segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Pessoa, leitor de Horácio

foto da biblioteca de Pessoa, na Casa Fernando Pessoa. 
Horácio ao lado de Homero

 

Quem lê Horácio recebe o seu lugar na comunidade das mentes mais argutas do passado, que encontraram neste poeta um estímulo da inteligência. Quando Camões escreveu a ode «Fogem as neves frias» ou a expressão estapafúrdia «Acroceráunios infamados» (ver Lusíadas 6.82), quis mostrar ao leitor que leu Horácio; talvez que tinha inteligência mais do que suficiente para entender Horácio. No âmbito restrito dos Estudos Clássicos, ainda hoje pasmamos com o rol ilustre de nomes que quiseram dedicar ao estudo de Horácio o melhor das suas capacidades intelectuais. Seria possível citar muitos nomes ingleses, alemães, italianos, americanos, etc. Mas vou só referir o nome de uma latinista de referência para mim, uma mulher extraordinária que assinou, em colaboração com o Professor Robin Nisbet, os melhores comentários alguma vez escritos à obra de Horácio: Margaret Hubbard, professora em Oxford (morreu em 2011, aos 86 anos), célebre pela sua inteligência cintilante, pelos três cigarros que fumava ao mesmo tempo (um na mão e dois acesos no cinzeiro), pelo gosto com que bebia quantidades valentes de vinho branco sem que lhe se notasse a mínima alteração; e namorada, em determinada fase da sua vida, da filósofa e escritora Iris Murdoch.

Outro obcecado por cigarros e por Horácio foi Fernando Pessoa, o homem que obrigou o mundo a rever a definição da palavra «génio». Quem visitar a Casa Fernando Pessoa, vê na biblioteca particular do autor a edição parisiense de Horácio, preparada por F. Plessis e P. Lejay (na edição de 1911, segundo o catálogo da biblioteca). Este livro existe também em várias bibliotecas da Universidade de Coimbra. Mas não pode ter sido a única edição de Horácio consultada por Pessoa, porque a edição de Plessis e Lejay omite alguns poemas que, já nos séculos XVI e XVII, eram considerados escandalosos. Um deles é a Ode 1 do Livro 4, em que Horácio se declara apaixonado: não por Lídia, Cloe ou Neera, mas sim por um jovem chamado Ligurino. Um manuscrito conservado no espólio de Fernando Pessoa mostra que Pessoa escolheu justamente esta ode para uma tentativa de tradução do latim para português. Assim, é certo que, além da edição que se encontra hoje na Casa Fernando Pessoa, o criador dos heterónimos consultou também Horácio noutras edições (remeto para o artigo de Luiz Fagundes Duarte, na revista Euphrosyne 1993, pp. 203-216).

Pessoa sabia latim, mas traduziu apenas o princípio da ode horaciana sobre Ligurino. Aliás, fez várias versões dos versos iniciais; e depois desistiu. Fez o mesmo com o início da Arte Poética. Talvez ele tenha sentido aquilo que eu próprio muitas vezes tenho sentido: como é difícil (ou mesmo impossível) transpor para a tradução a beleza das palavras em latim. É a frustração com esse problema que me tem impelido a fazer edições bilíngues de Vergílio e de Horácio: para que, ao menos, o texto latino esteja debaixo dos olhos dos leitores; e para que a tradução portuguesa tenha como objetivo primeiro constituir uma ajuda para a decifração do texto original.

Mas o que Pessoa (esse génio!) conseguiu com as Odes de Horácio foi um feito maior do que traduzi-las. Recriou-as. Fez renascer a voz de Horácio, 2000 anos após a morte do poeta romano. Na verdade, a poesia do heterónimo Ricardo Reis é uma recriação espantosa de Horácio. Sem que haja, porém, uma única citação literal do poeta romano! É como se a alma de Horácio tivesse reencarnado em Pessoa, tal como a de Homero teria reencarnado no poeta romano arcaico Énio (segundo testemunho do próprio Énio... presunção e água benta!). Reis não precisa de citar Horácio para ser Horácio. Aliás, quem cita Horácio literalmente não é Reis mas Álvaro de Campos, dando assim outro testemunho da obsessão de Pessoa por Horácio.

Leia-se o poema de Campos que começa com o verso recheado de palavras latinas «O mesmo "Teucro duce et auspice Teucro"». Campos está aqui a citar uma ode horaciana: em concreto, a Ode 7 do Livro 1. O segundo verso do poema de Campos dá-nos mais uma palavra em latim e mais uma alusão à mesma ode de Horácio: «É sempre "cras" - amanhã - que nos faremos ao mar». Este verso remete para o último da ode de Horácio: «Amanhã araremos de novo o mar enorme». E a expressão de Campos «nada que desesperar...» traduz o latim «nil desperandum» da ode horaciana.

Ricardo Reis não traduz, portanto, versos de Horácio. Transforma-se em Horácio. E escreve os poemas que Horácio poderia ter escrito se tivesse composto em português. Horácio escreveu quatro livros de Odes. Reis acrescentou mais um livro ao conjunto: um livro que destila a quintessência de Horácio e também interpreta e soluciona problemas famosos nas odes horacianas.

Um exemplo fascinante é a ode de Reis que começa com as palavras «Floresce em ti, ó magna terra, em cores / a vária primavera». Este poema de Ricardo Reis explica duas odes horacianas que têm causado perplexidade aos intérpretes, porque são dois poemas sobre a chegada da primavera em que, abruptamente, Horácio muda para o tema da morte (Ode 1.4; Ode 4.7). Reis explica a associação que Horácio fez entre a primavera e a morte: «Mas dorme em cada campo o outono dele. / O inverno cresce com as folhas verdes.» Ou seja: a morte está latente em cada nascimento.

É sabido que Fernando Pessoa quis de tal modo encarnar Horácio que andou às voltas com os problemas da métrica usada pelo poeta romano. No espólio de Pessoa, há testemunhos desse fascínio pela métrica latina, estudados pelo saudoso Fernando Lemos no seu livro «Fernando Pessoa e a Nova Métrica» (Lisboa, 1993). No entanto, não é na métrica de Horácio (impossível de reproduzir em português) que assenta o horacianismo de Ricardo Reis: é muito mais na dicção. A colocação das palavras nas frases lembra os hipérbatos da textura em «puzzle» das frases horacianas. Um exemplo expressivo é o poema de Reis que começa «As rosas amo dos jardins de Adónis, / Essas vólucres amo, Lídia, rosas». Na ordem direta, teríamos «Amo as rosas dos jardins de Adónis; amo essas rosas vólucres, Lídia».

Já agora: vólucres? Os especialistas de Pessoa discutem se o poeta escreveu «vólucres» ou «volúveis». Parece-me claro que Reis está a referir-se ao verso de Horácio «as flores demasiado breves da rosa amena» (Ode 2.3); e, de facto, Horácio usa o adjetivo latino «volucer» (cujo sentido é «alado», «rápido», «fugidio», «transitório»). Mas também usa «volubilis» uma vez nas Odes: curiosamente, é a última palavra da ode sobre a paixão por Ligurino.

E por falarmos em dúvidas quanto a uma palavra que Ricardo Reis escreveu: na única ode ricardiana em que Quinto Horácio Flaco é nomeado, será que o poeta português lhe chamou «louro Flaco» ou «louco Flaco»? As edições de Ricardo Reis são discrepantes: tanto lemos «louco Flaco» como «louro Flaco». Não há nada na poesia do próprio Horácio que nos leve a pensar que ele era louro: o que ele diz do seu cabelo é que ficou prematuramente grisalho (Epístolas 1.20.24). Mas no final da Arte Poética, fica claro que o poeta verdadeiro terá necessariamente um toque de loucura.

Dir-se-á que «louCo FlaCo» resulta numa aliteração inestética. Mas é bem horaciana. Veja-se o v. 22 da Arte Poética: «Currente rota Cur urCeus exit?» (em português: «enquanto a roda rodopia, porque sai um cântaro?»).

A dicção de Reis, com o seu puzzle de palavras, é parte integrante do prazer que nos é proporcionado pelos poemas de Ricardo Reis e de Horácio. Em 1973, Margaret Hubbard (certamente com três cigarros acesos e com um copo de vinho branco à sua frente) fez esta pergunta a respeito da poesia lírica horaciana: «what is the nature of the pleasure one feels or should feel in it?»

A resposta, quanto a mim, está na dicção: no puzzle de palavras e de sentidos; e também no desafio prazeroso que coloca à nossa inteligência. É um prazer que nos toma e domina, tal como o dos jogadores de xadrez de Ricardo Reis, que sentem o «inútil gozo / sob a sombra tranquila do arvoredo / de jogar um bom jogo».

Mas este gozo não é tão inútil assim: funciona, como os jogadores de xadrez bem sabiam, como amortecedor pessoal contra as tragédias do mundo. Na 2.ª Guerra Mundial, prisioneiros de guerra alemães e ingleses encontraram um prazer partilhado na poesia de Horácio (como conta Patrick Leigh Fermor - mas isso fica para outro post, pois este já vai longo).

Queremos uma síntese dos 7795 versos de Horácio? Ricardo Reis conseguiu fazê-la numa frase: «Quem quer pouco tem tudo; quem quer nada é livre».

 

Frederico Lourenço, Coimbra, 29/10/2023

“Pessoa, leitor de Horácio” disponível em https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco