Afonso Cruz, visao.pt/jornaldeletras |
Ao contrário do que muitas vezes se imagina, a escrita
não surgiu para gravar pensamentos, sentimentos, meditações, mas essencialmente
para gravar contabilidade, o peso da cevada guardada num celeiro, a quantidade
de cerveja guardada em talhas de barro. A escrita surgiu para passarmos faturas
e isso começou por ser feito em pedra ou em barro, materiais com alguma
durabilidade que ironicamente são a grande matéria-prima das ruínas, já que
outros materiais mais efémeros não duram o suficiente para isso. Os números
começaram a ser escritos antes das palavras, as faturas precederam a poesia. E
isto é algo que jamais perdoarei à história da humanidade.
Também, em pedra, se gravaram códigos e leis. O
monólito de Hamurabi é um dos exemplos mais conhecidos. Moisés gravou em pedra
os mandamentos e essa foi talvez a primeira grande ruína da escrita, pois foram
partidas quase de imediato pelo próprio autor. Desceu a montanha, viu que o
povo estava a adorar um bezerro de ouro e irritado partiu as tábuas.
Obviamente, deste tipo de escrita, nasce o castigo, o pecado o medo, a censura.
Uma sociedade deveria evoluir procurando cada vez mais liberdade porque só
assim as nossas ações têm valor. Alguém que pratica a bondade porque é
obrigado, não é necessariamente bondoso, quem pratica a justiça porque é
obrigado, não é necessariamente justo. A compulsão deveria ser substituída pela
educação, pela cultura, para poder resultar numa sociedade verdadeiramente sã.
A sedentarização trouxe-nos a escrita e esta ganhou um
poder imenso, como nos diz Dylan Thomas, no poema “A mão ao assinar este
papel”:
A subscrição foi submetida com
sucesso!
A mão ao assinar este papel arrasou
[uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua
[taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e [reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um [rei.(…)
A mão ao assinar o tratado fez nascer [a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas [vieram;
maior se torna a mão que estende o seu [domínio
sobre o homem por ter escrito um [nome.
Os cinco reis contam os mortos mas [não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem [acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como [outras o céu;
mas nenhuma delas tem lágrimas para [derramar.
O ato de escrever solidifica o pensamento, e este,
muitas vezes, torna-se lei, verdade absoluta, relegando os outros ângulos de
uma mesma questão, com certeza tão verdadeiros como o que foi escrito e aceito,
para o campo da especulação, da mentira e dos contos para crianças. Estamos no
terreno do pensamento único, do Deus único, da certeza dogmática, da verdade
monolítica, uma espécie de baleia branca, que nos faz desprezar todas as outras
baleias. Estas verdades inquestionáveis surgem muitas vezes sob a forma de lei
económica, um fenómeno que não é exclusivo do nosso tempo. Chesterton escreveu
o seguinte em 1910:
“(…) os grandes nobres que no século XIX se tornaram
proprietários de minas e gestores de caminho de ferro garantiram a toda a gente
com enorme seriedade que o não faziam por gosto, mas devido a uma Lei Económica
recentemente descoberta. E da mesma maneira os prósperos políticos da nossa
geração aprovam leis que retiram os filhos às mães pobres; e proíbem calmamente
os seus arrendatários de beber cerveja nos pubs. Mas (ao contrário do que o
leitor possa supor) contra tal insolência não se erguem universais vozes de
protesto, classificando-a de escandaloso feudalismo. Porque a aristocracia é
sempre progressiva; a aristocracia é uma forma de impor o ritmo. E as festas
dos aristocratas prolongam-se cada vez mais pela noite dentro.”
Voltando às ruínas:
O tempo, claro, é o mais eficiente construtor de
ruínas, de casas mortas, de lixo, do fim das coisas, de rugas. O universo é uma
espécie de artista ao contrário, que faz com que uma escultura volte a ser
pedra bruta ou areia. Contraditoriamente, o tempo também valoriza os objetos e
o que resta deles, e, assim, é bem possível que um dia tenhamos turistas só
para ver os escombros do nosso país, um pouco como visitamos o Coliseu de Roma.
A certa altura, durante a colonização inglesa da
Índia, alguém se lembrou de vender o Taj Mahal em leilão e aos pedaços. A ideia
era fazer daquilo uma grande ruína e vender os destroços, bocados de pedra,
para decorar lareiras britânicas. Para experimentar este disparate histórico
decidiram começar por desmantelar o Forte Vermelho de Agra, construído pela mesma
pessoa que mandou edificar o Taj Mahal e vendê-lo pedra a pedra. Como não
funcionou, desistiram do plano. Apesar de esta história não estar provada,
corroborada pela escrita, não deixa de ser credível. Fomos, ao longo da
História, capazes de coisas bem piores.
Passaram-se milénios desde a origem da escrita, mas os
números continuam a preceder a poesia, e, de um modo mais lato, toda a cultura
e a própria noção de humanidade.
Afonso
Cruz, “Baleia Branca”, Jornal de Letras, 05-03-2015. Crónica disponível
em: https://visao.pt/jornaldeletras/cronicas-jl/2015-03-05-baleia-brancaf812274/
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Afonso Cruz inicia e conclui a sua crónica com uma
crítica à primazia dos interesses económicos sobre a arte, que se manifesta
desde a origem da escrita até aos nossos dias. O autor expressa o seu desgosto
pelo facto de a escrita ter nascido para registar contabilidade e não para
criar poesia, mas o que ele realmente quer dizer é que deseja que os Homens
apreciem mais a beleza das palavras do que as vantagens comerciais.
O autor
revela implicitamente a sua frustração com a sobreposição da funcionalidade à
estética, ao dizer que não perdoa à humanidade o facto de a escrita dos números
ter surgido antes da escrita da poesia. A sua crítica assenta no desejo de uma
sociedade em que a poesia e a linguagem sejam mais importantes do que as
necessidades práticas do comércio. A sua esperança é que a cultura, a educação
e a arte consigam superar as pressões comerciais, gerando assim uma sociedade
mais bela e significativa.