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sábado, 13 de julho de 2024

Poema da terra adubada, António Gedeão


 

Poema da terra adubada

Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.
Por detrás das árvores escondem-se os soldados
com granadas de mão.

As árvores são belas com os troncos dourados.
São boas e largas para esconder soldados.

Não é o vento que rumoreja nas folhas,
não é o vento, não.
São os corpos dos soldados rastejando no chão.

O brilho súbito não é do limbo das folhas verdes reluzentes.
É das lâminas das facas que os soldados apertam entre os dentes.

As rubras flores vermelhas não são papoilas, não.
É o sangue dos soldados que está vertido no chão.

Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a assobiar.
São os silvos das balas cortando a espessura do ar.

Depois os lavradores
rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados,
e a terra dará vinho e pão e flores
adubada com os corpos dos soldados.

 

António Gedeão, Linhas de força. Coimbra, Tip. da Atlântida Ed., 1967

 

Linhas de leitura sobre o "Poema da terra adubada":

O poema "Poema da terra adubada" de António Gedeão apresenta uma reflexão sobre a guerra e as suas consequências, utilizando a natureza como um meio para expressar a violência e a morte que acompanham os conflitos armados. Composto por sete estrofes, o poema contrasta imagens da natureza com a presença e as ações dos soldados, sublinhando a desumanização e a brutalidade da guerra.

O poema começa com uma negação: “Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.” Essa negação cria um contraste entre a expectativa (faunos) e a realidade (soldados). As árvores, inicialmente descritas como belas e douradas, tornam-se o esconderijo dos soldados com granadas de mão. Essa dicotomia introduz imediatamente o tema da guerra, substituindo a inocência e a paz da natureza pela violência e agressão humana.

Na segunda estrofe, as árvores, elementos naturais e esteticamente agradáveis, são descritas como utilitárias para a guerra. A beleza natural é pervertida pelo uso militar, reforçando a ideia de que a guerra corrompe até mesmo a natureza.

Na terceira estrofe, o sujeito poético substitui o som natural do vento pelo movimento furtivo dos soldados. Esse verso sublinha a presença constante e perturbadora da guerra, mesmo em ambientes que deveriam ser tranquilos.

Na quarta estrofe, o sujeito poético utiliza uma imagem de luz, tradicionalmente associada à vida e à natureza, para descrever o brilho das lâminas das facas - o brilho súbito nas folhas verdes não é natural; é das lâminas das facas que os soldados seguram entre os dentes. Esse contraste destaca a presença sinistra e letal da guerra.

A cor vermelha, associada a flores como as papoilas, é transformada em uma metáfora para o sangue derramado dos soldados. Assim, na quinta estrofe, visualizamos a morte de uma maneira brutal.

O som da natureza, que normalmente incluiria insetos e pássaros, é substituído, na sexta estrofe, pelo som das balas, reforçando a presença invasiva e destrutiva da guerra no ambiente natural.

Na estrofe final, o sujeito poético une a imagem da guerra com a agricultura, sugerindo que os corpos dos soldados tornar-se-ão fertilizante para a terra. Isso cria a imagem da guerra como um ciclo destrutivo que, paradoxalmente, alimenta a vida futura.

 


sexta-feira, 12 de julho de 2024

Poema da morte na estrada, António Gedeão




 

POEMA DA MORTE NA ESTRADA

Na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
estão quinhentos mortos com os olhos abertos.

A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.
Nem tiveram tempo para fechar os olhos.

Eles bem sabiam dos bancos da escola
como os homens dignos sucumbem na guerra.
Lá saber, sabiam.
A mão firme empunhando a espada ou a pistola,
morrendo sem ceder nem um palmo de terra.

Pois é.
Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis,
não lhes deu tempo para serem heróis.

Eles bem sabiam que o último pensamento
devia estar reservado para a pátria amada.
Lá saber, sabiam.
Mas veio de lá a bomba e destruiu tudo num só momento.
Não lhes deu tempo para pensar em nada.

Agora,
na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
são quinhentos mortos com os olhos abertos.

 

António Gedeão, Linhas de força. Coimbra, Tip. da Atlântida Ed., 1967

 

Linhas de leitura sobre o "Poema da morte da estrada":

O título "Poema da morte na estrada" antecipa o tema central do poema: a morte súbita e indiscriminada provocada por um ataque aéreo, sublinhando a tragédia e a desumanização dos soldados. A narrativa poética desenvolve-se em torno da imagem de quinhentos mortos, distribuídos ao longo de uma estrada, uma representação da devastação causada pela guerra.

A estrutura do poema é marcada pela repetição quase literal da primeira estrofe na última. Essa repetição reforça a ideia de que a morte dos soldados foi repentina e irreversível. A mudança do verbo "estão" para "são" na última estrofe sublinha a permanência desta condição. A imagem dos olhos abertos sugere uma morte abrupta, sem tempo para reação ou preparação, acentuando a brutalidade do evento.

Na segunda e terceira estrofes, o sujeito poético descreve a morte rápida e inesperada dos soldados, em contraste com o que aprenderam sobre heroísmo nos "bancos da escola". A morte é personificada, atuando como uma entidade que "colheu-os aos molhos", ilustrando a natureza massiva e instantânea da tragédia. A ilusão de heroísmo é desfeita pela realidade brutal de uma guerra moderna onde não há tempo para gestos heroicos ou para o pensamento consciente antes da morte.

As quarta e quinta estrofes destacam a discrepância entre o conhecimento teórico dos soldados sobre a guerra e a realidade que enfrentaram. A bomba é descrita com uma hipérbole, "fulgurante como mil sóis", enfatizando o seu poder destrutivo e a intensidade do ataque. A repetição da frase "não lhes deu tempo" sublinha a rapidez e a brutalidade da morte, que nega qualquer possibilidade de heroísmo ou de reflexão final.

Análise dos recursos expressivos e do ritmo do poema

Personificação: “A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.” No verso 3, a morte é descrita como uma entidade ativa e quase tangível, que ceifa vidas de forma impiedosa e inevitável.

Comparação e Hipérbole: “Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis” – No verso 11, a comparação da bomba com "mil sóis" exagera seu brilho e poder destrutivo, acentuando a devastação e o terror que causou.

O ritmo do poema é predominantemente lento, refletindo a solenidade e a gravidade do tema tratado. No entanto, a introdução de versos mais curtos nas estrofes finais cria uma quebra no ritmo, destacando a ineficácia da aprendizagem dos soldados diante da realidade brutal da guerra moderna.

Conclusão

O poema aborda de maneira incisiva a fragilidade da vida, a brutalidade da guerra e a inevitabilidade da morte. A bomba fulgurante simboliza a violência e a destruição que podem extinguir vidas num instante, sem oportunidade para heroísmo ou reflexão. O tom sombrio e contemplativo do poema convida o leitor a refletir sobre a condição humana e a brevidade da existência, destacando a tragédia e a desumanização inerentes à guerra.


sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

«O menino da sua mãe», Fernando Pessoa




O MENINO DA SUA MÃE

 





5





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25





30

No plaino1 abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
– Duas, de lado a lado –,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue2,
Fita com olhar langue3
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino de sua mãe”.

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

longe, em casa, há a prece:
Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe

 

s. d.

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  - 217.

1.ª publ. in Contemporânea, 3.ª série, nº 1. Lisboa: 1926.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2052

 

__________

1 plaino: planície.

2 exangue: sem sangue.

3 langue: mortiço; sem brilho.

 

Apresente, de forma estruturada, as suas respostas ao questionário.

1. Com base nas três estrofes iniciais, indique seis características de figura representada.

2. Explicite um dos efeitos de sentido resultantes da antítese que se estabelece, na primeira quintilha, entre os versos 2 e 5.

3. Interprete, no seu contexto, os seguintes versos: «Tão jovem! Que jovem era! /Agora que idade tem?» (vv. 11-12).

4. Refira dois dos valores simbólicos do par de objetos formado pela «cigarreira» e pelo «lenço» (vv. 17 e 24).

5. Comente a importância da última estrofe na construção do sentido geral do poema, apoiando-se em quatro aspetos significativos.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. A figura representada nas três estrofes iniciais do poema apresenta as seguintes características:

- é um «jovem» (v. 11) soldado morto (vv. 1-6);

- encontra-se abandonado, em campo aberto («No plaino abandonado» - v. 1);

- tem o corpo «trespassado» por duas balas (vv. 3-4);

- apresenta a farda ensanguentada (v. 6);

- está de braços abertos, «estendidos» sobre a terra (v. 7);

- é «louro», de tez muito clara {«Alvo» -v. 8};

- evidencia uma lividez cadavérica («exangue» - v. 8);

- mostra um olhar fixo e vazio (vv. 9-10);

- perdeu, prematuramente, o futuro e os sonhos·(«os céus perdidos» - v. 10);

-é «Filho único», muito amado («0 menino da sua mãe», conforme esta o tratava - vv. 13-15).

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de seis características.

2. A antítese presente na primeira estrofe («Que a morna brisa aquece», «Jaz morto, e arrefece» - vv. 2 e 5) produz, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- oposição entre o calor da vida e o frio da morte (o sopro do vento suave e tépido, simbolizando a vida, contrasta com a fria rigidez do corpo do soldado «trespassado» por duas balas);

- oposição entre o movimento da «brisa» e a imobilidade do jovem («Jaz»);

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a explicitação de um efeito de sentido.

3. Por um lado, estes versos exprimem o lamento do sujeito poético pela morte do jovem (veja-se a repetição da palavra «jovem», cujo sentido é intensificado pelos vocábulos «Tão» e «Que», introduzindo frases exclamativas); por outro lado, salientam quer a extrema juventude do soldado no momento em que morte, quer a perplexidade provocada pela nova temporalidade (ou ausência dela) instaurada pela morte: o soldado passa a ter uma idade indefinida («Agora que idade tem?»).

4. O par de objetos formado pela «cigarreira» e pelo «lenço» tem, entre outros, os valores simbólicos de:

- representação das figuras femininas protetoras - «a mãe» e «a criada / Velha»;

- presentificação do mundo distante da casa e da infância;

- ineficácia das preces da «mãe» e da «criada / Velha» (mediada pela inutilidade dos objetos que as representam);

- brevidade da vida, sugerida (por hipálage) pela expressão «cigarreira breve»;

- pureza (da infância perdida), expressa pela «brancura» do «lenço» (a cair da algibeira);

- paz, evocada pela «brancura» «alada» do «lenço»;

- contraste (dramático) entre o aspeto dos objetos materiais e o do cadáver do jovem que os possuiu («cigarreira» «inteira / E boa», «brancura» do «lenço» vs «Ele é que já não serve»);

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a referência a dois dos valores simbólicos.

5. Esta estrofe é particularmente relevante na medida em que:

- institui uma quase circularidade no poema, ao articular a primeira e a última quintilhas por meio da recuperação e da transformação do quinto verso da primeira estrofe no quarto verso da sexta;

- representa e realça, através da reiteração e transformação do quinto verso da primeira estrofe no quarto verso da sexta, a progressiva e inevitável degradação física do cadáver do jovem;

- estabelece uma simetria estrutural pela repetição do verso 15, localizado no centro do poema e reiterado, desse modo, no seu termo;

- faz convergir os sentidos do poema na expressão «0 menino da sua mãe» - título, verso central e verso final;

- evidencia a incomunicabilidade instaurada pela guerra e pela distância entre o «menino» e as figuras maternas, bem como a impotência destas perante a ameaça consumada da morte;

- expressa uma posição crítica de denúncia do poder político («O Império») que envia para a guerra os jovens e assim tece as «Malhas» da sua morte, absurda aos olhos de todos, sobretudo daqueles que mais os amam;

- intensifica o tom disfórico do poema, sublinhando os sentimentos de impotência e de perda;

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a mobilização de quatro aspetos significativos.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2006, 1.ª fase

 



 

Intertextualidade

 

O tema e a imagem central do poema “O menino da sua mãe” são retomados em “Tomamos a vila depois de um intenso bombardeamento”, em que se descreve, segundo o mesmo registo metafórico, a imagem da “criança loura” que “jaz no meio da rua” como um “pequeno peixe – dos que boiam nas banheiras – à beira da estrada”. Significativo é notar que como “o menino da sua mãe” está morto, os afetos maternais são suprimidos dessa descrição do menino, convertido, significativamente, em “criança loura”, apenas.

Caio Gagliardi, https://modernismo.pt/index.php/m/661-menino-de-sua-mae

 



 

TOMÁMOS A VILA DEPOIS DUM INTENSO BOMBARDEAMENTO

 

A criança loura
Jaz no meio da rua,
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.

A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
— Dos que boiam nas banheiras —
À beira da estrada.

Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...

E o da criança loura?
 

s. d.

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).   - 247. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/1837

 


 

Outros autores do século XX retomaram o poema “O menino da sua mãe”, do seguinte modo:

 

O SOLDADO MORTO
 
Os infinitos céus fitam seu rosto
Absoluto e cego
E a brisa agora beija a sua boca
Que nunca mais há de beijar ninguém.
 
Tem as duas mãos côncavas ainda
De possessão de impulso de promessa.
Dos seus ombros desprende-se uma espera
Que dividida na tarde se dispersa.
 
E a luz as horas as colinas
São como pranto, em volta do seu rosto
Porque ele foi jogado e foi perdido
E no céu passam aves repentinas.


Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo, Lisboa, Guimarães Editores, 1958

 

Jaz morto e arrefece o menino da sua mãe” (1973)
 escultura de Clara Menéres

 

O MENINO DA SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece
De varas trespassado
— Duas, de cada lado —
Jaz exposto e arreféce.

Raia-lhe a farda o sangue
Da quádrupla função.
Nórdico mouro exangue
Fita com olhar langue
O que ainda tem na mão.

Que varonil quimera!
Agora, que vara tem?
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome, e o mantivera:
O menino de sua mãe.

Caiu-lhe da algibeira
A lapiseira breve.
Dera-lhe o pai. Está inteira
E boa a lapiseira,
Ele é que já não escreve.

De outra algibeira, alada
Espuma de porto covo,
A brancura manchada
De um lenço... Foi a criada
Quando êle era mais novo.

Lá longe — na Casa do Conto — há prece:
«Que morra cêdo, e bem!»
Malhas que o Império tece!
Ainda vive e parece
O menino de sua mãe.

 

Mário Cesariny Vasconcelos, O Virgem Negra, Assírio & Alvim, 1989

 

 

Poderá também gostar de:

 

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.

 

 


O menino da sua mãe, Fernando Pessoa” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 06-01-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/01/o-menino-da-sua-mae-fernando-pessoa.html


sábado, 26 de março de 2022

Taras Shevchenko: Calamidade outra vez!


Meu Deus, calamidade outra vez!

 

Estava tudo tão pacífico, tão sereno;

Tínhamos acabado de começar a quebrar as correntes

Que prendem o nosso povo à escravidão

Quando pára! Mais uma vez o sangue das pessoas

Está a jorrar…

 

Taras Shevchenko (1814-1861)

Tradução de Joana Henriques, “Calamidade, outra vez – um ensaio de Anne Applebaum sobre Putin”, Expresso, 2022-03-06 


Na sua casa em Kiev, o arquiteto e investigador ucraniano Lev Shevchenko ergueu uma barricada de livros, junto à janela, para amparar os estilhaços resultantes de um eventual bombardeamento. ©Lev Shevchenko/Facebook



Мій боже милий, знову лихо!

Було так любо, було тихо;

Ми заходились розкувать

Своїм невольникам кайдани.

Аж гульк! Ізнову потекла

Мужицька кров! Кати вінчанні,

Мов пси голодні за маслак,

Гризуться знову.

 

Тара́с Григо́рович Шевче́нко


Taras Shevchenko, pelo escultor português Helder de Carvalho.
 Praça de Itália em Lisboa. Foto: © Rosa Pinto



Calamity Again

 

Dear God, calamity again!...

It was so peaceful, so serene;

We but began to break the chains

That bind our folk in slavery ...

When halt! ... Again the people's blood

Is streaming! Like rapacious dogs

About a bone, the royal thugs

Are at each other's throat again.

 

Taras Shevchenko, "Calamity Again". "Mii Bozhe mylyi, znovu lykho!" ("Мій Боже милий, знову лихо!") 1859, S.- Petersburg (Санкт-Петербург) Tradução para o inglês por John Weir. https://taras-shevchenko.storinka.org/poem-calamity-again-taras-shevchenko-english-translation-by-john-weir.html


Taras Shevchenko. Pugachev's arrest. 1842 (Тарас Шевченко. Арешт Пугачева. 1842).


Meu Deus querido, outra calamidade!

Estava tão bom, tanta tranquilidade;

Quando começávamos a nos soltar

dos grilhões que usavam nos amarrar.

Mas então!... Uma vez mais correu o sangue

dos pobres mujiques! A velha gangue

de velhacos, cachorros esfaimados

outra vez engalfinhados!

 

Traduzido do original ucraniano por Luciano Ramos Mendes, “Deus querido, mais uma calamidade!”: Poesia e o sonho de uma Ucrânia livre/ “Dear god, calamity again!”: Poetry and the dream of a free Ukraine. Revista Versalete, Curitiba, Vol.3, n.º 5, jul.-dez. 2015.

Este trabalho se propõe a discorrer brevemente sobre parte da produção poética ucraniana, partindo de seu fundador Taras Chevtchenko, mas com enfoque sobre os poetas contemporâneos (no contexto do Euromaidan e da guerra atualmente em curso no leste do país). O olhar aqui recai não só sobre as lutas pela independência, mas também sobre o modo de se pensar a relação entre um estado e uma nação ucranianos.





CARREIRO, José. “Taras Shevchenko: Calamidade outra vez!”. Portugal, Folha de Poesia, 26-03-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/03/taras-shevchenko-calamidade-outra-vez.html



terça-feira, 17 de agosto de 2021

Landays - A voz secreta das mulheres afegãs


Shamsia Hassani, https://www.shamsiahassani.net/  




LANDAY 

O Landay é uma forma poética afegã tradicional composta por um dístico (com nove sílabas no primeiro verso e treze sílabas no segundo) que aborda temas de amor, tristeza, pátria, guerra e separação.



Em segredo ardo, em segredo choro

Sou a mulher patshun que não pode revelar o seu amor

 

* * *

 

Beija-me ao esplendor vivo da lua

Nos nossos costumes é em plena luz que damos a boca

 

* * *

 

Que Deus te proíba todo o prazer em viagem

Já que me deixaste adormecida, insatisfeita

 

* * *

 

Poisa a tua boca na minha

Mas deixa a minha língua livre para te falar de amor

 

* * *

 

Meu Deus, que fizeste de mim?

As outras são flores desabrochadas e tu deixas-me em botão

 

* * *

 

Ó Primavera, as romãzeiras do meu jardim estão em flor

Guardarei para o meu amor ausente as romãs dos meus seios

 

* * *

 

Aperta-me com força em teus braços

Já sofri tempo de mais a prisão das saudades

 

* * *

 

A noite passada dormias nos meus braços

Esta noite, longe de mim, como terás descanso?

 

* * *

 

Num instante serias um monte de cinzas

Se sobre ti lançasse o meu olhar inebriante

 

* * *

 

Estás ébrio porque eu te sorri

Ficarias louco furioso se te oferecesse a minha boca

 

* * *

 

O meu amor prefere as flores sensatas dos jardins

Mas eu, tulipa selvagem, desfolho-me na planície sem fim

 

* * *

 

Poisa a tua boca na minha

Mas deixa a minha língua livre para te falar de amor

 

* * *

 

Ó alaúde quero ver-te em cacos:

Sou eu quem ama e és tu quem geme nos seus braços!

 

* * *

 

Bem amado, vem sentar-te um instante ao pé de mim

a vida é breve como o crepusculo de uma noite de Inverno

 

* * *

 

Mete docemente a tua mão pelas minhas mangas acima

As romãs de Kandahar floresceram e já estão maduras

 

* * *

 

É Primavera, aqui as folhas crescem nos ramos

Mas no meu país as árvores perderam as ramagens sob o granizo das balas inimigas

 

* * *

 

Como vieste assim em plena lua cheia?

Tu, alto como um plátano, onde te esconderei?

 

* * *

 

Esta mulher exilada não pára de morrer

Voltai-lhe o rosto para a terra natal, para que ela exale o seu último suspiro.

 

* * *

 

O meu amante prefere os olhos cor do céu;

não sei como mudar os meus, cor da noite

 

* * *

 

O teu amor é de água, é de fogo

As chamas consomem-me, as ondas engolem-me

 

* * *

 

Vai combater a Kabul, meu amor

Para ti guardarei intactos o meu corpo e a minha boca

 

* * *

 

Se dormes, só terás poeira

Eu pertenço aos que, por mim, não dormem a noite inteira

 

* * *

 

Os heróis permanecem vivos

só os traidores perecem para sempre

 

 

A voz secreta das mulheres afegãs : o suicídio e o canto / Sayd Bahodine Majrouh ; trad. Ana Hatherly. – 1.ª ed. - Lisboa : Cavalo de Ferro, 2005. - 88, [6] p. ; 24 cm. - Tít. orig.: Le suicide et le chant. - ISBN 972-8791-76-3



Amor e desespero nos gritos líricos das mulheres afegãs

 

Considerado por muitos o mais importante poeta que o Afeganistão viu nascer no séc. XX, Sayd Bahodine Majrouh, um intelectual de percurso singular e biografia trágica, sempre se interessou pela literatura oral de língua pashtun. Ao contrário da poesia persa, cheia de aspirações místicas e achados metafóricos, a lírica popular afegã renega a tradição livresca e nasce de improvisações que captam, com uma extraordinária leveza, a essência de vidas marcadas pelo nomadismo e pela dificuldade de subsistir numa terra seca e agreste. Nas palavras de Majrouh, este é "o canto de um ser terrestre, com as suas preocupações, as suas inquietações, as suas alegrias e os seus prazeres; um canto que celebra a natureza, as montanhas, os vales, as florestas, os ribeiros, a aurora, o crepúsculo e o espaço magnético da noite; um canto que se alimenta de guerra e de honra, de vergonha e de amor, de beleza e de morte".

O género poético que melhor reflecte este canto - e de canções se trata, literalmente - é o landay, um poema muito breve, de dois versos livres de nove e treze sílabas, sem rimas obrigatórias. Entoado de forma diferente conforme as regiões, o landay nasce quase sempre anónimo, sem aviso, fruto de acasos e inspirações súbitas, perpetuando-se através da memória colectiva. Há landay de todos os tipos eruditos e licenciosos, prosaicos e alcorânicos, dependendo da origem social ou cultural dos seus autores. Mas os melhores, os mais intensos, os mais inesperados, são os landay que revelam a condição feminina.

Em A Voz Secreta das Mulheres Afegãs - O suicídio e o canto (um livro em boa hora traduzido por Ana Hatherly, a partir da edição francesa), são justamente esses poemas ousados, curtíssimos e brutais, que Majrouh apresenta, explica e antologia. Um exemplo "Dá-me a tua mão, amor, vamos para os campos/ Para nos amarmos ou cairmos juntos apunhalados." Outro: "Meu amor, para lá das montanhas, contempla a lua / E verás que te espero, de pé, sobre o telhado."

Mais do que a esmagadora força telúrica destes fragmentos, o que surpreende nos landay é o retrato que permitem traçar da mulher afegã. Subjugada pelo poder masculino e por uma vida de escrava, ela só pode expressar a revolta de duas formas suicidando-se - com veneno; por afogamento - ou transformando as canções gritadas no palco de um amor louco, impossível.

Além de sonharem com o verdadeiro amante (que não pode ser cobarde) e de vituperarem os maridos impostos (velhos ou "pirralhos horríveis"), evocam a terra natal e lamentam exílios forçados. As ameaças, essas, são terríveis o castigo implacável dos clãs, o opróbrio, a morte. Mas elas, apesar dos riscos, cantam o desespero, a paixão, o despeito. E raras vezes nos deparámos com um canto tão puro e tão belo.

 

José Mário Silva, https://www.dn.pt/arquivo/2005/amor-e-desespero-nos-gritos-liricos-das-mulheres-afegas-595599.html, 2005-04-14

 

Foto: Mulheres de Cabul antes do Talibã. Fonte: LOGAN (2006)


O contemporâneo e o medievo no feminino

 

A partir de uma herança deixada pelas trobairitz na história da poesia de autoria feminina, observamos na contemporaneidade um movimento interligado que resgata essas autoras, seja pela forma estético-literária e sua marca na história, ou seja pelos temas tratados em suas composições, que transparecem muitos anseios femininos que protagonizaram lutas de mulheres em suas sociedades, mas que ainda se perduram tardiamente em contextos atuais.

A primeira obra que faremos essa aproximação com a poesia das trobairitz será o livro intitulado A voz secreta das mulheres afegãs: o suicídio e o canto, organizado pelo escritor Sayd Bahodine Majrouth, que teve sua primeira publicação em 1994 e que posteriormente foi traduzido para o português pela poeta portuguesa Ana Hatherly. Majrouth nesse livro buscou resgatar as vozes interditadas das mulheres afegãs, que através de um canto, os landays, originário da tradição oral conseguem ter espaço de voz assim como podem ouvir e registrar na história as vozes das outras mulheres que as rodeiam. Os cantos são apresentados em afazeres realizados coletivamente entre mulheres, em que uma repete e divulga o canto das outras, a partir de uma relação de identificação subjetiva.

Os landays são textos poéticos curtos de apenas dois versos que podem ser escritos por homens ou mulheres, sendo em sua maioria de autoria feminina. Como diz Sayd Majrouh, só raramente essas melodias proferidas por homens e clérigos “atingem a sobriedade profunda e pura dos landays femininos” (2005, p. 12). Na introdução do livro, Majrouh aponta que:

todos os landays apresentados neste estudo são provenientes do florilégio feminino, revelando-se incomparável a autenticidade das suas sonoridades, porque é um rosto fascinante o que emerge destes textos onde a mulher canta e fala de si própria, do homem e do mundo que a rodeia: um rosto orgulhoso, impiedoso e revoltado (ibidem, p. 12-13).

 

De acordo com Majrouh (2005, p. 11), os landays femininos apresentam muitas distinções da poesia persa: não há nesses textos nenhuma aspiração a serem declamados; não apresentam uma exaltação ao Senhor ou aos céus, nem mesmo ao amor místico. Além disso, a linguagem não apresenta um requinte ou jogos de palavras, como pode ser encontrado na poesia tradicional. Os landays femininos apresentam uma simplicidade única, porém de intensa profundidade subjetiva. A voz que exala desses textos são vozes que gritam para serem escutadas, que desejam externizar uma subjetividade impedida e interditada pela tradição e pelos costumes políticos e sociais. Como aponta Majrouh (2005):

a grande originalidade dessa poesia popular é a presença activa da mulher. Se, como em toda parte, ela é o suporte da inspiração dos estribilhos masculinos, aqui ela impõe-se sobretudo como criadora, como autora e sujeito de numerosos cantos (p. 11).

 

Essas mulheres que pertencem a comunidade pashtun têm uma condição de vida bastante dura, além de inseridas desde o berço em uma inferioridade clãnica, que posiciona os homens, desde que nascem, ao lugar de superioridade e privilégio à subserviência feminina. Apesar dessa condição de trabalho e servidão tão intensa e cruel para as mulheres, nos landays produzidos por elas o discurso mais presente é aquele que reclama o posicionamento moral que é ocupado e destinado ao feminino. Segundo Majrouh (2005), “A menina torna-se moeda de troca entre as famílias do clã sem jamais ser consultada. Passa a vida inteira num estado de inferioridade, de subordinação e humilhação. O seu próprio marido não se digna partilhar as refeições com ela” (p. 13-14).

Assim, podemos observar tais evocações nos seguintes landays:

 

O destino deu-me por esposo uma criança que eu educo

Mas quando ele for grande e forte, eu já serei velha e fraca

 

Gente cruel eu vedes um velho me levar para a sua cama

E perguntais-me porque choro e me arranco os cabelos!

 

Ó Deus, envias-me de novo a sombria noite

E de novo tremo da cabeça aos pés porque tenho de entrar no leito que odeio

(ibidem, p. 17).

 

Esses primeiros três landays que iniciam o livro apresentam um forte retrato da condição feminina nesse território. O ódio e o repúdio ao marido e ao casamento são explicitados acima. Para as mulheres é vedado o direito ao amor e à sua sexualidade, tendo muitas vezes que se casar com homens muito mais velhos do que ela, ou mesmo com meninos ainda crianças, não lhe cabendo nunca o direito à oposição. A traição é punida com morte para a mulher e seu assassinato é visto como punição educativa para todo o clã.

Contudo, mesmo diante de todas as repressões vividas as mulheres afegãs conseguem desejar um amado e externizar isso na arte. A literatura passa a ser, então, um locus de atuação enquanto sujeito, se deslocando do lugar objetificado da tradição.

 

Toma-me em teus braços e aperta-me

Depois volta-me a face e beija um a um todos os sinais do meu rosto

 

Vem junto a mim, meu amor

Se o pudor te impede de me tocar, eu te atrairei a meus braços!

 

Já se ouve o galo maldito e o seu triste canto de despedida

O meu amante vai-se embora como um pássaro ferido...

(ibidem, p. 17).

 

A presença marcante do discurso de desejo e valorização do amante, assim como a denúncia ao casamento infeliz constrói um elo de ligação com as cantigas escritas por mulheres transgressoras da Idade Média. Como aponta Rocha (2015), os landays femininos se aproximam, em seu conteúdo, das “Cantigas de Malmaridadas” que expressam: O marido ruim, feio, velho, ciumento, que maltrata a mulher; a mulher, geralmente mais jovem; o namorado/amante escolhido com o qual ela sonha. Além da aproximação com as “Malmaridadas”, o próprio discurso transgressor e de denúncia a uma condição feminina, muitas vezes insalubre, e de externização dos desejos silenciados de outros tipos de Cantigas, também constrói uma ponte com os landays femininos da tradição secular afegã. As obras que ganharam luz em nossa contemporaneidade são permeadas com elementos que buscam, dentre outras coisas, uma auto-representação feminina e enfatizam relações de gênero (DEPLAGNE, 2016).

No período da Idade Média muitos homens assumiram, invasivamente, a autoria de textos que, posteriormente na contemporaneidade, teve essas autorias dadas às mulheres medievais. Não obstante, apesar da dificuldade de obter educação, as mulheres produziram cantigas que tiveram muita dificuldade de reconhecimento de sua autoria, o que causou por muito tempo na história a falsa ideia de que as mulheres não produziam literatura no medievo. Como destaca Lemaire,

Para a Idade Média o questionamento se centra tanto na ausência da mulher como agente/criadora cultural e literária, escamoteada e silenciada pela historiografia oficial, como no questionamento das práticas de edição textual e da tradição interpretativa dos textos (2015, p. 8).

 

No caso apresentado das mulheres afegãs temos uma situação oposta. Devido a impossibilidade de atuação na sociedade da voz feminina, um homem enfrentou a oposição social e conseguiu resgatar esses registros para serem publicados em outros países. A consequência dessa postura resultou para Sayd Majrouh seu assassinato quando fora exilado no Paquistão no final do século XX. Assim como nos diz Ria Lemaire em seu texto, o roubo da autoria feminina e a invenção de uma tradição de um imaginário feminino triste e repleto de lamentações e choros, segundo os poetas trovadores que diziam assumir uma inspiração na “alma feminina”, fizeram com que o ensino de literatura e a tradição literária dos séculos posteriores construíssem uma imagem das vozes femininas distorcidas e cristalizadas. (2015, p. 9). Como é visto na introdução do livro doas landays femininos, as mulheres cantavam prioritariamente sobre seus desejos, sobre a liberdade de sua sexualidade, mesmo vivendo sob condições de extremas dificuldades domésticas e sociais. A referência nítida ao tema pode ser conferida numa cantiga de “Malmaridada”, ou “Mal casada”, anônima, que ressalta a esperança de felicidade longe do casamento e do marido ruim, ciumento, e a realização do desejo sexual no amante que é cobiçado:

 

Quan lo gilós èr fora,

Bels amí venetz vos a mi.

Balada cointa e gaia

Fatz, cui pes ne cui plaia

Pel dolz cant que m’apaia

Que’us audi seir e de matin

(LUCENA; DEPLAGNE, 2009, p. 153).5

 

Hilda Hilst e os 'landays' femininos afegãs: um diálogo com a poesia medieval de autoria feminina”, Bruno Rafael de Lima Vieira, Ana Ximenes Gomes de Oliveira. Revista Garrafa, vol. 17, n.º 50, outubro-dezembro 2019. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/garrafa/article/view/30943

 

 

"O Desaparecimento da Mulher"
Shadi Ghadirian (fotógrafa iraniana a viver em Teerão)


Landays: a voz secreta das mulheres afegãs

 

“Fomos esquecidas e precisamos ter o direito de falar.

Se ninguém escutar o que dissermos, nada mudará.”

(Mulheres de Cabul)

 

Resumo: Neste trabalho queremos apresentar a poesia oral das mulheres afegãs, - os landays – recolhidos e traduzidos para o francês pelo poeta afegão Sayd Bahodine Majrouh e vertidos para o português pela poetisa lusitana Ana Hatherly. Na nossa abordagem, seguiremos os passos da pesquisadora Ria Lemaire no seu estudo “A canção de Malmaridada”, que, igualmente aos landays afegãos, retrata a infelicidade da mulher mal casada em situação de desigualdade e opressão. Constatamos através da leitura desses testemunhos poéticos que, independentemente do espaço geográfico e da distância no tempo, situações de opressão sempre encontram válvulas de catarse através da literatura, mesmo que seja de uma forma secreta ou abafada.

 

Palavras-chave: landays, malmaridada, opressão, catarse

 

O Oriente sempre representou um mundo de sonho, riqueza, erotismo e fantasia para os povos do Ocidente. Inicialmente, por ser o lugar de onde vinham as especiarias, sedas, perfumes, tudo que o Ocidente consumia (e não produzia) com avidez e encantamento. A literatura foi a grande responsável pela disseminação dos costumes, lendas e tradições orientais. E nenhum outro livro despertou mais a curiosidade ocidental do que As mil e uma noites, também conhecido como Arabian Nights, uma coleção de contos que reúne cultura, aventura, e fantasia, hoje, definitivamente entronizado no panteão da literatura universal como um dos clássicos da humanidade. O fio condutor que dá unidade à narrativa provém da voz da princesa Xerazade, a filha do vizir. Este fio condutor é de origem indiana e chegou aos árabes através dos persas. Os contos que compõem a coletânea têm elementos diversos: árabes, persas e indostânicos. Embora de autoria desconhecida, supõe-se que tenha aparecido pela primeira vez em língua árabe no século VII. Em 1853 foi impressa na forma árabe definitiva. Entre 1704 e 1712 apareceu na Europa, na tradução francesa de Antoine Galland (Les mille et une nuits). Na metade do século XIX foi publicada no Cairo uma versão que serviu de base para edições posteriores, inclusive a inglesa, Thousand and One Nights (1885-1888) de Sir Richard Burton. Sem finalidade moralizadora, religiosa ou didática, que predomina na literatura oriental, contém no seu cerne um elemento que perdura até os nossos dias: a xenofobia, o repúdio ao feminino, considerado traiçoeiro e subversivo, merecendo, portanto, as mais duras penas. Embora Xerazade sobreviva à ameaça de morte que pesa sobre sua cabeça, através de sua inteligência e criatividade, o mesmo não acontece com a maioria das mulheres que hoje ousam subverter a ordem estabelecida pelos textos corânicos e os editos que dali se originam. É isto que nos mostra aliteratura contemporânea que nos chega dos países que adotam o islamismo de uma forma fundamentalista, como religião e modo de viver, dentre estes, o Afeganistão, objeto de nosso olhar neste trabalho.

Antes do 11 de setembro de 2001, o Afeganistão representava pouco mais do que um país escondido nas regiões montanhosas da Ásia Meridional, limitando-se com países como o Paquistão, o Irã, e a China, dentre outros.

Poucos sabem, por exemplo, que entre 2000 e 1500 A.C. aquele país já fazia parte da rota de passagem das tribos indo-européias; que do século V ao IV A.C. o Afeganistão fez parte do império persa; que em 329 A.C. Alexandre conquistou várias cidades que podem ter originado as que hoje são conhecidas como Kandahar e Cabul; que de 250 até 125 A.C. ali instalou-se um reinado culturalmente florescente, a afirmação de uma civilização greco-búdica, resultado de influências helênicas e indianas. Os árabes conquistaram a região no século VII e encontraram alguma resistência à implantação do islamismo que será imposto definitivamente a partir da primeira metade do século VIII. Ainda foram invadidos pelos turcos e pelos mongóis. Com a descoberta do caminho marítimo para a Índia, a rota da seda deixou de ter a importância que tinha até então e desde aí o grupo étnico dos pashtun começou a ganhar ascendência sobre as outras etnias.

No século XIX, são os ingleses que ocupam a região, de (1830 a 1919), tendo que disputar a soberania sobre aquele vasto território com o Império Russo.

Em 1964 o Afeganistão adotou a sua constituição e estabeleceu o regime parlamentar. Desde 1970, vem enfrentando uma guerra civil contínua e brutal sempre com intervenções estrangeiras; em 1973, dando sequência a uma grande crise econômica, um golpe militar é armado e a república é proclamada. Adota uma política de aproximação dos países muçulmanos, principalmente da Arábia Saudita, o que não agrada à União Soviética, que invade o país em 1979, tomando o controle das principais cidades. Os soviéticos são forçados a retirar-se 10 anos mais tarde e os mujahidins, que são supridos de armas e treinados pelos Estados Unidos, Arábia Saudita, Paquistão, China e outros países da região assumem o poder. Em 1996, o Taliban (milícia sunita de etnia patane, a mais numerosa do país) assume o poder, instaurando um regime fundamentalista islâmico. Depois do ataque às Torres Gêmeas, (World Trade Center) os Estados Unidos e as forças aliadas deram início a uma campanha militar que tem por objetivo dizimar os Talibans e o saudita Osama bin Laden, supostamente refugiado nas montanhas afegãs.

Este breve e lacunoso registro tem apenas o objetivo de chamar a atenção para o fato de que muita coisa aconteceu, muitas vidas foram sacrificadas no Afeganistão, antes dos atentados às Torres Gêmeas de New York em 11 de setembro de 2001. Mas, a partir de então, o ocidente foi forçado a voltar os olhos para aquele povo longínquo, assolado por invasões e guerras fratricidas, através da enxurrada de best-sellers que, de uma forma ou de outra, nos atualizou a respeito da tragédia permanente que tem sido o cotidiano do povo afegão, nos últimos 50 anos. Apenas para citar alguns desses best-sellers, selecionei os títulos que figuraram (alguns ainda figuram) nas nossas listas dos mais vendidos por semanas e meses consecutivos. Inicialmente, tivemos O livreiro de Cabul, da jornalista norueguesa Asne Seierstad, publicado originalmente em 2002, com edição brasileira de 2006. Na esteira deste livro, em 2002, veio Mulheres de Cabul, uma seleção de fotos e depoimentos sobre a vida das mulheres do Afeganistão, publicado no Brasil em 2006. Em seguida tivemos O caçador de pipas de Khaled Hosseini, que arrancou lágrimas de multidões de leitores e, mais tarde, de cinéfilos enternecidos com o drama dos dois meninos pashtun e hazara, originalmente publicado em 2003 e, aqui no Brasil em 2006. Ainda de Khaled Hosseini, A cidade do sol, publicado no mesmo ano (2007) nos Estados Unidos e no Brasil, o que comprova a popularidade do autor e do gênero literário. Desta feita o foco é concentrado na opressão que sofrem as mulheres afegãs sob o regime dos Talibans.

Mais recentemente, Atiq Rahimi, escritor franco-afegão, foi premiado com o Goncourt em 2008 pela publicação do livro Syngué Sabour, lançado no Brasil em 2009, com o subtítulo Pedra-de-paciência. Rahimi declara que “esta narrativa foi escrita em memória de N.A. (Nadia Anjuman) – a poetisa afegã barbaramente assassinada por seu marido”. Este é o terceiro livro de Rahimi editado no Brasil. Sua narradora sem nome é uma antítese da princesa Xerazade: ao narrar sua história, ao invés de conquistar o direito de viver, é assassinada pelo marido, que estivera ferido, imóvel, semimorto durante toda a sua narrativa. Tal qual um Lázaro, recobra a vida, mas “vinga-se” da mulher que o mantivera limpo e alimentado através de seus cuidados por longos dias, cujo pecado maior fora submetê-lo a ouvir sua história pessoal; ele que nunca se dignara a escutá-la, ouve um relato que a condena irremediavelmente, pelo que contém de verdadeiro e subversivo. Os dois primeiros livros de Rahimi aqui publicados são Terra e cinzas (2002), As mil casas do sonho e do terror (2003).

Podemos observar através desta pequena amostra o quanto as questões referentes ao Afeganistão passaram a figurar de forma proeminente no mercado editorial ocidental.

Last, but not least, um último livro (objeto deste estudo) A voz secreta das mulheres afegãs: o suicídio e o canto, do poeta afegão Sayd Bahodine Majrouh, que nos chega através da tradução inspirada da poetisa portuguesa Ana Hatherly. Foi originalmente publicado em francês em 1994 pela Gallimard e, em 2005, pela Editora Cavalo de Ferro de Lisboa. Bahodine coletou os poemas, nos vales pashtun, acompanhado pela sua irmã, conforme revelou a uma numerosa e ao mesmo tempo amistosa audiência, da qual fazia parte André Velter (2005, p.76). Alguns destes poemas estão incluídos no pequeno volume de apenas 88 páginas, para a qual Bahodine também escreveu a introdução e os capítulos de apresentação às quatro partes que compõem este formoso livro.

Graduado em Universidades européias, ao voltar para seu país, ocupou vários cargos e funções: professor universitário, chefe de departamento, governador de província, embaixador, dentre outros. Era particularmente ligado na “violência da vida, nas dívidas de honra, nas vendettas e no calvário das mulheres” (VELTER, ibid). Pouco tempo após esse encontro de amigos, aos quais Bahodine apresentou os landays, deu-se o golpe de estado comunista que forçou-o a se exilar em Peshawar, no Paquistão, onde foi assassinado, em 11 de fevereiro de 1988. Nas palavras emocionadas de Velter, Bahodine

“Morreu por ter falado abertamente. Morreu sobretudo por ter escutado e ter emprestado a sua voz aos sem-voz. Majrouh não se assemelhava em nada a um intelectual do antigo regime. Mais propenso a escutar as narrativas e os cantos de um nómada, de um pastor de uma camponesa, de um louco de Deus, que as perorações de um ministro ou de um teólogo, aplicava a sua erudição sem preconceito ao questionamento tácito da suaprópria tradição” (ibid, p.81)

 

Landay significa literalmente “o breve”. Um landay, Bahodine nos explica, (ibid, p. 12) é exatamente isso: um poema curto de dois versos livres de nove e treze sílabas, sem rimas, mas com escansões internas. É vocalizado de formas diferentes, dependendo da região de onde se origina e é usado para pontuar discussões, como um aforismo, um ditado.

São inseparáveis do canto e têm grande ritmo melódico. Sendo curtos, são facilmente memorizados. Fazendo parte da tradição oral, são também anônimos.

Quanto ao conteúdo, não exaltam o amor místico nem o louvor a Deus. Também não contém referências ao efebo, objeto do amor homossexual. É mais um canto de amor terrestre, suas belezas, prazeres, alegrias; celebra a natureza, seus rios, cascatas, montanhas, vales, flores, o nascer e o por do sol e também a morte, a honra, a guerra, a vergonha.

O grande diferencial desta poesia é a presença ativa da mulher, não como na poesia lírica ocidental, desempenhando o papel de musa, mas como criadora ativa, como sujeito do seu canto.

Há também os landays eruditos compostos pelos clérigos e os letrados, mas esses raramente atingem a vitalidade dos landays femininos. O que emerge destes é um rosto, um corpo feminino que se rebela e debate contra a opressão constringente. É sabido que a estrutura tribal da comunidade pashtun é particularmente dura e virilizada. Dentro deste contexto, a mulher sofre duplamente: tanto física como moralmente.

Sua carga doméstica é particularmente pesada, trabalha de manhã à noite, vai buscar água na fonte ou no rio, cuida dos filhos, cozinha, cuida dos animais, cose a roupa da família, irriga as culturas, mas não é disso que ela se queixa. Esta rotina, por sinal, não difere muito daquela de outras camponesas ao redor do planeta, como, por exemplo, da rotina daquelas que labutam no campo no nordeste brasileiro.

Porém, a sua servidão moral é que mais a maltrata. Desde o nascimento é humilhada, injuriada e rejeitada pelo fato de ser mulher. Torna-se moeda de troca entre as famílias do clã, sem jamais ser consultada sobre suas preferências. Quando casa, o marido não se digna sequer a partilhar com ela das refeições que prepara.

Os filhos homens, geralmente produto de um casamento forçado, assistem à humilhação a que é submetida a mãe e muito cedo começam também a humilha-la e agredi-la fisicamente, até. Este comportamento é uma espécie de iniciação à vida adulta. A tudo isso o pai assiste complacente. (ibid, p. 25)

É dentro deste contexto de aparente submissão e revolta permanente que os landays femininos são compostos e é isso mesmo que esta poesia retrata. Como é tolhida na sua escolha de um marido, a mulher afegã expressa nos landays seu desprezo e ódio pelo marido que lhe é imputado, invariavelmente uma criança imberbe ou um velho. Estas duas injustas opções estão bem claras nos poemas abaixo:

 

O destino deu-me por esposo uma criança que eu educo

Mas quando ele for grande e forte, eu já serei velha e fraca

 

Ó meu Deus, de novo ela está aí, a noite longa e triste

E de novo ele está aí, o meu “pirralho horrível” e dorme...

 

Dizem-me que os “horríveis pirralhos” fugiram da face da terra

O meu está bem vivo e atormenta-me sempre

 

E

 

Gente cruel que vedes um velho me levar para a sua cama

E perguntais-me porque choro e me arranco os cabelos

 

Contudo, nem toda a opressão consegue calar a “voz secreta” da mulher afegã, quem mesmo correndo riscos, revela seu desprezo e ódio pelos maridos que lhe são impostos:

 

Ó “horrível pirralho” um sono eterno!

Qualquer gatito o desperta e espia-me sem parar

 

Ó Deus, leva este velho esposo

Que à noite me vigia e de dia dorme

 

Que este rochedo me esmague com seu peso

Mas que jamais me toque a mão de um marido velho

 

A situação de permanente insatisfação e opressão gera uma atitude totalmente surpreendente: nos landays, a mulher afegã não revela qualquer tipo de culpa por tomar um amante que satisfaz seus desejos e com quem desfruta os prazeres do amor. Pelo contrário, o adultério é para ela uma compensação, uma catarse pelos sofrimentos que lhe são imputados:

 

Apressa-te, meu amor, se quiseres admirar-me

O “horrível pirralho” já prepara o barro para tapar o muro

 

Como vieste assim em plena lua cheia?

Tu, alto como um plátano, onde te esconderei?

Vem, amor, deixa-me abraçar-te

Eu sou a frágil hera que o Outono em breve levará

 

Oxalá ele seja convidado para a nossa casa

Eu lhe darei a provar a ponta dos meus lábios cor-de-rosa

 

Meu amor, vem depressa contentá-lo

O alazão do meu coração rompeu todos os freios.

 

O meu amante é um colar ao meu pescoço

Posso andar nua, mas sem colar, nunca!

 

Ó Deus, então é pecado?

Criaste o jardim deste mundo e eu colhi a flor de que mais gostei

 

Após a invasão soviética e, posteriormente, com a instalação do regime fundamentalista islâmico, grande parte da população afegã teve de se exilar, dentre estes, o próprio Bahodine. A experiência cruel do exílio e da guerra passa então a figurar como tema dos landays:

 

Ó grande Deus dos exilados

Quanto durará a vida nestas planícies áridas?

 

Pelo meu rosto rolam lágrimas

Não posso esquecer as montanhas de Kabul com seus cimos nevados

 

Tenho na mão uma flor que murcha

Não sei a quem a dar nesta terra estrangeira

 

Ó Deus, não deixes morrer uma mulher no exílio!

Com o derradeiro sopro poderá esquecer o teu nome mas a sua terra natal, não

 

Contudo, mesmo em meio às agruras do exílio, as inquietações amorosas não cessam:

 

Pus-me bonita com os meus vestidos usados

Como um jardim florido numa aldeia em ruínas

 

O meu amante é hindu e eu maometana

Em nome do amor, varro os degraus do templo interdito

 

Pulseiras nos meus braços, um colar no pescoço

Parto com o meu bem-amado, regressamos à nossa terra.

 

É interessante observar que imagens eternas da poesia ocidental também podem ser ecoadas pelos landays das mulheres afegãs. Refiro-me aqui à inquietação dos amantes diante das vozes dos pássaros que anunciam a manhã, que chega para separá-los. Leitores de Shakespeare não deixarão de evocar a famosa cena de Romeu e Julieta que faz alusão ao rouxinol e à cotovia. Não desejo aqui sugerir qualquer influência do poeta inglês sobre as poetisas afegãs, apenas sublinhar a universalidade de alguns temas poéticos:

 

Já o galo canta a alba

Quando havia ainda tanto para dizer, tantos desejos a saciar

 

Ó galo maldito, queria degolar-te!

Se não tivesses cantado, o meu amante estaria ainda nos meus braços

 

Além desses temas existe anda a preocupação com a morte iminente, com a perda do amado ou do filho em combate, mas pairando acima da dor por essas perdas, está a preocupação com o heroísmo e com a honra:

 

Que poderás tu fazer senão bater-te?

Submisso não serias mais que escravo de um escravo

 

Um mártir é como um relâmpago que brilha e depois se extingue

O que morre em casa só estraga as camas

 

Para ti, a poeira, mas nunca mais a minha boca:

Escondeste-te quando os homens partiram para o combate

 

Vai combater a Kabul meu amor

Para ti guardarei intactos o meu corpo e a minha boca

 

Filho, se desertares da nossa guerra

Eu amaldiçoarei até o leite dos meus peitos

 

Os heróis permanecem vivos

Só os traidores perecem para sempre

 

Para ti, a minha boca inteira

Só a darei ao guerreiro vencedor!

 

E este poema hamletiano:

 

Se a hora não chegou, a morte não virá.

Mesmo que o mundo arda, amor, não tenhas medo

 

Através destes poemas podemos então discernir as atitudes das mulheres afegãs de ontem e de hoje perante os dramas eternos que afligem o seu gênero e, também, o seu povo através dos tempos. Nisto, estes poemas não são muito diferentes daqueles sobre os quais se debruça Ria Lemaire (1990. pp13-26), no seu ensaio intitulado “A canção de Malmaridada”, no qual ela analisa a representação do casamento na poesia popular (grifo da autora), ao mesmo tempo em que demonstra como se desenvolveram os novos códigos de comportamento amoroso entre homens e mulheres, através dos séculos, e consequentemente, as relações de poder entre os sexos, no decorrer dos séculos, na Europa, até a chegada do casamento moderno monogâmico a partir do século XI. Antes disso, diz a autora, “vários tipos de casamento coexistiram no mundo indo-europeu” (p.15).

“O tema da canção da malmaridada é o da infelicidade da mulher malcasada e das emoções provocadas por essa situação triste.” (p.16) Ria Lemaire distingue 4 tipos de cantigas:

1. as cantigas cantadas pelas próprias malcasadas, predominantemente líricas;

2. as canções cantadas por homens: predominantemente narrativas;

3. canções religiosas;

4. cantigas de ninar.

 

Este gênero literário, ainda segundo Ria, que pode ser encontrado desde os primeiros manuscritos medievais, desapareceu com o fim da Idade Média e só sobreviveu na tradição oral.

Para efeito de comparação com os landays afegãos ressaltaremos apenas o primeiro tipo dessas canções medievais. “a malmaridada anônima cantada por mulheres”.

Predominantemente lírica, cantada por voz solo dialogando com um coro de mulheres. São canções de dança, compostas originalmente por mulheres, para serem cantadas para e com outras mulheres. Nessas canções há três actantes:

1. o marido ruim, feio, velho, ciumento, que maltrata a mulher

2. a mulher, geralmente mais jovem

3. o namorado/amante escolhido com o qual ela sonha.

 

O comportamento da malmaridada expresso nas canções do primeiro tipo é sempre assim: se você for malmaridada, não fique em casa chorando, revolte-se contra o marido ruim. Fale, cante com as outras mulheres, vá ao ar livre, escolha um amante e seja ativa, como ele, no amor. (p.18)

Nos exemplos que se seguem, podemos constatar a semelhança de atitude entre as malmaridadas e as afegãs, ambas vítimas de casamentos desiguais, forçados e sem amor:

 

1. I hope God will not give me the desire

To love my husband

As long as I have a lover

As I have chosen him

Gallant, brave and handsome

Sociable, courteous and wise

But my husband enrages

Knowing his damage

And he wants to know

To whom I have promised my love

I have answered:

You villain, with your foolish face

You will not know today

Whose lover I am.

 

2. That’s how a married woman must go to her lover

That’s how a handsome married woman goes to her friend

 

3. It’s very annoying, my dear sister

When the jealous husband assaults me in bed

Then I would prefer to be outside

In the meadow, the wood or the forest

With the man who always

Served me and loved me.

 

1. Espero que Deus não me dê o desejo

De amar meu marido

Enquanto eu tiver um amante

Que eu escolhi

Galante, corajoso e belo

Sociável, cortês e sábio

Mas meu marido se enfurece

Sabendo de suas perdas

E ele quer saber

A quem eu prometi meu amor

Eu respondi

Seu vilão, com sua cara boba

Você não ficará sabendo hoje

De quem sou amante.

 

2. É assim que uma mulher casada deve se encontrar com seu amante

É assim que uma bela mulher casada vai se encontrar com seu amigo

 

3. É muito aborrecido, minha querida irmã

Quando o marido ciumento me assedia na cama

 

Então eu preferiria sair

Para os prados, bosques ou para a floresta

 

Com o homem que sempre

Me serviu e amou.

 

Embora não encontremos nesses poemas o mesmo tom trágico, nem a urgência presente nos landays, há alguns elementos como a impaciência e o desprezo pelo marido (ciumento e tolo) e a mesma preferência pelo amante, (sempre belo, cortês e sábio), que podem ser igualmente encontrados nas malmaridadas e nos landays.

Este breve estudo nos mostra elementos de confluência entre mulheres de tempos e regiões distantes e distintas no tempo, espaço e momento histórico, o que nos leva a concluir que a opressão sempre conduz à revolta e à subversão. Quanto maior a tirania, maior é o desejo de compensação e vingança e isto é igualmente verdadeiro em se tratando de gêneros ou de povos. No entanto, mesmo lamentando que seres humanos sejam submetidos a condições tão injustas, temos a celebrar o legado artístico que tais situações invariavelmente nos legam.

 

REFERÊNCIAS:

HOSSEINI, Khaled. A cidade do sol. Trad. Maria Helena Rouanet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

________________ . O caçador de pipas. Trad. Maria Helena Rouanet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, 2006.

LEMAIRE, Ria. “A canção de Malmaridada” in A mulher na Literatura vol II, org. Nádia Battella Gotlib, Belo Horizonte, Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais, 1990.

LOGAN, Harriet. Mulheres de Cabul. Trad. Celeste Marcondes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

MAJROUH, Sayd Bahodine. A voz secreta das mulheres afegãs: o suicídio e o canto. Versão de Ana Hatherly. Lisboa: Cavalo de Ferro, 2005.

RAHIMI, Atiq. Syngué sabour. Pedra-de-paciência. Trad. Flávia Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

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 https://www.shamsiahassani.net/




CARREIRO, José. “Landays - A voz secreta das mulheres afegãs”. Portugal, Folha de Poesia, 17-08-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/08/landays-voz-secreta-das-mulheres-afegas.html