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domingo, 21 de janeiro de 2024

A escrita, por Afonso Cruz

Afonso Cruz, visao.pt/jornaldeletras

 

Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a escrita não surgiu para gravar pensamentos, sentimentos, meditações, mas essencialmente para gravar contabilidade, o peso da cevada guardada num celeiro, a quantidade de cerveja guardada em talhas de barro. A escrita surgiu para passarmos faturas e isso começou por ser feito em pedra ou em barro, materiais com alguma durabilidade que ironicamente são a grande matéria-prima das ruínas, já que outros materiais mais efémeros não duram o suficiente para isso. Os números começaram a ser escritos antes das palavras, as faturas precederam a poesia. E isto é algo que jamais perdoarei à história da humanidade.

Também, em pedra, se gravaram códigos e leis. O monólito de Hamurabi é um dos exemplos mais conhecidos. Moisés gravou em pedra os mandamentos e essa foi talvez a primeira grande ruína da escrita, pois foram partidas quase de imediato pelo próprio autor. Desceu a montanha, viu que o povo estava a adorar um bezerro de ouro e irritado partiu as tábuas. Obviamente, deste tipo de escrita, nasce o castigo, o pecado o medo, a censura. Uma sociedade deveria evoluir procurando cada vez mais liberdade porque só assim as nossas ações têm valor. Alguém que pratica a bondade porque é obrigado, não é necessariamente bondoso, quem pratica a justiça porque é obrigado, não é necessariamente justo. A compulsão deveria ser substituída pela educação, pela cultura, para poder resultar numa sociedade verdadeiramente sã.

A sedentarização trouxe-nos a escrita e esta ganhou um poder imenso, como nos diz Dylan Thomas, no poema “A mão ao assinar este papel”:

A subscrição foi submetida com sucesso!
Parte inferior do formulário
A mão ao assinar este papel arrasou    [uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua
 [taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e    [reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um    [rei.(…)
A mão ao assinar o tratado fez nascer    [a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas    [vieram;
maior se torna a mão que estende o seu    [domínio
sobre o homem por ter escrito um    [nome.
Os cinco reis contam os mortos mas    [não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem    [acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como    [outras o céu;
 mas nenhuma delas tem lágrimas para    [derramar.

 

O ato de escrever solidifica o pensamento, e este, muitas vezes, torna-se lei, verdade absoluta, relegando os outros ângulos de uma mesma questão, com certeza tão verdadeiros como o que foi escrito e aceito, para o campo da especulação, da mentira e dos contos para crianças. Estamos no terreno do pensamento único, do Deus único, da certeza dogmática, da verdade monolítica, uma espécie de baleia branca, que nos faz desprezar todas as outras baleias. Estas verdades inquestionáveis surgem muitas vezes sob a forma de lei económica, um fenómeno que não é exclusivo do nosso tempo. Chesterton escreveu o seguinte em 1910:

“(…) os grandes nobres que no século XIX se tornaram proprietários de minas e gestores de caminho de ferro garantiram a toda a gente com enorme seriedade que o não faziam por gosto, mas devido a uma Lei Económica recentemente descoberta. E da mesma maneira os prósperos políticos da nossa geração aprovam leis que retiram os filhos às mães pobres; e proíbem calmamente os seus arrendatários de beber cerveja nos pubs. Mas (ao contrário do que o leitor possa supor) contra tal insolência não se erguem universais vozes de protesto, classificando-a de escandaloso feudalismo. Porque a aristocracia é sempre progressiva; a aristocracia é uma forma de impor o ritmo. E as festas dos aristocratas prolongam-se cada vez mais pela noite dentro.”

Voltando às ruínas:

O tempo, claro, é o mais eficiente construtor de ruínas, de casas mortas, de lixo, do fim das coisas, de rugas. O universo é uma espécie de artista ao contrário, que faz com que uma escultura volte a ser pedra bruta ou areia. Contraditoriamente, o tempo também valoriza os objetos e o que resta deles, e, assim, é bem possível que um dia tenhamos turistas só para ver os escombros do nosso país, um pouco como visitamos o Coliseu de Roma.

A certa altura, durante a colonização inglesa da Índia, alguém se lembrou de vender o Taj Mahal em leilão e aos pedaços. A ideia era fazer daquilo uma grande ruína e vender os destroços, bocados de pedra, para decorar lareiras britânicas. Para experimentar este disparate histórico decidiram começar por desmantelar o Forte Vermelho de Agra, construído pela mesma pessoa que mandou edificar o Taj Mahal e vendê-lo pedra a pedra. Como não funcionou, desistiram do plano. Apesar de esta história não estar provada, corroborada pela escrita, não deixa de ser credível. Fomos, ao longo da História, capazes de coisas bem piores.

Passaram-se milénios desde a origem da escrita, mas os números continuam a preceder a poesia, e, de um modo mais lato, toda a cultura e a própria noção de humanidade.

 

Afonso Cruz, “Baleia Branca”, Jornal de Letras, 05-03-2015. Crónica disponível em: https://visao.pt/jornaldeletras/cronicas-jl/2015-03-05-baleia-brancaf812274/

 

***

 

Afonso Cruz inicia e conclui a sua crónica com uma crítica à primazia dos interesses económicos sobre a arte, que se manifesta desde a origem da escrita até aos nossos dias. O autor expressa o seu desgosto pelo facto de a escrita ter nascido para registar contabilidade e não para criar poesia, mas o que ele realmente quer dizer é que deseja que os Homens apreciem mais a beleza das palavras do que as vantagens comerciais.

O autor revela implicitamente a sua frustração com a sobreposição da funcionalidade à estética, ao dizer que não perdoa à humanidade o facto de a escrita dos números ter surgido antes da escrita da poesia. A sua crítica assenta no desejo de uma sociedade em que a poesia e a linguagem sejam mais importantes do que as necessidades práticas do comércio. A sua esperança é que a cultura, a educação e a arte consigam superar as pressões comerciais, gerando assim uma sociedade mais bela e significativa.

 


quarta-feira, 5 de julho de 2023

Jovens à porta do Chiado, Gastão Cruz

Moby&The Void Pacific Choir – Are You Lost In The World Like Me

 

JOVENS À PORTA DO CHIADO

Veem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço

O seu mundo está preso àquele fio
de presente irreal que não explica
o facto de ser a pele a pele ainda

Tudo fica no raio do olhar
brevemente fictício a vida reduzindo
ao enredo menor das chamas perdidas

das mensagens que vindas ou não vindas
fazem tremer do dia o edifício
Disso vivem fingindo que se veem

a si somente enquanto o mundo escorre
com a rapidez do dia para o poço

 

Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010

 

Muitos livros de Gastão Cruz (1941-2022) têm como título uma só palavra, ou, quando não, duas palavras (o artigo e o nome). Hematoma (1961), Escassez (1967), Campânula (1978), O Pianista (1984), Crateras (2000), Fogo (2013), Óxido (2015), Existência (2017). A palavra nuclear que, do título aos poemas de um livro, faça irradiar a mensagem, essa uma das linhas da obra deste enorme poeta. Em 2010, Escarpas convidava-nos a lermos o tempo e o seu sentido ou a ausência de sentido no tempo. Nas suas cinco secções, na melodia dos ritmos e no trabalho rigoroso da frase, escrevendo-se sobre pianistas (Emil Gilels, Richter, Horowitz), pintura (Holbein), cinema (W. Allen), sobre o amor e o desencontro, o corpo e o desencanto, é da vida que a poesia sempre fala. Gastão Cruz, como nenhum outro poeta, leu a nossa época e, atualíssimo, sintetizou em versos impressionantes: "A perda real é a perda do sentido/Só se perde o sentido do que não/ foi nunca real senão quando perdido." Em tempo de preparação do verão, que se leia este poeta.

António Carlos Cortez, sinopse do livro Escarpas. In: Diário de Notícias, 02-07-2023. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/appetite-for-destruction-a-geracao-mais-bem-preparada-de-sempre-2-parte-16623307.html

 

Linhas de leitura

“Jovens à porta do Chiado”, de Gastão Cruz, é um poema que retrata a alienação dos jovens com o mundo digital.

  • Os jovens estão constantemente conectados ao telemóvel, vendo-se refletidos nele como se estivessem diante de um espelho.
  • Eles estão imersos num ambiente superficial, representado pelo "lodo morno dum profundo poço".
  • O seu mundo é limitado e dependente dessa conexão virtual, que não explica a verdadeira experiência da interação física.
  • Tudo o que lhes importa é o que está ao alcance dos seus olhos, reduzindo a vida a uma realidade momentaneamente fictícia, limitando-a ao enredo trivial das chamas perdidas.
  • Esses jovens dependem das mensagens, mesmo que não cheguem, para manterem a ilusão de estarem a viver.
  • Eles fingem que se veem e se conhecem, mas a verdade é que estão isolados na sua própria superficialidade, enquanto o mundo ao seu redor escorre rapidamente, como o tempo que passa, para o poço da insignificância.

 

Poderá também gostar de:

Opinião

Appetite for destruction: a "geração mais bem preparada de sempre" (2.ª parte)

Veem-se ao telemóvel como ao espelho
nos nomes e nos números buscando
o lodo morno dum profundo poço
Gastão Cruz, Escarpas, Assírio & Alvim, 2010, p. 39

 

Acrescento mais alguns argumentos ao artigo de 8 de junho aqui publicado. As críticas que tenho feito ao digital na escola e na universidade têm tido algum eco junto de professores e outros agentes educativos. Mas não era previsível a alienação, a ignorância, a incuriosidade dos "nativos digitais" quanto aos mais diversos saberes, uma vez imersos no mundo digital? Todos vemos que nada leem e pouco sabem, porque se tudo o que importa está "à distância de um clique", tudo o que exija esforço lhes é odioso. Jamais o "como" e o "para quê" das aprendizagens é questionado pelos estudantes. Decorar sem saber, dizer umas quantas coisas politicamente corretas, isso basta para garantir classificações acima do 16. Os professores, salvo raríssimas exceções, estão reféns desta lógica alienante. Todavia, ouve-se dizer que "esta é a geração mais bem preparada de sempre". Uma mentira soez. Propaganda pura. Estamos confrontados com um problema que Heidegger enunciou há décadas: a ausência de linguagem. "Débito e crédito", eis a novilíngua. O poeta António Ramos Rosa, nos anos 60, denunciava no Poema dum funcionário cansado o terror de vivermos num quotidiano que esmaga a imaginação e a curiosidade, tudo vendo sob a ótica do lucro imediato.

Os exames nacionais provam as consequências desta lógica alienante. A geração mais bem preparada de sempre é filha deste sistema, errado, assassino e corruptor. Os exames de Português e de Matemática relacionam-se, claro, porque revelam: 1.º não há como avaliar a expressão escrita e a análise do texto literário de forma séria e rigorosa, porquanto isso equivaleria a formular questões de natureza hermenêutica a que nenhum aluno sabe hoje responder com propriedade. Nas aulas de Português quase nunca leem ensaio e crítica, impera ainda o impressionismo como "método" de compreensão de um texto literário. Daí os verdadeiro-falso e as cruzinhas e a escolha múltipla, isto numa disciplina que já foi a base do ler e do escrever; 2.º as dificuldades do exame de Matemática devem-se à incompreensão dos enunciados. Linguagem, uma vez mais. É que "a geração mais bem preparada de sempre" à saída do 12.º ano pouco sabe ou mesmo nada. Redige uns quantos lugares-comuns sobre as obras do currículo, que não leu. Em Matemática, se não sabem o sentido dos verbos ou se se crê que armadilhar um exame é ser exigente, como não terão dificuldades? Que educação é esta?

A Suécia proibiu o uso de tablets e de quaisquer suportes multimediáticos na escola, investindo 60 milhões de euros em livros e manuais; nós por cá insistimos nos tablets e demais parafernália tecnológica. Somos um país progressista, pois claro. Somos modernos, pois então! Manuel Cruz, filósofo espanhol, escreveu em 2016, em Ser Sin Tiempo (ed. Herder, Barcelona), que a nossa época, desmaterializada, se caracteriza pela instantaneidade, pelo impensado. Tudo - das escolas às empresas, dos programas de televisão aos programas políticos - obedece à lógica do "não há tempo a perder, porque não há tempo". A geração "mais bem preparada de sempre" nunca será filha de Voltaire: "Na educação, a questão não é ganhar tempo, mas perdê-lo." Do TikTok às redes sociais, dos ecrãs à infantilização das aprendizagens, os nossos estudantes são desmemoriados e insensíveis. Viverão "cantando e rindo", olhando-se nos telemóveis como num espelho. No "profundo poço" de uma existência morna, serão incapazes de lidar com o "não", porque tudo foi "sim" nas suas vidas. Mais violentos e inconscientes, o pragmatismo destes "nativos digitais" é sinónimo de individualismo - o totalitarismo egóico. É o Portugal futuro? É o Portugal presente.

Gastão Cruz, pela mão da poesia, viu-os às portas do Chiado. A geração mais bem preparada de sempre não lerá poesia. Lerá simulacros. A sua música é a da pornografia. A imaginação, a beleza, o estranho da arte e das disciplinas que exigem escrita e leitura confronta-os com o que ignoram. Não gostam. Na escola da felicidade - onde todos são educados para serem "todos iguais" e geniais - o apetite pela destruição é a única linguagem com que dizem um mundo escarpado.

António Carlos Cortez, Diário de Notícias, 02-07-2023. Disponível em https://www.dn.pt/opiniao/appetite-for-destruction-a-geracao-mais-bem-preparada-de-sempre-2-parte-16623307.html




 ARE YOU LOST IN THE WORLD LIKE ME


Look harder, say it’s done
Black days and a dying sun
Dream a dream of god lit air
Just for a minute you’ll find me there
Look harder and you’ll find
The 40 ways it leaves us blind
I need a better place
To burn beside the lights

Come on and let me try

Are you lost in the world like me?
If the systems have failed?
Are you free?
All the things, all the loss
Can you see?
Are you lost in the world like me?
Like me?

Burn a courtyard, say it’s done
Throwing knives at a dying sun
A source of love in the god lit air
Just for a minute, you’ll find me there

Look harder and you’ll find
The 40 ways it leaves us blind
I need a better way
To burn beside the lights

Come on and let me try

Are you lost in the world like me?
If the systems have failed?
Are you free?
All the things, all the loss
Can you see?
Are you lost in the world like me?
Like me? [x2]

 

Moby & The Void Pacific Choir



quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Manifesto Anti-Leitura, de José Fanha


José Fanha nasceu em Lisboa e licenciou-se em arquitetura. Porém, é muito mais conhecido como inspirado poeta e declamador, animador cultural por excelência, criativo por vocação, interventivo até dizer basta. É autor de contos e de poesias para crianças, dramaturgo e ator. Foi professor do ensino secundário, é mestre em Educação e Leitura e doutorando na área da História da Educação e da Cultura Escrita.
Tendo como modelo e inspiração o Manifesto Anti-Dantas, célebre texto de Almada Negreiros onde, pela mordaz ironia, este zurze o academismo e o tradicionalismo instalados, sobretudo na pessoa e na obra do escritor Júlio Dantas, José Fanha construiu o Manifesto Anti-Leitura, igualmente corrosivo e irreverente, sobretudo nestes tempos em que a crise serve de desculpa para oficialmente a cultura ser posta em causa.
Este texto foi publicamente apresentado sob o patrocínio da Rede de Bibliotecas Municipais de Lisboa, durante a II Arruada da Leitura, que teve lugar no dia 21 de abril de 2012. Na tarde desse dia, ao fundo da Rua do Carmo, em Lisboa, o ator Manuel Coelho, do Teatro Nacional D. Maria II, declamou o Manifesto Anti-Leitura.
Pelo seu óbvio interesse e oportunidade, e com a justa e devida vénia para com o seu autor, aqui se partilha esta magnífica criação de José Fanha.





ABAIXO A LEITURA, PIM!
Andam por aí elementos suspeitos que se escondem nas sombras das bibliotecas e chegam a ir às escolas para espalhar um vício terrível e abominável especialmente junto dos mais novos! Dos mais tenros! Dos mais ingénuos! Um vício que se chama
LEITURA!
Os passadores dessa droga dura, os dealers da leitura transformam simples cidadãos em leitores! Em mortos vivos! Em gente que entrega a sua vida aos livros, às histórias, aos romances, aos poemas, gente que se esquece de tudo o mais!
Abaixo a leitura, pim! Abaixo os leitores, pum!
O leitor é um doente!
O leitor é um viciado!
O leitor se esquece de tudo mais só para ler!
Cuidado com eles! Porque o pior de tudo é que a leitura pega-se! Cuidado com os leitores! Afastai-os de vós! Protegei os vossos filhos!

Morra a leitura, morra! EPim!

Uma geração que lê é uma geração que pensa!
Uma geração que lê é uma geração que duvida!
Uma geração que lê é uma geração que questiona!
Uma geração que lê é uma geração que critica!
Uma geração que pensa e duvida e questiona e critica não engole qualquer patranha que lhe queiram enfiar! Não obedece! Não se baixa! Não se cala! Uma geração que lê e pensa é um perigo para a civilização ocidental e para o país!

Abaixo os leitores! Morra a literatura! Morra! Pum!

Esta gentinha põe-se a ler em vez de trabalhar, de verter o seu suor a bem da nação, de aceitar paciente e responsavelmente que lhe retirem a assistência médica, o subsídio de doença, a reforma, o teatro, a música! As cuecas, se for preciso!
Esta gentinha que lê perde-se a interrogar as medidas necessárias e urgentes para o bem do mercado, dos bancos, dos acionistas que são quem faz andar o país!
Quem lê ainda por cima diverte-se! Entretém-se!
A ler, os leitores viajam! E aprendem! E refletem! E riem! Choram! E sonham!

Morra a leitura, pim! Pam! Pum!

A leitura faz conhecer personagens imorais como o débil Carlos da Maia e a desavergonhada Eduarda da Maia,
e bruxas repelentes como a Dama de Pé de Cabra do Alexandre Herculano ou a Blimunda do “Memorial do Convento”

Seres inúteis e irreais como o Gato Zorbas da “Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar”.
Criaturas atrevidas, desobedientes e revolucionárias como o João-Sem-Medo, o Pinóquio, o Tom Sawyer, o Oliver Twist!

E loucos como o cigano Melquíades e o coronel Buendía dos “Cem anos de Solidão”.

A leitura faz-nos viajar por lugares mal frequentados como a Ilha do Tesouro, o Beco das Sardinheiras do Mário de Carvalho, os Mares do “Mobby Dick”, a Buenos Aires de Borges, a Paris de Marcel Proust, a Londres de Oscar Wilde, a Moscovo de Tolstoi!

A leitura faz-nos rir de pessoas sérias como o Conde de Abranhos, o Sancho Pança ou o Escriturário Barthleby.

Já para não falar dos autores, meu Deus! Esses seres abjetos! Os escritores que escrevem livros e livros sem um pingo de vergonha! Deviam ser presos! Encerrados num jardim zoológico! Condenados aos trabalhos forçados! À morte! À cadeira elétrica!

Camões, por exemplo, era um marginal que andava sempre à espadeirada. E se fosse só isso, ainda podíamos perdoar. A luta, a pancadaria, a guerra não são reprováveis. Podem até ter uma função muito positiva na nossa sociedade!
Mas esse tal Camões escrevia entre espadeiradas!!! Escrevia estrofes e mais estrofes! Sonetos que enchem livros e que continuam a gastar papel que podia ser poupado para fazer pacotes de castanhas ou relatórios anuais da administração das empresas.
E o Bocage? Dizia impropérios! Palavrões! E até na poesia deixava a marca da sua pouca vergonha! Se escrevesse pornografia nós aceitávamos esses palavrões! Tinham uma função social! Mas poesia…!
E não esqueçamos essa histérica e louca Florbela Espanca, essa desavergonhada, essa grande doida, que queria amar! Deixai-nos rir! Se amasse o seu marido uma vez por semana cumpria a sua obrigação! Se fosse amante do chefe lá do escritório, estava a contribuir para uma gestão equilibrada do produto interno bruto! Mas não! Ela vertia nos versos o seu desejo de amar este, aquele, e mais o outro!
E lembremos Álvaro de Campos que é uma invenção torpe, um sujeito que nunca existiu de facto! Puro delírio! Personagem frágil e contraditória! E Ricardo Reis que também não existia! Nem Alberto Caeiro! Nem Bernardo Soares!
O Sr. Fernando Pessoa que escrevia cartas de amor devia ter tido vergonha e dedicar-se à sua profissão pobre mas honrada de escriturário! E de muitos mais escritores poderíamos falar! Gente horrível, que só gosta de mexer na miséria e na lama, gente carregada de maldade que nos fala da Queda dos Anjos e de Amores de Perdição, de Barrancos de Cegos, de Lobos que Uivam, de Versículos Satânicos!
E até quando escrevem sobre gente feliz, tem de ser gente feliz com lágrimas!

E há quem os leia! Quem sofra com eles! Quem os desfolhe carinhosamente sem saber que o veneno entra pelos olhos que leem e pelos dedos que folheiam! E depois da leitura de uma página, por vezes depois da leitura de um só parágrafo já não há remédio! Eles já são leitores! Estão apanhados irremediavelmente pelo canto de sereia da leitura! A possibilidade de salvação é extremamente diminuta!
Os livros deviam ser reciclados e transformados em lenços de papel! Em solas de sapatos! Em bolas de futebol! Mas livrai-vos de os ler! Ou melhor! Queimem-nos! Lembrem-se daqueles que ao longo da história tentaram salvar-nos queimando pilhas e pilhas de livros!

Abaixo os livros! Morra a leitura! Morra, E pim!

Os livros fazem-nos afastar da realidade, da economia! Do mercado! Do futuro!
Uma ponte é feita com ferro e cimento e não com livros!
No tribunal, o advogado não defende um criminoso com poesia!
Na sala de operações o cirurgião não abre os órgãos de um doente com um romance!
Ninguém se deixa corromper por um soneto!

Abaixo a prosa! E a poesia! E o ensaio!

Morra a leitura, morra! E Pim!

E temos de falar das bibliotecas, essas casas sombrias onde o vício é permitido! Pais! Protegei os vossos filhos! As bibliotecas são autênticas salas de chuto de porta aberta ao público! E estão carregadas e alto abaixo de livros! E os livros estão à vista! Pior ainda, os livros estão à mão de qualquer criança ingénua! E alguns até têm ilustrações, bonecos que tornam a leitura mais fácil e a perdição mais próxima! E o pior é que podem ser requisitados e levados para a casa, para o seio da família onde vão espalhar a sua ação desagregadora e malfazeja!

Morra a leitura! Abaixo as bibliotecas! Pum!

Mas há esperanças para o futuro!

Por alguma razão muitos dos nossos melhores e mais impolutos dirigentes só leem resumos! Ou extratos da conta bancária! Quanto ao resto, nada! Nem uma palavra! Nem uma linha!
E quando lhes perguntam o que andam a ler, muito perspicazmente, eles inventam títulos de livros que não existem para lançar o engano e, quiçá, salvar alguém dos terríveis vícios da leitura!

Sigamos o exemplo que muitos dos nossos dirigentes e gerentes e gestores nos apontam! Há que ter a coragem de dizer bem alto:

A leitura prejudica gravemente a ignorância!

E sem ignorância o país não progride! Não crescem os juros! Não se investe nas offshores! O estado não vende empresas abaixo do preço aos particulares! O preço da gasolina não sobe!

Acabemos de vez com a leitura! Abaixo a leitura! E Pim!

Se puserem um livro à vossa frente, caros amigos, cuidado! Desviem o olhar! Não abram nem uma página! Pode bastar um verso para vos contaminar! Um homem que lê pode desejar viver num mundo melhor! Pode de repente sentir as lágrimas correrem-lhe pela cara abaixo! Pode querer subitamente ajudar os aflitos! Pode abraçar estupidamente um amigo ou beijar os lábios de uma rapariga bela como um raio de sol a iluminar a mais bela rosa do jardim!

Por isso é preciso fechar as portas aos antros de leitura! Sabemos que pode parecer doloroso mas é fundamental arrancar de vez os livros das mãos dos viciados e impedi-los de ler uma linha sequer! Se for preciso tapai-lhes os olhos! É preciso preparar o futuro dos nossos filhos! Não lhes dar ilusões, nem sonhos, nem alegrias! Nem dúvidas, nem sabedoria, nem nada!

Abaixo as bibliotecas! Abaixo os livros! Morra a leitura! Morra!
Fim!
José Fanha
Poeta do séc. XXI
e
tudo










LUSOFONIA Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/ 
 

CARREIRO, José. “Manifesto Anti-Leitura, de José Fanha”. Portugal, Folha de Poesia, 05-02-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/02/manifesto-anti-leitura-de-jose-fanha.html


 

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Um sensível e agradecido leitor - Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges, Biblioteca Pessoal
Ao longo do tempo, a nossa memória vai formando uma biblioteca díspar, feita de livros, ou de páginas, cuja leitura foi uma felicidade para nós e que gostaríamos de partilhar. Os textos dessa biblioteca íntima não são forçosamente famosos. A razão é clara. Os professores, que são quem dispensa a fama, interessam-se menos pela beleza do que pelos vaivéns e pelas datas da literatura e pela prolixa análise de livros que se escreveram para essa análise, não para o prazer do leitor. 
A série que prologo e que já entrevejo quer dar esse prazer. Não escolherei os títulos em função dos meus hábitos literários, de uma determinada tradição, de uma determinada escola, de tal país ou de tal época. 
Que outros se gabem dos livros que lhes foi dado escrever; eu gabo-me daqueles que me foi dado ler”, disse eu uma vez. Não sei se sou um bom escritor; penso ser um excelente leitor ou, em todo o caso, um sensível e agradecido leitor.
Desejo que esta biblioteca seja tão diversa como a não saciada curiosidade que me induziu, e continua a induzir-me, à exploração de tantas linguagens e de tantas literaturas. Sei que o romance não é menos artificial do que a alegoria ou a ópera, mas incluirei romances porque também eles entraram na minha vida. Esta série de livros heterogéneos é, repito, uma biblioteca de preferências. 
María Kodama e eu errámos pelo globo da terra e da água. Chegámos ao Texas e ao Japão, a Genebra, a Tebas e, agora para juntar os textos que foram essenciais para nós, percorreremos as galerias e os palácios da memória, como escreveu Santo Agostinho.
Um livro é uma coisa entre as coisas, um volume perdido entre os volumes que povoam o indiferente Universo, até que encontra o seu leitor, o homem destinado aos seus símbolos. Acontece então a emoção singular chamada beleza, esse mistério belo que nem a psicologia nem a retórica decifram. “A rosa é sem porquê”, disse Angelus Silésius; séculos depois Whistler declararia “A arte acontece”. 
Oxalá que sejas o leitor que este livro aguardava.

Jorge Luis Borges, “Prólogo” in Biblioteca Pessoal, Edição Quetzal, 2014



quarta-feira, 11 de outubro de 2017

CAMÕES - numa mão sempre a espada e noutra a pena

Retrato de Luis Vaz de Camões (iluminura), H. Lopes (atrib.), 1581 (?)


LUÍS DE CAMÕES E «OUTRA COISA»
Crónica de Frederico Lourenço

Diz-se que, nos remotos anos salazaristas, não se podia dizer em Coimbra que Camões era um poeta maneirista, porque isso daria a entender que ele era amaneirado, o que por sua vez corria o risco de resvalar também para «outra coisa». Quando Vítor Manuel Aguiar e Silva apresentou aqui a sua tese sobre Maneirismo literário na literatura portuguesa (isto antes do 25 de Abril), o catedrático de Literatura Portuguesa avisou-o de que, em relação a Camões, não poderia contar com o seu apoio. Para o antigo catedrático do tempo do salazarismo, Camões definitivamente não era maneirista. Era o cantor da gesta portuguesa, da glória dos Descobrimentos. Ponto final.
No entanto, Camões está longe de ser aquilo que os Ministros da Educação de Salazar quiseram ver nele. A poesia de Camões está cheia de situações que, se virmos o que elas são por baixo da superfície, nos deixam de boca aberta perante o facto de a Inquisição ter autorizado a publicação d' Os Lusíadas.
Hoje fala-se em tons acesos sobre se um homem se pode sentir uma mulher ou se uma mulher se pode sentir um homem. Camões estava muito à frente de tudo isso.
Todos conhecemos o famoso verso do Canto VII d' Os Lusíadas: «numa mão sempre a espada e noutra a pena», com que Camões se descreve a si próprio.
A maior parte da pessoas pensa: ah, pois! O grande herói da Índia, dos Descobrimentos, do Império! A espada e a pena, as armas e as letras!
Só que não é nada disso. A espada de que fala Camões é outra espada. É a espada dada por um pai à filha para ela se suicidar. Porquê? Porque ela engravidou do próprio irmão.
Leiamos a citação toda: «Qual Cânace que à morte de condena, / Numa mão sempre a espada e noutra a pena».
Tudo está em percebermos quem é esta Cânace, a quem Camões se compara. Ora Cânace é uma figura das «Heróides» do poeta romano Ovídio, muito lido e imitado por Camões em toda a sua obra. Os versos de Camões são uma recriação dos seguintes versos de Ovídio: «na mão direita segura o cálamo; na outra segura a espada impiedosa» (Heróides 11,3).
Com estas palavras, pois, Camões está a colocar-se na pele de:
1) uma mulher;
2) apanhada numa situação tão extrema da sua vida;
3) grávida do próprio irmão;
4) que acaba de receber do pai a espada para se suicidar.
Mas a questão complica-se ainda mais. Temos de ver agora que os versos do Canto VII d' Os Lusíadas retomam, por sua vez, os seguintes versos do Canto V: «numa mão a pena e noutra a lança».
Quem é aqui o alter-ego de Camões? Júlio César. Basta ir ver a estância 96 do Canto V. E não é difícil percebermos que Camões tem gosto em se identificar com a figura de Júlio César, pois também César era um autor de quem se dizia que salvara os seus escritos a nado.
No entanto, este mesmo Júlio César também era referido nas biografias antigas romanas, conhecidas na época de Camões, como homem de todas as mulheres e mulher de todos os homens.
Juntemos a isto o Canto III d' Os Lusíadas, em que Camões se compara a Orfeu, por sua vez explicitamente referido no Canto X das «Metamorfoses» de Ovídio como autor (em latim «auctor») de amores homossexuais.
Dizem que, nas sociedades repressivas como era o Portugal de Camões dominado pela Inquisição, quanto mais inteligentes os textos menos os censores os vão entender. Felizmente, o poema de Camões é tão inteligente que, em 2017, ainda estamos a tentar entendê-lo.

Frederico Lourenço, Coimbra, 2017-10-11
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O ideal de homem virtuoso é, para Camões, o daquele que, como ele, for possuidor de «honesto estudo / Com longa experiência misturado». Camões é o herói humanista d' Os Lusíadas.