões, com
outra versão e intitulado “A velha debaixo da cama”.
Tais ligações a essas raízes foram
possíveis devido a memória e a oportunidade que tivemos de nos depararmos,
quando criança, dessas criações.
Esses dois veículos midiáticos,
portanto, já revelam a viabilidade de poemas com a temática e a forma de “A
Língua do Nhem” interessarem ao público juvenil.