foto da
biblioteca de Pessoa, na Casa Fernando Pessoa. Horácio ao lado de Homero |
Quem lê
Horácio recebe o seu lugar na comunidade das mentes mais argutas do passado,
que encontraram neste poeta um estímulo da inteligência. Quando Camões escreveu
a ode «Fogem as neves frias» ou a expressão estapafúrdia «Acroceráunios
infamados» (ver Lusíadas 6.82), quis mostrar ao leitor que leu Horácio; talvez
que tinha inteligência mais do que suficiente para entender Horácio. No âmbito
restrito dos Estudos Clássicos, ainda hoje pasmamos com o rol ilustre de nomes
que quiseram dedicar ao estudo de Horácio o melhor das suas capacidades
intelectuais. Seria possível citar muitos nomes ingleses, alemães, italianos,
americanos, etc. Mas vou só referir o nome de uma latinista de referência para
mim, uma mulher extraordinária que assinou, em colaboração com o Professor
Robin Nisbet, os melhores comentários alguma vez escritos à obra de Horácio:
Margaret Hubbard, professora em Oxford (morreu em 2011, aos 86 anos), célebre
pela sua inteligência cintilante, pelos três cigarros que fumava ao mesmo tempo
(um na mão e dois acesos no cinzeiro), pelo gosto com que bebia quantidades
valentes de vinho branco sem que lhe se notasse a mínima alteração; e namorada,
em determinada fase da sua vida, da filósofa e escritora Iris Murdoch.
Outro
obcecado por cigarros e por Horácio foi Fernando Pessoa, o homem que obrigou o
mundo a rever a definição da palavra «génio». Quem visitar a Casa Fernando
Pessoa, vê na biblioteca particular do autor a edição parisiense de Horácio,
preparada por F. Plessis e P. Lejay (na edição de 1911, segundo o catálogo da
biblioteca). Este livro existe também em várias bibliotecas da Universidade de
Coimbra. Mas não pode ter sido a única edição de Horácio consultada por Pessoa,
porque a edição de Plessis e Lejay omite alguns poemas que, já nos séculos XVI
e XVII, eram considerados escandalosos. Um deles é a Ode 1 do Livro 4, em que
Horácio se declara apaixonado: não por Lídia, Cloe ou Neera, mas sim por um
jovem chamado Ligurino. Um manuscrito conservado no espólio de Fernando Pessoa
mostra que Pessoa escolheu justamente esta ode para uma tentativa de tradução
do latim para português. Assim, é certo que, além da edição que se encontra
hoje na Casa Fernando Pessoa, o criador dos heterónimos consultou também
Horácio noutras edições (remeto para o artigo de Luiz Fagundes Duarte, na
revista Euphrosyne 1993, pp. 203-216).
Pessoa
sabia latim, mas traduziu apenas o princípio da ode horaciana sobre Ligurino.
Aliás, fez várias versões dos versos iniciais; e depois desistiu. Fez o mesmo
com o início da Arte Poética. Talvez ele tenha sentido aquilo que eu próprio
muitas vezes tenho sentido: como é difícil (ou mesmo impossível) transpor para
a tradução a beleza das palavras em latim. É a frustração com esse problema que
me tem impelido a fazer edições bilíngues de Vergílio e de Horácio: para que,
ao menos, o texto latino esteja debaixo dos olhos dos leitores; e para que a
tradução portuguesa tenha como objetivo primeiro constituir uma ajuda para a
decifração do texto original.
Mas o que
Pessoa (esse génio!) conseguiu com as Odes de Horácio foi um feito maior do que
traduzi-las. Recriou-as. Fez renascer a voz de Horácio, 2000 anos após a morte
do poeta romano. Na verdade, a poesia do heterónimo Ricardo Reis é uma
recriação espantosa de Horácio. Sem que haja, porém, uma única citação literal
do poeta romano! É como se a alma de Horácio tivesse reencarnado em Pessoa, tal
como a de Homero teria reencarnado no poeta romano arcaico Énio (segundo
testemunho do próprio Énio... presunção e água benta!). Reis não precisa de
citar Horácio para ser Horácio. Aliás, quem cita Horácio literalmente não é
Reis mas Álvaro de Campos, dando assim outro testemunho da obsessão de Pessoa
por Horácio.
Leia-se o
poema de Campos que começa com o verso recheado de palavras latinas «O mesmo
"Teucro duce et auspice Teucro"». Campos está aqui a citar uma ode
horaciana: em concreto, a Ode 7 do Livro 1. O segundo verso do poema de Campos
dá-nos mais uma palavra em latim e mais uma alusão à mesma ode de Horácio: «É
sempre "cras" - amanhã - que nos faremos ao mar». Este verso remete
para o último da ode de Horácio: «Amanhã araremos de novo o mar enorme». E a
expressão de Campos «nada que desesperar...» traduz o latim «nil desperandum»
da ode horaciana.
Ricardo
Reis não traduz, portanto, versos de Horácio. Transforma-se em Horácio. E
escreve os poemas que Horácio poderia ter escrito se tivesse composto em
português. Horácio escreveu quatro livros de Odes. Reis acrescentou mais um
livro ao conjunto: um livro que destila a quintessência de Horácio e também
interpreta e soluciona problemas famosos nas odes horacianas.
Um
exemplo fascinante é a ode de Reis que começa com as palavras «Floresce em ti,
ó magna terra, em cores / a vária primavera». Este poema de Ricardo Reis
explica duas odes horacianas que têm causado perplexidade aos intérpretes,
porque são dois poemas sobre a chegada da primavera em que, abruptamente,
Horácio muda para o tema da morte (Ode 1.4; Ode 4.7). Reis explica a associação
que Horácio fez entre a primavera e a morte: «Mas dorme em cada campo o outono
dele. / O inverno cresce com as folhas verdes.» Ou seja: a morte está latente
em cada nascimento.
É sabido
que Fernando Pessoa quis de tal modo encarnar Horácio que andou às voltas com
os problemas da métrica usada pelo poeta romano. No espólio de Pessoa, há
testemunhos desse fascínio pela métrica latina, estudados pelo saudoso Fernando
Lemos no seu livro «Fernando Pessoa e a Nova Métrica» (Lisboa, 1993). No
entanto, não é na métrica de Horácio (impossível de reproduzir em português)
que assenta o horacianismo de Ricardo Reis: é muito mais na dicção. A colocação
das palavras nas frases lembra os hipérbatos da textura em «puzzle» das frases
horacianas. Um exemplo expressivo é o poema de Reis que começa «As rosas amo
dos jardins de Adónis, / Essas vólucres amo, Lídia, rosas». Na ordem direta,
teríamos «Amo as rosas dos jardins de Adónis; amo essas rosas vólucres, Lídia».
Já agora:
vólucres? Os especialistas de Pessoa discutem se o poeta escreveu «vólucres» ou
«volúveis». Parece-me claro que Reis está a referir-se ao verso de Horácio «as
flores demasiado breves da rosa amena» (Ode 2.3); e, de facto, Horácio usa o
adjetivo latino «volucer» (cujo sentido é «alado», «rápido», «fugidio»,
«transitório»). Mas também usa «volubilis» uma vez nas Odes: curiosamente, é a
última palavra da ode sobre a paixão por Ligurino.
E por
falarmos em dúvidas quanto a uma palavra que Ricardo Reis escreveu: na única
ode ricardiana em que Quinto Horácio Flaco é nomeado, será que o poeta
português lhe chamou «louro Flaco» ou «louco Flaco»? As edições de Ricardo Reis
são discrepantes: tanto lemos «louco Flaco» como «louro Flaco». Não há nada na
poesia do próprio Horácio que nos leve a pensar que ele era louro: o que ele
diz do seu cabelo é que ficou prematuramente grisalho (Epístolas 1.20.24). Mas
no final da Arte Poética, fica claro que o poeta verdadeiro terá
necessariamente um toque de loucura.
Dir-se-á
que «louCo FlaCo» resulta numa aliteração inestética. Mas é bem horaciana.
Veja-se o v. 22 da Arte Poética: «Currente rota Cur urCeus exit?» (em
português: «enquanto a roda rodopia, porque sai um cântaro?»).
A dicção
de Reis, com o seu puzzle de palavras, é parte integrante do prazer que nos é
proporcionado pelos poemas de Ricardo Reis e de Horácio. Em 1973, Margaret
Hubbard (certamente com três cigarros acesos e com um copo de vinho branco à
sua frente) fez esta pergunta a respeito da poesia lírica horaciana: «what is
the nature of the pleasure one feels or should feel in it?»
A
resposta, quanto a mim, está na dicção: no puzzle de palavras e de sentidos; e
também no desafio prazeroso que coloca à nossa inteligência. É um prazer que
nos toma e domina, tal como o dos jogadores de xadrez de Ricardo Reis, que
sentem o «inútil gozo / sob a sombra tranquila do arvoredo / de jogar um bom
jogo».
Mas este
gozo não é tão inútil assim: funciona, como os jogadores de xadrez bem sabiam,
como amortecedor pessoal contra as tragédias do mundo. Na 2.ª Guerra Mundial,
prisioneiros de guerra alemães e ingleses encontraram um prazer partilhado na
poesia de Horácio (como conta Patrick Leigh Fermor - mas isso fica para outro
post, pois este já vai longo).
Queremos
uma síntese dos 7795 versos de Horácio? Ricardo Reis conseguiu fazê-la numa
frase: «Quem quer pouco tem tudo; quem quer nada é livre».
Frederico Lourenço, Coimbra, 29/10/2023
“Pessoa, leitor de Horácio” disponível em https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco