Vittorio Matteo Corcos, Sonhos, 1896 |
Monotonia
Começar, recomeçar, interminamente1 repetir
um
monótono romance, o romance da minha vida.
Com palavras iguais, inalteráveis, semelhantes,
insistir sobre o cansaço e a pobreza disto de viver...
Andar como os dementes pelos cantos a repisar
o que já ninguém quer ouvir.
Levar o meu desprecioso tempo à deriva.
Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer
esperança, por desfastio2.
Pôr a nu uma miséria comum e conhecida,
chãmente3, serenamente, indiferente à
beleza dos temas
e das conclusões.
Monotonamente, monotonamente.
Monotonia. Arte, vida...
Não serei ainda eu que te erigirei4 o
merecido
altar.
Que te manejarei5 hábil e serena.
Monotonia! Gume6 frio, acerado7,
tenaz8, eloquente.
Sino de poucos tons, impressionante.
Mas se te descobri não te vou renegar.
Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,
a pobreza e a constância.
Monotonia, torna-me desinteressada.
LISBOA, Irene – "Monotonia". In Um
Dia e Outro Dia… Outono Havias de Vir: Volume I, Poesia I. Editorial
Presença, 1991.
___________
1 Interminamente: interminavelmente.
2 Por desfastio: para evitar o tédio.
3 Chãmente: singelamente, de modo simples, franco.
4 Erigirei: levantarei, erguerei.
5 Manejarei: mover com a mão, manobrar.
6 Gume: lado do fio de um objeto cortante.
7 Acerado: que corta, afiado; mordaz (no sentido figurado).
8 Tenaz: resistente; persistente (no sentido figurado).
Questionário sobre a leitura do poema “Monotonia”, de Irene
Lisboa:
1. Identifica
o “romance” que o sujeito poético descreve.
1.1. Indica os
adjetivos que caracterizam o romance e as suas palavras.
1.2. Destaca
as características do “viver” transposto nesse romance.
1.3. Identifica
a comparação que sugere o desinteresse de tal romance.
2. Atenta,
agora, nos assuntos que constituem a “matéria” dessa escrita.
2.1. Enumera-os.
2.1.1. É essa
matéria exclusiva da experiência pessoal do sujeito poético? Justifica.
3. Identifica
o verso em que o sujeito poético insinua que nem a arte escapa à monotonia da
vida.
4. A
monotonia é sugerida também pelos recursos expressivos utilizados.
4.1. Refere as
metáforas associadas à monotonia e explicita o seu valor.
4.2. Identifica
outros recursos expressivos que sugiram o tom monótono. Fundamenta a tua
resposta com exemplos textuais.
5. O poema
começa num tom desolador, mas termina com uma descoberta.
5.1. Quais
são, pois, as dádivas da monotonia?
5.2. Na tua
opinião, por que motivo o sujeito poético suplica à monotonia que o torne
desinteressado?
6. Relaciona
o título do poema com o título da obra a que pertence.
(Para)textos 9:
português, 9º ano,Ana Miguel de Paiva [et al.]; rev. cient. Maria Antónia
Coutinho. - 1ª ed. - Porto: Porto Editora, 2013.
Respostas esperadas:
1. Trata-se do romance
da sua vida.
1.1. Esse romance
caracteriza-se como “monótono”, sendo as suas palavras “iguais”, “inalteráveis”,
“semelhantes”.
1.2. O “viver” é
marcado pelo “cansaço” e pela “pobreza”.
1.3. “Andar como os
dementes pelos cantos a repisar/o que já ninguém quer ouvir” (vv. 5-6).
2.1. Compõem a
“matéria” da escrita o “desprecioso tempo à deriva” do sujeito poético, o seu
queixar-se, castigar e lamentar, exercidos “sem qualquer esperança”, meramente
“por desfastio”.
2.1.1. Essa matéria não
é exclusiva do sujeito poético, pois trata-se de uma miséria “comum e
conhecida”, logo extensiva aos outros, ao ser humano em geral.
3. “Monotonia. Arte,
vida…” (v. 14).
4.1. A metáfora está
presente em “Gume frio, acerado, tenaz, eloquente. / Sino de poucos tons,
impressionante.“ (vv. 18-19) – nestes versos, a monotonia é associada ao “Gume”
e ao “sino” (e às respetivas características). Ao ser associada ao “gume” de
uma espada “frio, acerado, tenaz, eloquente”, a monotonia é comparada a algo
que causa sofrimento, incómodo, perturbador. O mesmo carácter perturbador é
sugerido pela metáfora do “sino” – já que este, embora de poucos tons, como
convém à monotonia, é “impressionante”, marca, perturba.
4.2. Os recursos
expressivos são a aliteração e a assonância de sons nasais (“interminamente
repetir um/monótono romance, o romance da minha vida”, vv. 1-2), a enumeração
(“Queixar-me, castigar e lamentar”, v. 8), o assíndeto (“Começar, recomeçar,
interminamente repetir”, v. 1), a repetição (“Monotonamente, monotonamente.”,
v. 13) e a pontuação, nomeadamente as reticências, que marcam a suspensão do
pensamento (vv. 3-4) e o ponto final a substituir a vírgula (v. 14). Esses
recursos expressivos, pelo seu carácter repetitivo, marcam uma cadência
melancólica, que transmite a ideia de monotonia expressa no poema.
5.1. Segundo o sujeito
poético, a monotonia proporcionou-lhe “a arte da verdade”, a “pobreza” e “a
constância”. Esses dons têm uma aceção positiva – sendo conotados com a
autenticidade, a ausência de importância dada aos bens materiais e a
perseverança/firmeza.
5.2. Resposta pessoal.
Sugestão de resposta:
Sendo a monotonia a
instância a que o sujeito poético apela, não admira que este peça o
desinteresse, a indiferença perante o que ocorre, perante todo o tipo de
entusiasmos…
6. O poema “Monotonia”
adapta-se ao título da obra Um dia e outro dia, pois remete para um quotidiano
cinzento, monótono, habitual.
Poderá também gostar:
- “Cai um pássaro do ar, devagar, muito devagar”, de Irene Lisboa. In Guia de aprendizagem. Disciplina de Português. Unidade 4. Ensino Secundário Recorrente; Lisboa, Ministério da Educação – Departamento do Ensino Secundário, 1997. Apud “Lisboa” in Folha de Poesia, José Carreiro, 2013-07-04.
- “Gostava de escrever com um fio de água” – leitura orientada do poema “Escrever”, de Irene Lisboa. In: Folha de Poesia, José Carreiro, 2016-09-22.
- Uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma, Irene Lisboa. Lisboa, Portugália
Editora, 1955 (obra completa).
CARREIRO, José. “Monotonia,
Irene Lisboa”. Portugal, Folha de Poesia, 30-06-2022. Disponível em:
https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/06/irene-lisboa-monotonia.html