quarta-feira, 13 de abril de 2022

A Maior Flor do Mundo, José Saramago



A MAIOR FLOR DO MUNDO


Sai o menino pelos fundos do quintal, e, de árvore em árvore, como um pintassilgo, desce ao rio e depois por ele abaixo, naquela vagarosa brincadeira que o tempo alto, largo e profundo da infância a todos nós permitiu...

Em certa altura, chegou ao limite das terras até onde se aventurara sozinho. [...] Dali para diante, para o nosso menino, será só uma pergunta [...]: «Vou ou não vou?» E foi.

O rio fazia um desvio grande, afastava-se, e de rio ele estava já um pouco farto, tanto que o via desde que nascera. Resolveu cortar a direito pelos campos, entre extensos olivais, [...] e outras vezes metendo por bosques de altos freixos onde havia clareiras macias sem rasto de gente ou bicho, e ao redor um silêncio que zumbia, e também um calor vegetal, um cheiro de caule sangrado de fresco como uma veia branca e verde.

Oh que feliz ia o menino! Andou, andou, foram rareando as árvores, e agora havia uma charneca rasa, de mato ralo e seco, e no meio dela uma inóspita colina redonda como uma tigela voltada.

Deu-se o menino ao trabalho de subir a encosta, e quando chegou lá acima, que viu ele? [...] Era só uma flor. Mas tão caída, tão murcha, que o menino se achegou, de cansado. E como este menino era especial de história, achou que tinha de salvar a flor. Mas que é da água? Ali, no alto, nem pinga. Cá por baixo, só no rio, e esse que longe estava!...

Não importa.

 

Desce o menino a montanha,

Atravessa o mundo todo,

Chega ao grande rio Nilo,

No côncavo das mãos recolhe

Quanto de água lá cabia,

Volta o mundo a atravessar,

Pela vertente se arrasta,

Três gotas que lá chegaram,

Bebeu-as a flor sedenta.

Vinte vezes cá e lá,

Cem mil viagens à Lua,

O sangue nos pés descalços,

Mas a flor aprumada

Já dava cheiro no ar,

E como se fosse um carvalho

Deitava sombra no chão.

 

O menino adormeceu debaixo da flor. Passaram as horas, e os pais, como é costume nestes casos, começaram a afligir-se muito. Saiu toda a família e mais vizinhos à busca do menino perdido. E não o acharam.

Correram tudo, já em lágrimas tantas, e era quase sol-pôr quando levantaram os olhos e viram ao longe uma flor enorme que ninguém se lembrava que estivesse ali.

Foram todos de carreira, subiram a colina e deram com o menino adormecido. Sobre ele, resguardando-o do fresco da tarde, estava uma grande pétala perfumada, com todas as cores do arco-íris.

Este menino foi levado para casa, rodeado de todo o respeito, como obra de milagre. Quando depois passava pelas ruas, as pessoas diziam que ele saíra da aldeia para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que todos os tamanhos.

José Saramago, A Maior Flor do Mundo, 2001.

 

 

VOCABULÁRIO:

 

freixos – árvores frequentes nas margens dos rios.

charneca – terreno plano onde apenas cresce vegetação rasteira.

ralo – pouco denso.

inóspita – agreste, inabitável.

se achegou – se aproximou.

côncavo – cova ou cavidade.

aprumada – bem direita.

de carreira – atrás uns dos outros; depressa.

 

QUESTIONÁRIO:

 

Responde aos itens que se seguem, de acordo com as orientações que te são dadas.

 

1. Assinala, de 1.1. a 1.3., a única opção que completa cada frase de acordo com o sentido do texto.

1.1. Nos dois primeiros parágrafos, o menino é apresentado como uma personagem que

A.     caminha com passos vagarosos.

B.     brinca com um pintassilgo.

C.     saltita com a leveza de uma ave.

D.    avança com passadas largas.

 

1.2. O menino aventurou-se por caminhos desconhecidos e

A.     encontrou, ao pé do rio, uma flor murcha.

B.     colheu, no cimo da encosta, uma flor perfumada.

C.     plantou, ao pé do rio, uma flor especial.

D.    descobriu, no cimo da encosta, uma flor ressequida.

 

1.3. A ideia contida nas linhas 32 a 35 mostra que a flor

A.     abrira as grandes pétalas perfumadas.

B.     se encontrava à sombra de um carvalho.

C.     se cobrira de pétalas pequenas e coloridas.

D.    crescera à sombra de uma árvore de copa larga.

 

2. Relê o segundo parágrafo.

Indica o motivo da indecisão do menino.

 

3. O percurso do menino levou-o a descobrir lugares novos.

Relê o quarto parágrafo.

Transcreve a frase que mostra o sentimento que essa descoberta despertou no menino.

 

4. Relê a expressão seguinte: «Andou, andou».

Que ideia transmite a repetição da palavra?

 

5. Depois de encontrar a flor, o menino sentiu que tinha uma tarefa para cumprir.

Refere três dos obstáculos que o menino teve de vencer para cumprir essa tarefa.

 

6. Relê o último parágrafo.

Concordas com o modo como as pessoas da aldeia reagiram ao que o menino fez?

Justifica a tua opinião.

 

 

CHAVE DE RESPOSTAS:

 

1.1. C

 

1.2. D

 

1.3. A

 

2. O menino ficou indeciso porque tinha chegado ao limite das terras em que se tinha aventurado sozinho.

 

3. Transcreve, com total fidelidade e respeitando as normas de transcrição, a frase: «Oh que feliz ia o menino!».

 

4. A repetição da palavra «andou» transmite a ideia de que o menino andou durante muito tempo / fez um longo percurso.

 

5. Refere três dos obstáculos que o menino teve de vencer. Por exemplo:

– a distância a que a água se encontra da flor;

– a falta de um recipiente para transportar a água;

– a necessidade de fazer inúmeras viagens;

– as mãos pequeninas do menino;

– a falta de sapatos;

– os pés a sangrar;

– o cansaço.

 

6. Cenários de resposta:

Concorda com o modo como as pessoas da aldeia reagiram e apresenta uma justificação plausível, explicitando, a partir da informação contida no texto, a razão em que baseia a sua posição.

OU

Discorda do modo como as pessoas da aldeia reagiram e apresenta uma justificação plausível, explicitando, a partir da informação contida no texto, a razão em que baseia a sua posição.

OU

Aponta aspetos favoráveis e desfavoráveis relativamente ao modo como as pessoas da aldeia reagiram e apresenta uma justificação plausível, explicitando, a partir da informação contida no texto, a razão em que baseia a sua posição.

 

Consultar outros níveis de desempenho na fonte: Prova Final de Língua Portuguesa 2.º Ciclo do Ensino Básico (Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de janeiro) - Prova 61/1.ª Chamada, IAVE, 2012



Uma análise da obra A Maior Flor Do Mundo, de José Saramago

 

A obra A Maior Flor do Mundo, cuja 1.ª edição foi publicada em 2001, foi escrita para crianças por José Saramago.

Esta obra apresenta características específicas da literatura infantil: trata-se de uma história muito curta, escrita “com palavras muito simples” (MFM); a personagem principal é uma criança (um menino), facto que a aproxima dos seus leitores; a história tem um final feliz, ou seja, o herói é recompensado pela sua atitude solidária, corajosa e heroica, obtendo o respeito de todos. Outra característica específica da literatura infantil é a ilustração realizada por João Caetano, que nesta obra tem um enorme destaque pois ocupa o fundo de todas as páginas. É uma ilustração que enriquece o texto acrescentando-lhe pormenores (envolvidos de subjetividade) que estimulam a imaginação do leitor ao cruzar elementos e informações diversas: a pintura, que parece feita em tela, é entrecortada por colagens e pequenas informações e detalhes que exigem algum cuidado interpretativo. Como exemplo, destacamos a ilustração em que o menino é encontrado adormecido debaixo da pétala da grande flor: as pétalas são recortes do mapa-mundo e a altura do seu caule é destacada com uma fita métrica.

Outro aspeto interessante da ilustração é o facto de o escritor se assemelhar a José Saramago, o que reforça a ideia de que o narrador é simultaneamente o autor do texto. Em síntese, parece-nos que neste caso não é a ilustração que se articula harmoniosamente com o texto, mas o contrário: o texto articula-se harmoniosamente com a ilustração, tal é a importância e a riqueza de pormenores que esta acrescenta à história.

 

Ler análise completa em: Viagem por algumas obras de literatura infanto-juvenil e de literatura para adultos: um estudo contrastivo de tipologias literárias, Idalina Ferraz. Covilhã, Departamento de Letras da Universidade da Beira Interior, 2009.

 


CARREIRO, José. “A Maior Flor do Mundo, José Saramago”. Portugal, Folha de Poesia, 13-04-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/04/a-maior-flor-do-mundo-jose-saramago.html