ABÓBORA
Minha aboborazinha,
por vezes gosto de pensar noutras raparigas
mas a verdade é que
se alguma vez me deixasses
rasgaria todo o coração
e nunca mais o consertava.
Nunca vai haver ninguém como tu.
Que embaraço.
Poema de Ron Padgett em Paterson, Trad. de João Luís Barreto Guimarães
* * *
A CORRIDA
Atravesso
triliões de moléculas
que se afastam
para abrir caminho para mim
enquanto de ambos os lados
outros triliões delas
permanecem onde estão.
A lâmina do limpa-brisas
começa a chiar.
A chuva parou.
Eu paro.
Na esquina
um menino
numa gabardine amarela
segura a mão de sua mãe.
Poema
de Ron Padgett em Paterson, Trad. de João Luís Barreto Guimarães
- Título original:
- Paterson
- De:
- Jim Jarmusch
- Com:
- Adam Driver, Golshifteh Farahani, Helen-Jean Arthur
- Género:
- Drama, Comédia
- Classificação:
- M/12
- Outros dados:
- ALE/EUA/FRA, 2016, Cores, 118 min.
Paterson trabalha como motorista de autocarro na cidade de Paterson, em New Jersey (EUA). A sua rotina diária é sempre igual: acorda exactamente à mesma hora, vai trabalhar, regressa para os braços de Laura, a namorada, passeia Marvin, o cão, bebe uma única cerveja no bar de um amigo e escreve poesia, não necessariamente por esta ordem. A sua vida é tranquila e a sua existência discreta. Paterson está apaixonado por Laura e ela por ele. Ele apoia os sonhos e projectos mais arrojados da namorada; ela incentiva-o e inspira-o na escrita dos seus poemas. É assim todos os dias.
Escrito e realizado por Jim Jarmusch – o aclamado realizador de "Noite na Terra", "Homem Morto", "Café e Cigarros", "Broken Flowers - Flores Partidas", "Os Limites do Controlo", "Só os Amantes Sobrevivem" ou "Gimme Danger" –, e com Adam Driver e Golshifteh Farahani como protagonistas, um filme melancólico sobre as incontáveis rotinas de um casal durante os sete dias de uma semana.
Assistir ao filme completo, aqui.
Para poeta de ‘Paterson’, Jim Jarmusch fez trabalho artesanal em filme
Ron Padgett diz que adaptação respeitou caráter pessoal de seus poemas
RIO - Os fãs da série “Girls” e do mais recente episódio da
franquia “Star Wars” devem se surpreender com o papel de Adam Driver em
“Paterson”, de Jim Jarmusch. Driver vive um discreto motorista de ônibus em
Nova Jersey, que escreve versos em brechas de sua rotina diária. A partir de
sua observação detida, registrada em papel e lápis, o espectador conhece o
trabalho de um dos nomes mais relevantes da poesia norte-americana da segunda
metade do século XX. São de Ron Padgett os belos poemas que Paterson,
personagem de Driver, escreve e verbaliza ao longo do filme. Poeta profundamente
ligado à cidade de Nova York, onde dirigiu o icônico e ainda ativo Poetry
Project, na Igreja Saint Mark, no East Village, Padgett conta nesta entrevista,
por e-mail, um pouco sobre sua relação com Jarmusch e o processo de criação dos
poemas de “Paterson”.
Você e Jarmusch já se conheciam há tempos, como foi o convite para
participar da produção?
Jim e eu nos tornamos amigos uns
15 anos atrás, por meio de um amigo comum, o escritor Paul Auster. Conhecíamos
o trabalho um do outro muito tempo antes disso. Vários anos atrás Jim me ligou
e contou de um filme que estava pensando em fazer sobre um motorista de ônibus
que escreve poesia e vive em Paterson, e me perguntou se eu poderia servir como
o que ele chamou de “consultor de poesia”. Eu não sabia o que poderia ser um
consultor de poesia, mas imediatamente disse sim, porque eu gosto de Jim e
confio nele. Mais tarde ele voltou a me ligar perguntando se poderia usar
alguns dos meus poemas no filme, e é claro que fiquei surpreso e encantado. O
processo todo foi simples e pessoal. Jim é muito respeitoso com quem trabalha
com ele.
Quando escreveu os poemas para o filme, você tentou incorporar a
voz do personagem aos versos?
Quatro dos meus sete poemas em
“Paterson” foram escritos muito antes de o filme ser feito. Jim os selecionou
por conta própria de meus livros, mas disse-me que eu poderia escrever mais poemas
se eu quisesse. Em princípio a ideia me apavorou, mas logo eu me vi escrevendo
mais três. Para realizá-los, de certo modo eu me projetei na fantasia de ser um
motorista de ônibus, mas, ao mesmo tempo, queria escrever poemas que pudessem
existir por conta própria, independentemente do filme.
Como se sentiu trabalhando para a indústria cinematográfica, tão
diferente da atmosfera artesanal do trabalho poético?
Jim Jarmusch é um cineasta muito
independente, então não penso nele como alguém da “indústria cinematográfica”.
Na verdade, ele é um artesão, como eu. Esse projeto se parece mais com os
projetos colaborativos que tenho feito com amigos artistas nos últimos 55 anos:
pessoal, não industrial.
Como foi ouvir Adam Driver lendo seus poemas? Sua leitura o surpreendeu?
Eu estava muito curioso para ver
como Driver diria os poemas em voz alta, e eu fiquei não apenas aliviado, mas
encantado com sua entrega. Soa certo, perfeito para o personagem. Driver é
realmente um bom ator. Ele não parece estar atuando.
O poeta William Carlos Williams é uma espécie de centro
gravitacional do filme, com diversas referências à sua biografia e sua obra
principal, seu longo poema sobre a cidade de Paterson. Qual sua relação com o
trabalho de Williams?
Eu descobri a poesia de Williams
quando tinha 16 anos e gostei muito, então li seu trabalho em prosa também. Ele
era um maravilhoso escritor de ficção. Em 1964, por volta de 18 meses após sua
morte, eu e alguns amigos poetas fizemos uma espécie de peregrinação até sua
casa em Nova Jersey e fomos muito bem recebidos por sua viúva, uma mulher doce
e amável. Eu senti como se nós tivéssemos entrado em um lugar muito especial.
Como foi o começo de sua carreira como poeta? Quando você sentiu
que a poesia poderia ser seu trabalho?
Eu venho de uma família da classe
trabalhadora, não literária, mas, quando eu tinha 16 anos, decidi que escrever
poesia era o que eu queria fazer. Talvez os poemas no filme funcionem por conta
dessa trajetória modesta. Em minha família, ser esnobe, presunçoso ou se gabar
era considerado vergonhoso.
De Ginsberg a Patti Smith, boa parte da poesia norte-americana
produzida na segunda metade do século passado passou pelo evento literário
Poetry Project. Como foi ter dirigido o projeto? Como é possível que ele ainda
se mantenha vivo?
Eu dirigi o projeto por apenas
dois anos e meio. Era muito trabalho duro — nada do glamour que as pessoas
podem pensar —, mas eu me sinto feliz por ter feito. Neste ano o projeto
celebra 50 anos, uma tremenda conquista para um grupo pequeno e local. Ter um
espaço físico num prédio histórico tem proporcionado continuidade, mas o
projeto tem sido fundamentalmente sustentado pelo idealismo e a energia de cada
geração que se envolve com ele, constantemente renovando-o enquanto honra suas
tradições - uma delas é a inovação!
A poesia tem algum papel em momentos como o atual, protagonizados
por personagens como Donald Trump?
A poesia tem um papel em todos os
tempos, mas, nestes dias tristes e deprimentes nos EUA, ela pode servir como um
consolo para alguns e um motivador para a ação política para outros. Não
conheço um único poeta que não esteja enojado, desanimado e enraivecido por
Trump e seus perigosos companheiros, então, embora nós poetas tenhamos, é
claro, nossas diferenças estéticas, nós estamos unidos. Quanto efeito isso
trará é uma questão a ser respondida, mas estamos fazendo o melhor que podemos.
Se nada mais, talvez a poesia possa ajudar as pessoas a se sentirem um pouco
melhor em estar vivas, assim como o filme de Jim Jarmusch faz.
* José Godoy é poeta, autor de
"A arte de andar por aí sem portar um celular" (Ed. 7Letras)
Um filme em formato de poema: “Paterson”, de Jim Jarmusch
dos princípios da poesia aplicados à narrativa cinematográfica
“Eu sempre carrego esses caras [os poetas] no meu coração”. Jim Jarmusch
Paterson, último filme de ficção de Jim Jarmusch, foi uma das
surpresas mais gratificantes de 2016. No lado oposto daquilo que o crítico
Roger Ebert identificou como “a nova especialidade de Hollywood: filmes de
categoria B com orçamento de categoria A”, Paterson é um filme
de categoria A com orçamento de categoria B.
O que não prejudica em nada a sua excelência. Aliás,
as condições de produção parecem ter contribuído para a unidade temática da
narrativa. Uma grande produção talvez não estivesse de acordo com as necessidades
espirituais do personagem principal — o jovem Paterson, poeta da cidade de Paterson, New
Jersey, que, no “horário comercial”, é também motorista de ônibus.
O nome de Jarmusch é frequentemente associado ao
adjetivo indie. Com o passar dos anos, o próprio diretor alimentou
a ideia de que era um marginal na indústria de cinema americana, como a
assinalar não apenas as condições materiais de suas produções, mas também a
singularidade de sua visão de mundo.
Em Paterson não é diferente. Embora
esteja inserido numa determinada tradição cinematográfica (e eu penso em nomes
como Cassavetes, Bresson e Rohmer), sem dúvida não é o tipo de filme com o qual
os donos de cinema esperam faturar bastante: não há nenhuma ação frenética, não
há nenhum tipo de conflito que não possa ser encontrado na nossa própria vida
cotidiana, e, depois de 20 minutos, você já se acostumou com a sua estrutura de
modo que já dá para saber exatamente o seu desenvolvimento.
Sequências estruturadas em estrofes
Isso acontece porque a narrativa
de Paterson é construída como um poema. Ela se desenvolve de
acordo com a rotina do poeta-motorista: acordar, trabalhar, escrever, conversar
com a mulher a respeito do dia e das aspirações futuras, passear com o
cachorro, beber no pub da esquina, ler e dormir.
Ora, a regra da linguagem poética é a repetição. Essa
repetição que está tão fundamentalmente arraigada na constituição do ser humano
que, longe de ser algo entediante, é simplesmente essencial à própria vida
(vejam-se o ritmo da nossa respiração, dos nossos batimentos cardíacos e da
nossa circulação sanguínea).
Assim, para transformar a linguagem da natureza em uma
linguagem artisticamente expressiva, basta o indivíduo ser sensível o
suficiente para observar e captar os ritmos já presentes no mundo. Como o poeta
Maiakovski, que escreveu:
“O ritmo pode ser produzido tanto pelo trabalho
repetido do mar como pela criada que todas as manhãs faz bater a porta, e esse
barulho repete-se, arrasta-se penetrando na minha consciência, e
até o movimento da Terra à volta do sol, que para mim, como num armazém de
material para lições de coisas, alterna e se liga de modo caricatural e
inevitável com o vento que se levanta e assobia” (Como Fazer Versos, p. 50).
Sensível ao ritmo da vida, Jarmusch constrói o seu filme como um poema.
Os sete dias da vida de Paterson são como sete estrofes: sete sequências de
acontecimentos nas quais os temas se repetem com ligeiras alterações. Há a
proposição de um padrão e uma leve subversão do mesmo, um encadeamento de
pequenos contrastes dentro de um sistema repetitivo.
O
extraordinário quotidiano
Paterson não apresenta nenhuma das
características comumente associadas aos poetas: a divindade, a profecia, a
vidência, a possessão, a magia, a loucura, a grandeza, o idealismo, o heroísmo,
a prodigiosidade, a predestinação, a angústia, o engajamento político. Talvez
essas características estejam presentes em sua personalidade (pela imaginação
literária), mas elas não constituem o seu traço mais distintivo.
Ele é um personagem que ignora completamente a frase atribuída
a Martin Amis de que “devemos desconfiar de um poeta que saiba dirigir um
automóvel”, pois ele não apenas sabe dirigir um automóvel, como o faz durante a
maior parte dos seus dias. Mas Paterson está muito bem adaptado à vida real. A
atuação minimalista de Adam Driver, com economia expressiva à maneira de Bresson,
empresta uma sinceridade bastante humana ao personagem: temos vontade de nos
tornarmos seus amigos.
O filme de Jarmusch está mais de acordo com uma visão
realista e menos idealizada do artista. À maneira de poetas como o médico
William Carlos Williams (nascido na cidade de Paterson e homenageado pelo
filme) e o corretor de seguros Wallace Stevens, a atividade pela qual Paterson
se sustenta não influi no fator predominante do seu espírito. Sua
imaginação educada permite-lhe retirar poesia das situações e objetos mais
simples da vida: uma caixa de fósforos, as banalidades da vida
conjugal, a cerveja bebida à noite. Contudo, estes pequenos elementos do
cotidiano são transcendidos pela dedicação a um sentido maior: o amor à sua
esposa e a reflexão sobre o tempo e o sentido da vida, materiais próprios da
poesia.
Diferente do que um mundo repleto de intelectuais
pop-stars ou intellectuals yet idiots pode
querer fazer crer, a cultura não é um salvo-conduto que deve prover garantias
de privilégios sociais, nem muito menos apenas um conjunto de conhecimentos
estéticos que fazem o seu portador parecer “mais legal”. Independente da
circunstância social do indivíduo, a cultura será o elemento que
lhe ajudará a encontrar o sentido de sua vida, o triunfo da beleza e da
inteligência contra as trevas da feiura e da ignorância.
Nesse sentido, a escola de poesia de Nova York, e
notadamente a poesia de Ron Padget (o verdadeiro autor dos poemas presentes
em Paterson), demonstra que mesmo a influência dos beatniks não
desviou a literatura americana de sua vocação moral; por isso, o cotidiano de
Paterson não é apenas uma arbitrariedade do destino, uma “imposição social”,
nem nada do tipo; é simplesmente o modo como ele escolheu viver a sua vida de
maneira que fosse possível realizar a sua vocação de poeta. O modo de vida de
Paterson é mais do que imperativo: é necessário.
Paterson demonstra que o quotidiano de um indivíduo é mais ou menos
extraordinário na medida da sua imaginação.
Olhando para a carreira de Jarmusch como um todo, na
qual uma mixórdia de referências culturais era enquadrada por uma estética que
se convencionou chamar de hipster, podemos afirmar que nenhuma de suas obras
anteriores foi tão coerente quanto essa. Há bons filmes, como Stranger
Than Paradise, Down by Law e Dead Man, mas
nenhum é tão bom quanto este Paterson.
Leandro Costa, 2017-04-13
“Paterson”: poesia, autocarros e comédia “zen” por Jim Jarmusch
Paterson é uma cidade do estado americano de New Jersey, com
cerca de 145 mil habitantes. É o título de um longuíssimo poema de William
Carlos Williams, influenciado por Ulisses, de James Joyce, e
uma resposta a The Waste Land, de T.S. Eliot, publicado em cinco volumes, entre 1946 e
1958, escrito enquanto o autor, que era médico pediatra, estava colocado no
hospital de Passaic, mesmo ali ao pé de Paterson. E Paterson é também o nome do
protagonista do filme homónimo de Jim Jarmusch, placidamente interpretado por
Adam Driver com o seu ar equino e pachola. Paterson é condutor de
autocarros, tem uma mulher iraniana carinhosa e hiperactiva, Laura, que quer
ser cantora “country” e pinta círculos em tudo, da roupa aos “muffins”, tem um
buldogue, Marvin, que só obedece à mulher, e escreve poesia, que só mostra a
Laura. O seu poeta preferido, tal como o da mulher, é Williams Carlos Williams.
Isto está mesmo tudo ligado, como diria o outro.
A história desenrola-se ao longo de uma semana na vida de
Paterson, seguindo as suas rotinas diárias, com uma ou outra fuga ao habitual
ou acontecimento inesperado. Jarmusch gosta de dar tempo
ao tempo, e este é um daqueles filmes sem pressas, em que se sente o tempo
passar, enquanto Paterson sai de casa, guia o autocarro, volta para casa, janta
com a mulher e vai dar uma volta com o buldogue e beber uma cerveja no bar do
bairro. E escreve os seus poemas, à mão, com um lápis, e sem fazer cópias,
apesar dos repetidos avisos da mulher. Paterson não tem telemóvel (quando um dia o seu autocarro
pifa, tem que pedir um emprestado a um passageiro para comunicar a avaria).
Aliás, em “Paterson”, ninguém passa horas ao computador nas redes sociais, nem
a devorar séries de televisão. Nem há cenas de sexo, porque Jarmusch não se
sente à vontade com o assunto e evita filmá-las sempre que pode.
É como se o filme se ambientasse numa América alternativa,
uma utopia pacata, de felicidade rotineira “low, low tech” e sem gente má, onde
as pessoas ainda falam umas com as outras nos bares, nas lavandarias e nos
autocarros, em vez de estarem com as caras enfiadas nos Smartphones. Até mesmo
quando Paterson e a mulher quebram a rotina no fim-de-semana e decidem ir ao
cinema, não vão ver um filme de super-heróis ou uma comédia de adolescentes
estúpida, mas sim uma velha fita a preto e branco, “A Ilha das Almas
Selvagens”, de Earl C. Kenton, a primeira adaptação ao cinema de “A Ilha do Dr.
Moreau”, de H.G. Wells.“Paterson” é uma comédia “cool” e “zen” como só Jim Jarnusch as
sabe fazer, anti-“slapstick” e casual, subtilmente poética e excêntrica (ver as
rimas visuais em casa de Paterson ou os gémeos que povoam o filme) e com “gags”
de pavio tão longo como o poema de Williams Carlos Williams que dá nome ao
filme e à personagem.
E depois, há a poesia que Paterson escreve (da autoria do
poeta Ron Padgett, grande amigo do realizador, e que fez três poemas
expressamente para o filme), tão quotidiana como a sua vida e o filme,
imediata, despretensiosa e transparente, também ela “zen”. É que Paterson não
só não tem quaisquer angústias ou fúrias criativas, como também não escreve com
a ambição ardente de ser publicado, reconhecido e ganhar prémios. “Paterson” vai frontalmente
contra todos os “clichés” da representação dos poetas e da escrita poética no
cinema, porque Jim Jarmusch quer desdramatizar e desromantizar o acto da
criação poética, e trazê-lo para o quotidiano mais prosaico e tangível. Sim, a poesia
tem muita importância na vida de Paterson, mas ele encara-a com naturalidade,
sem dramas nem estados de alma.
E quando um acidente doméstico com o cão Marvin provoca o
único grande baque do filme e vem dar razão a Laura (interpretada pela
encantadora Golshifteh Farahani) o universo, na pessoa de um turista japonês
também apreciador de Williams Carlos Williams e de visita à cidade,
encarrega-se de o ajudar a começar a recompor-se do abalo. Tudo muito “cool”, tudo muito
zen, tudo delicada, empatica e soberbamente jarmuschiano. Será ainda preciso
dizer que “Paterson” é um dos melhores filmes do ano?
Eurico de Barros, 2017-06-29
Paterson: o triunfo da poesia sobre o poema
Heidegger
apontou, em sua obra prima Ser e Tempo, que toda uma tradição de comentadores
da obra de Platão foi responsável por disseminar um grande equívoco: o
privilégio do ente em detrimento do ser. Ele aponta que a história da recepção
de Platão é a história do esquecimento do ser.
O que Paterson, o mais recente filme de Jim
Jarmusch, tem a ver com o diagnóstico feito por Heidegger em sua obra de 1927?
No filme acompanhamos o dia a dia de Paterson,
motorista de ônibus, poeta e morador da cidade de Paterson, onde vive ao lado
de Laura, sua companheira, e Marvin, seu cachorro.
Paterson leva uma rotina pacata de cidadezinha do
interior, acorda cedo, sai pra trabalhar, almoça, volta do trabalho, janta,
leva o cachorro pra passear e bebe uma cerveja no bar antes de voltar pra casa.
Tudo isso acompanhado do caderno onde escreve seus poemas e que só o espectador
tem acesso ao longo do filme. A rotina ganha vida através das palavras de
Paterson e uma caixinha de fósforos vira uma metáfora para o amor. Em Love Poem ele descreve um fósforo
“furioso, sóbrio e obstinadamente pronto/ a queimar em chamas/ acendendo talvez
o cigarro da mulher amada/ pela primeira vez… eu me torno o cigarro e você o
fósforo/ ou eu o fósforo e você o cigarro/ ardendo em beijos que queimam até o
céu”.
São quatro os poemas apresentados ao longo do
filme, um deles de William Carlos Williams. Os poemas de Paterson, assim como o
de WCW, são simples, curtos e ao mesmo tempo potentes por revelarem a poesia
presente no cotidiano. Paterson é mais do que seus poemas, escondidos do mundo
em seu caderno secreto, Paterson é alguém cuja abertura de mundo se dá através
da poesia. No filme, a poesia é representada como um modo de ser no mundo, de
ser e de habitar. Esse foi o aspecto que mais me chamou a atenção no filme: o
privilégio da poesia em detrimento do poema, ou no linguajar heideggeriano, o
privilégio do ser em detrimento do ente e não o contrário. Algo tão raro quando
se trata de poesia, quase sempre deixada em segundo plano pelo poema.
O cinema está para a poesia assim como o filme
está para o poema. Cinema e poesia estão para o ser assim como filme e poema
estão para o ente.
Pouco ou nada se fala sobre o apagamento da poesia
em detrimento do poema, assim como pouco ou nada se falava em relação ao
esquecimento do ser em detrimento do ente. O filme é um excelente mote para a
discussão desse apagamento. É a poesia, enquanto modo de ser no mundo, que
contamina o nosso olhar e a nossa linguagem, sempre sobrepostos. Ver o mundo
poeticamente não resulta necessariamente em poemas.
O ponto alto do filme é quando Paterson e Laura
saem para o cinema e ele deixa seu caderno secreto sobre o sofá, que acaba
sendo inteiramente destruído pelo cachorro. É evidente que após o episódio
Paterson não deixa de ser um poeta, mesmo sem poemas.
Todo esse equívoco em relação à poesia tem provocado
uma série de desentendimentos e desconfiança por parte dos leitores, que não
entendem a proposta por não saberem o que é poesia. Por isso não entendem que a
poesia é uma experiência de mundo, um modo de ser da verdade entre tantos
outros (tais como a física, a química ou a biologia).
O filme é, sem dúvidas, um grande elogio à poesia.
Privilegiar a poesia em detrimento do poema é seu grande triunfo, pois aproxima
o espectador e torna o universo poético acessível a mais pessoas,
principalmente as que costumam pensar que a poesia é algo que está muito
distante da realidade, quase inacessível. O filme nos mostra o que é ver, dizer
e se relacionar consigo, com o outro e com as coisas de modo poético. Jim
Jarmusch, ao apresentar o mundo a partir da perspectiva poética de Paterson,
possibilita que todo e qualquer espectador seja tocado pela poesia.
Yasmin Nigri, 2017-05-01
Ron Padgett
(17.6.1942, Tulsa) #poesianorteamericana
O POETA ENQUANTO PÁSSARO IMORTAL
Um segundo atrás o meu coração
deixou de bater
e eu pensei: «Seria uma péssima
altura
para ter um ataque cardíaco e
morrer,
a meio de um poema», então
reconfortou-me
a ideia de que nunca soube de
ninguém
que morresse a meio da escrita de
um poema,
assim como os pássaros nunca
morrem a meio do voo.
Acho.
Ron Padgett, Poemas
Escolhidos, tradução de Rosalina Marshall, ed. Assírio & Alvim