TRAPO
O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação? tristeza? coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser suscetível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Deem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros – isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Carinhos? afetos? São memórias…
É preciso ser-se criança para os ter…
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.
Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer…
Quando foi isso? Não sei…
No azul da manhã…
O dia deu em chuvoso.
Álvaro
de Campos, Poesia, edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assírio &
Alvim, 2002
Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens
que se seguem.
1. Relacione
o estado de espírito do sujeito poético com as condições meteorológicas
referidas na primeira estrofe.
2. Interprete
o sentido dos versos 8 a 13.
3. Explique
a importância da referência às memórias da infância nos versos 20 a 27.
4. Indique
quatro dos processos que contribuem para marcar o ritmo do poema, fundamentando
a resposta com elementos do texto.
Explicitação de cenários de resposta.
(As respostas podem contemplar os
tópicos que a seguir se enunciam, ou outros considerados relevantes.)
1. Na primeira estrofe do poema, a relação entre o estado
de espírito do sujeito poético e as condições meteorológicas evolui de uma
relação de contraste para uma relação de semelhança:
–
no início do dia, o estado de espírito do sujeito poético é de alguma tristeza
(v. 4), mas o céu azul indicia alegria (v. 2);
–
no decurso do dia, há uma evolução das condições meteorológicas («O dia deu em
chuvoso» – vv. 1, 3 e 7), tornando-se mais parecidas com o estado de tristeza
do sujeito poético.
2. Nos versos 8 a 13, o sujeito poético assume uma
opinião que diverge da opinião dos outros relativamente ao conceito de
elegância associado ao estado do tempo:
–
os outros consideram que o tempo chuvoso é elegante e o sol vulgar e
desagradável;
–
o sujeito poético é indiferente a essa ideia de elegância, preferindo
inequivocamente o sol e o céu azul, já que para tempo chuvoso basta o do seu
mundo interior.
3. A referência às memórias da infância permite realçar o
contraste entre um passado feliz e um presente infeliz.
A
impossibilidade de recuperar o bem perdido da infância, metaforizada em
«madrugada perdida» e «céu azul verdadeiro» (v. 22), acentua a infelicidade
sentida no momento presente. De facto, os afetos, que fazem parte das memórias
da infância do sujeito poético, contrastam dolorosamente com um presente opaco
e triste, que se associa metaforicamente ao dia chuvoso.
4. A resposta pode contemplar os aspetos que a seguir se
enunciam, ou outros considerados relevantes.
O
ritmo do poema é marcado pela utilização de processos como:
–
a repetição do verso «O dia deu em chuvoso» (vv. 1, 3, 7, 19, 23 e 28), que
funciona como um refrão;
–
a anáfora (vv. 8-10);
–
a enumeração (vv. 5, 13 e 20);
–
as repetições lexicais em final de verso (vv. 4 e 6; 8-11; 14 e 16);
–
a irregularidade métrica;
–
a alternância entre frases longas e frases curtas;
–
as pausas no interior dos versos.
Fonte: Exame Nacional de Português n.º 639 - 12.º Ano de
Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2013, Época Especial
Texto de apoio: O significado de verso do poema Trapo (Álvaro de Campos)
No
poema “Trapo”, de Álvaro de Campos, qual o significado do verso «Até amaria o
lar, desde que o não tivesse»?
Questão colocada por Sónia
Martins Estudante Lisboa, Portugal
Resposta:
Importa
lembrar que não se pode isolar um excerto, ou mesmo uma só palavra, de um texto
literário, porque o seu sentido está intimamente ligado à totalidade do
discurso poético.
Fazendo
parte do 7.º verso da 2.ª estrofe — «Hoje quero só sossego. Até amaria o lar,
desde que o não tivesse» — do poema Trapo, a frase «Amaria o lar, desde que não
o tivesse» parece, à primeira vista, absurda, insólita, o que nos pode levar a
considerá-la um paradoxo ou, usando a terminologia literária, um oxímoro. E
talvez se deva à estranheza que tal frase provoca em qualquer leitor a
dificuldade que a consulente sente em a interpretar.
Temos,
em primeiro lugar, de ter em conta a forma como é iniciado o verso em que essa
frase está inserida — «Hoje quero só sossego» —, uma frase assertiva, em que o
sujeito poético evidencia claramente o seu desejo, que se resume a uma única
vontade, o que está explícito pelo advérbio restritor só: sossego. Ora, essa
atitude de «sossego» pressupõe a total ausência de inquietação, perturbação,
ansiedade, ou seja, o não envolvimento em qualquer tipo de situação diferente
da habitual. Aí está nitidamente expresso o desejo de entrega a uma passividade
absoluta, a um estado tal de quietude e de anulação de reacção que o
leva(ria) a aceitar, a fazer concessões em relação a todo o tipo de situações,
mesmo as mais improváveis, como é o caso da de «amar o lar».
E,
para realçar a ideia de excecionalidade da concessão, o sujeito poético
introduz essa frase com o advérbio até, preocupando-se em marcar bem a ideia de
que «amar o lar» se encontraria no domínio do hipotético, de algo não real,
pois utiliza a forma do condicional amaria, sem deixar de evidenciar que a
existência de tal sentimento estaria intimamente ligada à certeza da
impossibilidade da sua concretização.
Este
jogo entre a verbalização de uma concessão e a sua anulação imediata — «desde
que não o tivesse» — transparece a atitude irónica com que este sujeito poético
encara o leitor e, naturalmente, a sociedade. Porque ele tem consciência do
desconcerto que esta frase provoca no outro que a lê. Mas é precisamente essa a
intenção deste sujeito poético: a de se afirmar como diferente, a de ostentar o
seu desprezo pelas condutas e pelos códigos sociais, a de negar a sua
identificação com os demais. Assim, o que para os outros é natural e desejável
— ter um lar e amá-lo —, para ele, é algo desnecessário, inútil e, até mesmo,
marca de infantilidade, de imaturidade.
Se
analisarmos a estrofe seguinte, apercebemo-nos de que ele associa o carinho e o
afeto às crianças, relegando a afetividade para o plano da imaturidade, da
ingenuidade, de algo que não deseja para si e que despreza.
Eunice Marta, 10-02-2010
in Ciberdúvidas da Língua
Portuguesa,
https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/o-significado-de-verso-do-poema-trapo-alvaro-de-campos/27648
[consultado em 24-02-2023]
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- In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição)
- e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html