segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Último recorte da planície


A Leontina d’Aguiar
(12/12/1928 – 10/11/2021)

 

Como último recorte da planície

assim vejo o rebentar da morte.

Talvez um semitom aí se agite

oscile perdurável por entre as ervas,

registo da razão sempiterna.

Devagar no lugar que o tom ocupa

subimos devolutos na escala determinada

brandindo. 

Queria por aqui dizer não ao vento contrário,

a mão sob as vísceras, o óleo na testa. 

Oh botão de fraca chuva,

lava na margem as mãos mergulhadas

e dos dedos os atilhos desata 

para que pegado ao tempo

este se desfaça.

 

José Maria Aguiar Carreiro



"flower", por mememe, twitter, 2021-11-26



CARREIRO, José. “Último recorte da planície”. Portugal, Folha de Poesia, 29-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/ultimo-recorte-da-planicie-jose-carreiro.html



segunda-feira, 8 de novembro de 2021

um âmbar na cova da mão, Alberto Pimenta

A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?


Inquérito Poesia e Resistência (Portugal) realizado por Ana Luísa Amaral, Joana Matos Frias, Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo para o ILCML


Resposta de Alberto Pimenta (Porto, Portugal, 1937):


Quê?

um âmbar na cova da mão
cor de mel amolgado
quase maleável
não parece acabado
tão justo e ajustado
mudo macio e
aos olhos translúcida
fonte que espelha
tanta história da terra
um grão uma asa uma flor
e depois o imaginado.

vai a pedra
de entre os dedos
sobe à terra que a chama
na água ao seu redor
muda de leito e de forma
irradia então
puro líquido fulgor
que até ao mais fundo
da memória ilumina
as formas que já tomou
as que ainda há-de tomar.

Estava a escrever este poema (ou talvez a anterior variante) quando chegou o carteiro com o envelope com a carta com o convite Lyracom. Parei de escrever, li, voltei a olhar para o poema e perguntei: onde está aqui a resistência?

Consultei o dicionário de latim, procurei resisto/resistere e achei como primeira entrada “parar e olhar para trás”. Fiquei inquieto. Não é meu costume fazer isso: parar e olhar para trás. Mas o âmbar… fiquei parado a olhar a luz da pedra que a margem húmida do rio ia engolindo.

E penso: resistir é então antes do mais “parar e olhar para trás”. Mas também é, ainda em latim (vi a seguir), “enfrentar” e “opor-se”, naturalmente ao caminho em que se vai, só que agora activamente e sem olhar para trás. Já não é só desviar os olhos, é enfrentar o próprio caminho.

E então continuo a pensar: talvez sejam, de facto, essas as duas maneiras possíveis de resistir; parar, deixar de olhar para o que está à vista, ou então olhar, ver, e não aceitar. Não resistir será então persistir no caminho, o qual, como é próprio dos caminhos, foi já traçado anteriormente por quem traça os caminhos e as respectivas pontes (neste caso, pontífices). Resistir é não seguir esse caminho, optando ou por virar-lhe as costas, ou por enfrentá-lo. E, tratando-se de poesia, é no contorno da palavra que tudo se passa.

Creio que a poesia, como acto de busca da verdade subjectiva (a ciência é que busca a verdade objectiva), terá de fazer sempre uma dessas duas escolhas: virar as costas ao visto daqui, para manter outros vislumbres, ou seguir mas opondo-se, sempre pela palavra, tornando-a por exemplo outra, ou entrelaçando-a (Varrão: viere) com outras, em ritmos e harmonias de coisas primordiais, e nunca com o ruído das rodas que rolam por esses caminhos e a pouco e pouco até os vão afundando. A menos que se trate de enfrentar essas rodas e engrenagens mandando-as pela ribanceira abaixo. Isso também é muito belo. Desgraçadamente porém elas regressam sempre como desenhos animados que afinal são.

Por isso, nesses trilhos da obediência, ouve-se às vezes dizer que em certo lugar do caminho faltam 4 médicos, ou 4 juízes, ou 4 pedreiros, ou 4 motoristas, ou 4 fiscais, mas jamais se ouvirá dizer que faltam 4 poetas. Ainda bem.


 Respondem os poetas (de Portugal):

https://ilcml.com/inquerito-poesia-e-resistencia-portugal/




       Poderá também gostar de ler:

 

A heterogeneidade das práticas discursivas a que damos o nome de poesia reflete-se em diferentes conceitos de resistência, tão variáveis quanto as poéticas que lhes estão associadas. “Não há opressão maior e mais infame que a da língua”, escreveu Alberto Pimenta, e a poesia desenvolve mecanismos de resistência que assentam na consciencialização deste facto. Mas, por outro lado, talvez se tenha vindo a criar alguma resistência aos usos que a poesia de tradição moderna reivindicou para “as palavras da tribo”.

Reportando-se ao mundo contemporâneo, Pimenta constatava recentemente: “nesses trilhos da obediência, ouve-se às vezes dizer que em certo lugar do caminho faltam 4 médicos, ou 4 juízes, ou 4 pedreiros, ou 4 motoristas, ou 4 fiscais, mas jamais se ouvirá dizer que faltam 4 poetas. Ainda bem”. Porquê “ainda bem”? Por que precisa a poesia deste estar à margem? E se não faz falta (?), por que razão continua? As “operações” poéticas de Alberto Pimenta e os diálogos que estas mantêm (ou recusam) com outras poéticas portuguesas contemporâneas serão o ponto de partida para algumas possíveis respostas.

 

Ler mais em: “Tensões e Implicações entre Poesia e Resistência na Contemporaneidade Portuguesa”, Rosa Maria Martelo. In: elyra 2, 12/2013: 37-53 – ISSN 2182-8954. Disponível em: https://www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/25/28

 



CARREIRO, José. “um âmbar na cova da mão, Alberto Pimenta”. Portugal, Folha de Poesia, 08-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/um-ambar-na-cova-da-mao-alberto-pimenta.html



domingo, 7 de novembro de 2021

SIDA, Al Berto

Poema dito por Miguel Rodeia (InVersos, Vimeo, 2012)


Sida

 

aqueles que têm nome e nos telefonam

um dia emagrecem – partem

deixam-nos dobrados ao abandono

no interior duma dor inútil muda

 e voraz

 

arquivamos o amor no abismo do tempo

e para lá da pele negra do desgosto

pressentimos vivo

o passageiro ardente das areias - o viajante

que irradia um cheiro a violetas noturnas

 

acendemos então uma labareda nos dedos

acordamos trêmulos confusos - a mão queimada

junto ao coração

 

e mais nada se move na centrifugação

dos segundos - tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola

a ausência fulgura na aurora das manhãs

e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos

o rumor do corpo a encher-se de mágoa

 

assim guardamos as nuvens breves os gestos

os invernos o repouso a sonolência

o evento

arrastando para longe as imagens difusas

daqueles que amamos e não voltaram

a telefonar.

 

Al Berto, Horto de Incêndio. Lisboa, Assírio e Alvim, 1997

 

 

QUESTIONÁRIO:

 

a) Considerando o tema deste poema, como se pode entender a frase “aqueles que têm nome”?

 

b) Na segunda estrofe, o poema fala em arquivar o amor e em pressentir vivo o passageiro ardente. Analise essa aparente contradição.

 

c) Na quarta estrofe, quando o poema sugere a transformação da intensidade amorosa em carência (tudo nos falta), um verso traduz com perfeição a conjugação entre a intensidade amorosa e seu esvaziamento. Qual é esse verso?

 

RESPOSTAS ESPERADAS:

a) O efeito de significado dessa sequência no contexto do poema é o de indicar que os indivíduos que contraem a “sida” (“aids”), além de serem apenas dados de estatísticas e seres condenados ao anonimato por conta de preconceito, têm existência concreta, são reais e fazem parte de nosso quotidiano.

 

b) “Arquivar o amor” remete à perda (morte) sugerida na primeira estrofe; significa, portanto, a impossibilidade do amor por conta daquela perda. A contradição, aparente (formulável nos termos “morte e vida”), está no facto de que a essa impossibilidade não anula a persistência da imagem viva do ser amado. Ou seja, a impossibilidade existencial de amar não “mata” a vitalidade do amor.

 

c) O verso em questão é “a ausência fulgura na aurora das manhãs”.

 

COMENTÁRIOS:

Para responder à pergunta do item a, deveria o candidato identificar uma sequência de notável precisão para os efeitos de sentido que o poema sugere. Deles, o do anonimato forçado pelo estigma não só da doença, mas do tipo de amor a que a “sida” (“aids”) foi inicialmente associada (o homossexual) é, sem dúvida, o sentido mais dramático. A primeira estrofe toda “fala” dessa interdição sofrida por pessoas que nos são próximas, que fazem parte de nosso dia-a-dia, e que apesar de tudo nos procuram e se comunicam conosco. Como se vê, a perceção mínima dessa sequência abre espaço para uma interpretação muito mais aguda do poema.

 

Quanto ao item b, ao contrário do que se pode depreender de uma primeira leitura e do significado mais imediato de “arquivar o amor”, a estrofe toda sustenta uma eloquente apologia do amor, mesmo que interditado pela doença e pela morte. A contradição pressuposta, no caso, é apenas aparente, e serve para salientar a grande afirmação de um tipo de amor que não sucumbe à morte e que se pronuncia com o sofrimento. A questão visa a fazer com que o aluno perceba, sobretudo, essa afirmação.

 

No item c, é particularmente importante observar o efeito produzido pela justaposição de um sujeito que significa, no caso, falta, negação, com um processo verbal que diz exatamente o contrário: “fulgurar na aurora das manhãs”. Claro está que o sentido mais imediato é aquele mesmo: a elevação da sensação da falta a seu extremo. Mas o candidato terá observado que “fulgurar na aurora das manhãs”, conotando brilho, ressurreição, retoma o sentido incandescente atribuído ao amor em versos precedentes, e permite que o leitor associe ao caráter negativo da ausência a força do amor que preside a relação entre o sujeito e o próprio sujeito ausente. Na verdade, espera-se que o candidato procure sair da interpretação mais óbvia e saiba conectar essa frase com o que se acha enunciado sobretudo na segunda estrofe.

 

Fonte: UNICAMP, Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa, 2.ª fase. Caderno de Questões 2003. Disponível em: https://www.comvest.unicamp.br/vest_anteriores/2003/download/comentadas/LPortuguesa.pdf





Textos de apoio

 

“ARQUIVAMOS O AMOR NO ABISMO DO TEMPO”

 

“SIDA” compõe o último livro de Al Berto, Horto de incêndio, publicado em 1997. O título do livro indica haver uma estreita relação entre vida e morte, além de um teor elegíaco, que é entrevisto por meio não apenas do título do livro, mas também pelos títulos dos poemas. Marcando a passagem do corpo pelo mundo, “o viajante/ que irradia um cheiro a violetas nocturnas”, horto e incêndio se tornam apêndices entre corpo e mundo, na medida em que o corpo, matéria e superfície em choque com outras matérias, como o fogo, a elas se amalgamam, compondo-o e decompondo-o. No poema, a doença imprime no sujeito lírico a consciência aguda do tempo na franca exposição da dor pela morte dos amigos. Colada à morte daqueles que “não voltaram/ a telefonar”, a morte pressentida: o arquivamento do amor e de um tempo, da “labareda nos dedos”, restando-lhes “a mão queimada junto/ ao coração”.

No pensamento paradoxal presente em Horto de incêndio, a imagem da mão queimada no poema é condizente com a encenação de Al Berto na fotografia de Paulo Nozolino, interpretada na subseção “Conheço o corpo que gera o seu próprio fogo”, do capítulo “A queda brusca dos anjos”, mostrando que Al Berto não se desvia de seu projeto literário e de tudo que o atravessa. O seu projeto está todo em Horto de incêndio. Entretanto, não se pode negar a presença de um fosso, algo interrompido que os verbos na primeira pessoa do plural, em pretérito perfeito, sugerem: “arquivámos”, “acendemos”, “pressentimos”. A melancólica constatação da perda, da degeneração dos corpos como uma via crucis imposta a todos os que optaram viver os prazeres do corpo e aos quais, agora, resta o “rumor do corpo a encher-se de mágoa”. Acatando a dor e a impotência diante da morte anunciada pelo telefone que já não toca, termina por não lamentar o motivo da morte, mas aqueles “que amamos e não voltaram a telefonar”.

 

Preparo um desamor: as relações afetivo-conflituosas em Al Berto e Caio Fernando Abreu, Mônica Anunciação. Salvador, UFBA, 2019

 

PARA ALÉM DOS JARDINS

 

Os poemas de Horto de Incêndio aproximam-se de uma reflexão sobre a morte, uma vez que apresentam um discurso impregnado de uma contaminação elegíaca, exatamente de reflexão sobre um luto de seres retirados de sua essência para uma transformação, talvez as múltiplas “metamorfoses” das quais o sujeito enunciador irrompe : “e cada um de nós metamorfoseou-se/ num cemitério ambulante – cada um de nós/ sepultou na alma uma quantidade desumana/ de dor e de mortos”. Podemos ainda localizar esta preocupação fúnebre do enunciador lírico dos poemas, uma vez que temos dentro deste jardim incendiado uma busca por tempos perdidos por exemplo no texto “O senhor da asma”.

 

Senhor da asma

 

Deitado há muito tempo – o cigarro luzindo

Com um olho de tigre vindo da noite e

Lá fora

Ainda se apercebe a húmida incandescência das frésias

o rumor surdo de vozes belas pelo jardim onde

a florida macieira se recorta no intenso céu de verão

(...)

mas nada é perfeito (...)

falta-me o tempo para procurar o tempo perdido...

(AL BERTO, 2000. p.32-33)

 

Neste excerto de um poema que dialoga não só com a figura, mas também com a obra de Marcel Proust, que era acometido pela asma, temos exatamente uma situação de contingência, na qual nem mesmo a ambientação idílica da natureza permite que o sujeito enunciador seja tocado por ela. Parece que numa atmosfera de doença, na consciência de sua finitude, o Eu confirma o seu ser-para-a-morte heideggeriano. O diálogo com a obra proustiana nos remete a uma fixação de determinados acontecimentos, cujo registro é marcado pela passagem do tempo e sua inexorável ação. A asma aí, tal qual a Proust, limita, condiciona e provoca o aprofundamento da reflexão, enfatizando uma atmosfera de sufocamento e ausência de faculdades mais primárias (respiração, nomeadamente), o que podemos tornar diálogo juntamente com a pertinência da visão já mencionada anteriormente. De qualquer maneira, é importante destacar aqui que também conforme aponta Deleuze (1997), o escritor é levado a perverter a sua linguagem para não se perder na afasia, por meio da intenção de criar uma nova língua dentro da língua, capaz de reinventar formas de superar o desamparo do mundo através de sua superação mais adâmica19.

 

É possível, a partir disso, tentar entender a trajetória da poesia al bertiana por meio de um sólido e contínuo paradoxo entre hortos e incêndios; entre o prazer da experiência e o recolhimento daquilo que esta gerou através de uma profunda reflexão a que os sujeitos poéticos de Al Berto se propõem a pensar. A dimensão existencial da obra al bertiana consiste, portanto, nessa dialética tensão entre a dramatização empírica, levada às últimas conseqüências e o pensamento acerca dessa própria teatralização erigida sobre a multiplicidade de vozes existentes em sua obra. Maurice Blanchot parece concordar com o que já foi aqui apontado de Deleuze em relação à experiência:

 

E aquele que escreve é igualmente aquele que “ouviu” o interminável e o incessante, que o ouviu como fala, ingressou no seu entendimento, manteve-se na sua exigência, perdeu-se nela e, entretanto, por tê-la sustentado corretamente, fê-la cessar, tornou-a compreensível nessa intermitência, proferiu-a relacionando-a firmemente com esse limite, dominou-a ao medi-la.

(BLANCHOT, 1987, p.29)

 

Em todas as obras de Al Berto podemos verificar uma espécie de fixação obsessiva por uma juventude, mormente ilustrada em seus poemas por diálogos entre um sujeito enunciador suficientemente adulto com um adolescente. Em Horto de Incêndio, temos exatamente o ápice dessa dialética, numa perspectiva piorada, na medida em que este último sujeito lírico do poeta encontra-se definitivamente esgotado e definhado conforme aponta, por exemplo João Barrento (2000) ao referir-se a este livro como uma metáfora da morte e da doença, seguindo a linha da pensadora Susan Sontag (A doença como metáfora). Considerando a Aids como uma das maiores “epidemias” que acometeram a humanidade, é possível relacionar o conceito sontagiano com algumas observações aqui já propostas (SCLIAR, 2003) no que diz respeito à atividade da melancolia em estrangeiros, migrantes, e sobretudo indivíduos que compunham sociedades e contextos com grandes doenças ou padecimentos físicos maiores. Acreditamos, com isso, que o poema “Sida” sintetiza também um discurso melancólico posto que registra a gravidade de uma doença que ataca dialeticamente, uma vez que operacionaliza um deterioramento físico e também afunila e fustiga o Homem na sua mais perene condição: a certeza de estar muito próximo de sua finitude.

Delicadamente, Al Berto nos apresenta um poema denso da dor do luto, mas lúcido diante do perecimento implacável a que estamos subordinados. Com um campo semântico voltado para a idéia de dor e de perda, o texto se apresenta através de uma aguda tentativa de superação, que no entanto não parece ser possível contornar:“ nem a vida, nem o que dela resta nos consola”. No poema, cuja voz enunciadora é a de quem permanece, sofrendo a ausência daqueles que um dia emagrecem –partem, a corrosão se dá em nome da solidão de quem deve acostumar-se com o vazio e com a consciência de uma igual finitude. O tempo funciona como aliado, na tentativa do esquecimento e da superação do luto em função da morte próxima em função da Aids que o título submete : “ o vento arrastando para longe as imagens difusas daqueles que amamos”. Não obstante, a doença, metáfora social, funciona para além de uma fissura, cancro que atinge a coletividade, apontando a falência dos tempos, a decadência recorrente a que a História invariavelmente retorna.

 

Al Berto: um corpo de incêndio no jardim da melancolia, Tatiana Silva. Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006

 

_______

19 Estas observações podem ser verificadas também no meu texto intitulado Al Berto: (entre) o horto e o incêndio publicado nos Anais do XX Encontro da ABRAPLIP (2005).

 

 

 

DESLOCAMENTOS

 

A partir dos anos 1970, a experiência da linguagem levada às últimas consequências por artistas nos anos 1950-1960 começa a dividir lugar com uma linguagem que pretende testemunhar experiências, comunicar uma troca de vivências e construir alegorias referencializáveis do mundo cotidiano. Haveria vida antes e depois do poema, que passa a funcionar como um tipo de dobradiça para determinado discurso. Em Portugal, Al Berto, por exemplo, não opera mais movido por uma forte experimentação, sua literatura se recusa a isso, mas por uma consciência da discursividade da escrita propondo um “pacto novo” (cf. MAGALHÃES, 1981) com os leitores. É assim que entendemos a inescapável narratividade de seus primeiros livros, com enredos e personagens, a forte presença da cidade como cenário quase natural para a vida subjetiva, assim como o sentido de seu último livro, Horto de incêndio, de 1997, em que ele canta a aproximação da morte com que se defrontava, através de um câncer linfático, bem como seu desejo homoerótico, justapondo-os. É justamente num poema intitulado “Sida” que podemos entender um pouco como funciona esse “pacto novo” a que chamamos discursividade.

Malgrado o texto do poema abordar a tópica tradicional do sentimento melancólico pela passagem do tempo (tempus fugit) e suas consequências, como a distância, a perda, o silêncio e a morte, é o título que recorta, restringe e, digamos assim, torna presente o sentido do poema, criando territórios comunicativos muito bem definidos com os leitores. A força da literatura pós-autônoma em um livro como Horto de incêndio está, dentre outros motivos, no gesto de intitular um poema com o nome de AIDS, sem qualquer truque de conotação, muito mais do que um simples uso jornalístico e informativo, isto é, referencial, de um tema contemporâneo, por mais que isso também se dê. O discurso da doença, presente ao longo de todo o livro, assim como em livros anteriores – “já não necessito de ti / tenho a companhia nocturna dos animais e a peste”, diz ele em “Ofício de amar”, do livro Trabalhos do olhar, de 1982 (BERTO, 2000, p. 184) –, inscreve um sujeito autoral gay e em vias de morrer e lhe dá sentido público, político, implica-o e o compromete, a ele e aos outros, leitores ou não, estimulando a “imaginação pública” da qual Ludmer afirma: “nesse lugar não há realidade oposta à ficção, não há autor e tampouco há demasiado sentido (2010, p. 04). Esse texto implica, na verdade, mais de uma geração, para além das diferenças de classe, gênero, nacionalidade e orientação sexual, mesmo que marcando também estas. Essa é a discursividade que se impõe na produção do seu sentido, não mais apenas a densa textualidade de matriz autônoma e experimental e com raízes na ideia mallarmeana de uma poesia em permanente estado de crise – “crise de versos”, versos em crise –, como discute Marcos Siscar (cf. 2010, p. 113-6).

Al Berto é um herdeiro de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, como os poetas anteriores no argumento de Lourenço; diríamos, todavia, que é um herdeiro ilegítimo, pois – intercalado historicamente pelas densas experiências de linguagem ao longo do século XX – opta por trair a linhagem dos que valorizaram a noção de autonomia da linguagem poética. Essa geração emergente nos anos 1970 parece repetir um certo Campos cuja voz pergunta: “Símbolos? Estou farto de símbolos... / Uns dizem-me que tudo é símbolo. / Todos me dizem nada.” (PESSOA, 2007, p. 475); geração contra a espessura simbólica da linguagem da geração anterior. O cansaço finissecular do heterônimo modernista de Pessoa pode ser divisado em inúmeros poemas de Al Berto, menos no décor da linguagem e mais na longa narratividade de seus poemas em prosa, e mesmo nos versos, nos ambientes urbanos de comportamentos transgressores e diferença sexual, na subjetividade neurastênica, nos personagens marginais, na flânerie por alegorias realistas ou lisérgicas de uma Europa crepuscular do último quarto do século XX. Quando contrapomos tudo isso à entrada de Portugal na Comunidade Econômica Europeia na década de 1980, assim como ao neoliberalismo que avançou predador sobre as regras do capitalismo financeiro, também nos anos 1980, e à Guerra Fria que se estendia há décadas, verifica-se que os poemas de Al Berto dizem menos respeito à emulação autônoma do texto decadentista de Campos e mais respeito ao flagrante desconforto das subjetividades implicadas no cenário europeu da década de 1980, como lemos em O medo:

 

22 de junho

bebo para que as remotas cicatrizes doutros corpos não desatem a doer. bato o pé ao ritmo frenético dum rock, abandono o olhar pelos bilhares, pelos flippers silencio o desejo neste copo de vinho. ouço-me latejar, ao cair do dia, sentado, bebo, perdido a um canto duma sala de jogos na província.

e o inferno está aqui, no verde dos panos dos bilhares onde a agonia e a solidão têm forma de bolas. bebo mais e mais, para que as noites felizes não voltem sem ti, nunca mais. (BERTO, 2000, p.229).

 

Da autonomia à pós-autonomia: poesia como crítica do presente (notas de pesquisa)”, Sandro Ornellas. Revista landa, vol. 1, n.° 2 (2013)

 



CARREIRO, José. “SIDA, Al Berto”. Portugal, Folha de Poesia, 07-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/sida-al-berto.html


sábado, 6 de novembro de 2021

recado, de Al Berto


 

recado

 

ouve-me

que o dia te seja limpo e

a cada esquina de luz possas recolher

alimento suficiente para a tua morte

 

vai até onde ninguém te possa falar

ou reconhecer — vai por esse campo

de crateras extintas — vai por essa porta

de água tão vasta quanto a noite

 

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te

e as loucas aveias que o ácido enferrujou

erguerem-se na vertigem do voo — deixa

que o outono traga os pássaros e as abelhas

para pernoitarem na doçura

do teu breve coração — ouve-me

 

que o dia te seja limpo

e para lá da pele constrói o arco de sal

a morada eterna — o mar por onde fugirá

o etéreo visitante desta noite

 

não esqueças o navio carregado de lumes

de desejos em poeira — não esqueças o ouro

o marfim — os sessenta comprimidos letais

ao pequeno-almoço

 

Al Berto, Horto de Incêndio (1997)




Al Berto e o fogo

 

Um dos medos do eu lírico al bertiano é o da morte, tanto que essa questão permeia também seu último livro. “O medo da morte me faz apreender - temer – uma realidade outra, irredutível aos objetos habituais do saber e aos organismos de poder. Mais do que o nada que ela anuncia, é a alteridade da morte” (POIRIÉ, 2007, p.34), aspecto esse, presente nos poemas de Al Berto.

Poemas que falam de incêndio, do relâmpago, do cigarro, da sarça ardente, designando uma poética da morte pelo fogo, para o fogo. De acordo com Massaud Moisés (2008) “[...] açulado pelos seus sentidos em brasa, o seu olhar alcança o mínimo e o máximo, o próximo e o longínquo...” (p. 494). Já António Ramos Rosa (1991) elucida que “tomar contato com o mundo não é para este poeta uma possessão da realidade, mas quase sempre significa uma perda irreparável, um grito de revolta e de medo” (p. 119). A seguir será feita a leitura de alguns de seus poemas apontando a imagem do fogo como sendo parte da imagem da morte, ou mesmo um anúncio da morte.

A obra de Al Berto reveste-se de fogo e queima-se para uma lírica da morte. O poema que abre o livro Horto de Incêndio tem por título recado, assim, escrito com letras minúsculas, como igualmente todo o poema e os poemas. Por estar em um horto de incêndio e a morte próxima, aproveita para anunciá-la para um interlocutor/alocutário, que pode ser o próprio Alberto Pidwell. Como se o poeta quisesse deixar a mensagem de um tempo breve, para aquele “breve coração”.

Al Berto pede ao interlocutor/ alocutário que o escute e deseja-lhe “que o dia te seja limpo”, como se de uma purificação se tratasse. Isso ganha intensidade quando o poeta diz “deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te”, isto é, uma constelação, porque está na escuridão, nas trevas. A imagem do fogo neste poema é representada pela luz, e pelo “navio carregado de lume”, entendendo-se esse processo como um rito de passagem que será iniciado com “os sessenta comprimidos letais ao pequeno-almoço”, anúncio da própria morte.

Por meio desse poema, nota-se o entrelaçamento da imagem do fogo com a imagem da morte, um prólogo ao livro que se constitui de outros poemas em que essa temática acentua-se, fechando com um longo em homenagem a Rimbaud, carregado de simbolismos e figuras da “morte de rimbaud dita em voz alta no coliseu de lisboa a 20 de novembro de 1996”, levando-nos a pensar no que Anna Hartmann Cavalcanti (2005) fala: “A noção de símbolo permite explicitar que o conteúdo representado pela palavra não é a expressão das próprias coisas, mas um âmbito puramente fenomênico, e de nossas representações” (p. 146).

Portanto, entendemos a imagem calorífica em certos poemas al bertianos como sendo a representação da morte, já que a linguagem simboliza, deste modo, nosso mundo interior por meio das representações, “as imagens são produtos imaginários” (PAZ, 2009, p. 37) e são essas imagens que pretendemos enfatizar no presente estudo. António Ramos Rosa complementa a idéia de uma liberdade por meio da destruição dizendo:

 

Vemos assim que a opacidade do mal ou a agressividade do mundo é tão intensa que provoca um choque e um desmoronamento geral, mas esta destruição não constitui uma supressão pura e simples da identidade do poeta. À violência desta destruição responde o poeta com uma violenta negatividade que é uma pulsão de liberdade absoluta, que procura por todos os meios o seu espaço vital. E é também a expressão paroxística de um desejo da comunhão pura (ROSA, 1991, p. 119).

 

O poeta vê a fugacidade no “navio carregado de lume”, no qual há estreita ligação com liberdade, isto é, a morte como a libertação deste estar no mundo sem objetividade. Destarte, o que se espera não é simplesmente o “etéreo visitante desta noite”, mas o viver após a morte em uma “morada eterna”, a destruição para a renovação, para a purificação do ser para uma nova maneira de viver, não no esquecimento, mas nas lembranças daqueles que o leram e que o lerão, porque ele sabe que escreve para todos, contudo, nem todos lerão aquilo que escreve, entretanto, sua obra estará sempre viva, tornando-o inesquecível.

A união entre fogo e morte estabelece-se criando uma imagem do instante, um instante da passagem da vida para a morte e da morte para a eternidade porque “Em sua unicidade, o instante é em si mesmo solidão não apenas dos outros, mas inclusive de nós mesmos (PAIVA, 2005, p. 122)”. O estar na escuridão sozinho requer a busca da libertação na luz, mas esta luz para Al Berto designa a própria morte, a sua salvação, por isso ele deseja que “a cada esquina de luz possas recolher/ alimento suficiente para tua morte”.

 

Al Berto e a poética do fogo, Kenedi Azevedo. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2013




A edição de Horto de Incêndio com que trabalhamos é a terceira e última, de dezembro de 2000, trazendo à capa o rosto em cena do próprio poeta. As cinzas que compõem este livro são emolduradas por uma apresentação negra, com luz insidiosa sobre o olho esquerdo do poeta que parece não tencionar mais “ver”. Podemos ler essa proposição aproveitando a repetição do tema da visão em sua obra, que se refere basicamente à idéia de que o que é visto já não se pode ser contado ou cantado. Os olhos semitampados de Al Berto parecem sugerir uma réstia de luminosidade e desejo de que esta sua visão sejam trazidos à tona por meio de uma chama lúcida. Do rosto que apresenta também algumas rugas, surgem suas mãos que impedem essa mesma luz de se transformar numa linguagem que luta contra a afasia, contra a doença, contra a morte. Tanto Rimbaud quanto Deleuze apontaram a importância da “visão” daqueles que “viram demais” e obtiveram a experiência em excesso. E como toda fotografia, a representação de Al Berto sugere uma nova tensão dialética de sombra e luz, jardins e cinzas. Esta visão recorrente em toda sua poesia parece querer dizer: é por meio desta réstia luminosa que enxergo o mundo e mantenho a lucidez e é esta mesma luz que incide sobre a minha pele, sobre o meu corpo, queimando-me a carne-viva.

 

Al Berto: um corpo de incêndio no jardim da melancolia, Tatiana Silva. Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006




CARREIRO, José. “recado, Al Berto”. Portugal, Folha de Poesia, 06-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/recado-de-al-berto.html



segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Havia meses que não escrevia nem um único poema, Adam Zagajewski

Adam Zagajewski


MUDANÇA

Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.

 

Adam Zagajewski, Sombras de Sombras

Seleção e tradução de Marco Bruno, revisão de Jorge Sousa Braga. Lisboa, Editora Tinta da China, 2017

  


 

«’Porque é que os sonhos pequenos se dissipam ao chegar o dia / enquanto os grandes continuam a crescer?’, pergunta Adam Zagajewski. E havemos de ficar com a ideia de que os ‘sonhos pequenos’, mais humanos, são talvez preferíveis aos grandes, tantas vezes atrozes. Poeta polaco, durante muitos anos exilado, tão ‘esmagado pela fatalidade’ e embebido nas convulsões da História como os seus compatriotas Milosz ou Herbert, Zagajewski começou por escrever poesia comprometida, oposicionista, mas foi evoluindo para uma atitude meditativa, irónico‑metafísica, atenta a pequenas epifanias e aporias. A memória individual ou coletiva, a natureza e a música, matérias líricas, coexistem com aparições espectrais de personagens da história intelectual (Heraclito, Pascal, Goethe) ou da política europeia (Danton, Napoleão, Beria), gente que interpelou o sentido da História e o sentido das coisas, e que descobriu que as ‘obras do pensamento humano soçobram’.

Poeta lúdico e grave, espiritual e cético, legível e enigmático, Adam Zagajewski é um ‘místico da imaginação liberal’, como lhe chama, no prefácio a esta edição, o crítico Adam Kirsch.»

Pedro Mexia
https://tintadachina.pt/produto/sombras-de-sombras/


Adam Zagajewski, https://sol.sapo.pt/, 2018-06-25


Adam Zagajewski. ‘A minha ambição é nunca dizer nada que possa trair o mistério da vida’

 

A Casa Fernando Pessoa trouxe a Portugal um dos mais cativantes poetas hoje vivos em qualquer língua. Aos 73 anos, Adam Zagajewski encontrou a urgência que se explica serenamente, e é capaz de encarar os terríveis desafios da atualidade sem trair o silêncio quando este é a única resposta. 

 

Será dos poucos poetas hoje vivos, traduzidos e, mais importante,  lidos um pouco por todo o mundo cujo nome se terá fartado de ser escrito na lista dos tiranos. Adam Zagajewski começou por uma poesia marcadamente política, e a dissidência valeu-lhe a proibição de publicar no seu país, a Polónia. Exilado durante duas décadas em Paris, após a instauração da Lei Marcial de 1981, viveu também nos EUA, em Houston, dando aulas na Universidade do Texas. Em 2002, regressou a Cracóvia. Mais do que os prestigiados galardões internacionais que o têm consagrado, goza a dignidade de ter o nome na lista negra do atual Governo nacionalista e anti-democrático polaco. A sua poesia é uma réplica sagaz à mesquinha petulância do poder,  dando ânimo aos fugitivos quando se vêem sem destino e ouvem os seus «carrascos a cantarem alegremente». Um modo de salvar a consciência e até a esperança num «mundo estropiado». Perpassada sempre pela tensão  meditativa e irónica própria de quem se sente deslocado, faz de migalhas um repasto, alimenta-se desses «certos curtos sinais», sabotando o fatalismo, brincando debaixo da mesa da tragédia. Esteve connosco este mês, no âmbito de uma louvável iniciativa da Casa Fernando Pessoa, que assinalou os 130 anos do nascimento do patrono da instituição, retomando os encontros internacionais de poesia e lembrando, por uma vez, que muito mais do que um ególatra, Pessoa soube cultivar em si aquela faminta curiosidade pelo mundo que faz de um só uma multidão.

Gostou de participar na sessão na Casa Fernando Pessoa ao lado dos poetas portugueses?


Foi comovente. Tive a percepção de que este livro [antologia Sombras de Sombras, ed. Tinta-da-China] que foi publicado cá fez com que eu tivesse leitores em Portugal. É sempre uma surpresa agradável ver que os poemas dizem alguma coisa às pessoas depois de traduzidos. Além disso, pareceu-me que estava em boa companhia, com belos poetas. Foi, por isso, um verdadeiro prazer. 


Uma coisa que fascina tantos leitores da poesia polaca é esta poderosa erupção de uma geração formidável. Nos conflitos que expressam está refletida a conturbada história do século XX. Acredita que a forma como a História maltrata um povo convida a poesia a elevar-se a um nível onde pode desenvolver uma perspetiva mais do que local, do mundo?


Nas atrocidades do século XX não há nada que automaticamente sirva de gatilho à poesia, como é óbvio. Foi esse o grande mérito da geração de poetas que me antecede, que consciente ou inconscientemente foram capazes de responder a esses acontecimentos não do ponto de vista da nação mas de um ponto de vista universal. Parece-me que essa é a questão chave: se se é capaz de responder à crueldade do ponto de vista de uma nação ou cidade, ou se se é capaz de abarcar um fundo universal. Estes grandes poetas entendiam esta diferença. Sendo que raramente o formularam como um programa, mas perceberam que a melhor resposta não era falar em nome dos polacos mas em nome do que há de humano e nos implica a todos. Tivemos uma geração muito relevante de poetas românticos, entre eles o mais célebre será [Adam] Mickiewicz, que viveu na primeira metade do século XIX. Eram grandes poetas mas não captaram o essencial. Nesse período a Polónia não existia enquanto Estado nesse século, e havia a crueldade dos diferentes impérios que dividiam entre si o atual território polaco. Mas os românticos, por qualquer razão, não foram capazes de encarar a dimensão universal das suas agruras. Eram muito talentosos, excelentes poetas, mas não marcaram o mundo. Por isso, admiro imensamente a geração que me precedeu, pelo seu universalismo. E foi algo que tentei aprender uma vez que me parece a resposta adequada.


Em Portugal, temos grandes poetas como Pessoa ou Herberto Helder. Mas parece haver sempre o receio da influência destas figuras, aquela noção da “angústia” como a formulou Harold Bloom. Parece que o emergir de um gera à sua volta um terrível silêncio e apaga tudo o resto. Acha que isto resulta de um equívoco em que a poesia parece ser tomada como um desporto de competição? Há aqui uma ideia distorcida de como a poesia acaba por ser muitas vezes uma empresa coletiva? Como encara este equilíbrio entre solidão e tradição?


É diabolicamente complicado isso. Mas se pensarmos na música clássica, apareceu Beethoven e Brahms. Durante muito tempo este viveu convencido de que não passava de um discípulo do outro. Para nós essa questão nem se põe. Brahms é simplesmente um grande compositor. Quando Harold Bloom diagnosticou o problema da ‘angústia da influência’ parece-me claro que exacerbou algo que não precisa de ser encarado com todo esse dramatismo. Além disso, os próprios poetas não sabem muito bem aquilo que estão a fazer. O criador, o artista nunca controla completamente a sua criação. No caso de poetas polacos como [Zbigniew] Herbert, [Wislawa] Szymborska, [Czeslaw] Milosz, e também [Tadeusz] Różewicz – os quatro grandes nomes da geração que me precedeu –, partilhavam aquilo que fez deles grandes poetas. Hoje, podemos lê-los como vozes distintas, perceber as subtis diferenças que os separam, o fôlego da imaginação que os individualiza… São traços que ficam claros a esta distância. Cada um deve fazer o seu trabalho e, como disse, o tempo decidirá o que permanece. O tempo é um juiz cruel, a história passa sentenças bastante duras. Um dia se verá o que ficará a guardo do esquecimento no que toca aos poetas. Não passo noites em claro por causa dessa questão. 


Na sessão na Casa Fernando Pessoa disse que há hoje uma geração mais nova de poetas polacos que procurou antagonizar as precedentes, e que, desde logo, dispensava bem uma certeza clareza, ou até uma mensagem discernível. É uma diferença de peso face a gerações que não se podiam dar ao luxo de não ter uma mensagem nos seus poemas. Parece-lhe que esta geração que reclama a profusão tantas vezes impenetrável de John Ashbery significa que cada vez menos a poesia e a arte estão interessadas em ir além da virtude narcísica, buscando um sentido?


Estas noções são transitórias. Na Polónia, esta geração que se colocou sob a tutela de Ashbery, e que hoje anda pelos 50 anos, também já não são os novos poetas. É o tempo a trabalhar para todos, não apenas para mim. E hoje, os novos poetas, que andam pelos 25, 30 anos, parece-me que recuperaram essa busca de um sentido e de uma mensagem… Não há nada de permanente nestas alterações ou evoluções. Muitas vezes são apenas a bandeira de uma geração, e 20 anos depois de serem hasteadas, estão dobradas e esquecidas no sótão. É muito cedo para dizer, mas parece-me que há já uma atitude diferente da nova geração, e esse modelo de uma poesia que investe mais pelo lado linguístico, interessante na sua incompreensibilidade, para os mais novos já não tem grande apelo. É claro que provocou uma radical diminuição do número de leitores de poesia, porque os leitores comuns anseiam por um sentido partilhável. Nós vivemos em busca de um sentido, e é muito difícil sentir-se alimentado por uma poesia que não nos traz nenhum sentido ou mensagem. Posso estar enganado, mas acho que estas discordâncias são efémeras.


Nasceu na Ucrânia no final da II Guerra, tendo sido obrigado a ir para a Alemanha, uma cidade que afinal acabou por fazer parte da Polónia. Devido à sua dissidência política emigrou para Paris, onde viveu duas décadas…Hoje, quando vê tantas pessoas serem forçadas a abandonar as suas casas, cidades, países e até continentes, quando as fronteiras parecem em si mesmas ser uma noção que atraiçoa a ideia de humanidade, com estas multidões de refugiados que irão obrigar a Europa a definir-se, e a dizer se pretende ser uma fortaleza capaz de manter estas pessoas ao largo, protegendo o estilo de vida dos europeus, como vê a forma como milhões de pessoas vivem vagando sem um destino certo?


De um ponto de vista puramente político, demográfico, não sei o que dizer. É um desafio terrível para se assumir uma posição definitiva. Estou mais para o lado esquerdo do espectro político, e gostava de ajudar os refugiados, mas também percebo o perigo para a Europa se 200 milhões de pessoas deixarem África e vierem para cá. A Europa já não será a Europa. Não invejo os políticos que tenham de tomar decisões neste quadro. Há um certo luxo em ser-se um poeta e não se ter uma atuação a um nível prático no que respeita a estas questões. Ninguém me pede que me posicione em relação a este problema. Você está a pedir-mo. De um ponto de vista intelectual, humanitário, é claro que sinto uma enorme compaixão por estas pessoas, mas não sou eu o responsável pela gestão dos recursos, da segurança… Neste caso, devo assumir que não tenho grande coisa que possa contribuir para este debate. É fácil ser-se compassivo no campo artístico, porque não se é obrigado depois a abandonar a sua casa para que os refugiados ali possam viver. Depois de uma intervenção o artista volta para sua casa. Portanto, eu simplesmente não tenho uma resposta para este problema. Nunca fui um homem de acção. Confesso o meu desamparo em relação a este tema. 


Das notícias que nos vão chegando da Polónia, parece que, à semelhança da Hungria, se trata de um país que tem trilhado uma deriva ameaçadora no sentido de um novo modelo de autoritarismo, com políticas de extrema-direita. Recentemente foi até aprovada uma lei que criminaliza a associação da Polónia aos campos de extermínio, bem como outros episódios ligados ao massacre de judeus. Como é chegar à velhice e reencontrar-se com as sombras que povoaram a sua infância?


Estou extremamente preocupado com o que se tem passado a nível político no meu país. O atual governo está a trair o princípio democrático da pluralidade. A Europa assenta nesse princípio, e é o pluralismo que permite que diferentes países contribuam com diferentes perspetivas. Enquanto a paz for respeitada, essas diferenças podem coexistir. Cada país democrático é um coro de vozes. Não é uma condenação daqueles que pensam de forma diferente. Este governo introduziu um novo tom, o da condenação, da rejeição. Rejeitam em absoluto os seus predecessores. Falam do anterior governo como de traidores da pátria. Lech Wałęsa, o grande líder e ativista que co-fundou o Solidarność [Solidariedade, a primeira união sindical independente do país], é acusado de ser um informador da polícia. Tudo isto é muito inquietante. A nuvem da retórica, da vontade de alterar a lei para refletir visões tendenciosas. Do ponto de vista do cidadão, é muito triste ver que praticamente aboliram a independência do sistema judicial. Estão a fazer de tudo para que o sistema judicial seja subsidiário do poder executivo. E esta retórica do nacional catolicismo, esta direita que julga ser detentora da verdade… Dantes, sendo um dissidente, eu integrava a lista negra e não podia publicar livros. Hoje, estou de novo na lista negra. Posso publicar livros porque hoje as editoras são empresas privadas, e se, na prática, ainda gozamos de grande liberdade, há agora uma imensa nuvem negra a pairar sobre o país.


Se pode publicar na mesma, em que se traduz o facto de estar nessa lista negra?


Quando digo que estou na lista negra, isso por agora não quer dizer muito. É uma lista em que entram os criadores e artistas que não são afetos ao regime e por isso estão afastados de todas as cerimónias oficiais, dos privilégios com que o aparelho celebra aqueles que lhe são leais. Pela minha parte, não peço grandes atenções, e não me importa não ser convidado para qualquer das festas que organizam, mas se ainda se passa tudo a nível simbólico, e não me sentindo atacado de qualquer forma, preocupa-me esta mentalidade de pôr o nome de certas pessoas numa lista negra, de dividir entre os bons e os maus. Os bons são os que vão à igreja diariamente e mostram um enlevo nacionalista, ao passo que aos outros acusam de ser perigosos liberais de esquerda… Isto contribui para um clima de grande suspeição, e desagrada-me profundamente. O que me dá ânimo é o facto de não estar só neste desagrado com o governo. Há um forte desprezo da intelligentsia polaca face a este governo, e sinais de clara resistência a esta ideologia. Não se trata de uma nação subjugada a este governo. A sociedade polaca tem-se defendido e de forma vigorosa. Não me parece, por isso, que isto seja uma deriva sem retorno. Acho que temos de aguentar apenas uns anos disto. Mas, por agora, é não apenas desagradável, é perigoso e chega a ser hediondo.


Viktor Orbán gozam de um evidente favor popular. Ao mesmo tempo, o mundo está ameaçado de uma catástrofe ecológica, mas mesmo os países que não estão em negação recusam-se a encarar a situação fatídica que nos aguarda… A par destes sinais tenebrosos vê outros que lhe dão esperança no futuro?


São escalas tão diferentes. Do lado objetivo, no teatro das nossas vidas, os perigos como o da ecologia são hoje dramaticamente reais, e assusta a total irresponsabilidade da maioria dos líderes e políticos, mas não tenho vivido os meus dias em desespero. Certa vez, no meu país, perguntaram-me qual era o dever do poeta, e disse que um poeta não deve abdicar da sua cidadania, deve tomar parte na vida política, mas deve também defender a arte, a música, o canto. Dizer às pessoas que um dos maiores problemas é o facto de limitarmos a nossa vida às questões políticas. A nossa vida transcende a política. Ela acontece através da música, do amor, da poesia, da história, da filosofia. Os políticos gostam de se aborrecer e de nos arrastar para as suas estreitas perspetivas da vida humana. Uma das coisas que temos a obrigação de defender é a pluralidade da vida. E quem pode fazer isto melhor do que os escritores, os artistas. Não quero dizer que nos devemos alhear da realidade política, antes pelo contrário. Mas é preciso ter-se não um mas dois horizontes. Por um lado, somos cidadãos, e tentamos defender a decência, a pluralidade, o processo democrático nos nossos países, por outro, também defendemos algo mais profundo e difícil de definir: uma vida espiritual que não está necessariamente ligada às nossas escolhas políticas. Deve ser independente da política. Vejo este papel duplo do poeta, o de estar presente e dizer o que pensa, mas também defender este reino do canto, para falar em termos simbólicos.


Nos seus poemas há uma grande subtileza no modo como nem eles próprios estão muito seguros da sua natureza. A sensação é a de que há uma espécie de vento que por eles passa e desarruma as coisas. Temos neles sensações e emoção mas também memória, história, o cuidado que exige lidar consigo mesmo, com a experiência. E, no fim, há a sensação da vida como um espelho para os nossos muitos rostos. Ao mesmo tempo há uma espiritualidade que passa através de uma certa calma, um gosto meditativo. É uma pessoa religiosa ou pensa que a poesia é, em certo sentido, um modo algo desencaminhado de criar uma religião que nunca se satisfaz com qualquer tipo de certeza, e não aceita profetas nem figuras messiânicas, ou até um Deus?


É uma pergunta enorme, e uma boa pergunta. Exige uma resposta também muito profunda. Começaria por dizer que não entendo completamente os meus poemas. Não sou o leitor dos meus próprios poemas. Mas quando me diz isto dessa forma reconheço-me nessas palavras. Sinto-me atraído pela religião. Diria que sou uma pessoa religiosa mas, por outro lado, sinto-me desiludido (como parece ter notado) por quaisquer respostas definitivas. Ali está aquele padre que parece ter almoçado com Deus no dia anterior e parece saber exatamente o que Deus pensa. Esquecem-se de que é através do mistério que chegamos a alguma compreensão das coisas. O meu sentimento religioso diz-me que nós sabemos muito pouco e que forçamos esse limite em face de um grande mistério. Com tudo o que nos diz a ciência, com todas as suas descobertas e conquistas, sabemos muito pouco sobre o sentido das nossas vidas. Todos morreremos e a questão é saber o que fazer com este tempo que se está acabar para todos nós. Temos vidas bastante curtas e, tendo à nossa disposição as nossas almas e um pouco de sabedoria, a minha resposta a essa pergunta é que devemos meditar nisto e abrir margem a diferentes possibilidades, caminhos, mas sem deixarmos de defender a decência. Quando se escreve um poema não se controla tudo o que nele se passa. Há coisa que conseguimos transformar, mas outras surgem-nos como se nos fossem ditadas. A consciência parece ter pouco a ver com elas. A minha ambição é nunca dizer nada que possa trair o mistério da vida. Ser fiel a este sentido. Mas também não ser pretensioso, não construir retoricamente castelos no ar. Acho preferível tentar ser honesto no que se escreve, dar sinal da nossa incerteza, das inseguranças, e também dos momentos de entusiasmo, esses momentos de epifania. Não posso dizer que detenha o controlo teórico dos meus poemas. Isso seria o fim da minha escrita. Se sabes exatamente o que queres dizer, deixas de escrever. Diria que se trata de uma espécie de luminosa ignorância. És ignorante, ignoras as coisas mas de uma tal forma em que podes partilhá-lo com as outras pessoas.


Não pude ler o seu mais recente livro que mistura a componente diarística e ensaística, “Slight Exaggeration”, mas li uma recensão e fiquei a saber que o título foi o seu pai que lho deu, e que a usou depois de ter percebido que era uma bela noção do que a poesia é. E esta surgiu a meio de uma conversa com o seu pai?


Sim, uma conversa, mas não fui eu que a tive com ele. Um jornalista estava a fazer-lhe perguntas...

O que fazia o seu pai?


Era professor numa faculdade de engenharia, mas tornou-se uma figura reputada na cidade onde vivia porque era um homem muito decente, e muitas vezes defendeu posições difíceis e justas, foi alguém que esteve do lado dos estudantes em 1968, e que nunca foi membro do partido comunista. Quando chegou a velho gozava de uma certa aura, e foi por isso que o jornalista veio até ele para lhe fazer uma série de perguntas sobre a sua vida, sobre ter deixado a cidade onde nasceu e onde fez os estudos superiores, Lvov, e, no meio destas questões relacionadas com a sua vida, o jornalista citou algumas frases de um dos meus ensaios, pedindo ao meu pai que as comentasse. O meu pai sempre leu tudo o que eu escrevia, mas tinha um certo pejo em fazer comentários, achava que não lhe cabia fazer juízos sobre o meu trabalho. Tinha a mente sóbria que é própria de um engenheiro, um homem pragmático. E quando lhe foi pedido que comentasse aquelas frases que eu escrevera ele disse que havia nelas um certo exagero [slightly exaggerated]... Essa definição deixou-me encantado, porque reconheci nela o que as pessoas pensam da poesia. E aquilo que também eu, algumas vezes, penso dela.

Fala numa estranheza quando nos deparamos com um poema, a sensação de que ele extravasa um tanto o limite, mas que, ao ceder ao seu charme, este se torna real para nós, uma experiência de reconhecimento. Mas, com o tempo, voltamos a estrangeirarmo-nos em relação a ele, e ele readquire a sua estranheza. Essa definição é um achado... Porque se o poema, depois de o lermos, se torna um lugar-comum, esse poema é fraco, mas se os poemas reganham a sua autonomia, e de cada vez que os reencontramos nos parecem novamente algo exagerados, esse mesmo parece ser o movimento da poesia, um sentido que não permanece muito tempo no mesmo lugar. Pode falar da sensação que tem quando encontra um grande poema?


Qualquer pessoa que tenha uma vaga intuição daquilo que é a vida da mente ou a vida do espírito, qualquer pessoa que tenha embarcado nesta demanda, sabe que estes momentos de iluminação acontecem apenas por breves momentos. A vida é tão estranha que mesmo aqueles que a dedicaram inteiramente à arte, à música, filosofia, religião, e que buscam estes momentos de uma clareza inebriante, de êxtase espiritual, sabem que é algo que dura muito pouco, vem e vai. E aquilo que permanece é a vida prática. Toda a gente tem de encontrar uma forma de harmonizar estes momentos de plenitude, que são tão fugidios, com os longos, longos dias a lidar com questões práticas. Um exemplo: vamos um concerto, e mesmo se estivermos diante dos melhores músicos, não podemos estar totalmente imersos no seu encanto durante todo o espectáculo. Temos momentos em que sentimos que aquilo nos transporta, mas logo damos por nós a regressar à nossa passividade. E não há propriamente uma solução para isto, temos simplesmente de aceitar que não há outra maneira. O mesmo se passa com a poesia. Os poemas são iluminações fugazes, eles vêm e vão. E o poeta que os escreve não está numa situação mais vantajosa. Assim que escreves um poema é como se o perdesses. Já não é para ti. Às vezes regressa, quando há uma leitura de poemas. Acontece às vezes que um poema escrito há 20 anos volta a estar vivo por mais uns cinco minutos... É assim que vivemos a nossa vida espiritual, através de breves vislumbres. A dignidade exige-nos que sejamos leais a estes momentos, que não os atraiçoemos, que tentemos viver de forma a permitir que eles venham de novo até nós, para que sejamos humanos, estando à altura daquilo que estes momentos exigem de nós. Mas nunca deixa de ser uma batalha, nunca se torna fácil. Não podemos viver num estado de permanente êxtase artístico. Ninguém vive assim de forma permanente. E acho que isto é verdadeiro tanto para os músicos como para os místicos. Muitos falam dessas noites de um vazio total. Toda a gente passa por essas noites escuras em que não se vê a menor cintilação.

Está hoje num momento da sua vida em que o seu trabalho, a sua obra lhe tem granjeado um número sem fim de distinções, e é apontado até como um candidato crónico ao Nobel... Como é que isto o afecta? Esta aclamação é uma coisa agradável, o ser agraciado pelo reconhecimento que a sua obra alcançou, ou parece-lhe que há algo de pernicioso nesta constelação criada pelas instituições literárias?


Quando era mais novo, nunca antecipei que viesse a alcançar grande reconhecimento com aquilo que escrevia. Sempre fui uma pessoa bastante tímida, já ficava muito feliz por ver os meus poemas publicados. Nunca tive aquela arrogância do poeta que espera ser aclamado, lido em vários idiomas. Levou muito tempo para chegarmos a isto e, como bem vê, já não vou para novo. Mas agora, sim, alcancei um certo reconhecimento e não posso dizer que seja desagradável. É agradável, mas vejo-o mais como... Por exemplo, às vezes, como aconteceu aqui em Lisboa, quando os leitores vêm até mim e, mesmo numa breve troca de palavras, depois de uma leitura de poemas, quando alguém me diz que estes poemas significaram muito para ele ou para ela, cada vez que isso acontece é um momento incrível de uma espécie de encontro existencial com o outro. Não dou tanto valor ao lado mais institucional. Odeio o reino das formalidades. Essas cerimónias são insuportáveis. Gosto do lado mais informal da vida. E depois há outra coisa: este reconhecimento chegou, para mim, numa altura em que a poesia está a perder a sua importância. É evidente hoje, e talvez na Europa mais ainda, que há um interesse cada vez menor pela poesia. São cada vez menos as pessoas que vêm às leituras, e há um entusiasmo cada vez menor pela poesia. Assim, paradoxalmente, a minha ascensão ocorre no momento de declínio da poesia. O que me provoca uma certa tristeza. Não por mim mas pela poesia. Mas depois digo a mim mesmo que a poesia tem acompanhado os homens desde o princípio, e nunca desaparecerá. Há momentos de perda da sua influência, mas é eterna no que toca ao destino da humanidade. Quando regresso ao meu quarto, e estou de volta dos meus livros e dos meus blocos de notas, esqueço completamente os prémios. Esse é o melhor momento, quando enfrento o perigo de escrever um novo poema. O risco, a improbabilidade de um novo poema. E nesses momentos não perco um pensamento para a questão de saber o que mais ainda posso vir a ganhar no que toca a prémios. Nem por sombras. Mas também não posso ser hipócrita, não vou dizer que é desagradável ser reconhecido. É agradável, sim.

Na sua poesia, naquilo que escreve, nunca sentimos aquela arrogância de alguém que se prepara para dizer ao leitor o que pode e deve esperar da poesia. E, recentemente, numa sessão em Barcelona, disse que a poesia é para si uma ferramenta para entender o mundo, e que passa menos por conseguir um resultado do que por continuar à procura de um sentido. Acha que o declínio da poesia pode ligar-se com uma certa arrogância em que há tanta certeza sobre o propósito e a importância da arte? Isto quando, no seu caso, parece mais estar a mendigar esses momentos de clareza. Colm Tóibín, num texto que lhe dedicou no “The Guardian”, diz que muitas vezes os seus poemas parecem orações, parecem rezar... Acredita que esta busca de sentido, esta humildade, marca uma distância face aos poetas que, estando tão seguros de si mesmos, acabam por ser incapazes de reflectir sobre o mundo e reflecti-lo nos seus poemas?


Não estou convencido de que eu seja o único poeta vivo nestes dias. Não estou sozinho. Há uma série de poetas que admiro. E sinto que, mesmo se hoje a poesia está numa postura defensiva, há ainda poetas importantes que defendem o bom nome da poesia, e não são arrogantes. Mas também posso dar-lhe o exemplo de Joseph Brodsky, que era totalmente arrogante e, ao mesmo tempo, absolutamente sedutor. Conheci-o pessoalmente, e ele era a personificação da arrogância e, no entanto, fazia-o de forma tão bela que a única coisa que eras capaz de ver nele era a beleza da arrogância. Nada é proibido. A minha forma não-arrogante de ser não é a única via. Podes ser arrogante e convincente. E ele fez muito pela defesa da poesia, porque ele acreditava profundamente na importância da poesia. A sua arrogância não vinha apenas do seu carácter, do facto de ser uma pessoa de grande força interior, mas vinha da sua grande fé na poesia. Para ele a poesia era a grande força do universo. E era belo à sua maneira. Por isso, há múltiplas abordagens possíveis. A minha é, certamente, diferente. Nunca tive este tipo de arrogância, mas adorava-o, éramos bons amigos, e creio que nos entendíamos muito bem. Além disso, o paradoxo da minha situação é que se eu defendesse esta abordagem não-arrogante, informal... Cada escritor deve perguntar-se se faz algum sentido assumir-se como representativo de uma certa escola ou se deve apenas falar em seu nome pessoal. Se começas a ter vários leitores em vários países, mesmo que não queiras, passas a ser representativo de qualquer coisa. É esse o paradoxo de se ser ouvido, de se ter uma voz. Se és ouvido és representativo, e o teu esforço para falares em nome individual começa a ser afectado por isto, porque te é atribuído um papel. Não é nenhum drama, mas, de certo modo, contradiz a tua vontade de ser informal, de ser um tanto reservado e não ser alguém que fala a partir de um qualquer palco. Mas dás por ti a falar a partir de um palco. Eu estou num palco. Este é o paradoxo. Mas para responder à sua pergunta: não sei o que fez da poesia uma espécie tão ameaçada. Não creio que seja a arrogância. É muito difícil dizer o que tenha levado a isto. Parece-me que as pessoas tendem a reaproximar-se da poesia em momentos críticos, períodos históricos perigosos. Nestas democracias preguiçosas em que vivemos, em que aquilo que interessa às pessoas é a cerveja e o futebol, não precisam da poesia. Vivem vidas banais, muitas vezes vidas esvaziadas de qualquer juízo, e é quando o perigo se acerca que a poesia recupera a sua importância. Nos anos 1980, na Polónia, um período muito difícil, por causa da Lei Marcial, etc., as leituras de poesia atraíam milhares de pessoas. Hoje já não. Hoje têm as suas cervejas, sentam-se à frente do televisor a gritar por causa de uma partida de futebol e isso chega-lhes. Mas, por outro lado, não queremos que os tempos voltem a ser perigosos para o bem da poesia... [Risos]

Falou de Brodsky, e gostava de saber se pode partilhar impressões sobre outros poetas com quem tenha convivido. Poetas que lemos e admiramos, como os da geração que precedeu a sua. Para lá da poesia, daquilo que escreviam, pelas conversas e pelos encontros que foi tendo com eles, houve alguma impressão que o marcou particularmente nesse convívio. Na sessão na Casa Fernando Pessoa, falou na erudição e também na serenidade de Zbigniew Herbert... Como foi estar na companhia deles?


Conheci também Derek Walcott, e gostava muito dele.

Ele era também um grande amigo pessoal de Brosky.


Sim, e de Seamus Heaney. A Heaney não conheci tão bem como a eles. Mas quando estavas com eles, aquilo que mais te impressionava era o fabuloso sentido de humor deles. Passavam o tempo a rir à gargalhada. E foi interessante para mim porque eu os via como poetas trágicos, as vozes de um destino trágico, mas, em privado, eles passavam o tempo a rir-se, e isso agradava-me imensamente. Assim que encaras o elemento trágico da vida humana vês também o absurdo da vida humana. E eles tinham um sentido de humor de um requinte extraordinário. Jantar com eles era como ficar bêbado de tanto rir. E não era ironia, mas puro gozo e diversão. Era também uma forma de celebrar a vida, aquele riso. Nos poemas não se riam muito, mas assim que se juntavam e se punham à conversa era esse o prato forte. E eu pude partilhar isso.

 

Diogo Vaz Pinto, 2018-06-25

https://sol.sapo.pt/artigo/616980/adam-zagajewski-a-minha-ambicao-e-nunca-dizer-nada-que-possa-trair-o-misterio-da-vida



Adam Zagajewski, https://ionline.sapo.pt/, 2021-03-22


Morreu Adam Zagajewski, um monge dedicado ao severo culto da História

 

Morreu este domingo, aos 75 anos, o mais destacado dos poetas polacos. Numa última ironia, deixou-nos no dia mundial da poesia, como quem se entrega ao encantamento do silêncio quando outros, em nome dos poetas, andavam por aí a cacarejar.

 

Morreu pela tarde, hora de que gostava, acompanhando de ouvido os melros, e Adam Zagajewski apreciava não apenas o canto destes pássaros, mas a consciência do que este demarca, tratando-se de uma espécie que só existe na Europa. “Assim, é um pássaro muito europeu este que canta para nós.” E no anoitecer, este filho da Europa, da sua cultura e da sua história, do seu esplendor e também dos seus horrores, via essa dupla condição da obscuridade. Por um lado, a meditação, a tranquilidade e a paz da noite, essa felicidade que se desprende do canto dos melros, mas a par da salvação ouvia também mover-se o perigo, o lado doloroso da vida, a devastação que nos segue por toda a parte. Este poeta polaco, nascido há 75 anos, em Lwov, morreu este domingo, em Cracóvia, e era um dos mais destacados autores europeus, sendo um herdeiro e continuador da geração anterior à sua, e que deu à literatura polaca a sua feição mais universal – Zbigniew Herbert, Wisława Szymborska e Czesław Miłosz. Há anos que o nome de Zagajewski era apontado como um crónico candidato ao Nobel, mas, à semelhança de Herbert, que era mais novo e morreu mais cedo (aos 73 anos) que os outros dois gigantes da sua geração, partiu demasiado cedo para que a Academia Sueca lhe fizesse justiça. Não deixou, no entanto, de alcançar uma projecção internacional invulgaríssima nos nossos dias para um poeta, e foi distinguido com alguns dos mais prestigiosos galardões literários, como o Princesa das Astúrias, em 2017, o Griffin, em 2016, ou o Neustadt, em 2004. Talvez a frase mais reveladora das que escreveu sobre o carácter ao mesmo tempo testemunhal e revigorante da sua obra, da sua capacidade de revirar os aspectos mais terríficos da existência e cruzar para a margem oposta, celebrando a vida e o desejo de permanecer atento, mantendo intacta a capacidade de assombro mesmo em face de um mundo que não abre mão da catástrofe, seja esta: “Onde quer que se faça um corte na vida, sempre esta irá ficar partida em duas metades.” Assim, as suas meditações, os poemas ou ensaios que escrevia, debatiam-se já não com a vivência dos piores horrores do século XX, mas com a sombra que estes continuam a projectar. “Diria que, de certa maneira, se esses horrores não me estão nos genes, estão cá dentro, e parte da minha vocação é não perder o pulso ao coração dessa guerra, encontrando uma forma de transmiti-lo”, disse no ano passado, numa entrevista ao El País.
Nascido em 1945, foi ainda envolvido nos cobertores que o envolveram recém-nascido que foi levado de Lvov para Gliwice. Eram ambas cidades polacas, mas no rescaldo da II Guerra, a sua cidade-natal passou para a Ucrânia, e nem os seus avós, nem os pais ou os tios se habituaram à condição de deslocados, o que deixou em Adam algo como um olhar que lançado por cima do ombro, para trás, para a aquela cidade perdida e quase sagrada, uma Lwov tocada pelo sonho, por uma beleza da qual se foi expulso. Assim, nos seus primeiros escritos, há uma sensação de lembrança que se impõe, com os seus cheiros e sabores, e que se torna um lugar mais real do que Gliwice, uma cidade industrial, nos seus feios tons de cinza, e que se tornou sinónimo de um desencontro fundamental o qual está sempre como pano de fundo da poesia de Zagajewski. A sua obra, como foi notado inúmeras vezes, lida com essa sensação de exílio que atravessa muita da melhor literatura do último século. Para isso contribuíram as duas décadas que o poeta passou exilado, depois de integrar a contestatária Geração de 68, sendo perseguido pelo comunismo, e, após a instauração da Lei Marcial de 1981, forçado a mudar-se para Paris no ano seguinte. Em 1988, chegaria aos EUA, tendo sido professor convidado em várias universidades, e passando o período mais longo em Houston, dando aulas na Universidade do Texas. Foi só em 2002 que regressou ao seu país, depois da queda do regime comunista, assentando em Cracóvia, sem deixar de viver uma parte do ano em França. O que lhe ficou desde a infância foi essa ideia de que a poesia é uma coisa de emigrantes, “esses infelizes que, com um património ridículo, procuram um balanço à beira do abismo, andando a cavalo entre continentes”. Encontrava, por isso, a sua linhagem entre esses nomes que representam “a Europa secreta da poesia”, adiantando que, embora essa “Europa secreta não tenha influência política, não tenha músculo político, é absolutamente indispensável como um lugar no qual um se possa esconder, mas também como uma reserva de energia para o futuro”, como notou na já referida entrevista ao diário espanhol.
Zagajewski organizava as suas ideias dividindo o mundo em metades. Assim, de um lado encontrava os homens de acção, aqueles que assumiam maiores responsabilidades no curso dos acontecimentos de maior relevância a nível social e político, e embora a sua obra fosse tremendamente permeável à realidade histórica, via-se como uma figura do campo oposto, o das pessoas que rezam. “Os poetas pertencem ao grupo dos que rezam”, dizia, advertindo ainda: “Não esperem grande coisa como resultado directo das suas orações.” E, no entanto, defendia que fazem falta os poetas como fazem falta os monges, para rezar e meditar – “só não esperem deles nenhuma proposta directa para a vida social”. Como escreveu o poeta francês Christian Bobin, Zagajewski também entendia que “a vida em sociedade é quando todos obedecem ao que ninguém quer”, ao passo que “a escrita é uma escapatória a esta miséria, uma variação da solidão assim como amar ou brincar – um princípio de insubmissão, uma virtude de infância”. Também ele poderia ter dito que “o que em nós está ferido pede asilo às mais pequenas coisas do chão – e recebe”.
O seu primeiro livro de poemas foi publicado em 1972, com o título Komunikat (“A mensagem”). Três anos depois estreou-se no romance, com a novela Cieplo zimno (“Quente e frio”), isto num período em que colaborava com a revista clandestina Zapis, que participava na resistência ao regime polaco. Zagajewski começou, assim, por uma poesia marcadamente política, e a dissidência valeu-lhe a proibição de publicar no seu país. Depois do exílio, depois de ter regressado a Cracóvia, o país balançou para o lado oposto do espectro político, e mais do que as muitas distinções que o foram consagrando, gozava ainda a dignidade de ter o nome na lista negra do actual governo nacionalista e anti-democrático polaco. E a sua poesia mantinha-se num equilíbrio funambulesco entre esse inventário de aspectos do quotidiano, alguns ressaltando esse ângulo sublime que se recorta contra o lado mais banal da existência, e capaz de uma ironia que se salvava sempre de cair no cinismo, foi-se impondo como uma réplica sagaz à mesquinha petulância do poder, dando ânimo aos fugitivos quando se vêem sem destino e ouvem os seus “carrascos a cantarem alegremente”. Esta obra com o seu tom modesto, mas sempre tensa, sempre à espreita de uma oportunidade para apontar esse ponto de fuga, o regime da transcendência, oferecia hipóteses de se salvar a consciência e até a esperança num “mundo estropiado”. Assim, contra “o fácil pessimismo apocalíptico de muitos mestres da retórica actual, que se comprazem em anunciar constantemente desastres e em proclamar que a vida não é mais que vazio, erro e horror” (Claudio Magris), Zagajewski em penhava-se em sabotar o fatalismo, brincando debaixo da mesa da tragédia. 
Escreveu certa vez que “os poemas são curtas tragédias, portáteis, como rádios a pilhas”, e traçava amiúde uma oposição entre a poesia e o jornalismo, dizendo que estavam um para o outro como noite e dia. “O dia pertence ao jornalismo e a noite aos poetas, aos músicos. Obtemos alguma da nossa força da parte nocturna da vida, porque a noite não é apenas símbolo da obscuridade e do medo, mas também da arte e da reflexão”. Por outro lado, sabia o perigo de a poesia se convencer demasiado dos seus poderes, entendendo que esta “certas vezes desaparece, deixando apenas fósforos ardidos”. Por isso, o facto de ter morrido no dia mundial da poesia não deixa de soar como uma última ironia, um sair de cena precisamente naquele dia em que tanto do que por aí se cacareja e que é publicitado como poesia toma a cena em tom celebratório, deixando muito claro esse regime de espalhafato com que a arte disfarça a sua irrelevância. E, nos últimos anos, enquanto a sua poesia chegava a outros idiomas e países, incluindo Portugal – onde a Tinta-da-China publicou a antologia “Sombras de sombras”, em 2017, com os poemas traduzidos do polaco por Marco Bruno, tendo sido alvo depois de uma revisão poética feita por Jorge Sousa Braga –, Zagajewski surgia como esse monge que preferia celebrar uma certa discrição, tendo sublinhado num dos seus últimos livros de ensaios o célebre aforismo de Kafka em que este nos exorta a tomar o partido do mundo, na luta entre nós e ele. “Na luta entre ti e o mundo, deves ficar do lado do mundo.” Uma atitude em que, ao invés de resignação, ou conformismo, o poeta polaco via um exemplo de superação e um valor em dilacerante contradição com o individualismo radical que se impôs como a nota dominante também nas expressões artísticas. “Haverá sempre tempo de se regressar a si mesmo”, defendia Zagajewski, mas, “de momento, tens de te pôr ao lado do mundo se pretendes ser justo”. “É mais fácil dizer: sou justo, sou bom. Mas o mundo é mais sábio do que nós. Por isso, o que se impõe hoje é essa tarefa de voltarmos ao mundo, de ficarmos do seu lado.”
Em “Os meus mestres”, um dos poemas iniciais da antologia deste poeta publicada entre nós, diz-nos: “Os meus mestres não são infalíveis./ Não se trata de Goethe, que só conseguia/ adormecer quando ao longe/ gemiam os vulcões, nem de Horácio,/ que escrevia na língua dos deuses/ e dos sacerdotes. Os meus mestres/ pedem-me conselhos. Vestindo macios/ sobretudos deitados velozmente/ por cima dos sonhos, ao romper do dia, quando o vento/ fresco interroga os pássaros, os meus/ mestres falam por sussurros./ Consigo ouvir a sua voz trémula.”
Para Zagajewski a sabedoria era alcançada através de uma certa abdicação de si, dos seus impulsos ou interesses, e esta abertura e clareza estava sobretudo presente no tom dos seus poemas, no seu registo sereno, tantas vezes conversacional sem resvalar no monólogo intimista, nessas confissões bacocas, antes permitindo que o presente se inspecionasse a si mesmo num efeito de contraluz, como se o instante fosse já uma memória, um registo do passado. O poeta Robert Pinsky afirmou que os poemas do polaco tratavam sobre a presença do passado na quotidianeidade: “a história não como uma crónica dos mortos mas como uma força imensa, às vezes subtil, inerente ao que nós vemos e sentimos todos os dias, e à forma como o vemos e sentimos”. Os seus poemas têm uma força evocativa e documental, mais do que escrever cidades ou paisagens, erguem impressões, deixam objectos suspensos num desamparo tocante, quase nos põem música, excertos de canções entreouvidas, e de lembranças também, referências culturais que não se ficam pela sugestão mas animam esse registo assombrado, essa névoa acariciadora. Como notou o escritor irlandês Colm Tóibín, a obra deste poeta parece assombrada pelos detalhes que se perdem das coisas, esses contornos que vão dando de si, e a tarefa que toma como sagrada é a de inventariar essas coisas, “coisa que ele faz com extremo deleite, porque ama a linguagem, mas também com grande contenção e ainda algo próximo do arrependimento porque, ao mesmo tempo, ele também desconfia da linguagem”.
Este monge dedicado a um culto sóbrio e severo da História, tinha a noção de que todo o espírito crítico nasce do que essa perspectiva nos oferece, e afirmou que “toda a minha educação enquanto escritor se focou neste esforço de me libertar dos caprichos e dos esgares da História”. E reflectindo sobre a experiência do exílio, Zagajewski escreveu: “Eu perdi duas pátrias, mas busquei uma terceira: um espaço para a imaginação.” E o poema “Canção de um Emigrante” acaba assim: “Na igreja Ortodoxa/ em Paris, os últimos russos de cabelos/ cinzentos rezam a Deus, que/ é séculos mais novo que eles e se sente/ igualmente desamparado. Em cidades estranhas nós/ persistimos, como árvores, como pedras.”
Mas para um autor que traçava cortes e via a vida dividir-se em metades, nada nunca se mantinha estável, e em relação às virtudes da imaginação, ele mesmo notou que esta pode contar-se entre os seus próprios inimigos – “se perder o seu sentido de moderação, o seu peso e medida, se perder de vista esse mundo concreto que não pode ser dissolvido pela arte”. Vencedor do prémio Princesa das Astúrias no ano anterior a este ter sido entregue a Zagajewski, o ficcionista norte-americano Richard Ford, rendeu-lhe um dos mais acertados elogios ao congratular-se com a decisão dos jurados: “A poesia de Adam Zagajewski, luminosa, profunda, às vezes crua, mas sempre lírica, consegue o raro triunfo literário de ser política e, no entanto, supremamente humana, num único, contínuo e complexo movimento”.
Numa entrevista dada ao semanário Sol, em 2017, quando esteve em Portugal para participar numa sessão na Casa Fernando Pessoa que assinalou os 130 anos do patrono da instituição, o poeta polaco deixou claro que um dos elementos essenciais na escrita de um poema é aprender a dividir a conta com o acaso, dar-lhe margem para se introduzir, pois, como escreveu Derrida, “não há poema sem acidente, não há poema que não se abra como uma ferida, mas que não abra ferida também”. “Quando se escreve um poema”, disse então Zagajewski ao nosso semanário, “não se controla tudo o que nele se passa. Há coisas que conseguimos transformar, mas outras surgem-nos como se nos fossem ditadas. A consciência parece ter pouco a ver com elas. A minha ambição é nunca dizer nada que possa trair o mistério da vida. Ser fiel a este sentido. Mas também não ser pretensioso, não construir retoricamente castelos no ar. Acho preferível tentar ser honesto no que se escreve, dar sinal da nossa incerteza, das inseguranças, e também dos momentos de entusiasmo, esses momentos de epifania. Não posso dizer que detenha o controlo teórico dos meus poemas. Isso seria o fim da minha escrita. Se sabes exatamente o que queres dizer, deixas de escrever. Diria que se trata de uma espécie de luminosa ignorância. És ignorante, ignoras as coisas, mas de uma tal forma em que podes partilhá-lo com as outras pessoas.”

 

Diogo Vaz Pinto, 22/03/2021

https://ionline.sapo.pt/artigo/728900/morreu-adam-zagajewski-um-monge-dedicado-ao-severo-culto-da-historia?seccao=Mais_i

 


CARREIRO, José. “Havia meses que não escrevia nem um único poema, Adam Zagajewsk”. Portugal, Folha de Poesia, 01-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/havia-meses-que-nao-escrevia-nem-um.html