Carlos Drummond de
Andrade,
D. Quixote, Cervantes, Portinari, Drummond.
Rio de Janeiro: Diagraphis, 1973, p. 12
A
dicotomia devaneio x realidade
Ao buscar as produções de Drummond e Portinari, a
que primeiro se encontra é o “Soneto da Loucura”, ladeada pelo desenho de
Portinari correspondente ao poema.
Está-se, portanto, diante de duas criações que
estabelecem relações intertextuais que instigam a examiná-las. Tome-se como
objeto de análise, o desenho “Dom Quixote de cócoras com idéias delirantes”.
Encontra-se, neste desenho, um Dom Quixote muito
magro e solitário, sentado de cócoras com as mãos postas acima dos olhos, como
se estivesse fixando seu olhar ao longe. A imagem de Dom Quixote pode causar
estranheza logo em um primeiro olhar, pois transmite uma sensação de
desequilíbrio e desalinho ao mesmo tempo. O desequilíbrio pode ser percebido na
sua posição e na falta de harmonia do seu conjunto. A dimensão deste desenho plástico-pictórico
é de 20x30cm, sendo vinte centímetros de largura e 30 de altura, porém,
estabelecendo-se um ponto médio que localize o ponto central entre largura e
altura, percebe-se que este se localizará próximo à axila esquerda de Dom
Quixote, conforme se vê abaixo.
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Imagem de Dom Quixote |
Nesta divisão, pode-se visualizar que o corpo de
Dom Quixote não está centrado. A maior parte do seu corpo encontra-se, quase
que em sua totalidade, ao lado direito, no entanto, em vez desse posicionamento
centralizá-lo neste lado da imagem, sua perna e braço esquerdos invadem o
espaço esquerdo e são desproporcionais em relação aos mesmos membros do outro
lado. Percebe-se uma textualidade visual que possibilita a construção de
sentidos, principalmente ao observar as formações eidéticas – linhas –, assim
como as formas que compõe uma assimetria, transmitindo, assim, uma idéia de
desproporção dos membros que constituem uma percepção de instabilidade que
fortalece a sensação de desequilíbrio (DONDIS, 1997), já que, aparentemente, o
corpo tenderia a tombar para o lado, principalmente se for levado em consideração
que seus braços, mãos e pernas não estão nivelados, o que por si só já causaria
certa dificuldade para a sustentação e equilíbrio de alguém que se encontre
nessa mesma posição, materializando, desta forma, a imagem de um ser em
desarmonia.
O desequilíbrio das linhas também é mantido pelo
pintor no olhar de Dom Quixote. Seus olhos estão como que arregalados e fixos
no horizonte, porém, não passam a sensação de estarem realmente vendo algo,
pelo contrário, parecem fixar o longe e o nada ao mesmo tempo. Sua postura
demonstra que está à procura de algo, como se pode perceber pelas suas mãos, em
posição característica de apoio à visão, demonstrando uma busca. Percebe-se que
o negro de seus olhos ressalta o “vazio” presente no branco de suas pupilas.
Este detalhe lhe confere um olhar de alucinação, de quando o indivíduo já não
tem noção do seu eu, de forma que este olhar desvairado demonstra que alguma
coisa se perdeu, ou seja, sua razão. Também se pode considerar que neste olhar
visionário, é como se, na verdade, olhasse para um outro mundo à procura de
algo. Seja qual for, parece tratar-se de uma busca apaixonada, o que se pode
inferir pela vermelhidão intensa de seu rosto, que denota sua característica
sangüínea.
Um dos aspectos que mais chama a atenção no
desenho, além da própria posição e postura da personagem, é o cromatismo.
Quanto às cores, prevalecem os fundos amarelo e vermelho das partes descobertas
do corpo de Dom Quixote. Estes cromas incluem-se na classificação das cores
quentes, sendo o amarelo a mais quente e ardente das cores, característica
seguida pelo vermelho, cor da paixão (ROUSSEAU, 2004). É o amarelo que é usado
como pano de fundo para a imagem do protagonista. Isto não ocorre por acaso,
visto esta ser a mais expansiva das cores. A esse respeito, Barros afirma que
cada cor suscita “um movimento, uma temperatura, [...] um ‘estado de espírito’”
(2006, p. 184). Em seus estudos, ao falar sobre a teoria das cores de
Kandinsky, diz que, quanto a amarela, a mesma
identifica a força impactante de um movimento
horizontal na direção do espectador. Ele [Kandisnky]
também chama esse movimento de corporal, pois vem em direção ao nosso corpo
físico. O movimento irradiante do amarelo é excêntrico e representa, nas
palavras do próprio artista: ‘um salto para além do limite, a dispersão da
força em torno de si mesma. (Ibidem, p. 185)
Quanto ao simbolismo desta cor, ela explica que,
para o estudioso, “a dispersão excêntrica do amarelo confere a ele um aspecto
superficial [...]. É uma cor fascinante e extravagante, uma explosão de
energia, um desperdiçar das forças e, portanto, uma cor sem profundidade” (p.
186). Já no que se refere ao estado de espírito suscitado, trata-se da “cor que
melhor representa a loucura e o delírio na visão de Kandinsky” (p.187).
Percebe-se também o alto grau de luminosidade do croma amarelo no desenho de
Portinari, o que fortalece seu movimento excêntrico. Assim, ocorre a
prevalência de uma cor quente e expansiva acompanhada pela cor do fogo, da
paixão e da impulsividade. O amarelo pode ser considerado como um vermelho mais
luminoso (ROUSSEAU, 2004), pois ambas as cores, amarelo e vermelho, se
harmonizam com os devaneios da personagem, à procura de algo irreal e
inatingível. Apreende-se que os cromas são convergentes, visto que ao mesmo
tempo que o amarelo aponta para o devaneio, no sentido de fuga do real, tanto
ele quanto o vermelho – como cores quentes – suscitam e exprimem ardor, força e
poder, entre outras coisas. Observa-se que uma parte da simbologia da cor vermelha
também pode ser atribuída à amarela; contudo, a amarela distingue-se da primeira
pelo seu caráter luminoso que o aproxima da inteligência (Idem, p. 100), que,
por sua vez, pode-se dizer tratar-se de um dos atributos de Dom Quixote, homem
culto e com vasta leitura.
Já nas vestimentas quixotescas há a presença do verde,
azul, rosa e preto. O azul do seu tronco, principalmente por ser a mais fria e
imaterial das cores, contrasta com o vermelho e o amarelo. Mas, ao invés de
divergir da significação delas, ele as fortalece, pois é o azul que representa
o caminho do infinito, onde o real se torna imaginário, uma vez que ele é o
caminho da divagação. E quando ele se escurece, de acordo com sua tendência
natural, torna-se o caminho do sonho (BARROS, 2006). Esta cor está mesclada com
a cor verde, mediadora entre o calor e o frio, cor que também estará presente
em suas calças. Há, ainda no tronco, mesclas de rosa compostas do vermelho e do
branco, ou seja, da paixão e da pureza, e, finalmente o preto, cor que pode se
situar nas duas extremidades, tanto na quente quanto na fria, mas que também
simboliza a inexistência de luz ou de sombra.
No que se refere ao poema “Soneto da Loucura”,
percebe-se que o título em si, ao mesmo tempo que remete a um prenúncio do seu
conteúdo, também aguça a curiosidade do leitor em conhecer a matéria poetizada.
No primeiro verso constitui-se um “eu lírico” representado por Dom Quixote, que
declara que sua “casa pobre é rica de quimera”, ou seja, embora sua casa seja
despojada de bens materiais valiosos, ela é “rica de quimera”, ilusões/sonhos.
Percebe-se a oposição entre a pobreza e a riqueza. Mais ainda: entre o mundo
empírico, do objeto, e o mundo da fantasia. Nessa linha de raciocínio, pode-se
dizer que o nome “casa” acaba funcionando também como metonímia do sujeito.
Opõe-se, portanto, neste passo, uma aparência de descompasso entre aquilo que
se vê – o real empírico –, e aquilo que se imagina – a quimera –, ambos
constituindo o modus vivendi do sujeito que também está configurado na
geometria quixotesca.
É possível dizer que, desde o início, o sujeito
posiciona-se diante do mundo dos sentidos e de si mesmo em uma atitude
avaliativa. Ele apreende o que o cerca e o que acredita atribuindo-lhes valores
distintos. É desta posição judicativa que nasce a dicotomia Devaneio x
Realidade. Assim, encontra-se um eu lírico que, em síntese, além de ser
contraditório desde a sua apresentação, também euforiza o devaneio em contraste
com a realidade. Toma-se, aqui, o conceito devaneio, conforme o entendimento de
Bachelard (1944), mencionado anteriormente. É justamente este devaneio que leva
o eu lírico a declarar que vai “sem destino a trovejar espantos”, ou a não se
mostrar passivo diante dos acontecimentos. Nota-se que, ao falar da sua posição
diante do mundo, ele também se refere a esse estar no mundo como sendo “sem
destino”. Ele trovejará, atuará, pois busca uma participação ativa onde quer que
seja necessário. Seu mundo é em qualquer lugar, não há um local determinado, não
há um destino marcado. Desta forma, através de seus feitos, espera que seu nome
rompa “as mais nevoentas eras,/ tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas”. Nesse
passo o eu lírico revela que deseja alcançar a glória e a fama de seus heróis. É
interessante que ele cite justamente um herói que exista apenas em seus sonhos e
que representa o ideal (anacrônico) da cavalaria andante. Pentapolim, uma personagem
da obra mestra, é um rei cristão que luta em defesa de sua filha donzela e se
recusa a entregá-la a Alifanfarrão, um imperador pagão. A menção desse pai
zeloso converge com sua intenção de “trovejar espantos”, principalmente atentando-se
para o sentido moral de “trovejar”, como indignar-se, que nesse caso implica
que atuará contra o que fere a ordem, idéia que retoma o verso anterior em que
diz que a fama que deseja “há de romper as mais nevoentas eras”. Parece que em
“nevoentas eras” o “eu poético” se refere a um período que está antes mesmo da própria
História, ou seja, um tempo mítico. O adjetivo “nevoentas” se refere àquilo que
cobre o objeto em referência com um véu de opacidade, impedindo que ele seja delineado,
apreendido pela visão. Segundo Mielietinski
O caos se concretiza em sua maior parte como trevas
ou noite [...]. A transformação do caos em cosmo foi esboçada em sistemas
mitológicos bastante arcaicos, nas narrativas sobre a luta travada contra os
demônios ctonianos e os monstros pelos heróis épicos mitológicos, cujos modelos
ainda não se diferenciaram totalmente dos ancestrais e heróis culturais. [...] Os
combates e lutas mitológicos são quase sempre de uma maneira ou de outra
cosmogônicos e marcam a vitória das forças do cosmo sobre as forças do caos.
[...] Tendo em vista que o cosmo se identifica com a ordem e a medida, o caos
se associa naturalmente à violação da medida. [...] Se outros inúmeros
episódios da luta dos heróis míticos e posteriormente dos épicos contra
monstros, demônios, etc., não são um ato cosmogônico de transformação do caos
em cosmo, são pelo menos um ato de defesa do cosmo contra as forças do caos que
o ameaçam. (1987, p. 240 e 243, 244, 246).
Com isso, apresenta-se um sujeito talhado pelo
perfil dos heróis nacionais que, por sua vez, têm suas origens nos arquétipos
dos heróis míticos. Ele deseja trazer a luz, a ordem ao mundo, o que já foi
antecipado na primeira estrofe, em que Dom Quixote se declara um sonhador,
cujos feitos trovejarão espantos em busca de uma glória mítica, ou seja, uma
glória tanto transcendental quanto atemporal.
Pode-se também estabelecer uma relação com uma
passagem mítica quando o eu lírico revela que em seus pensamentos passam
batalhas “jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno”, pois, na cosmogonia,
entendida aqui como a ordenação do caos, instala-se a ordem com a separação de
três esferas: “a terrestre, a celeste e a subterrânea (a passagem da divisão
binária para a trinária), dentre as quais a esfera central – a terra – se opõe
ao mundo aquoso embaixo e ao celeste em cima”. (Ibidem, p. 242).
Na cosmogonia, esta separação é um fator importante
para o estabelecimento da ordem, e, no poema, o herói se põe disposto a atingir
três esferas para estabelecer a sua cosmogonia. É interessante o uso da
expressão “tropel de batalhas”, pois por tropel entende-se som impactante,
movimento desordenado, tal como nas lutas dos heróis míticos. Ao que parece,
instaura-se uma comparação entre a imaginação e o mundo mítico. O verbo “rolar”
confere certa plasticidade à cena, como se fosse uma narrativa fílmica que
apreende o som forte das batalhas, marcado pelo ruído da cavalaria e pelos
movimentos acelerados que sintetizam uma visão forte, violenta do objeto
descrito. Essa imagem troante e atordoante é ponto de referência na aproximação
com a tradição, quer mítica, quer histórica. A gradação presente em “jamais
vistas no chão ou no mar ou no inferno” implica a idéia de exclusão, ou seja,
afirma-se a não existência de qualquer luta dessa natureza. Mas não se
restringe a esse aspecto, já que o mesmo revela que “Se da escura cozinha escapa
o cheiro de alho,/ o que nele recolho é o olor da glória eterna”. Esses versos,
que introduzem a presença dos sentidos, são iniciados com a conjunção “se” denotando
hipóteses que inserem uma linha de raciocínio lógico. Neste ponto temse uma
revelação da visão distorcida que já estava anunciada anteriormente: Dom Quixote
não somente imagina as coisas; ele também metamorfoseia o que vê e o que sente.
Uma leitura mais aprofundada possibilita apreender a contraposição entre a
realidade e o devaneio em “escura cozinha” e “olor da glória”, já que se pode relacionar
o espaço da realidade ao ambiente da cozinha, que possui o cheiro real de alho,
ao mesmo tempo em que “olor da glória” pode corresponder ao espaço do devaneio,
do sonho ou da imaginação. Percebe-se uma distinção bipolar entre os adjetivos
usados, pois enquanto a realidade, atribuída à cozinha é escura, o devaneio,
contido no olor da glória, é eterno. “Escura cozinha” antepõe-se à “glória”. Nessa
relação cria-se a oposição no campo semântico concernente à cor. Se “escura”
implica a idéia de um croma com reduzida luminosidade, “glória” pressupõe alta
concentração tonal, sugerindo, ainda, brilho e esplendor. Outro aspecto a considerar,
ainda relacionado à carga semântica dos vocábulos usados, visto que enquanto a
realidade tem “cheiro” – observe-se a escolha de um vocábulo coloquial –, o
devaneio tem “olor”, sugerindo um aroma muito mais agradável que o do alho.
Veja-se que a realidade está presa ao alho, algo tido como comum, ao passo que
o devaneio é glória, que leva ao singular, ao nobre. Então, há a marcação do
cheiro vinculado à realidade que passa, divergindo do olor que é destituído de sua
materialidade e da contingência temporal. Verifica-se que ao devaneio é concedido
um status de nobreza e eternidade, ao passo que a realidade está atrelada ao
comum e pouco valioso, como o cheiro de alho, que é efêmero e desagradável.
Além disso, também se pode perceber um rebaixamento interessante no que tange à
realidade, uma vez que está ligada ao cheiro de comida, ou ao cheiro do
corpóreo. Percebe-se, nesse ponto, a presença do realismo grotesco pela “lógica
da inversão, o contato do alto com o baixo” (BAKHTIN, 1999, p. 270). Porém, observe-se
que neste “baixo corporal” (Ibidem, p. 271) ocorre, também, a elevação da
idealidade, ou seja, enquanto o terreno, ou o corpóreo representado pelo alho,
é rebaixado, o idealismo contido no “olor da glória” e que representa o
devaneio, é sublimado. Bakhtin, em A Cultura Popular na Idade Média e no
Renascimento esclarece que
Na base das imagens grotescas, encontram-se uma
concepção especial do conjunto corporal e dos seus limites. As fronteiras entre
o corpo e o mundo, entre os diferentes corpos, traçam-se de maneira
completamente diferente do que nas imagens clássicas e naturalistas (p. 275).
Ou seja, através do grotesco estabelece-se a
diferenciação entre a realidade e o mundo. Reafirma-se, dessa forma, a
inadequação do Eu perante o Mundo, haja vista a realidade ser aqui o objeto
rebaixado, enquanto a idealidade, compreendida sob o aspecto do devaneio, é
sublimada.
Apresenta-se, também, a dualidade eterno x efêmero,
que, por sua vez, converge com a dicotomia Devaneio x Realidade, principalmente
se a base para isso for a teoria das idéias de Platão, que defende a existência
de dois planos, inteligível e sensorial. No primeiro encontram-se as idéias que
são relativas às aspirações da alma, e dessa forma, permanente. Já no segundo
tem-se a dimensão dos sentidos, que são em si um reflexo das idéias, e com
isso, instável e efêmero (CHÂTELET, 1995). Assim, a dicotomia Devaneio x
Realidade é resultado da tentativa de Dom Quixote de trazer as idéias do plano
inteligível, do sonho, para o plano sensorial, ou à realidade, configurando
assim, seu devaneio.
Dessa forma, este sonhador parte para o campo do
devaneio, pois adota a ação (BACHELARD, 1994) em busca da ordem e sua
conseqüente fama. Para isso, ele parte em seu “rocim, corisco, espada, grito”,
que consiste em outra gradação. Estes são os recursos utilizados para busca da
glória: seu cavalo, tido como corisco, sua espada e seu grito. Na enumeração
nominal, destaca-se no primeiro elemento referido uma clara recuperação da
expressão popular “cavalo corisco”. Nos campos de Minas Gerais, berço do poeta
Drummond, essa expressão metaforiza a ligeireza do cavalo que é
pressupostamente comparado ao fenômeno da natureza – corisco. Pretende-se
expressar que o animal é tão rápido quanto uma descarga elétrica, um relâmpago.
A seguir, acrescenta-se “espada, grito”. Sua espada e seu grito que também se
pode compreender por bravura, visto a apresentação da espada ao alto juntamente
com o brado de guerra representar uma posição de ataque entre os combatentes em
uma batalha. Em termos do herói/sujeito aqui focalizado, esses sintagmas
nominais parecem traduzir, neste momento, a explosão do eu em face de si mesmo
e do mundo; pela sugestão de equivalência entre ele, sujeito, e o rocim, o corisco,
a espada e o grito. A imagem que então emerge é a da integridade humana, já
tendo encontrado e fixado seu centro na forma de luta. Pode-se, então, dizer
que o sujeito que ia “sem destino”, encontra, no devaneio, um rumo, um caminho,
tanto que, munido desse arsenal, o herói se apresenta para a ação que se
descortina com missões a cumprir: a salvação de donzelas, isto é, “o torto
endireitando”. A primeira parte da tarefa proposta pelo sujeito da enunciação é
a regeneração do mundo real, que, aos seus olhos, é um mundo às avessas.
Para ele, não há lugar para o que transgride a
norma cavaleiresca; ao “torto”, ou seja, ao desrespeito às donzelas, aplica-se
o “ferro”. Note-se ainda que esse herói que sabe usar de firmeza, de violência,
sabe ser suave, gentil com o feminino, o mundo das sedas. Ao vislumbrar o que
fará já se coloca na posição de herói, pois estará devolvendo a ordem ao mundo,
e fazendo isso, qualifica a si próprio de “herói de seda e ferro”. Na oposição
obtida entre seda e ferro, encontra-se a apresentação de um herói que ao mesmo
tempo é delicado e gentil como uma seda e duro e forte como o ferro.
Assim, o devaneio começa a prevalecer. No poema ele
avança desde o início sobre o espaço sensorial da realidade e, no final, tem-se
a sua dominância. É explícita a condição desse homem que não dorme, que está
“abrasado”, o que possibilita concluir que o devaneio tomou conta dele de forma
que até mesmo o seu alimento são as nuvens – espaço físico destinado aos sonhos
–, ou seja, este homem que não dorme e nem come perde a razão e, em sua
loucura, passa a alimentar-se desses sonhos de forma que se encontra em uma
“férvida obsessão de que enfim a bendita/ Idade de Ouro e Sol baixe lá das
alturas”. Novamente Dom Quixote expressa seu desejo cosmogônico de trazer a
harmonia ao mundo, pois a Idade de Ouro é tida como uma época de paz e harmonia
tanto entre os homens, quanto entre estes e a natureza, e ele, enquanto herói,
agirá ativamente para que esse período sobrevenha sobre a terra. Apreende-se,
nesse ponto, a busca por uma cosmogonia utópica1, não se esquecendo
que analogamente o Sol é um símbolo universal do rei (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2005). Dessa forma, Dom Quixote ao citar a “Idade de Ouro e Sol”, na realidade
toma para si a luta cosmogônica travada por deuses e heróis míticos para trazer
à Terra um império baseado no símbolo do Sol, visando reestabelecer não somente
a ordem harmônica das coisas, mas também a luz e o conhecimento. Essa passagem
encontra ressonância com o pano de fundo amarelo do desenho, tendo em vista seu
caráter expansivo.
É nítida, neste aspecto, a identificação entre Dom
Quixote e Drummond, o gauche do “Poema de Sete Faces”.
Sendo a obra do gauche uma maneira de interferir na
realidade, erige-se ela própria como uma realidade autônoma. A obra poética do
gauche é essa concreção saída da defasagem entre o Eu e o Mundo, e que se constitui
numa extensão do autor em busca de um elemento reparador ou descritivo de seu
conflito. (SANT’ANNA, 1980, p. 24)
O poeta parece experimentar o mesmo desajustamento
diante do mundo que a personagem cervantina. E assim como Dom Quixote encontra
uma saída através do devaneio, o poeta, que se auto-denomina gauche, tem, em
sua obra, um caminho para encontrar a sua realidade aceitável.
Pode-se conjeturar o motivo de Drummond nomear o
seu Soneto de “Soneto da Loucura”. No que tange à loucura, segundo Foucault ,
em seu livro História da Loucura na Idade Média, a partir do momento que o
homem se apega a si mesmo, ele se ilude, surgindo, então, o primeiro sinal da
loucura (1972). Porém, ainda resta pensar na razão pela qual o autor optou por
um soneto – e, especificamente, um soneto alexandrino. Uma das possibilidades
seria a convergência entre o estilo clássico de criação poética, sendo em si um
modo racional de expressão, com a busca do eu poético pela harmonia e pelo
conhecimento expresso no último verso com “Idade de Ouro e de Sol”.
Um soneto é uma forma fixa de escrita, que implica
um trabalho artesanal. É bastante usado para explorar temas segundo uma
perspectiva mais racional. É composto por dois quartetos e dois tercetos, sendo
que, em geral, o último expressa uma conclusão (TAVARES, 1978). O autor explora
a oposição desde o seu título, pois, em seu bojo o vocábulo soneto sugere a
idéia de racionalidade, e loucura traz o sentido de irracional. Esta oposição
também é trabalhada durante a construção dessa forma poética. O poeta
apresentou através de seus quartetos uma crescente oposição entre devaneio e
realidade, para introduzir, também gradativamente, nos seus tercetos, a
predominância do devaneio.
No entanto, a busca de proporção expressa na
eleição do soneto como forma resulta ineficaz: não se trata de um soneto
perfeito, já que não há nenhum sinal de combinação rímica.
Esse predomínio do devaneio e tomada pela loucura
da personagem tem seu apogeu no último terceto, classicamente usado para
estabelecer uma conclusão. Dessa forma, em Drummond, ele serve para dar total
vazão à loucura do sonhador, justificando, assim, o título do soneto.
Observe-se também que ele usou uma estrutura de texto argumentativo, explorando
bem as orações explicativas e finais, estabelecendo e dando base para a
racionalidade do texto. Tem-se, então, uma composição que se apresenta como uma
defesa da loucura, valendo-se de argumentos que a sustentam. Isso possibilita
comparar o estilo de escrita, tido como nobre por excelência, com a possível
visão de nobreza da loucura desse sonhador, o que leva às vozes subjetivas
encontradas neste soneto. Instaladas em primeira pessoa com o eu lírico
representado por Dom Quixote, falam de sua ânsia por fama e glória, de seus
desejos e terminam com sua decisão pela loucura na ânsia de reviver um tempo
que já passou. Embora esse eu lírico seja o próprio Dom Quixote que fala de
seus anseios e de sua condição, percebe-se que há um certo distanciamento que
demonstra uma visão romântica do eu narrado; é como se quem relatasse fosse na
realidade um observador. Tem-se a impressão de que se marca uma distância
crítica entre o sujeito, que comete grandes feitos e o olhar que o apresenta.
Este “eu” que não possui uma visão clara das coisas, como foi apresentado na
primeira estrofe, e que termina enlouquecido na última, parece ter a “ajuda” ou
“auxílio” de uma visão em terceira pessoa na composição do soneto, que embora
esteja em sua totalidade em primeira pessoa, possui a característica da observação
atenta e distanciada da terceira pessoa. Um possível motivo para essa ocorrência
seria o espelhamento do autor (Drummond) na personagem. Ao tratar da inaptidão
do Eu (Quixote) versus Mundo, o poeta dá vazão ao espelhamento de si mesmo
enquanto gauche, uma vez que sua incompreensão frente à realidade das coisas e
entre a oposição dessa realidade, em relação aos seus anseios, o faz se identificar
com a personagem narrada. Sobre o gauchisme, Sant’anna, em seus estudos sobre o
tema, afirma que “caracteriza o gauche o contínuo desajustamento entre a sua
realidade e a realidade exterior. Há uma crise permanente entre o sujeito e o
objeto que, ao invés de interagirem e se completarem, terminam por se oporem conflituosamente”
(1980, p. 38).
Encontra-se convergência no diálogo deste primeiro
poema e primeiro desenho. Ambos apresentam e descrevem características de Dom
Quixote. Esta confluência se apreende desde os respectivos títulos: “Soneto da
Loucura” para Drummond e “Dom Quixote de cócoras com idéias delirantes”, para
Portinari. Como já dito anteriormente no caso do soneto, mas que também se
confirma no desenho, os títulos são um prenúncio daquilo que será apresentado
pelos dois artistas. Ao atentar para os vocábulos “loucura” e “delirante”, por
loucura, segundo Erasmo de Rotterdam, entende-se “um sutil relacionamento que o
homem mantém consigo mesmo” (apud FOUCAULT, 1972, p. 24). Foucault enriquece
esse pensamento ao dizer que a loucura não diz respeito à realidade do mundo,
mas sim à realidade que o homem acredita existir (1972). Já alucinante é o que
faz perder o tino, a razão, o entendimento. Observe-se que o louco é dominado
pela paixão intensa, assim como por “delirantes” implica a idéia de algo
apaixonante, e que o delírio, ou alucinação é, em suma, ilusão, fantasia e
devaneio. Não somente os títulos dialogam entre si, em vista de o devaneio
estar presente também no conteúdo do poema, pois logo na primeira estrofe o eu
lírico declara que sua casa “é rica de quimera”. Esse espaço compreendido como
o dos sonhos, rico em ilusões, também será encontrado na estrutura do desenho,
que tem um fundo amarelo, que apresenta um deslocamento da realidade, ou um
movimento de transcendência que denuncia a expansão do devaneio do sujeito,
reafirmado pela cor vermelha que revela um apaixonado sem controle. Um aspecto
que pode confirmar isso é o fato de os pés de Dom Quixote, no desenho, não
possuírem o apoio do chão, que seria um elemento real. Ao contrário, eles estão
sobre o suporte do amarelo, cor da expansão, que se pode entender pela expansão
da loucura, da sua entrega ao devaneio.
A mesma dificuldade de percepção do mundo empírico
no poema é encontrada no desenho, caracterizado pelo olhar visionário que
parece olhar para um outro mundo. Inclusive, o próprio título do mesmo remete a
esta idéia, visto que para a psiquiatria e para a psicologia a alucinação é
tida como a percepção de um objeto inexistente. São essas imagens desordenadas,
que na realidade não existem e que estão em seus sonhos apaixonados, que se
encontram em sua cabeça. Por isso a sua dificuldade de abarcar o mundo real. No
amarelo também é possível apreender a glória buscada por ele. Este croma tanto
vitaliza o campo semântico da “glória eterna” que se deseja, como também é tido
como a representação da transcendência, de forma que se tem a presença de
Quixote envolvida por essa cor que representa aquilo por que ele anseia, aquilo
que está diluído na distância, que é inapreensível aos olhos, que transcende os
sentidos. Agora, é interessante observar que enquanto em Drummond apresenta-se
uma loucura crescente, ou seja, uma razão que vai cedendo espaço para a loucura
até terminar no último terceto como que já possuído pelo devaneio; tem-se a
impressão de que Portinari já o situa neste momento. No desenho ele está
fisicamente abrasado, vislumbrando seus sonhos, traduzindo um comportamento de
obsessão, como é demonstrado tanto pelo seu desalinho quanto pelo seu
desequilíbrio. Percebe-se novamente um rebaixamento presente na actorialização
composta pelo corpo e ações.
O diálogo entre as releituras de Cervantes é
entretecido pelo jogo de 52 oposições em que Dom Quixote de La Mancha é
apresentado, pelos dois artistas, como um sujeito que recusa o mundo da práxis
e deixa-se dominar pela imagem ideal do cavaleiro andante, com uma missão
cosmogônica de trazer luz e ordem ao mundo.
Em suma, pode-se perceber, neste primeiro conjunto,
a visão de cada artista em sua criação. Carlos Drummond de Andrade em “Sol
baixe lá das alturas” faz uso de um adynaton, uma figura de linguagem, por meio
da qual, segundo Lausberg, a “noção ‘nunca’ é posta em termos concretos pela
intervenção de uma ‘impossibilidade’ da Natureza” (2004, p. 149). Destarte,
apresenta-se a retórica do impossível, uma vez que não há a possibilidade de
que o Sol deixe o seu lugar. Ao lançar mão desta figura de linguagem que remete
à figura quixotesca, o poeta deixa transparecer a impossibilidade da realização
dos sonhos desta personagem. Quanto a Portinari, ao mesmo tempo em que
apresenta um traçado forte, não trabalha muito a profundidade; percebe-se que o
espaço do corpo não se encontra totalmente preenchido. Trata-se de uma poética
minimalista, que desvela conceitos visuais elementares, que remete a desenhos
infantis, onde se destacam a pureza, o ser ingênuo e o primitivo; que se
entrega ao devaneio em busca do impossível. Pode-se dizer que poema e desenho
se completam, a ponto de a palavra poética sacramentar o discurso
plástico-pictórico e vice-e-versa.
Inclusive, o devaneio do sujeito encontra
consonância nas três obras tratadas nesta análise. Nota-se, no desenho a
expressão de um olhar visionário, como citado anteriormente. No poema, o
devaneio é apreendido pelo eu lírico que assume a voz de Dom Quixote e afirma
que sua “casa pobre é rica de quimera”: É possível inferir que o devaneio é
valorizado a ponto de a personagem não dormir e encontrar-se “abrasado” em uma
“fervida obsessão de que enfim a bendita Idade de Ouro e Sol baixe lá das
alturas”. Desenho e poema remetem à passagem do texto-fonte em que Dom Quixote
é tomado pela loucura – trecho citado na epígrafe desta análise. Foucault, em
História da Loucura na Idade Clássica, afirma que a loucura seria, entre
outras, a fixação das idéias (1972, p. 318). E é justamente esta a perspectiva que
se obtém do sujeito, neste momento, retratado pela intersemioticidade (prosa, desenho
e poema).
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1 “A
idéia de um paraíso a alcançar, depois, mais tarde, ao fim de alguma coisa – em
todo caso, no futuro – ou a intuição de um paraíso perdido, esquecido lá para
trás e do qual o homem teria saído ou sido expulso, são as formas mais comuns
de manifestação religiosa da vontade utopia.” (COELHO, 1985, p. 15)
Devaneio
x Realidade: uma leitura intersemiótica de Candido Portinari e de Carlos
Drummond de Andrade sobre Dom Quixote de La Mancha, Katya
Motta. São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2007