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terça-feira, 23 de julho de 2024

As meninas, Vasco Graça Moura

 

Snorkellers, William Ireland

as meninas

as minhas filhas nadam. a mais nova
leva nos braços boias pequeninas,
a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:

entre risadas como serpentinas,
vai como a formosinha numa trova,
salta a pés juntos, dedos nas narinas,
e emerge ao sol que o seu cabelo escova.

a água tem a pele azul-turquesa
e brilhos e salpicos, e mergulham
feitas pura alegria incandescente.

e ficam, de ternura e de surpresa,
nas toalhas de cor em que se embrulham,
ninfinhas sobre a relva, de repente.

 

Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos. Porto, Edições Asa, 2002

 

Leitura

A estrutura clássica deste soneto contrasta com a leveza e espontaneidade do conteúdo, que celebra a alegria e a inocência da infância.

Na primeira quadra, o sujeito poético descreve as suas filhas a nadar, cada uma com as suas particularidades. A mais nova, que ainda precisa de boias, e a mais velha, já mais confiante e destemida, figuram diferentes fases da infância. O uso de termos como "boias pequeninas" e "corpo esguio" revela a ternura e o cuidado com que o sujeito poético observa as suas filhas.

Na segunda quadra, o sujeito poético continua essa descrição, enfatizando a alegria e a leveza das meninas, cujas risadas são comparadas a serpentinas. Essa comparação transmite visualmente a vivacidade das crianças e remete para uma atmosfera de festa. 

No primeiro terceto, a descrição da água como tendo "a pele azul-turquesa" e "brilhos e salpicos" eleva a cena a um nível quase mágico, em que o ambiente envolvente parece refletir a pureza e a alegria das crianças. A expressão "feitas pura alegria incandescente" sugere que as meninas são a personificação da felicidade, irradiando uma luz interna.

O poema encerra com uma imagem de serenidade e ternura: as meninas embrulhadas em toalhas coloridas, deitadas na relva. A palavra "ninfinhas" evoca seres mitológicos, sublinhando a ideia de que essas crianças são vistas pelo sujeito poético como criaturas mágicas e preciosas. O uso da palavra "de repente" no final do poema captura a surpresa e a beleza efémera desses momentos, realçando a importância de valorizar cada instante de felicidade e inocência.

Nesta composição, o poeta transformou o quotidiano em poesia, fazendo de «as meninas» um canto à infância, ao amor paterno e à beleza dos momentos fugazes eternizados na memória.

 

"as meninas,2", Vasco Graça Moura, 2003.


as meninas, 2

lavam os dentes, já tomaram banho,
e em suas camisinhas de flanela
dão boas noites numa tarantela,
são cinco-réis de gente no tamanho.

as meninas estão a bom recato.
não queriam ir dormir. choramingaram.
houve histórias de fadas em que entraram.
depois, tombou o livro num sapato.

amanhã de manhã levam vestida
a blusinha de lã azul xadrez,
a saiinha encarnada, as meias pretas,

mas no país da bela adormecida
há flores e pintainhos e talvez
um gato, um peixe, um cão e borboletas.

 

Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos. Porto, Edições Asa, 2002

 

De acordo com a leitura do poema “as meninas, 2”, de Vasco Graça Moura, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou falsa. Procede à correção das afirmações falsas.

1. As meninas são retratadas antes do banho e da escovagem dos dentes, vestindo camisinhas de flanela.

2. As meninas tomaram banho e lavaram os dentes antes de colocar as suas camisinhas de flanela.

3. As “camisinhas de flanela” simbolizam a inocência e a proteção das meninas.

4. As meninas despedem-se com uma tarantela após tomar banho e lavar os dentes.

5. A despedida das meninas, feita em forma de "tarantela", sugere vivacidade.

6. A expressão "cinco-réis de gente no tamanho" é usada para destacar a resistência das meninas à hora de dormir.

7. As meninas choramingaram porque queriam ouvir histórias de fadas antes de dormir.

8. As histórias de fadas servem como um ritual de transição entre a agitação do dia e o repouso noturno.

9. Depois de ouvir as histórias de fadas, o livro caiu da mesa.

10. O detalhe do livro que "tombou num sapato" evoca a ordem e a organização do mundo infantil.

11. O detalhe do livro que “tombou num sapato” sugere uma interrupção abrupta da fantasia.

12. No poema, o sujeito poético descreve minuciosamente as roupas que as meninas usarão no dia seguinte.

13. A expressão "país da bela adormecida" refere-se ao local onde as meninas brincam durante o dia.

14. No poema celebra-se a relação entre o sujeito poético e as suas filhas através de uma linguagem complexa e distante.

15. O poema "as meninas, 2" capta a essência da infância e a ternura da relação pai-filhas.

16. O poema reflete a visão do sujeito poético sobre a infância como um período de inocência e proteção.

17. Apesar do rigor da sua forma fixa, o soneto "as meninas, 2" é construído com uma fluidez que reflete a naturalidade dos momentos descritos.

 

as meninas,2 - ilustração de João Caetano (in Plural 7, Raiz editora, 2011)


Respostas:

1. Falso. As meninas são retratadas após o banho e a escovagem dos dentes.

2. Verdadeiro.

3. Verdadeiro

4. Verdadeiro.

5. Verdadeiro.

6. Falso. A expressão é usada para destacar a pequenez e a preciosidade das crianças.

7. Falso. Choramingaram porque não queriam ir dormir.

8. Verdadeiro.

9. Falso. O livro caiu num sapato.

10. Falso. Evoca a desordem e a espontaneidade do mundo infantil.

11. Verdadeiro

12. Verdadeiro.

13. Falso. Refere-se à imaginação das meninas, povoada por elementos encantados.

14. Falso. Celebra a relação através de uma linguagem simples e afetuosa.

15. Verdadeiro.

16. Verdadeiro

17. Verdadeiro.


quarta-feira, 5 de julho de 2023

Jovens à porta do Chiado, Gastão Cruz

Moby&The Void Pacific Choir – Are You Lost In The World Like Me

 

JOVENS À PORTA DO CHIADO

Veem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço

O seu mundo está preso àquele fio
de presente irreal que não explica
o facto de ser a pele a pele ainda

Tudo fica no raio do olhar
brevemente fictício a vida reduzindo
ao enredo menor das chamas perdidas

das mensagens que vindas ou não vindas
fazem tremer do dia o edifício
Disso vivem fingindo que se veem

a si somente enquanto o mundo escorre
com a rapidez do dia para o poço

 

Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010

 

Muitos livros de Gastão Cruz (1941-2022) têm como título uma só palavra, ou, quando não, duas palavras (o artigo e o nome). Hematoma (1961), Escassez (1967), Campânula (1978), O Pianista (1984), Crateras (2000), Fogo (2013), Óxido (2015), Existência (2017). A palavra nuclear que, do título aos poemas de um livro, faça irradiar a mensagem, essa uma das linhas da obra deste enorme poeta. Em 2010, Escarpas convidava-nos a lermos o tempo e o seu sentido ou a ausência de sentido no tempo. Nas suas cinco secções, na melodia dos ritmos e no trabalho rigoroso da frase, escrevendo-se sobre pianistas (Emil Gilels, Richter, Horowitz), pintura (Holbein), cinema (W. Allen), sobre o amor e o desencontro, o corpo e o desencanto, é da vida que a poesia sempre fala. Gastão Cruz, como nenhum outro poeta, leu a nossa época e, atualíssimo, sintetizou em versos impressionantes: "A perda real é a perda do sentido/Só se perde o sentido do que não/ foi nunca real senão quando perdido." Em tempo de preparação do verão, que se leia este poeta.

António Carlos Cortez, sinopse do livro Escarpas. In: Diário de Notícias, 02-07-2023. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/appetite-for-destruction-a-geracao-mais-bem-preparada-de-sempre-2-parte-16623307.html

 

Linhas de leitura

“Jovens à porta do Chiado”, de Gastão Cruz, é um poema que retrata a alienação dos jovens com o mundo digital.

  • Os jovens estão constantemente conectados ao telemóvel, vendo-se refletidos nele como se estivessem diante de um espelho.
  • Eles estão imersos num ambiente superficial, representado pelo "lodo morno dum profundo poço".
  • O seu mundo é limitado e dependente dessa conexão virtual, que não explica a verdadeira experiência da interação física.
  • Tudo o que lhes importa é o que está ao alcance dos seus olhos, reduzindo a vida a uma realidade momentaneamente fictícia, limitando-a ao enredo trivial das chamas perdidas.
  • Esses jovens dependem das mensagens, mesmo que não cheguem, para manterem a ilusão de estarem a viver.
  • Eles fingem que se veem e se conhecem, mas a verdade é que estão isolados na sua própria superficialidade, enquanto o mundo ao seu redor escorre rapidamente, como o tempo que passa, para o poço da insignificância.

 

Poderá também gostar de:

Opinião

Appetite for destruction: a "geração mais bem preparada de sempre" (2.ª parte)

Veem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço
Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010, p. 39

 

Acrescento mais alguns argumentos ao artigo de 8 de junho aqui publicado. As críticas que tenho feito ao digital na escola e na universidade têm tido algum eco junto de professores e outros agentes educativos. Mas não era previsível a alienação, a ignorância, a incuriosidade dos "nativos digitais" quanto aos mais diversos saberes, uma vez imersos no mundo digital? Todos vemos que nada leem e pouco sabem, porque se tudo o que importa está "à distância de um clique", tudo o que exija esforço lhes é odioso. Jamais o "como" e o "para quê" das aprendizagens é questionado pelos estudantes. Decorar sem saber, dizer umas quantas coisas politicamente corretas, isso basta para garantir classificações acima do 16. Os professores, salvo raríssimas exceções, estão reféns desta lógica alienante. Todavia, ouve-se dizer que "esta é a geração mais bem preparada de sempre". Uma mentira soez. Propaganda pura. Estamos confrontados com um problema que Heidegger enunciou há décadas: a ausência de linguagem. "Débito e crédito", eis a novilíngua. O poeta António Ramos Rosa, nos anos 60, denunciava no Poema dum funcionário cansado o terror de vivermos num quotidiano que esmaga a imaginação e a curiosidade, tudo vendo sob a ótica do lucro imediato.

Os exames nacionais provam as consequências desta lógica alienante. A geração mais bem preparada de sempre é filha deste sistema, errado, assassino e corruptor. Os exames de Português e de Matemática relacionam-se, claro, porque revelam: 1.º não há como avaliar a expressão escrita e a análise do texto literário de forma séria e rigorosa, porquanto isso equivaleria a formular questões de natureza hermenêutica a que nenhum aluno sabe hoje responder com propriedade. Nas aulas de Português quase nunca leem ensaio e crítica, impera ainda o impressionismo como "método" de compreensão de um texto literário. Daí os verdadeiro-falso e as cruzinhas e a escolha múltipla, isto numa disciplina que já foi a base do ler e do escrever; 2.º as dificuldades do exame de Matemática devem-se à incompreensão dos enunciados. Linguagem, uma vez mais. É que "a geração mais bem preparada de sempre" à saída do 12.º ano pouco sabe ou mesmo nada. Redige uns quantos lugares-comuns sobre as obras do currículo, que não leu. Em Matemática, se não sabem o sentido dos verbos ou se se crê que armadilhar um exame é ser exigente, como não terão dificuldades? Que educação é esta?

A Suécia proibiu o uso de tablets e de quaisquer suportes multimediáticos na escola, investindo 60 milhões de euros em livros e manuais; nós por cá insistimos nos tablets e demais parafernália tecnológica. Somos um país progressista, pois claro. Somos modernos, pois então! Manuel Cruz, filósofo espanhol, escreveu em 2016, em Ser Sin Tiempo (ed. Herder, Barcelona), que a nossa época, desmaterializada, se caracteriza pela instantaneidade, pelo impensado. Tudo - das escolas às empresas, dos programas de televisão aos programas políticos - obedece à lógica do "não há tempo a perder, porque não há tempo". A geração "mais bem preparada de sempre" nunca será filha de Voltaire: "Na educação, a questão não é ganhar tempo, mas perdê-lo." Do TikTok às redes sociais, dos ecrãs à infantilização das aprendizagens, os nossos estudantes são desmemoriados e insensíveis. Viverão "cantando e rindo", olhando-se nos telemóveis como num espelho. No "profundo poço" de uma existência morna, serão incapazes de lidar com o "não", porque tudo foi "sim" nas suas vidas. Mais violentos e inconscientes, o pragmatismo destes "nativos digitais" é sinónimo de individualismo - o totalitarismo egóico. É o Portugal futuro? É o Portugal presente.

Gastão Cruz, pela mão da poesia, viu-os às portas do Chiado. A geração mais bem preparada de sempre não lerá poesia. Lerá simulacros. A sua música é a da pornografia. A imaginação, a beleza, o estranho da arte e das disciplinas que exigem escrita e leitura confronta-os com o que ignoram. Não gostam. Na escola da felicidade - onde todos são educados para serem "todos iguais" e geniais - o apetite pela destruição é a única linguagem com que dizem um mundo escarpado.

António Carlos Cortez, Diário de Notícias, 02-07-2023. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/appetite-for-destruction-a-geracao-mais-bem-preparada-de-sempre-2-parte-16623307.html




 ARE YOU LOST IN THE WORLD LIKE ME


Look harder, say it’s done
Black days and a dying sun
Dream a dream of god lit air
Just for a minute you’ll find me there
Look harder and you’ll find
The 40 ways it leaves us blind
I need a better place
To burn beside the lights

Come on and let me try

Are you lost in the world like me?
If the systems have failed?
Are you free?
All the things, all the loss
Can you see?
Are you lost in the world like me?
Like me?

Burn a courtyard, say it’s done
Throwing knives at a dying sun
A source of love in the god lit air
Just for a minute, you’ll find me there

Look harder and you’ll find
The 40 ways it leaves us blind
I need a better way
To burn beside the lights

Come on and let me try

Are you lost in the world like me?
If the systems have failed?
Are you free?
All the things, all the loss
Can you see?
Are you lost in the world like me?
Like me? [x2]

 

Moby & The Void Pacific Choir



terça-feira, 26 de julho de 2022

Vaidosa, Cesário Verde


 

 

Vaidosa

 

Dizem que tu és pura como um lírio

E mais fria e insensível que o granito,

E que eu que passo aí por favorito

Vivo louco de dor e de martírio.

 

Contam que tens um modo altivo e sério,

Que és muito desdenhosa e presumida,

E que o maior prazer da tua vida,

Seria acompanhar-me ao cemitério.

 

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas1,

A déspota, a fatal, o figurino2,

E afirmam que és um molde alabastrino3,

E não tens coração como as estátuas.

 

E narram o cruel martirológio4

Dos que são teus, ó corpo sem defeito,

E julgam que é monótono o teu peito

Como o bater cadente dum relógio.

 

Porém eu sei que tu, que como um ópio

Me matas, me desvairas e adormeces

És tão loira e doirada como as messes5

E possuis muito amor... muito amor-próprio.

 

Cesário Verde, Obra Completa, edição de Joel Serrão,

Lisboa, Livros Horizonte, 1988, p. 77.

 

NOTAS

1 fátuas – vaidades.

2 figurino – modelo; exemplo de moda.

3 alabastrino – de alabastro, mármore branco e translúcido.

4 martirológio – narrativa do martírio dos mártires e santos.

5 messes – searas maduras.

 

QUESTIONÁRIO

1. Refira dois efeitos de sentido provocados pela utilização de verbos na terceira pessoa do plural (versos 1, 5, 9, 11, 13 e 15) na construção do retrato da figura feminina.

 

2. Explicite, com base em dois aspetos significativos, o modo como o sujeito poético perspetiva a relação que se estabelece entre si e a mulher representada no poema.

 

3. Selecione a opção de resposta adequada para completar a afirmação.

A mulher «fatal» (v. 10) descrita no poema é caracterizada como insensível e cruel, ao ser associada, respetivamente, a expressões como

(A) «imperatriz das fátuas» (v. 9) e «modo altivo e sério» (v. 5).

(B) «molde alabastrino» (v. 11) e «acompanhar-me ao cemitério» (v. 8).

(C) «imperatriz das fátuas» (v. 9) e «martírio» (v. 4).

(D) «molde alabastrino» (v. 11) e «figurino» (v. 10).

 

4. Baseando-se na leitura do poema “Vaidosa”, de Cesário Verde, e no “Retrato de Mónica”, texto de Sophia de Mello Breyner Andresen, escreva uma breve exposição na qual compare as duas figuras femininas neles retratadas.

A sua exposição deve incluir:

uma introdução ao tema;

um desenvolvimento no qual explicite um aspeto em que as figuras femininas se aproximam e um outro em que se distinguem;

uma conclusão adequada ao desenvolvimento do tema.

 

CENÁRIO DE RESPOSTAS

Nota prévia: Nos tópicos de resposta de cada item, as expressões separadas por barras oblíquas à exceção das utilizadas no interior de cada uma das citações correspondem a exemplos de formulações possíveis, apresentadas em alternativa. As ideias apresentadas entre parênteses não têm de ser obrigatoriamente mobilizadas para que as respostas sejam consideradas adequadas.

 

1. Devem ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A utilização de verbos na terceira pessoa do plural:

  • sugere que o modo como esta mulher fatal trata os homens, em geral, e o sujeito poético, em particular, é um conhecimento partilhado por outros;

 

  • evidencia a ideia de que todos os que falam sobre esta mulher são de opinião de que ela é bela, mas, sentimentalmente, fria/insensível, vaidosa e cruel na relação com os homens;

 

  • permite que o sujeito poético não se comprometa com o ponto de vista depreciativo dos outros sobre a mulher que ama (embora indicie que partilha desse ponto de vista).

 

2. Devem ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

  • o sujeito poético parece estar apaixonado pela mulher representada no poema, mas essa paixão causa‑lhe um sofrimento tão atroz («Vivo louco de dor e de martírio» – v. 4) que se sente a enlouquecer e a morrer de amor («Me matas, me desvairas e adormeces» – v. 18);

 

  • a forma como a mulher age leva o sujeito poético a pensar que ela sente prazer em seduzi-lo e em torturá-lo («E que o maior prazer da tua vida, / Seria acompanhar-me ao cemitério» – vv. 7 e 8; «o cruel martirológio / Dos que são teus» – vv. 13 e 14);

 

  • o sujeito poético considera-a uma droga («como um ópio» – v. 17) na qual está viciado;


  • o sujeito poético perspetiva a relação entre si e a mulher como uma relação desigual, na qual ela o humilha, enquanto ele a venera.

 

3. (B) A mulher «fatal» (v. 10) descrita no poema é caracterizada como insensível e cruel, ao ser associada, respetivamente, a expressões como «molde alabastrino» (v. 11) e «acompanhar-me ao cemitério» (v. 8).

 

4. Relativamente a cada aspeto, deve ser abordado um dos tópicos apresentados, ou outro igualmente relevante.

As duas figuras femininas aproximam-se, na medida em que são retratadas como:

  • mulheres elegantes e que vestem bem, o que se evidencia, por exemplo, no facto de Mónica «ser chiquíssima» (l. 2) e de que «Todos os seus vestidos são bem escolhidos» (ll. 20-21), enquanto a «Vaidosa» é considerada a «bela imperatriz» (v. 9), o «figurino» de moda (v. 10) ou o «corpo sem defeito» (v. 14);

 

  • mulheres poderosas, que causam impacto naqueles com quem convivem, o que está patente, por exemplo, quando o narrador afirma que «Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande» (ll. 29-30), ou quando, no poema «Vaidosa», se realça «o cruel martirológio» (v. 13) dos que são seduzidos pela figura feminina;

 

  • mulheres autoconfiantes, como se verifica, por exemplo, quando o narrador afirma que Mónica define objetivos e os concretiza de forma disciplinada («salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos» – l. 23) e quando o sujeito poético realça que a mulher possui «muito amor... muito amor‑próprio» (v. 20).

 

As duas figuras femininas distinguem-se, na medida em que:

  • enquanto Mónica é apreciada por muita gente («ter imensos amigos» – l. 3; «toda a gente dizer bem dela» – l. 5), sendo retratada como «um belo exemplo de virtudes» (ll. 7-8), a «Vaidosa» é alvo de duras críticas por parte dos outros, que a consideram, por exemplo, «a bela imperatriz das fátuas, / A déspota, a fatal» (vv. 9 e 10);

 

  • enquanto Mónica procura criar empatia com os outros, dizendo «bem de toda a gente» (l. 5) e estando «sempre divertida» (l. 7), a mulher que o sujeito poético admira é descrita como «fria e insensível» (v. 2) e «muito desdenhosa e presumida» (v. 6);

 

  • enquanto Mónica é retratada como intencionalmente manipuladora e calculista, seguindo um plano rigoroso para alcançar os seus objetivos («observar uma disciplina severa» – l. 19), a «Vaidosa» é uma mulher «fatal» (v. 10) que atrai os homens pela sua beleza física.

 

Fonte: 

Exame Final Nacional de Português | Prova 639 | 2.ª Fase | Ensino Secundário | 2022 |12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 27-B/2022, de 23 de março)

Prova – versão 1: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/07/EX-Port639-F2-2022-V1_net.pdf

Critérios de correção: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/07/EX-Port639-F2-2022-CC-VT_net.pdf

 

Poderá também gostar de:

 

“Para uma síntese da obra de Cesário Verde”, José Carreiro <https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/04/cesario-verde.html> 2018-04-22

 

“Cesário Verde - o homem e o seu tempo”, José Carreiro <https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/biografia-de-cesario-verde.html> 2021-09-08

 

“Sobre a edição da poesia de Cesário Verde”, José Carreiro <https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/sobre-o-corpus-poetico-de-cesario-verde.html> 2021-09-08

 

“Eu, que sou feio, sólido, leal (Cesário Verde)”, José Carreiro. In: https://folhadepoesia.blogspot.com/2015/06/a-debil.html

 



CARREIRO, José. “Vaidosa, Cesário Verde”. Portugal, Folha de Poesia, 26-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/vaidosa-cesario-verde.html



sábado, 23 de julho de 2022

Dizia la bem talhada, Pedro Anes Solaz (Pedr'Eanes Solaz)

http://images.moleiro.com/noback/big-590-900CA_006.1_XI.jpg

         

Dizia la ben talhada:

“Agor’ a viss’ eu penada

ond’ eu amor ei”

 

A ben talhada dizia:

“Penad’ a viss’ eu un dia

ond’ eu amor ei

 

Ca, se a viss’ eu penada,

non seria tan coitada

ond’ eu amor ei

 

Penada se a eu visse,

non á mal que eu sentisse

ond’ eu amor ei

 

Quen lh’ oje por mi dissesse

que non tardass’ e veesse

ond’ eu amor ei

 

Quen lh’ oje por mi rogasse

que non tardass’ e chegasse

ond’ eu amor ei”

 

Pedr'Eanes Solaz/ Pedro Anes Solaz

“Pedr’ Eanes Solaz –1” in 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition, Rip Cohen. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 285

 

 

MANUSCRITOS (PRESENÇA DA CANTIGA NOS CANCIONEIROS): BN 828, V 414

Dizia la bem talhada, BN_381_175_828


Dizia la bem talhada, V_140_066_0414


As estrofes V-VI aparecem em ordem inversa no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sendo que Rip Cohen seguiu a lição do Cancioneiro da Biblioteca Vaticana.

 

 

NOTAS:

A interpretación desta cantiga admite dúas direccións conforme se considerar que a amiga fala de unha rival, ou, contrariamente, que a voz feminina se dirixe a outra amiga, isto é, que se trate dunha cantiga lésbica (véxase Callón Torres 2017: II, 31; 2018; 2020).

 

1-4

Ao longo do corpus nunca se rexistra ningunha forma de artigo arcaico (lo, la) en inicio de período e/ou de verso. É por isto que nesta cantiga se percibe con clareza o notorio contraste que marca o emprego da forma la do artigo, en contexto posvocálico, na primera cobra, e o uso da forma normal a no inicio da segunda, no verso reflexo (Dizia la ben-talhada vs. A ben-talhada dizia). A manutención de /l/ na forma do artigo indica a procura dunha retórica arcaizante na elaboración de cantigas de amigo (véxase Ferreiro 2008b, 2013), igual que acontece noutras cantigas (587, 609, 704, 735, 781, 864, 891, 892, 903, 969, 1130, 1166, 1167, 1169, 1201, 1206, 1281, 1294, 1297, 1299, 1304 e 1314) e do mesmo xeito que acontece coas correspondentes formas pronominais (véxase nota a 586.5).


"Penada se a eu visse", verso 7, BN

"Penada se a eu visse", verso 7, V


O incipit desta cantiga de Pedr’Eanes Solaz foi aproveitado por Afonso Sanchez noutra cantiga de amigo, cunha intertextualidade reforzada pola aparición da forma la do artigo (véxase 781.5).

 

2-5

Nestes dous versos, na dirección que marcou a edición de Machado, Cohen consolidou a segmentación do pronome feminino en Agor’a e Penad’a, respectivamente, fornecendo fluidez discursiva a un texto que ficaba deficiente na tradicional edición de Nunes (e de Reali e mais de Littera).

 

7-10

Nótese a emenda no pronome feminino que Nunes (nos dous versos), Reali (só no v. 10) e Littera realizaron, inxustificadamente, no texto, talvez para procurar unha presenza masculina que non existe na cantiga (se a eu visse penada, v. 7; Penada se a eu...).

 

13-18

A troca de lugar das estrofas V-VI en Littera carece, en aparencia, de xustificación.

 

Universo Cantigas. Edición crítica da poesia medieval galego-portuguesa, org. Manuel Ferreiro. A Coruña, Universidade da Coruña, https://www.universocantigas.gal/cantigas/dizia-la-ben-talhada [Consulta em: 2022-07-22].

 

PARÁFRASE(S):

vv. 3, 6, 9, 12, 15, 18:

Nas estrofes I e II a construção pode ser assim parafraseada: “Quem me dera vê-la sofrer por quem eu sinto amor.”

Na estrofe III: “Porque se eu a visse sofrer, eu não estaria tão infeliz por quem eu sinto amor...”.

Na estrofe IV: “Não há dor que eu sentisse por quem eu sinto amor...”.

Nas estrofes V-VI: “Queria que alguém dissesse àquele por quem sinto amor que ele (por quem sinto amor) não se atrasasse mas chegasse…” – e aqui ond’ eu amor ei funciona como oração relativa dependente de lh’ e, juntamente com o seu antecedente omitido, constitui o sujeito gramatical de veesse, chegasse e non tardasse (e pode suplementarmente significar “ao lugar de onde”; cf. CSM 26.93-94 que fosse tornar / a alma onde a trouxeron).

 

“Pedr’ Eanes Solaz –1” in 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition, Rip Cohen. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 285

 

(I) Dicía a amiga fermosa: «Oxalá agora a vise penada alí onde teño amor!».
(II) A amiga fermosa dicía: «Oxalá penada a vise eu un día alí onde teño amor, (III) pois, se a vise penada, non sufría tanto alí onde teño amor!».
(IV) Se a eu vise penada, non sentiría ningún mal, alí onde teño amor!».
(V) Quen hoxe por min lle dixese que non tardase e que viñese alí onde teño amor!».
(VI) Quen hoxe por min lle rogase que non tardase e que chegase alí onde teño amor!».

 

Universo Cantigas. Edición crítica da poesia medieval galego-portuguesa, org. Manuel Ferreiro. A Coruña, Universidade da Coruña, https://www.universocantigas.gal/cantigas/dizia-la-ben-talhada [Consulta em: 2022-07-22].

 

A cantiga comeza cunha enunciación sen identificar (quizais o quen dos vv. 13 e 16?), que é testemuña do que ouviu dicirlle á ben-talhada, á bela, a quen se lle transfire a voz a continuación. A muller expresa o seu desexo de ver penada unha outra figura feminina, no lugar onde ela ten agora amor. No segundo par de cobras, a ben-talhada sinala que se vise que esa figura feminina está triste, ela non estaría tan mal. Xa nas derradeiras estrofas, desexa que alguén lle dixese (suponse que á figura feminina até aí referida) que fose ao seu encontro. O refrán marca o amor topograficamente: o desexo é ver a tristura e o reencontro nun espazo concreto. Transmítesenos ademais o movemento desde o despeito até o desexo da reconciliación, mais sempre a dependencia afectiva.

 

Unha cantiga lésbica amatoria no trobadorismo galego-portugués”, Carlos Callón. SCRIPTA, Revista internacional de literatura i cultura medieval i moderna, núm. 15 / juny 2020 / pp. 1 – 15 ISSN: 2340-4841· doi:10.7203/SCRIPTA.15.17551



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CARREIRO, José. “Dizia la bem talhada, Pedro Anes Solaz (Pedr'Eanes Solaz)”. Portugal, Folha de Poesia, 23-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/dizia-la-bem-talhada-pedro-anes.html