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quarta-feira, 5 de julho de 2023

Jovens à porta do Chiado, Gastão Cruz

Moby&The Void Pacific Choir – Are You Lost In The World Like Me

 

JOVENS À PORTA DO CHIADO

Veem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço

O seu mundo está preso àquele fio
de presente irreal que não explica
o facto de ser a pele a pele ainda

Tudo fica no raio do olhar
brevemente fictício a vida reduzindo
ao enredo menor das chamas perdidas

das mensagens que vindas ou não vindas
fazem tremer do dia o edifício
Disso vivem fingindo que se veem

a si somente enquanto o mundo escorre
com a rapidez do dia para o poço

 

Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010

 

Muitos livros de Gastão Cruz (1941-2022) têm como título uma só palavra, ou, quando não, duas palavras (o artigo e o nome). Hematoma (1961), Escassez (1967), Campânula (1978), O Pianista (1984), Crateras (2000), Fogo (2013), Óxido (2015), Existência (2017). A palavra nuclear que, do título aos poemas de um livro, faça irradiar a mensagem, essa uma das linhas da obra deste enorme poeta. Em 2010, Escarpas convidava-nos a lermos o tempo e o seu sentido ou a ausência de sentido no tempo. Nas suas cinco secções, na melodia dos ritmos e no trabalho rigoroso da frase, escrevendo-se sobre pianistas (Emil Gilels, Richter, Horowitz), pintura (Holbein), cinema (W. Allen), sobre o amor e o desencontro, o corpo e o desencanto, é da vida que a poesia sempre fala. Gastão Cruz, como nenhum outro poeta, leu a nossa época e, atualíssimo, sintetizou em versos impressionantes: "A perda real é a perda do sentido/Só se perde o sentido do que não/ foi nunca real senão quando perdido." Em tempo de preparação do verão, que se leia este poeta.

António Carlos Cortez, sinopse do livro Escarpas. In: Diário de Notícias, 02-07-2023. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/appetite-for-destruction-a-geracao-mais-bem-preparada-de-sempre-2-parte-16623307.html

 

Linhas de leitura

“Jovens à porta do Chiado”, de Gastão Cruz, é um poema que retrata a alienação dos jovens com o mundo digital.

  • Os jovens estão constantemente conectados ao telemóvel, vendo-se refletidos nele como se estivessem diante de um espelho.
  • Eles estão imersos num ambiente superficial, representado pelo "lodo morno dum profundo poço".
  • O seu mundo é limitado e dependente dessa conexão virtual, que não explica a verdadeira experiência da interação física.
  • Tudo o que lhes importa é o que está ao alcance dos seus olhos, reduzindo a vida a uma realidade momentaneamente fictícia, limitando-a ao enredo trivial das chamas perdidas.
  • Esses jovens dependem das mensagens, mesmo que não cheguem, para manterem a ilusão de estarem a viver.
  • Eles fingem que se veem e se conhecem, mas a verdade é que estão isolados na sua própria superficialidade, enquanto o mundo ao seu redor escorre rapidamente, como o tempo que passa, para o poço da insignificância.

 

Poderá também gostar de:

Opinião

Appetite for destruction: a "geração mais bem preparada de sempre" (2.ª parte)

Veem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço
Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010, p. 39

 

Acrescento mais alguns argumentos ao artigo de 8 de junho aqui publicado. As críticas que tenho feito ao digital na escola e na universidade têm tido algum eco junto de professores e outros agentes educativos. Mas não era previsível a alienação, a ignorância, a incuriosidade dos "nativos digitais" quanto aos mais diversos saberes, uma vez imersos no mundo digital? Todos vemos que nada leem e pouco sabem, porque se tudo o que importa está "à distância de um clique", tudo o que exija esforço lhes é odioso. Jamais o "como" e o "para quê" das aprendizagens é questionado pelos estudantes. Decorar sem saber, dizer umas quantas coisas politicamente corretas, isso basta para garantir classificações acima do 16. Os professores, salvo raríssimas exceções, estão reféns desta lógica alienante. Todavia, ouve-se dizer que "esta é a geração mais bem preparada de sempre". Uma mentira soez. Propaganda pura. Estamos confrontados com um problema que Heidegger enunciou há décadas: a ausência de linguagem. "Débito e crédito", eis a novilíngua. O poeta António Ramos Rosa, nos anos 60, denunciava no Poema dum funcionário cansado o terror de vivermos num quotidiano que esmaga a imaginação e a curiosidade, tudo vendo sob a ótica do lucro imediato.

Os exames nacionais provam as consequências desta lógica alienante. A geração mais bem preparada de sempre é filha deste sistema, errado, assassino e corruptor. Os exames de Português e de Matemática relacionam-se, claro, porque revelam: 1.º não há como avaliar a expressão escrita e a análise do texto literário de forma séria e rigorosa, porquanto isso equivaleria a formular questões de natureza hermenêutica a que nenhum aluno sabe hoje responder com propriedade. Nas aulas de Português quase nunca leem ensaio e crítica, impera ainda o impressionismo como "método" de compreensão de um texto literário. Daí os verdadeiro-falso e as cruzinhas e a escolha múltipla, isto numa disciplina que já foi a base do ler e do escrever; 2.º as dificuldades do exame de Matemática devem-se à incompreensão dos enunciados. Linguagem, uma vez mais. É que "a geração mais bem preparada de sempre" à saída do 12.º ano pouco sabe ou mesmo nada. Redige uns quantos lugares-comuns sobre as obras do currículo, que não leu. Em Matemática, se não sabem o sentido dos verbos ou se se crê que armadilhar um exame é ser exigente, como não terão dificuldades? Que educação é esta?

A Suécia proibiu o uso de tablets e de quaisquer suportes multimediáticos na escola, investindo 60 milhões de euros em livros e manuais; nós por cá insistimos nos tablets e demais parafernália tecnológica. Somos um país progressista, pois claro. Somos modernos, pois então! Manuel Cruz, filósofo espanhol, escreveu em 2016, em Ser Sin Tiempo (ed. Herder, Barcelona), que a nossa época, desmaterializada, se caracteriza pela instantaneidade, pelo impensado. Tudo - das escolas às empresas, dos programas de televisão aos programas políticos - obedece à lógica do "não há tempo a perder, porque não há tempo". A geração "mais bem preparada de sempre" nunca será filha de Voltaire: "Na educação, a questão não é ganhar tempo, mas perdê-lo." Do TikTok às redes sociais, dos ecrãs à infantilização das aprendizagens, os nossos estudantes são desmemoriados e insensíveis. Viverão "cantando e rindo", olhando-se nos telemóveis como num espelho. No "profundo poço" de uma existência morna, serão incapazes de lidar com o "não", porque tudo foi "sim" nas suas vidas. Mais violentos e inconscientes, o pragmatismo destes "nativos digitais" é sinónimo de individualismo - o totalitarismo egóico. É o Portugal futuro? É o Portugal presente.

Gastão Cruz, pela mão da poesia, viu-os às portas do Chiado. A geração mais bem preparada de sempre não lerá poesia. Lerá simulacros. A sua música é a da pornografia. A imaginação, a beleza, o estranho da arte e das disciplinas que exigem escrita e leitura confronta-os com o que ignoram. Não gostam. Na escola da felicidade - onde todos são educados para serem "todos iguais" e geniais - o apetite pela destruição é a única linguagem com que dizem um mundo escarpado.

António Carlos Cortez, Diário de Notícias, 02-07-2023. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/appetite-for-destruction-a-geracao-mais-bem-preparada-de-sempre-2-parte-16623307.html




 ARE YOU LOST IN THE WORLD LIKE ME


Look harder, say it’s done
Black days and a dying sun
Dream a dream of god lit air
Just for a minute you’ll find me there
Look harder and you’ll find
The 40 ways it leaves us blind
I need a better place
To burn beside the lights

Come on and let me try

Are you lost in the world like me?
If the systems have failed?
Are you free?
All the things, all the loss
Can you see?
Are you lost in the world like me?
Like me?

Burn a courtyard, say it’s done
Throwing knives at a dying sun
A source of love in the god lit air
Just for a minute, you’ll find me there

Look harder and you’ll find
The 40 ways it leaves us blind
I need a better way
To burn beside the lights

Come on and let me try

Are you lost in the world like me?
If the systems have failed?
Are you free?
All the things, all the loss
Can you see?
Are you lost in the world like me?
Like me? [x2]

 

Moby & The Void Pacific Choir



sábado, 14 de dezembro de 2019

Eduardo Prado Coelho: Crónicas, política e cultura


ALGUÉM MOVE O MAR
Sentado em frente do mar, levanto os olhos para continuar a ler. As palavras rompem como palavras de água. O mundo faz-se gota a gota, no infinito de um oceano em que os barcos traçam caminhos, sulcos, traços marítimos e inscrições de alto mar. Estranha emoção a de ficar transparente às palavras que parece que reforçam a minha transparência. Toda a leitura nos faz crianças, e nos constrói na energia da areia.
Como lemos? À noite, no quarto em que as velas se acendem e nós abrimos a arca dos segredos. Sobre as dunas, inundados de sol. Nas longas tardes em que nas praias nos convidavam ao calor da sesta. Junto às árvores, encostados ao saber murmurado da terra. Em cartas que se trocavam entre mim e ti, formas telegráficas de repercutir o amor no silêncio dos corpos.
Comprar um livro era (e continua a ser) para mim uma deambulação por estantes e corredores. Descobrir aquilo que se chama «as novidades» passava por algo que lentamente se tornou uma arte e uma ciência avermelhada de todos os apelos. E sempre houve um bater do coração, um mergulho nas águas perante um livro novo. Comprá-lo, apagar-lhe o preço, levá-lo sofregamente para casa, arrumá-lo provisoriamente na mesa de cabeceira, folheá-lo encostando-o à insónia e ao sono, deixar que a areia se espalhe pelas suas páginas, tudo isto são gestos de um cerimonial que se repete mil vezes ao longo das nossas vidas. Da nossa língua vê-se o mar, escreveu um dia Vergílio Ferreira, alguém para quem a vertical do sol sobre o corpo leitor na areia foi sempre uma experiência de deslumbramento. Porquê abrir a janela de tantos textos que depois se fecham como todas as janelas? Porque todas as janelas se inscrevem no trabalho dos pintores. E para quê a areia que nos envolve? Para nos trazer a música dos barcos cantantes sem a qual não existe a literatura.
Na grande experiência da literatura podemos sublinhar três aspetos. Por um lado, não há escrita que não tenha a sua música, o seu fluxo de água incendiada, a sua corrente de escrita. Alguma da literatura que hoje se escreve opera no esquecimento deliberado deste princípio. É ele que faz que a interioridade de um texto seja ao mesmo tempo uma abertura para um exterior. mais do que uma relação com o não-texto, mais também do que uma janela junto ao mar, uma porta. Um dia Fiama Hasse Pais Brandão escreveu «O texto de Joan Zorro»: «Levando ao limite, homenagem, o gesto da escrita, posso atribuir os meus textos / a Joan Zorro. Existimos sobre o anterior. O movimento da escrita e da leitura / exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra / e da maior mutabilidade da grafia. O progresso dos textos / é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente».
Em segundo lugar, há uma relação da arte com o pensamento que vai além do tema do pensamento. Como escreveu um dos grandes poetas do século XX, Wallace Stevens: «A cor como um pensamento que cresce». Ou, se preferirem: a palavra como um pensamento que cresce. Quando dizemos «um pensamento», não estamos a falar em ideias, mas sim numa realidade sempre inesperada em que se vai até ao caos para criar o cosmos e o percurso exige uma reflexão obstinada: pensa-se em imagens, e essa é uma das grandes evoluções do nosso tempo da modernidade (daí a crise da teoria literária na sua forma tradicional), tal como se pensa em sons ou grafismos, ou sinais, ou gestos.
Num dos mais famosos fragmentos deste poema, «O homem da viola azul», escreve Wallace Stevens: «A poesia é o assunto do poema / Disto o poema surge e / A isto regressa. Entre os dois. / Entre surgir e regressar, há / uma ausência na realidade, / As coisas como são. Ou assim dizemos. / Mas são estas distintas? É / Uma ausência para o poema, que adquire / aí as suas verdadeiras aparências, o sol é verde / A nuvem é vermelha, a terra sentimento, o céu que pensa? Destes ele retira. Talvez dê. / Na permuta universal.»
Em terceiro lugar, a leitura é sempre uma experiência mágica, se for uma composição das palavras que crescem, daquelas que nos chegam do mar e a ele regressam. Ler, seja qual for a idade em que lemos, está ligado à infância. Esse extraordinário leitor, e também escritor, que é Alberto Manguel, propôs uma distinção: «Falas como um livro impresso, dizem eles. Que quer isto dizer? Trata-se de duas visões opostas da linguagem como instrumento de comunicação. Sabemos que a linguagem pode permitir ao falante permanecer à superfície da reflexão, pronunciando slogans dogmáticos e lugares comuns a preto e branco, transmitindo mensagens mais do que sentido, colocando o peso epistemológico sobre o auditor (como em 'estás ver o que eu quero dizer?'). Ou então pode-se tentar recriar uma experiência, dar forma a uma ideia e explorar em profundidade e não apenas à superfície a intuição de uma revelação». Se a diferença instituída por Alberto Manguel se revela inteiramente pertinente, há nela o excesso de um esquema de texto em que o conteúdo vai ao encontro da sua revelação, e talvez a palavra «comunicação» possa ser algo redutora. Falar em «dar uma forma a uma ideia» vai no sentido de uma literatura em que as ideias pré-existem às formas. Ora, em literatura, as ideias e as formas confundem-se numa matéria indefinível, num oceano sem nome, se há comunicação, é a comunicação desse momento em que a realidade passa por uma ausência que a torna real e faz que, numa evidência sem reserva, as coisas sejam apenas uma presença solar esplendorosa, aquilo que desde sempre são e que continuarão a ser, num país sem limites.
Existem sempre momentos que justificam todo o trabalho da escrita, toda a magia da leitura, toda a conjura das palavras. Encontros como o das «Correntes de Escrita» fazem parte de experiências desse tipo. Que regularmente um certo número de pessoas, empenhadas, envolvidas no enigma das palavras, venham até junto do mar para falarem, em momentos de gravidade e outros de sentido meramente lúdico, da literatura, corresponde a uma atitude de resistência que merece ser celebrada.
Porque é preciso resistir. Há algo de ingénuo, de militantismo romântico, de uma mistura insensata, nestas formas de associar a política e a arte, a transformação do mundo e os textos literários. Sobretudo (e voltamos aqui às categorias de Manguel) se não se trata de mensagens enviadas por instâncias políticas instituídas, mas de sons, ritmos, sentido nómada, música infinita.
Assistimos hoje a novas modalidades das práticas literárias. Na escola predomina um sentido sociológico dos textos, em que uma tipologia neutra situa a literatura entre textos científicos, jurídicos, publicitários, religiosos ou filosóficos. Não é que não haja um saber que se transporta e sustenta romances, peças de teatro ou poesia. É a dimensão de «mathesis» de que falava Roland Barthes. Mas este plano é apenas um suporte que preenche de conteúdos as palavras. Precisamos, em primeiro lugar, de afirmar e analisar a especificidade da literatura, embora haja perfeita consciência de que cada tipo de textos tem as suas marcas e mecanismos próprios. Mas devemos ir mais longe e mostrar que um texto linguístico não é apenas uma construção circunscrita de palavras, mas o lugar onde a linguagem se transforma no infinito de si própria: o oceano em que a leitura nos mergulha.
É verdade que este processo tem a sua lógica: ele conduz-nos a uma dessacralização da literatura que faz parte do movimento antirromântico que hoje nos domina. Queremos que a literatura recuse todas as formas de sublime, desviando-a do lugar de Deus. Queremos que a literatura desça à terra e se converta em caminhos pedregosos. Queremos que a literatura seja muito pouco poesia e quase prosa. Traçamos paisagens, contamos histórias, mas rejeitamos essa forma de utopia verbal que se abre no jogo vertiginoso das metáforas. É a metonímia que leva a melhor e vence o prélio que aceitamos jogar. O texto encosta-se a uma realidade que mantém o seu estatuto de construção social.
Aquilo que hoje se verifica nas escolas é a extrema dificuldade dos alunos chegarem à prática da leitura. Daí que quando entram na universidade encontremos uma queixa recorrente da parte dos professores: os alunos não sabem ler, não gostam de o fazer, não são capazes de inventar o sentido de uma frase, não a entendem, não sabem argumentar e acima de tudo não veem a frase como uma realidade significante, isto é, como uma matéria em que os sons, as cadências, a musicalidade produzem sentido e essa perspetiva estética que é o sentido do sentido.
Sejamos claros: não é possível ignorar que passámos da era simbólica para uma era predominantemente pragmática dos usos da linguagem. E falta pouco para a própria sociedade entrar num período pós-simbólico.
Houve um tempo (e pertenci ainda a esse tempo de deslumbramento) em que a literatura estava no centro de todas artes e a teoria literária dominava a reflexão de tipo semiótico. A literatura estava no centro do foco de energia interpretativa. Hoje as interpretações interpenetram-se, dialogam entre si e não existe propriamente um centro. Verificamos que a música ou o vídeo, o cinema ou as performances, as artes do corpo ou a land art, o teatro ou a dança, todas estas artes desenvolvem urna permutabilidade generalizada. Ao mesmo tempo, a teoria literária deixou de ser evidente e os estudos literários são hoje dominados pela pragmática da linguagem, a antropologia das formas semióticas, ou os estudos culturais (e aqui pelo feminismo, os estudos queer ou os trabalhos pós-coloniais, a sociologia, o estudo das marcas multiculturais ou as artes como relações de força). Isto desenvolve análises ideológicas em que o peso da política (vista numa perspetiva em que predomina a abstração) é considerável. E talvez pudéssemos arriscar que passámos do tema da linguagem para o tema do corpo, funcionando ambos como placas giratórias.
E há assim uma hierarquia de formas de aprendizagem da literacia: aprender a escrever mensagens no telemóvel, utilizando símbolos, abreviaturas e símbolos gráficos, tem aspetos significativos, mas não tão importantes como aprender a ver a televisão, a olhar a sério para um filme, a ouvir música erudita ou a utilizar a Internet. Aliás, a Internet é o grande armazenamento de informações e saber do nosso tempo, permitindo formas de escrita, correspondência cursiva, encontros e diálogos, práticas amorosas ou eróticas. Há hoje uma teoria do cibertexto. Como escreve um dos autores clássicos nesta matéria, Espen Aarsett*, «uma das principais conclusões do cibertexto é que as variações funcionais dentro de uma tecnologia de comunicação material são muitas vezes maiores do que entre os media físicos diferentes. Para os estudiosos dos media digitais, isto significa que há muito pouco a pressupor quanto ao medium só pelo facto de ele ser digital. Nesta perspetiva, as diferenças materiais dos media digitais (entre tipos de computador, resolução de ecrã, desenho ergonómico) são menos significativas do que as diferenças imateriais: como o sistema é programado e o que o programa faz na realidade».
Podemos assumir uma visão apocalíptica, podemos também aderir em termos de entusiasmo algo ingénuo. Não podemos é deixar de tomar consciência de todas as transformações que alteram o mundo do leitor e deslocam todas as realidades da comunicação e da produção de sentido.
Como recuperar o que foi a nossa literatura? De certo modo, ela continua a ser o que foi, o que se comprova neste encontro. Importante é utilizarmos as novas tecnologias da comunicação para dar força àquilo que foi a experiência da literatura como momento romântico. Sentado em frente do mar, estou dos dois lados do oceano: por um lado, sinto-me leitor, por outro sou o escritor que lê antes de escrever o que eu próprio escrevo. Sou, és, ele é, alguém que move o mar – o mar sempre recomeçado.

Crónicas, política e cultura / Eduardo Prado Coelho ; org. e nota introd. Margarida Lages. - 1ª ed. - Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2019. - 156, [2] p. ; 21 cm. - (Biblioteca Eduardo Prado Coelho). - ISBN 978-972-27-2753-2




DE CORPO PERDIDO

1. Regressando ao tema da leitura, gostaria de propor uma tese um pouco provocatória: mais do que ensinar a ler bem, ou ensinar a ler muito, o que é preciso é fazer que se desenvolvam e multipliquem os rituais de leitura. Por definição, estes rituais são inventados por cada sujeito à sua maneira. Não se trata de imitar, o que não faria sentido, mas de procurar que cada um sinta necessidade deles. E, neste plano, o que se pode transmitir são sobretudo exemplos.
Vou tentar explicar melhor. Para mim, ler não é só sentar-me, abrir um livro e juntar as letras até fazer sentido. Há muita coisa antes que é preciso contar. Há, por exemplo, a procura do livro. Várias hipóteses a considerar. Há um dia em que a gente acorda com vontade de ler Ernst Jünger. Nunca leu antes, não calhou, mas uma referência no jornal, uma alusão numa conferência e, pronto, sentimos que o mundo está incompleto se não tivermos, se possível, já nessa mesma noite, um livro de Jünger. Então saímos de casa, ao arrepio da mais elementar sensatez, desmarcando compromissos, defrontando a intempérie, calcorreando ruas, mas vamos impacientemente à procura do livro que se tornou imperioso e urgente. Pode acontecer que o encontremos, que acabemos por trazê-lo para casa, e, depois, por mero acaso, vamos dar connosco a ler uma novela antiga de Rodrigues Miguéis em que um homem sorri à vida com meia cara2. Mas isso já não importa. Foi importante o capricho. E que ninguém nos diga em tom de censura que foi um capricho.
Outra hipótese: quando, porque o chefe foi antipático no escritório, porque não tivemos a promoção que julgávamos merecer, sentimos de repente o desejo enorme de comprar um livro que desconhecemos por inteiro. É, como se tivéssemos um encontro marcado. Algures, numa livraria, por entre centenas de nomes conhecidos e já fatigados pela nossa memória, sabemos que existe necessariamente um poeta que nos espera e de que nós nada mais sabemos se não isto mesmo. Pode ser Gabriela Mistral3, Ovídio4, Stephen Spender5 ou Emily Dickinson6. Nada mais exaltante do que o alvoroço com que saímos do emprego, entramos esbaforidos na livraria, olhamos as estantes com ansiedade, começamos a folhear livros, a recolher versos desgarrados, palavras soltas, fragmentos de textos, na esperança inquebrantável de que, de súbito, iremos descobrir uma poesia que nos vai parecer decisiva, essencial, determinante no curso da nossa existência. Alguns leitores, mais perversos ou prudentes, criam mesmo o hábito de deixar certos autores de reserva, ou o romance de um autor de que se gosta muito, de modo a que se tenha quase a certeza (nunca se tem a certeza absoluta) de que um dia se irá ler um livro com imenso prazer. Isto, aliás, tem a ver com algo que, conforme as circunstâncias foram mais ou menos favoráveis, procurei promover intransigentemente: a ideia da biblioteca como «seguro de vida». Explico melhor, por motivos que não estou em condições de desfiar sensatamente, sempre entendi que a «minha» biblioteca só seria uma realidade tranquilizante se obedecesse à regra muito simples de conter sempre tantos livros quantos os livros que nela já li. Com isto fui conseguindo chegar àquele ponto já delirante em que, se por um fatídico acaso, deixasse hoje mesmo de poder comprar mais livros, tenho livros suficientes para ler — e reler — que dão para duas ou três vidas. Esta ideia dá-me uma paz dos sentidos e da alma que apenas pode encontrar comparação em algumas composições de Monteverdi7 ou Mozart.
Digamos as coisas de outra maneira: era necessário que a biblioteca que se foi tornando minha estabelecesse uma relação com algo que está para além do tempo da vida, como se ela se inclinasse silenciosamente para o momento em que a morte do mundo que toda a leitura é se convertesse numa imagem feliz da minha própria morte. Para isso era preciso que, ao olhar os livros que desafiadoramente me esperam, eu soubesse que entre eles há alguns que jamais chegarei a ler.
2. Temo que o leitor, ao atingir este delicado ponto da crónica que nesta semana lhe proponho, comece a colocar seriamente a questão de saber se o cronista terá definitivamente enlouquecido. Talvez. Mas o meu propósito não era enviar noticias da minha atual saúde mental. Era explicar que ler, no verdadeiro sentido do termo, na aceção apaixonada que temos de lhe dar, só pode ser uma atividade desmedida, insensata e irracional, feita de rituais. cerimónias íntimas, gestos destinados, cumplicidades incendiárias.
3. Um grande escritor francês, Pascal Quignard8, infelizmente pouco divulgado entre o público português, escreveu uma sequência de Petits traités9 que Maeght editou. No primeiro volume. o quinto tratado chama-se «Taciturio», e o sexto, «Página». Constituem dois dos mais belos textos que se podem encontrar sobre a leitura. Digamos que todos os professores que ensinam a ler deviam ensinar os pequenos gestos de loucura mansa que a leitura implica, e a disciplina mental que nos impõem os referidos tratados de Pascal Quignard. Uma verdadeira pedagogia teria de ser assim mesmo: alucinada.
Alucinada, repito. E inscrevo a palavra no sentido da luz que a atravessa. Porque toda a leitura implica uma concentração de luz, e a noite em redor. A noite ou o esquecimento, tanto faz. Quignard desenvolve, num outro livro precisamente intitulado Le Lecteur10, a ideia de que o leitor é aquele que desaparece servido pelo ato de ler. Na expressão de Quignard lê-se de corpo perdido — exatamente como se pode fazer uma coisa «de cabeça perdida». […]

Crónicas, política e cultura / Eduardo Prado Coelho ; org. e nota introd. Margarida Lages. - 1ª ed. - Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2019. - 156, [2] p. ; 21 cm. - (Biblioteca Eduardo Prado Coelho). - ISBN 978-972-27-2753-2
_________
1 Arsett (1965), investigador norueguês, especialista no estudo de videogames e literatura eletrónica. Dirige o Center for Computer Games Research, na Universidade de Copenhaga.
2 Referência ao livro de José Rodrigues Miguéis, Um homem sorri à morte com meia cara, Lisboa, Estampa, 1989. Este livro, de cariz autobiográfico, alude à estada de Miguéis nos Estados Unidos, quando sofre um problema de saúde muito grave.
3 Poeta, prémio Nobel da Literatura em 1945. De seu nome Lucila de Maria del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga, foi diplomata e feminista chilena, tendo servido em Portugal.
4 Poeta romano (43 a. C, - 18 a. C.), conhecido sobretudo pelas suas obras Metamorfoses e Ars amatoria.
5 Sir Stephen Harold Spender (1909-1995). Além de poeta, foi romancista e ensaísta.
6 Uma das mais conhecidas poetisas americanas (1830-1886).
7 Claudio Giovanni Antonio Monteverdi (1567-1643) foi um compositor, maestro, cantor e gambista italiano.
8 Pascal Quignard (1948) é autor nomeadamente de Todas as manhãs do mundo, Vila Amália e Terraço em Roma.
9 A obra foi iniciada em 1977 e terminada em 1980. Recusada por inúmeros editores, apenas foi publicada em 1991. É composta por 8 volumes.
10 Editada pela Gallimard em 1976.

CRÓNICAS - POLÍTICA E CULTURA
Nota introdutória de Margarida Lages
Neste conjunto que agora se apresenta, estão reunidos alguns dos textos que demonstram a importância de pensar a cultura, e de como esta problemática atravessou praticamente toda a escrita de Eduardo Prado Coelho. São 33, mas poderiam ser muitos mais.
Ao longo do percurso de leitura que é proposto, não necessariamente cronológico, evidencia-se a noção de que para Eduardo Prado Coelho a cultura é um direito fundamental da vida humana, desenvolvendo e potenciando a possibilidade da informação, como motor da liberdade de escolha.
Ler hoje os textos de Eduardo Prado Coelho torna-se uma obrigação para pensar a política cultural, para entender que só se pode intervir numa realidade que se conhece.

* * *

CRÓNICAS - POLÍTICA E CULTURA
Prefácio de António Mega Ferreira

Se tivesse vivido na primeira metade do século passado, ou mesmo no final do século XIX, Eduardo Prado Coelho teria passado à posteridade como jornalista, tão contínua foi a sua presença nas páginas das principais publicações periódicas portuguesas ao longo da sua vida adulta. De facto, durante quatro décadas, de finais dos anos 1960, quando veio agitar as águas paradas da crítica periódica de cinema nas páginas do Diário de Lisboa, até aos seus últimos dias de vida, com assinatura diária no Público, o Eduardo nunca deixou de escrever para os jornais, fazendo-o com um delicado equilíbrio entre a intervenção político-cultural, sempre acutilante, e a crónica literária, sempre estimulante. Tornou-se, por isso, o intelectual português procedente do meio académico com mais frequente e descomplexada participação no espaço público, fazendo-o através de uma produção incessante destinada a ser veiculada através da imprensa escrita. E, seguramente, um dos de mais clara visibilidade mediática, ainda que a televisão nunca tenha sido o seu meio de comunicação preferido. Foi, além disso, professor universitário, responsável cultural da diplomacia portuguesa em França, escritor de diversa produção, conversador envolvente e cidadão envolvido na discussão da coisa pública, nas suas vertentes cultural e política. Os textos que aqui se reúnem são uma pequeníssima parte da sua produção, 33 entre centenas, cobrindo um período de tempo de duas décadas, a partir do início dos anos 1990.
António Mega Ferreira, no «Prefácio», que antecede Crónicas - Política e Cultura, de Eduardo Prado Coelho.


PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:


Eduardo Prado Coelho in memoriam, coord. Fátima Ramos, Centro Cultural - Instituto Camões de Paris, 2020/02/08




CARREIRO, José. “Eduardo Prado Coelho: Crónicas, política e cultura”. Portugal, Folha de Poesia, 14-12-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/12/eduardo-prado-coelho-cronicas-politica.html



quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Eduardo Lourenço, por Eduardo Prado Coelho


Missão Impossível”, crónica de Eduardo Prado Coelho
para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 27 de maio de 1995, p. 12


O Crime Infinito”, crónica de Eduardo Prado Coelho
para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 3 de junho de 1995, p. 12

Sonhar Alto os Sonhos de Todos”, crónica de Eduardo Prado Coelho
para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 25 de maio de 1996, p. 12



CARREIRO, José. “Eduardo Lourenço, por Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 11-12-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/12/eduardo-lourenco-por-eduardo-prado.html


sábado, 9 de novembro de 2019

Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Mapas o Assombro a Sombra, de Manuel Gusmão


por Eduardo Prado Coelho



NÓS NESTA PRAIA EM QUE O SÉCULO FINDA TEMOS SEDE

1. O segundo livro de poesia de Manuel Gusmão prova o que já sabíamos: estamos diante de um dos grandes nomes da nossa poesia contemporânea; e podemos encontrar aqui alguns dos poemas indiscutivelmente imprescindíveis em qualquer panorama da poesia portuguesa do século XX. Só certos aspetos da personalidade do autor (enorme discrição mediática, incansável empenhamento político, atitude exemplar de pedagogia universitária e imagem de crítico que ensaia passar para a criação) impediram até agora o reconhecimento plenamente adequado do seu trabalho poético. Mas a leitura de "Mapas o Assombro a Sombra" (Ed. Caminho) desfaz quaisquer dúvidas ou reticências.


Numa primeira aproximação somos sensíveis à complexidade de uma sintaxe que não hesita em mobilizar os mais diversos recursos: o jogo entre maiúsculas e minúsculas, a utilização dos dois pontos e do ponto e virgula (às vezes em situação de transporte), criando modalidades sempre desconcertantes de articulação ou sobreposição; um permanente deslizar de múltiplos planos que se relançam incessantemente ("É talvez que beleza seja / uma palavra que esconde uma outra"); o não hesitar em utilizar construções de aparência defeituosa (como nos versos anteriormente citados); o uso premeditado de ruturas tipográficas ("sagrad/ a fúria"); o diálogo permanente com interlocutores que se desdobram mas que convergem invariavelmente para um “tu" que se propõe como suporte da própria arquitetura poética ("Quem o quê tu?"); a utilização de vários idiomas ("Laura é a minha Beatrice, he said./ Ma io non sapeva"); a quase invisível mas incessante intertextualidade (de Camões a Sá de Miranda, de Ovídio e Lucrécio a Leopardi, de Ezra Pound a Dickson); a espantosa capacidade para integrar no fluxo poético as expressões mais polemicamente prosaicas (“Contra a enorme cegueira do ódio, contra o opressivo barulho e/ estúpido da ‘economia de mercado', canta").
Estamos assim diante de uma poesia de grande densidade de referências culturais, de imensa capacidade aulo-reflexiva, mas, ao mesmo tempo, pura, desinibida, frugal, cantante, fluente, contagiante e mágica. De um pudor extremo, cercada de palavras por todos os lados, mas também intensamente física, quase obscena ("fratura exposta ao assombro").
2. Mapas. No título e na capa: Theatrum orbis terrarum, Abraham Ortelius, 1570. Está certo: partindo muitas vezes das situações mais quotidianas (um quarto, um jardim, uma casa), esta poesia percorre, como botas que ela fosse de sete léguas cósmicas (e lembro aqui os admiráveis poemas sobre a infância: "as letras da noite, a mão do pai.// Ou então é o candeeiro sobre a mesa:/ aquecida a lâmpada, os peixes de cores/ começam o seu canto eletrificado. Começam/ a ondular à volta e sobre a flora colorida do fundo/ do mar, que roda em sentido contrário./ A velocidade crescente. Todas as cores.// Não é um aquário./ Não é um filme, Não é o fundo do mar.// Não é um sonho. É a noite do candeeiro / Como uma árvore que expande a folhagem/ o fósforo o néon o halogéneo aqui"), esta poesia percorre, repito, o mundo inteiro, a orbe terrestre: é “a forma expansiva da manhã".


Recordo que a pulsão cartográfica exige um olhar que se faça de cima, a distância da realidade, mas suficientemente perto para a poder reconhecer e reproduzir. Estamos num entredois, que impõe a experiência do voo. De Ovídio, nas "Metamorfoses", aqui presente e convocado, poder-se-á evocar Dédalo encerrado no labirinto do seu palácio de Minos (o tema do labirinto aqui também produtivo, embora por vezes na conotação positiva da (con)fusão amorosa: "Com as mãos/ perdidas desfazes a imagem à espera// que a parede se abra. Será a última/ parede do labirinto?"), mas também seu filho, Ícaro, a quem se recomenda que voe entre as ondas do mar e o Sol, mas não tão perto do Sol que a cera das asas se derreta. De igual modo o livro de Manuel Gusmão se equilibra entre a sombra e o assombro, investindo-se no tema do voo ou do salto (reminiscência possível de Carlos de Oliveira): "as mãos dançam no teatro da água/ sobem ao encontro da queda que voa".

EX06 (untitled). Artist:  Tomasz Alen Kopera. Movement:  magical realism. Type:  oil on canvas. Dimensions:  100x120cm / 39x47in. Year:  2021


3. Da compacta temática amorosa desta poesia, concentrada na teia de cumplicidades entre as mãos, os corpos e o mundo, acelerada pela cumplicidade das artes (a música, a literatura, o cinema, a pintura de um nome, o filme da música, o trabalho da mão mental: "a mão escreve na mente"), apurada na consciência de uma "alegria mortal", emerge o tema da construção do Terceiro, já introduzido desde o título no livro anterior: dois sóis, a rosa. Ou por outras palavras: "o brilho inapagável de um gesto suspenso/ e depois a bruma no lugar do rosto que lá não está/ não sabemos nunca como repetir tal brilho// nem como pedir-te essa metamorfose do terceiro corpo/ que voa oblíquo sobressalto destes dois nossos/ e incandesce no passado que toda a morte não promete."
Amor, ou poesia, ou o corpo pianista, ou o quadro, ou o filme, ou a luta pela liberdade. Em todas estas práticas – e o intransigente materialismo do autor, amante da manhã terrestre ("Não é o sagrado. É o fragmento de uma paisagem terrestre./ Há na música o modo da utopia que reconheces: é que// é aqui e agora") reconhecer-se-á na palavra "prática" – se constrói a arquitetura do mundo, isto é, as figuras do fogo, a praia, a manhã ("de repente a noite rasga-se e surge uma praia"). E "o que é esta praia Uma pausa na dança/ A anca no sono o espanto da dança" – "amigos não sabemos o que esta praia desata".
São estas "as manhãs da noite". Admiravelmente descritas na sua fragilidade e evidência, a evidência da alegria, mas sobretudo na sua contingência (à maneira de Althusser, um materialismo do aleatório, uma afirmação tanto mais (im)provável quanto mais contingente, uma prática do clinamen: "canta a contingência do comunismo que vem"). Porque nunca o Terceiro é o lugar da síntese. Se alguma coisa suporta esta tragicidade eufórica e partilhável, e partilhada, é o sentimento da incoincidência que legitima o prazer da repetição: "Mas há um intervalo e uma mudança de voz: aqui e agora não coincidem. E depois repetem-se noutra figura." Porque, como se diz admiravelmente no mais deleuziano dos versos humanos, "o atraso é/ uma diferença de velocidade nos mundos do mundo", e o homem é, ou está, estruturalmente em atraso: "Nunca chegarás à hora de nascer e contudo/ nasces. Nunca chegarás e isso dança. Isso chama por um nome/ qualquer, sem nome." E assim o assombro – um lugar precário onde se celebra a "ardente perfeição das coisas: "E/ cada coisa usa em seu redor a sombra/ como uma aura própria." E, portanto, quando a surpresa se declina, e sobre nós se inclina, a surpresa "não parece real: Esse é/ um dos espantos com o real. É que não se parece." Daí que as comparações possam ser simples paragens na alegria do aparecimento: “um avião belo como um avião".
4. Estes poemas foram escritos entre 1989 ("nós nesta praia em que o século finda temos sede") e 1993 ("à espera da manhã terrestre"). Segundo leio, a tiragem do livro é de 600 exemplares. Amigos da Caminho, ponham seis mil. E será pouco.

Nós nesta praia em que o século finda temos sede”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras & Sons do jornal Público. Sábado, 23 de março de 1996, p. 12.


Nota:

Clinâmen: Do latim clināmen, «inlinação; pendor». Nome masculino. 1. FILOSOFIA teoria desenvolvida por Lucrécio a partir da doutrina de Epicuro, que consiste num desvio imprevisível dos átomos, causado por um pequeno movimento aleatório lateral 2. tendência de um escritor para se afastar da influência dos seus antecessores literários. (Fonte: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/clin%C3%A2men)





CARREIRO, José. “Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Mapas o Assombro a Sombra, de Manuel Gusmão”. Portugal, Folha de Poesia, 09-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/mapas-o-assombro-sombra-de-manuel-gusmao.html



sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Jacinto do Prado Coelho, por Eduardo Prado Coelho



TU

1. O recém-criado Instituto de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa realizou na semana passada, nas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian, um colóquio sobre "Os Sentidos e o Sentido", que constituiu simultaneamente uma homenagem a Jacinto do Prado Coelho. Deve-se a iniciativa a Ana Hatherly, apoiada por Silvina Rodrigues Lopes e Artur Anselmo. Na sessão inaugural, em que estiveram presentes o prof. Ferrer Correia, pela Fundação Calouste Gulbenkian, o dr. Ruy Vieira Néry, em representação do Ministério da Cultura, e responsáveis da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, ouviu-se uma mensagem de Manuel Maria Carrilho, atual ministro da Cultura, e houve intervenções de Ana Hatherly, Ferrer Correia, Ruy Néry, Eduardo Lourenço, Luciana Stegagno Picchio, Robert Bréchon, Maria Alzira Seixo e Onésimo [Teotónio] Almeida. Pediram-me também que falasse. Tentei falar -assim.
2. A primeira palavra é: obrigado. É a mais fácil, é a mais justa, é a mais espontânea.
Depois, as coisas complicam-se: como falar de Jacinoo do Prado Coelho – pai. Como Jacinto do Prado Coelho? Isto é, como um nome que se estabilizou, que se autonomizou, que se classicizou no âmbito dos estudos literários, dos estudos da literatura comparada, dos estudos de literatura portuguesa. Ou como pai? Como Jacinto do Prado Coelho, é possível um discurso sereno, reconhecido, de admiração e gratidão, de análise dos textos e do percurso. Um discurso que, imprescindível, parte no entanto do pressuposto de que alguém, ele, desapareceu.
No entanto, desde algumas semanas que uma frase se me impõe, obsessiva, dessas que se não apagam, sempre que penso escrever esta intervenção. A frase não é minha, disse-ma um amigo recentemente, um amigo abatido pela morte da mulher, que em Paris me contava como às vezes, diante da uma montra, ou ao olhar um livro, se esquecia de que ela tinha desaparecido, e começava a conversar. E ele dizia-me: ''É muito difícil fazer desaparecer uma pessoa."
É. É muito difícil fazer desaparecer uma pessoa. É preciso muito trabalho, e nunca se está certo de ter conseguido. Eu, por exemplo, se falar de Jacinto do Prado Coelho como pai estou certo de que ele não desapareceu. Que persiste como aquele resiste a ser apenas um nome estável de quem os outros falam. Ele, apenas.
Talvez contando seja mais fácil. Na memória mais antiga recordo o silêncio. "Não se pode fazer barulho", diziam-me, "o pai está a trabalhar". "Para a tese ", acrescentavam. Devia ser ainda Camilo, devia ser já Pessoa, mas foi sempre assim, pela vida fora. Eu brincava, lia imaginava batalhas, jogos de futebol, emissões radiofónicas, e à minha volta o silêncio do pai a escrever -nunca, ou raramente, à secretária, em sofás, com montes de papéis em redor, e livros pelas cadeiras. Aliás, os livros iam ficando em cima das cadeiras, disponíveis, e a minha mãe dizia -esta é talvez a segunda recordação –: “nesta casa ninguém se pode sentar". Todos os dias chegavam livros, a casa era invadida pelos livros, os livros devoravam os espaços e eu começava a ler os livros que devoravam os espaços, e lia ao acaso das cadeiras. Posso assim contar duas coisas mais: que o meu pai nunca impunha a leitura de um livro, lê este em vez daquele, e nunca desaconselhava a leitura de um livro. Deixava que as cadeiras decidissem – e eu lia. Lembro-me também dos alunos do pai, aqueles que o iam regularmente visitar e com quem eu ia falar às vezes à sala, e desses alunos, assistentes, amigos, havias dois que eram para mim os alunos do Pai: o David e o Urbano.
Lembro-me de que chegavam no correio uns cadernos de uma associação de amigos de Romain Rolland. E que chegavam livros da Galiza, que me irritavam, porque não os entendia bem. E que o meu pai com frequência falava de Montaigne. Mais tarde percebi que tudo isto traçava o retrato de um racionalista, de um humanista, de um cético, de um voluntarista Cético, sim, e ele explicava: “só sei que nada sei". Mas depois aderia a causas com uma quase ingenuidade, acreditando nos homens para além daquilo que me parecia razoável. Lembro-me de ele me levar ao futebol, mas ele só ia a jogos internacionais no Estádio do Jamor. E um dia, perante os gritos de ódio a que eu assisti, tinha dez anos, por causa de um árbitro que amplas massas qualificavam de "gatuno", eu perguntei a mim mesmo se os homens em quem ele, o pai, acreditava, eram os mesmos que vociferavam com os olhos em chamas. E sentia-o frágil, como se os livros fossem um lugar de fragilidade. E tinha vontade de o proteger no seu humanismo – para que ele não ficasse desiludido.
Lembro-me ainda de ele me dizer que desde os oito anos que não conhecia nenhum outro regime senão o de Salazar. Lembro-me do modo como apoiou as greves de 62, como ficou num carro durante a noitada [na] Cantina à espera que eu estivesse disponível para regressar a casa já de madrugada. Lembro-me ainda como, quando eu ficava encarregado de distribuir comunicados da RIA ou panfletos da Associação de Letras, ele queria acompanhar-me de carro, e ficava na esquina de faróis apagados, no escuro e no frio. Lembro-me de como aceitou sem qualquer reserva que o jornal AGORA dissesse que "o filho de Jacinto do Prado Coelho esconde panfletos no gabinete do pai na Faculdade" – o que era verdade, aliás. E eu tinha medo de que os estudantes fossem longe demais, e que um dia ele me dissesse: isto já não! Que aquele humanismo tivesse limites. Mas aparentemente não. Foi assim no 25 de Abril. Muitas vezes receei que episódios absurdos, como a ocupação dos gabinetes dos professores, lhe provocassem um "basta" indignado, mas isso nunca aconteceu. Cético, racionalista, humanista, tinha uma enorme capacidade de aceitar a diferença e a novidade. Um dia tremi, quando numa Assembleia Geral da Escola, um aluno (aliás, um amigo meu) se levantou e disse: "Ó Jacinto, tu..." Ele sorriu, e estranhamente ficou feliz.
Tu. Se refletir um pouco sobre o que se passava à minha volta em relação a ele, posso verificar que quase ninguém o tratava por tu. Nem eu. Só mais tarde a Alexandra, a neta. E que ele produzia uma espécie de distância, que vinha de ser pai para todos em todas as circunstâncias, mas eles, os que não eram filhos por não terem ido ao futebol com ele nem jogado ao berlinde no corredor da casa, sentiam o pai na distância absoluta de um Pai. Diziam: “vou falar ao teu pai, estou cheia de medo". Contudo, o meu pai tinha uma enorme nostalgia do tu, de uma fraternidade calorosa que o meio e a educação lhe tinham subtraído um pouco. Lembro-me de um dia, depois de uma crítica minha num jornal em que eu usara um tom extremamente feroz, me disse: "mais importante de que um livro ser bom ou mau é não magoarmos as pessoas. É tentarmos perceber o que elas pretendiam fazer". Daí que o título do livro que lhe foi oferecido (belissimamente inventado, dizem-me, por Margarida Barahona) – com um rosto na capa em que a doença criava, de ele a nós e de nós a ele, um sentimento de desamparo e aflição – estivesse certo: afeto às letras. Era um professor com a nostalgia do afeto, sempre me falou de Sebastião da Gama, sempre admirou o modo como a certa altura Lindley Cintra convivia com os alunos.
Poderia continuar indefinidamente, e contar, a partir dos contos que se desprendem da memória do meu pai nunca desaparecido, a minha história, a história de duas gerações e a história do mundo. Contar contando com os atropelos e as contradições de uma narrativa sonâmbula. Escolhendo a "via do conto", para seguir o conselho que um dia recebi do poeta Jacques Roubaud, quando ele escreveu: "se os mundos fossem contos, e os seus habitantes contadores, e não apenas os seus seres mas tudo, todas as coisas, todas a contar as suas histórias, contadas haveria lugar para mundos em que os contraditórios seriam verdadeiros, em que eu diria 'tu estás vivo, tu morreste', e rindo tu responderias".
Tu. Tu, pela primeira vez.


Tu”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 27 de janeiro de 1996, p. 12.



CARREIRO, José. “Jacinto do Prado Coelho, por Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 08-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/jacinto-do-prado-coelho-por-eduardo.html