DESAPRENDER
(COM) A HISTÓRIA
Por
Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra
[…] O livro intitula-se Século de
Ouro, mas não apenas, já que a própria natureza do título (um topos retórico
no domínio da periodização literária) pede o esclarecimento disponibilizado
pelo subtítulo: Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX.
Comecemos por aqui: que antologia é esta que se define como «crítica»?
Para começar, trata-se de uma
antologia da poesia portuguesa do século XX, a primeira produzida já fora dos
limites temporais do século e seguramente a mais ambiciosa que sobre a poesia
portuguesa do século passado foi até ao momento elaborada. Contudo, esta não é mais
uma antologia, já que a própria forma da antologia acaba por ser
«criticada» pelo programa e funcionamento da obra. De que modos? É o que passaremos a ver.
Numa descrição mínima, o livro
consiste num conjunto de 73 poemas do século XX acompanhados de igual número de
leituras desses poemas. O livro inclui pois, no seu resultado final, tanto os 73
poemas selecionados como os 73 ensaios escritos sobre eles4. O
número 73 não recobre aqui propósitos pitagóricos. No início, aliás, o número
não era esse mas 87, pois tal foi o número a que os organizadores chegaram
quando elaboraram uma lista de pessoas convidadas a participar nesta obra.
Significa isto que entre renúncias iniciais, desistências a meio de percurso ou
(admitimo-lo) eventuais e banais problemas de comunicação, se chegou ao
aleatório número de 73 colaboradores.
Neste ponto, convirá esclarecer que
para participarem no projecto, os organizadores seleccionaram um vasto painel
de personalidades, de acordo com os seguintes critérios: 1) pessoas com obra
feita na crítica literária e, mais especificamente, na crítica da poesia portuguesa
do período em causa; 2) críticos jovens, com obras emergentes, cujas vozes é
curial escutar num momento de transição e, por isso também, de balanço; 3)
críticos portugueses a residir e trabalhar em Portugal ou no estrangeiro, bem
como lusitanistas espalhados pelo mundo; 4) poetas a quem se propôs que,
momentaneamente, «passassem para o outro lado», praticando, ainda que por uma
vez sem exemplo} a crítica dos textos que mais os marcaram.
Como em tudo o que tenha a ver com
escolhas, os organizadores não têm dúvidas de que a sua lista de nomes seleccionados
é eventualmente discutível; contudo, estão igualmente certos de que eventuais
reservas ou críticas à lista de nomes não poderão ser mais do que pontuais, já
que foi sua preocupação elaborar uma lista de natureza consensual. […]
Seja como for, o referido dispositivo
consistiu em propor aos colaboradores que, numa primeira fase, indicassem 3
títulos do corpus da poesia portuguesa do século XX. Recebidas essas
escolhas, os organizadores analisaram-nas cuidadosamente, tendo em vista alguns
modestos princípios organizativos: 1) o cunho desejavelmente representativo da
antologia: assim, entre concentrar as escolhas em 7 ou 8 poetas (o que, não
sendo inteiramente possível dada a variedade das escolhas dos colaboradores,
poderia vir a ser o modelo reconhecível na obra, já que, para dar apenas um
exemplo, Fernando Pessoa, só ele, concentrou um número significativo de
escolhas) e alargá-las a um panorama representativo das várias tendências do
século, optou-se por esta última solução; 2) a necessidade de traduzir, de
algum modo, a concentração de escolhas em certos autores, atribuindo-lhes mais
do que um poema, dentro de um princípio moderadamente estatístico e
razoavelmente homogéneo na sua aplicação a todos os casos; 3) a necessidade de
evitar repetições de poemas, o que conduziu várias vezes os organizadores a
escolher um dos 3 poemas indicados por cada colaborador, sem respeitar a
hierarquia proposta por estes, possibilidade aliás prevista desde o início e comunicada
aos colaboradores na carta em que o projecto lhes foi apresentado.
Atribuídos então os poemas aos
colaboradores, num por vezes delicado deslindamento de cruzamentos e
sobreposições, chegou-se à crucial segunda fase na qual os colaboradores
deveriam elaborar um ensaio sobre o poema por eles escolhido. Esse comentário
deveria ser de teor não-historicista, já que Século de Ouro foi
desde o início pensado como uma obra que prescindiria das constrições nem
sempre produtivas de uma perspectiva histórico-literária. […]
Muito diversamente, com Século de
Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX pretendeu-se produzir
um livro em que a poesia acontece no cruzamento do texto e da sua exegese.
A indiscutível riqueza e pluralidade das poéticas do século oficialmente encerrado
é concomitante a um também multifacetado modo de olhar - de constituir, de usar
- o objecto cultural que é um poema. Daí as regras do jogo propostas: predomínio
da close reading, redução drástica do aparato erudito, leitura breve e
(desejavelmente) intensa. Por outras palavras, apropriação: o próprio texto, o
texto próprio, eu (?) próprio. […]
A funcionalidade e o uso dos
diferentes índices em Século de Ouro não são, ao contrário dos index paratextuais
de outros livros, a garantia de que o leitor leu o volume todo. Ocupando o
início e o fim do livro – respectivamente o «Índice Geral», por um lado, e o
«Índice de poetas», o «Índice de ensaístas», o «Índice de poemas» por outro ‑
não suplementam o seu início ou fim. O «Índice Geral», sendo aquele que decalca
a concatenação aleatória, é antes o reforço de um começo sempre adiado ou já
irremediavelmente consumado. Quanto aos índices colocados no fim material do livro,
não mimetizando a série antológica, funcionam como diferentes módulos de outras
potenciais entradas aleatórias no livro. […]
Ler mais: “Introdução”,
“Biobibliografias” e “Índices”, Século
de ouro – antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, organização
de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Braga; Coimbra; Lisboa: Angelus
Novus & Cotovia, 2002.
__________________
(4) Estes 73 ensaios correspondem a
47 poetas antologiados (49, se desdobrarmos Pessoa em Pessoa himself, Álvaro
de Campos e Ricardo Reis).
DEDUÇÃO
CRONOLÓGICA DOS POEMAS:
|
POETAS
|
CRÍTICOS
|
1900: [Pára-me de repente o Pensamento…]
|
Ângelo de Lima
|
Yara
Frateschi Vieira
|
1906: Elegia do Amor
|
Teixeira de Pascoaes
|
António Cândido Franco
|
1913: VI. Dispersão
|
Mário de Sá-Carneiro
|
Antonio
Sáez Delgado
|
1915: Manucure
|
Mário de Sá-Carneiro
|
Ana Luísa Amaral
|
1920: Ao longe os barcos de flores
|
Camilo Pessanha
|
José
Carlos Seabra Pereira
|
1920: Fonógrafo
|
Camilo Pessanha
|
Abel Barros Baptista
|
1920: [Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas]
|
Camilo Pessanha
|
Paulo
Franchetti
|
1922: Soneto já antigo
|
Álvaro de Campos
|
Miguel Tamen
|
1924: [A flor que és, não a que dás, eu
quero]
|
Ricardo Reis
|
António M. Feijó
|
1924: [Ela canta, pobre ceifeira]
|
Fernando
Pessoa
|
Arnaldo Saraiva
|
1924: Xácara do Infinito
|
Mário Saa
|
Nuno
Júdice
|
1925: Libertação
|
José Régio
|
Eunice
Ribeiro
|
1932: Autopsicografia
|
Fernando Pessoa
|
Victor
Mendes
|
1933: Tabacaria
|
Alvaro de Campos
|
Luís Quintaú
|
1934: O dos castelos
|
Fernando Pessoa
|
António
Apolinário Lourenço
|
1935: Apelo à poesia
|
Carlos Queirós
|
F. J. Vieira Pimentel
|
1936: Outro dia
|
Irene
Lisboa
|
Paula Morão
|
1938:
O canário de oiro
|
Vitorino Nemésio
|
Rosa Maria Goulart
|
1944: [Esta velha angústia]
|
Álvaro de Campos
|
Ettore
Finazzi-Agrà
|
1944: [Grandes são os desertos e tudo é
deserto]
|
Álvaro de Campos
|
Silvina Rodrigues Lopes
|
1944: Magnificat
|
Álvaro de Campos
|
Robert
Bréchon
|
1951: Requiem (ao menino morto, eu próprio)
|
Cristovam Pavia
|
Fernando J. B. Martinho
|
1952: Rêve Oublié
|
António Maria Lisboa
|
Carlos
Veloso
|
1954: Soneto de Eurydice
|
Sophia de Mello Breyner Andresen
|
Clara Rocha
|
1955: [Ao desconcerto humanamente
aberto]
|
Jorge de Sena
|
Maria
Fernanda Alvito P. de S. Oliveira
|
1957:
You Are Welcome to Elsinore
|
Mário Cesariny
|
Perfecto E. Cuadrado Fernández
|
1958: As palavras
|
Eugénio de Andrade
|
Carlos Reis
|
1958: Um adeus português
|
Alexandre O’Neill
|
Luciana Stegagno Picchio
|
1959: Quase 3 discursos quase
veementes
|
António
José Forte
|
Ruy Duarte
de Carvalho
|
1960: Fóssil
|
Carlos de Oliveira
|
Gustavo Rubim
|
1960: Regresso de parte alguma
|
Reinaldo Ferreira
|
Eugénio Lisboa
|
1961: Fonte
|
Herberto Helder
|
António Ladeira
|
1962: Pátria
|
Sophia de Mello Breyner Andresen
|
Roberto
Vecchi
|
1962: VIII. A mão no arado
|
Ruy Belo
|
Luís
Mourão
|
1963: A morte, o espaço, a eternidade
|
Jorge de
Sena
|
Luís
Adriano Carlos
|
1963: Poema de amor
|
Edmundo de Bettencourt
|
Maria Alzira Seixo
|
1964: Todas pálidas, as redes metidas na
voz.
|
Herberto Helder
|
Pedro
Schachtt Pereira
|
1964: [A menstruação quando na cidade passava]
|
Herberto Helder
|
Pedro Eiras
|
1964: Um quadro de Brauner
|
Luiza Neto Jorge
|
Ana Sofia
Ganho
|
1965:
[O navio de espelhos]
|
Mário Cesariny
|
José Ricardo Nunes
|
1966: Ácidos e óxidos
|
Ruy Belo
|
Manuel
António Pina
|
1966: Morte ao meio-dia
|
Ruy Belo
|
Vítor Manuel de Aguiar e Silva
|
1966: Poema de uma viagem ao Porto e de
uma partida para a Bélgica
|
Vitorino
Nemésio
|
Rita Patrício
|
1967: A casa do mundo
|
Luiza Neto Jorge
|
Maria
Andresen de Sousa Tavares
|
1967: Primeiro septeto
|
Ruy Cinatti
|
Joana
Matos Frias
|
1968: Árvore
|
Carlos de Oliveira
|
Rosa Maria Martelo
|
1969: Em Creta, com o Minotauro
|
Jorge de Sena
|
K. David Jackson
|
1969:
O preto no branco
|
Rui Knopfli
|
Eduardo Pitta
|
1969: Os ovos d' oiro
|
Armando Silva Carvalho
|
Pedro
Serra
|
1970: Canção cuneiforme (antes e depois de lhe
dar o bicho)
|
Alberto Pimenta
|
Marta Irene Ramalho
|
1973: Sextina III ou Canção do próprio
canto
|
David
Mourão-Ferreira
|
Marcia
Arruda Franco
|
1976: Em louvor do vento
|
Ruy Belo
|
Eduardo Lourenço
|
1976: Leitura
|
Carlos de Oliveira
|
Manuel
Gusmão
|
1977: A imagem que conduz ao corpo
|
António Ramos Rosa
|
Rui Magalhães
|
1977: Sobre esta praia I
|
Jorge de Sena
|
Jorge
Fazenda Lourenço
|
1978: [De luas ou de trigos busco o nome]
|
Pedro Tamen
|
Patrick Quillier
|
1978: [Quando eu vir vaguear por dentro
da casa]
|
Fiama Hasse Pais Brandão
|
Gastão
Cruz
|
1978: Tat Tam Asi
|
Manuel António Pina
|
Américo António Lindeza Diogo
|
1982: Ignição
|
António
Osório
|
Pedro
Mexia
|
1987: Canção do ano 86
|
Fernando Assis Pacheco
|
Fernando Pinto do Amaral
|
1989: Matadouro
|
Luís Miguel
Nava
|
Carlos
Mendes de Sousa
|
1993: Aconteceu-me
|
Almada Negreiros
|
Fernando Cabral Martins
|
1993: Poema 16 [de Dos
Jogos de Inverno]
|
António Franco Alexandre
|
João
Barrento
|
1997: Trabalho de casa
|
Nuno Júdice
|
Margarida Braga Neves
|
1998: O excesso mais perfeito
|
Ana Luísa
Amaral
|
Fátima
Freitas Morna
|
1999: a viagem de verão
|
Vasco Graça Moura
|
Fernando
Matos Oliveira
|
1999: Dois ciprestes
|
Adília Lopes
|
Fernando Guerreiro
|
1999: Mulher com filho ao colo, em Dezembro
|
A. M. Pires Cabral
|
M. Corbo Alvarez
|
2000: [Escrevo do lado mais invisível
das imagens]
|
Daniel Faria
|
Alcir
Pécora
|
2000: Árvores
|
Gastão Cruz
|
Osvaldo Manuel Silvestre
|
2000: As cinzas de Lenine
|
Fernando
Guerreiro
|
Peter Sanmartinho
|
2000: Sumário Lírico
|
Fiama Hasse Pais Brandão
|
Jorge Fernandes da Silveira
|
2001: «A Perfeição das Coisas» ‑
|
Manuel
Gusmão
|
Helena
Buescu
|
|
|
|
editora angelus
novus
Entrevista
com Osvaldo M. Silvestre e Pedro Serra sobre Século de Ouro
P. A «vossa» antologia parte duma
tese, acolhida no próprio título, segundo a qual o século XX português foi um
período áureo. Essa tese, como lembram na «Introdução», vem sendo defendida por
pessoas como Eugénio de Andrade, Óscar Lopes ou Vítor M. de Aguiar e Silva.
Curiosamente, o livro não discute esta tese, no local onde seria curial
fazê-lo: a «Introdução». Estão assim tão certos dela que dispensem debatê-la? A
não ser essa a razão do vosso silêncio, qual é ela?
R. O que Século de Ouro propõe é
justamente que discutir é produtivo, não pela sua tematização desde quaisquer
mansardas — por exemplo, lugares como «introduções» —, mas sim na prática da
leitura. Todo e cada um dos poemas e ensaios incluídos é bastante discussão do
«século de ouro». Dito de outro modo, o sintagma — muito instável e contingente
— constituído pelos pares poema/ensaio é a versão «retórica» dessa tese. O que o volume propõe é fazer dessa discussão uma discussão a
haver. O importante é ter presente que a massa textual que foi deixando rasto
material durante esse intervalo de tempo a que podemos chamar «século XX», tem
vindo a galopar para um amorfo indiferenciado, e enquanto tal sem valor. O verdadeiro «século de ouro» é o futuro contido nessa massa
(admitimos que ela o contenha, e isso nos parece bastante), cujo resgate é o
imperativo que se nos coloca.
Século de Ouro existe como solicitação de um futuro de diferenciações e
discriminações, ou de uma escatologia arqueológica: uma escatologia que
assumisse todas as consequências interpretativas de um tempo (que são vários
tempos: o da poesia, o da crítica, o da leitura, mas sobretudo o da desleitura)
inevitavelmente, mas também programadamente, fora dos eixos. Por outras
palavras, este é um livro habitado por muitos livros e debates, na medida em
que propõe e vive de uma discrepância entre o «século XX» (os vários séculos
XX) e o século
de ouro que vai lendo, como um telecomando em
zapping, aquele menu que nem sempre, aliás, se acomoda ao telecomando.
P. Um
outro aspecto inesperado é a ausência, que supomos deliberada, de um
«tratamento estatístico» dos dados obtidos, no que toca quer às presenças (o
«Top of the Pops») quer às ausências. Por exemplo, será pertinente não dedicar
sequer uma palavra a ausências tão flagrantes como as de Miguel Torga (o
primeiro Prémio Camões, relembre-se), Saúl Dias, Raul de Carvalho, Nuno
Guimarães, Joaquim Manuel Magalhães (o poeta) e João Miguel Fernandes Jorge,
etc.? Ou para as ausências de críticos como Eduardo Prado Coelho e Joaquim
Manuel Magalhães? Ou para a derrota histórica do neo-realismo, não redimida
pela presença firme de Carlos de Oliveira? Ou para a correlata vitória
histórica do surrealismo?
R. As regras do jogo não consideravam que houvesse, a priori, lugares cativos. É claro que se pedia «ouro» do «século» que,
não sendo absolutamente abundante — de outro modo deixaria o ouro de ter valor —, determinava a inevitável presença de alguns
indiscutíveis. Seja como for, o modelo antológico proposto retira ansiedade às
ausências, já que desresponsabiliza escolhas e escolhedores (estes fizeram o
que puderam com o pouco alcance do seu naipe de decisões) e mais ainda
organizadores, que naqueles delegaram inteiramente as escolhas. De resto, elas
são inevitavelmente significativas. Há notoriamente poetas pouco lidos e que urge ler mais, por
exemplo. Por outro lado, pediu-se aos colaboradores que escolhessem poemas e
não poetas. Isto significa que a questão a colocar é também a de saber se o
poeta X ou Y se acha bem representado. Nos casos em que não estejam — se é que
os há —, talvez se possa dizer que era melhor não terem sido representados de
todo. Século
de Ouro propõe-se «antologia» pouco
apocalíptica (daí a ideia antes referida de uma «escatologia arqueológica»). O
aleatório que variamente o «estrutura» não permite aliás dramatizar aquilo que
não é senão um jogar de dados.
Isto significa que ausências/presenças devem ser tomadas por
aquilo que são: resultado da pura contingência (imperativo daquilo que «serve»,
que sempre pressupõe algo de «servil»). Quanto aos críticos mencionados, a sua
não-presença foi determinada pelos próprios críticos, logo não se trata de
ausências. Vitórias e derrotas «históricas» não chega também a haver, pois um
tal saldo só seria contabilizável se, justamente, nos situássemos no fim dos
tempos de um juízo final. Como é inevitável, a este outros se sucederão, pelo
que é cedo (é sempre cedo) para decidir de vencedores ou perdedores. Este não é
um jogo de 90 minutos, nem mesmo de um século. Mais do que isso, é um jogo em
que o objectivo não é ganhar — ou então é apenas «ganhar tempo» para novos
jogos.
P. Esta
«Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX» é um trabalho que assume
declaradamente a ruína da historiografia literária moderna, para se propor como
a antologia possível numa era de contingência pós-histórica. Sendo assim, que
papel crítico poderá ser o da crítica que lhe dá título?
R. A «crítica» que Século de Ouro propõe não
visa imediatamente a representatividade. Assim, pelo modo como se configura,
ela parte do pouco representativas que a poesia e a crítica de poesia são nos
dias de hoje. O que cada letra impressa no livro vai solicitando é que se
interrogue a sua necessidade: sem tal iminência de crise não teria sentido.
Isto pode querer significar — sujeitemos esta possibilidade a uma futura
discussão — que a «crítica» implicada pelo subtítulo se levanta não sobre um
modelo «narrativo» da crítica (o da Modernidade), mas sim sobre um modelo
«poético». Ou então sob o signo da «constelação»: uma série não coincidente, e
de coalescência problemática, de práticas (críticas) que nem sempre são rumos,
ou são-no segundo uma (pro)pulsão caótica, e pelo menos babélica. Contudo, esta
constelação que «critica» — decerto involuntariamente — a narrativa heróica da
crítica moderna, assume-se ainda como moderna o bastante, já que parte de uma
posição (aliás imposta previamente) de emancipação dos materiais em relação a
qualquer determinação historicista ou humanista: os críticos que na obra
colaboram não questionam (a não ser pontualmente) a orientação para a close reading, e praticam-na com a naturalidade de quem reconhece na
linguagem um universo, e um problema, suficientemente mobilizador.
O ponto crítico da obra reside talvez na constelação de
exercícios de leitura que, à primeira vista esvaziados de historicidade pela
imposição da close
reading, se volvem, na sua disposição desprogramada,
uma poderosa crítica das ilusões do historicismo, na medida em que somam à
História da Poesia Portuguesa do século XX um conjunto, talvez finito mas
alargado, de novas histórias por contar. Esta soma, contudo, desacrescenta, já
que vai justapondo possibilidades de conflito. Uma espécie de versão crítica de
um livro do desassossego, se nos é permitida a pretensão.
P. O
clima que promoveu a «suspensão deliberada de categorias históricas» referida
pelos editores, tem vindo a produzir objectos novos no território antes ocupado
pela História da Literatura. São movimentações diversamente visíveis, por
exemplo, na lógica fragmentada De la littérature
française, de Denis
Hollier ou no citado H. U. Gumbrecht de 1926.
Poderá (ou desejará) a presente «Antologia» patrocinar ente nós uma tal
alteração epistémica no âmbito dos estudos literários?
R. O logos fragmentário do Século de Ouro — sobretudo o assumi-lo em consciência — é produtivo, gera
um objecto que, pensamos, de modo bastante razoável põe a circular uma imagem
do século XX. Não uma suma ou uma solução do século mas, digamos,
um seu fantasma (um seu inconsciente). A questão dessa produtividade é a de que
não aspirar à representação de si é uma opção eficaz de representação (talvez pós-moderna). Neste sentido, tal coisa como um «patrocínio» de si
no panorama dos estudos literários, sendo uma possibilidade, não é um
desiderato. O que Século
de Ouro assume plenamente, e desde os seus
próprios fundamentos, é a contingência de uma eventual autoridade. Significa
isto que a «exemplaridade» desta obra, a haver, será talvez da ordem do único e do aberrante, obviamente não
reivindicados.
Uma obra como Século de Ouro não contém
nem poderia pois conter em si um programa gerativo ou software para «mutações
epistémicas», já que se trata de uma obra a vários títulos excepcional e fruto
de um conjunto de circunstâncias felizes, provavelmente irrepetíveis. Não nos
seduz a sugestão romântica de um cânone de únicos; e menos ainda a de patrocinar «mutações epistémicas» numa
disciplina em que, decisivamente, «epistemologia» é nome de um género literário
(um tanto como «filosofia», na versão de Rorty). Quanto a eventuais
consequências, «Depois verá-se», como dizia um catedrático de uma das nossas universidades.
P. Século de Ouro propõe uma intensa reflexão sobre o genus antológico que é
chamado a revitalizar o olhar historicizante sobre a poesia portuguesa do
século XX. Muito descrendo no modelo de «história» tradicional, essa como que
necessária antologização do passado — o gesto intrinsecamente crítico proposto
— faz-se de modo a fazer desse passado uma história que, como a verdade para
Lessing, seja mais «filantrópica»? Isto é, mais humana, ou mais à escala das
vidas humanas? Por outro lado, de que húmus parte esse imperativo de uma
história crítica: de um peso cultural excessivo daquela «história» tradicional,
da sua desfundamentação ou, talvez, da sua inexistência no que toca ao
intervalo e género (poético) em causa?
R. O modo antológico opera por selecção. O que vemos na
poesia portuguesa do século XX é que ela própria foi vivendo mesmerizada pela
sua própria História (de modo mais ou menos explícito). A história que foi,
deste modo, perfazendo não é absolutamente aproveitável. É o excesso de Musas
que a sobre-vivência das Musas tem que gerir politicamente. A obsolescência
deste ou daquele poeta não significa que não tenha acertado o alvo de vez em
quando. É uma história desses acertos que nos pode servir. E o mesmo vale,
evidentemente, para os modos da crítica e dos críticos. Será necessário todo o Pessoa para fazer dele a necessária interpelação em nós?
Este modo antológico que faça história e faça cânone é um problema, ou
justamente pretende argumentar que não haver interpelação é não haver problema.
Em tempos, Almada Negreiros, entrando numa biblioteca, ironizava sobre a
impossibilidade de ler todos os livros nela contidos.
Essa ansiedade do todo não é crítica, nem humana. É bem mais «filantrópica» a
moderada confiança de que não é necessária toda a
biblioteca de poetas portugueses do século XX, nem toda a obra de cada um
deles. O horizonte de um indivíduo ou uma comunidade que fizessem consciência
dessa soma total é um belo tropo da Morte (ou de Deus…). Por outras palavras,
uma antologia «lê-se», na exacta medida em que «dá a ler». Essa medida,
contudo, é de exactidão problemática, já que a antologia pode tender ao
monstruoso de um século, um milénio, uma cultura (um tema) ou uma geografia.
É nossa convicção que Século de Ouro, porque dá a
ler, e porque desiste à partida do Todo que a antologia não pode ser (mas por
que tantas vezes anseia), é uma obra que se lê, no sentido
duplo e infindável da expressão. Nesse sentido em que, justamente, o século de
ouro vive da ponderação crítica do seu peso (em ouro), ponderação essa a
realizar pelos leitores após o exercício inicial delegado nos críticos. Este
exercício de reduplicação da prática antológica não tem talvez fim, mas opera
fatalmente por estreitamento, na lógica do programa do título: uma decantação
de que resulta um punhado de grãos de ouro — alguns poemas portugueses do
século XX, talvez não todos os aqui antologiados, talvez (sigamos o devir da
antologia) nem estes aqui antologiados.
https://angnovus.wordpress.com/ligacoes/entrevistas/entrevistas-6/
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