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domingo, 28 de julho de 2024

A rainha de Kachmir, Gomes Leal

 



A RAINHA DE KACHMIR

O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir1
Era a diamantes bordado,
Como luar num terrado2!...
Parecia o céu estrelado
Ou a visão de um faquir3
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.

Se é a Via Láctea, em suma,
Não há olhar que destrince4!...
Nenhuma vista, nenhum
Jurará se é neve ou pluma,
Se é leite, ou astro, ou espuma,
Nem o próprio olhar do Lince...
Se é a Via Láctea, em suma,
Não há olhar que destrince!

Levava, nas mãos patrícias5,
Leque de rendas e sândalo6...
Oh! que mãozinhas... delícias
Para amimar com blandícias,
Para beijar com carícias,
Que adorariam um Vândalo...
Levava, nas mãos patrícias,
Leque de rendas e sândalo.

Cor da lua, os sapatinhos
Eram mais subtis que o leque!...
Seu manto, púrpura7 e arminhos8,
Não rojava9 nos caminhos,
Pois sua cauda, aos saltinhos,
Levava-a um núbio muleque10.
Cor da lua, os sapatinhos
Eram mais subtis que o leque!

Eis que, no meio da boda,
Entrou um moço estrangeiro...
Calou-se a alegria doida
Da grande assembleia, em roda!
E a brilhante sala toda
Fitou o jovem romeiro.
Eis que, no meio da boda,
Entrou um moço estrangeiro...

Pegou no copo, com graça,
E brindou, em língua estranha...
E a rainha, a vista baça,
Como a um punhal que a trespassa,
Encheu de prantos a taça,
E o seu lenço de Bretanha...
Chorou baixinho, ao ouvir, com graça,
Esse brinde, em língua estranha!

Encheu de pranto o vestido,
Encheu de pranto os anéis...
E, sem soltar um gemido,
Chorou, num pranto sumido,
O seu passado perdido,
Os seus amores tão fiéis!...
Encheu de pranto o vestido,
Encheu de pranto os anéis.

Quem era o moço viajante
Que fez turbar11 a rainha?...
Era o seu primeiro amante,
Tão leal e tão constante,
Que, do seu reino distante,
Brindar ao Passado vinha...
Tal era o moço viajante,
Que fez turbar a rainha.

Saudades de amor quebrado
Fazem lágrimas cair!
Por um brinde ao amor passado,
Ficou de pranto alagado
O vestido de noivado
Da rainha de Kachmir.
Saudades de amor quebrado
Fazem lágrimas cair!...

 

Gomes Leal (1848-1921)

 

____________

Notas: 1. Região da Índia. 2. Terraço, terreno. 3. Asceta indiano. 4. Desvende. 5. Nobres. 6. Madeira perfumada. 7. Tecido vermelho usado pelos nobres. 8. Pele branca e rara. 9. Arrastava. 10. Rapaz africano (da Núbia, Norte do Sudão). 11. Perturbar.

 

Leitura

O poema "A Rainha de Kachmir" é um texto lírico de Gomes Leal, um poeta português do século XIX e início do século XX, cujo estilo é marcado pelo simbolismo e pelo romantismo tardio.

Desde o início, o poema destaca a opulência e a beleza do vestido de noivado da rainha de Kachmir, bordado com diamantes, comparado a "luar num terrado" e ao "céu estrelado". Essa imagem estabelece um contraste entre a riqueza material e a fragilidade emocional que será explorada posteriormente. As descrições detalhadas dos acessórios e do vestuário da rainha - leque de rendas e sândalo, manto de púrpura e arminhos, sapatinhos de cor da lua - sublinham a estética visual, criando um cenário de grande esplendor e requinte. A repetição de frases e palavras-chave, como "O vestido de noivado" e "Levava, nas mãos patrícias", cria um efeito hipnótico e sublinha a importância desses elementos no contexto do poema. A repetição serve também para enfatizar a constante presença do passado e da dor emocional, que persiste apesar das circunstâncias presentes.

O clímax emocional do poema ocorre com a entrada do "moço estrangeiro", que interrompe a celebração da boda. Essa personagem, revelada posteriormente como o primeiro amante da rainha, simboliza o retorno de um passado não resolvido. A reação da rainha, descrita com detalhes sensíveis como "a vista baça" e o pranto que enche "a taça" e "os anéis", sugere uma dor profunda e um conflito interno entre o dever presente e os sentimentos passados.

A saudade é um tema central no poema, manifestada através do pranto da rainha que "encheu de pranto o vestido" e os "anéis". A presença do antigo amante reaviva memórias de um amor perdido, contrastando com a opulência do presente. O poema enfatiza que mesmo os bens materiais mais preciosos não podem suprimir a dor de uma perda emocional. O último verso, "Saudades de amor quebrado / Fazem lágrimas cair!", contém a essência melancólica do poema, refletindo a inevitabilidade do sofrimento amoroso.

 


sexta-feira, 19 de julho de 2024

As minhas asas, Almeida Garrett

Poema XIX do Livro Segundo de Flores sem fruto de Almeida Garrett. Lisboa: na Imprensa Nacional, 1845. Disponível em: https://permalinkbnd.bnportugal.gov.pt/records/item/90769-flores-sem-fructo

Acompanha o poema “As minhas asas” de Almeida Garrett e procura responder às seguintes questões.

1. Caracteriza as asas do sujeito poético.

2. Indica quem lhas deu.

3. Enumera as ameaças que, em vão, atentaram contra as suas asas.

4. Assinala o momento de viragem no poema.



 AS MINHAS ASAS


Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.
— Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que m’as deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.

Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
— Veio a ambição, co’as grandezas,
Vinham para m’as cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra
Batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
— Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi, entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essa luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
— Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu
Pena a pena, me caíram...
Nunca mais voei ao céu.

Poema XIX do Livro Segundo de Flores sem fruto de Almeida Garrett. Lisboa: na Imprensa Nacional, 1845. Disponível em: https://permalinkbnd.bnportugal.gov.pt/records/item/90769-flores-sem-fructo

  

Esquema interpretativo do poema “As minhas asas”, de Almeida Garrett


 



Fonte: Projeto #EstudoEmCasa – Aula n.º 48 de Português dos 7.º e 8.º anos sobre os poemas "O papagaio", de Sebastião da Gama, e "As minhas asas", de Almeida Garrett, 2021-05-07.

 Assistir à aula da Professora Tereza Cadete Sampainho, em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e542348/portugues-7-e-8-anos

 

***

Outro questionário sobre o poema “As minhas asas”, de Almeida Garrett

1. Divide o poema em duas partes lógicas.

2. Enumera as tentações a que o sujeito poético resistiu.

3. Identifica aquela à qual sucumbiu.

4. Indica as consequências de ter sucumbido a essa tentação. 

Fonte: Projeto #EstudoEmCasa – Aula n.º 48 de Português dos 7.º e 8.º anos sobre os poemas "O papagaio", de Sebastião da Gama, e "As minhas asas", de Almeida Garrett, 2021-05-07. Disponível em: https://estudoemcasa.dge.mec.pt/2020-2021/7o-e-8o/portugues/48

 

INTERTEXTUALIDADE



Acompanha o tema “Asas”, de Rui Reininho, e regista:

- para que serve as asas;

- o que não se faz às asas;

- quando deixam de ser usadas;

- o que significam.

Fonte: Projeto #EstudoEmCasa – Aula n.º 48 de Português dos 7.º e 8.º anos sobre os poemas "O papagaio", de Sebastião da Gama, e "As minhas asas", de Almeida Garrett, 2021-05-07.

 

ASAS

Asas servem pra voar
Para sonhar ou pra planar
Visitar, espreitar, espiar
Mil casas do luar

As asas não se vão cortar
Asas são pra combater
Num lugar infinito
Num vácuo para ir espiar o ar

Asas são pra proteger
Te pintar, não te esquecer
Visitar-te, olhar, espreitar-te 
Bem alto do luar

E só quando quiseres pousar
A paixão que te roer
É o amor que vês nascer
Sem prazo, idade de acabar
Não há leis para te prender
Aconteça o que acontecer

Mas só quando quiseres pousar
A paixão que te roer
É o novo amor que vês nascer
Sem prazo, idade de acabar

Mas só quando quiseres pousar
A paixão que te roer
É o amor que vês nascer
Sem prazo, idade de acabar

Não há leis para te prender
Aconteça o que acontecer
Não vejo mais pra te prender
Aconteça o que acontecer

Não há leis para te prender
Aconteça o que acontecer

Rui Reininho / GNR 

 

As asas, como mencionadas na letra da canção, têm vários significados, simbolizando a liberdade, os sonhos, a capacidade de explorar e a proteção. Elas representam também a paixão e o amor, e são um símbolo de ausência de limites e de renovação constante.

Para que servem as asas:

As asas servem para voar, sonhar e planar. Elas representam liberdade, a capacidade de transcender limitações e explorar novos horizontes.

Além disso, as asas também podem simbolizar proteção e a capacidade de enfrentar desafios.

O que não se faz às asas:

A letra menciona que “as asas não se vão cortar”. Isso sugere que não devemos restringir nossa liberdade ou nossa capacidade de sonhar e explorar.

Num sentido mais amplo, podemos interpretar isso como não sufocar os nossos desejos e aspirações.

Quando deixam de ser usadas:

As asas deixam de ser usadas quando decidimos “pousar”, ou seja, quando escolhemos parar de voar e enfrentar a realidade.

Isso pode representar momentos em que abandonamos os nossos sonhos ou desistimos de lutar.

O que significam:

As asas simbolizam liberdade, paixão, amor e a busca por algo maior.

Elas também podem representar a dualidade entre o desejo de voar e a necessidade de encontrar um lugar para pousar e se estabelecer.

Em resumo, a letra da canção “Asas” convida-nos a refletir sobre os nossos sonhos, paixões e a importância de manter a nossa capacidade de explorar, mesmo quando enfrentamos desafios e limitações.


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Problema de expressão (Clã)


Problema de expressão

Só pra dizer que te Amo,
Nem sempre encontro o melhor termo,
Nem sempre escolho o melhor modo.

Devia ser como no cinema,
A língua inglesa fica sempre bem
E nunca atraiçoa ninguém.

O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.

Só pra dizer que te Amo
Não sei porquê este embaraço
Que mais parece que só te estimo.

E até nos momentos em que digo que não quero
E o que sinto por ti são coisas confusas
E até parece que estou a mentir,
As palavras custam a sair,
Não digo o que estou a sentir,
Digo o contrário do que estou a sentir.

O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.

E é tão difícil dizer amor,
É bem melhor dizê-lo a cantar.
Por isso esta noite, fiz esta canção,
Para resolver o meu problema de expressão,
Pra ficar mais perto, bem mais de perto.
Ficar mais perto, bem mais de perto.

 

Clã, Kazoo, 1997

Composição: Hélder Gonçalves / Carlos Tê

 

Clã na foto da capa do álbum Kazoo, de 1997

 

Problema de expressão

Os Clã não escreveram só canções. Escreveram-nos canções. Para cantarmos de olhos fechados uma letra (de Carlos Tê) que revolvia a nossa timidez na hora de dizer ‘Amo-te’. Na língua inglesa, qualquer patetice fica mesmo sempre bem; em português, qualquer exteriorização de intimidade assume-se como extravagante (afinal, todas as cartas de amor são mesmo ridículas). A Carlos Tê reconhece-se o dom para simplificar conceitos complexos e para complexificar conceitos simples. Mas a Carlos Tê reconhece-se sobretudo o mérito de as suas letras nos fazerem vibrar como cordas. E foi ‘O Problema de Expressão’, do álbum “Kazoo”, que nos fez começar a vibrar como cordas com os Clã. É uma canção intimista, envolvente, delicada e viciante, fazendo-nos sentir parte do elenco em que foi composta. Há vizinhança entre a letra de ‘Problema de Expressão’ e a nossa sensibilidade.

“101 canções que marcaram Portugal #83: ‘O Problema de Expressão’, pelos Clã (1997)”. Ler mais: https://expresso.pt/blitz/2022-03-06-101-cancoes-que-marcaram-portugal-83-o-problema-de-expressao-pelos-cla--1997-

***

Depois de se descobrir o amor, nem sempre é fácil dizer ao outro que o amamos.

O sujeito de enunciação afirma ter um problema de expressão para dizer que ama alguém, porque não encontra o melhor termo ou modo.

Não entende o embaraço que o leva a achar que só tem estima por ele. Em muitos momentos, sente coisas confusas, não dizendo o que sente, mas sim o contrário.

Como é muito difícil dizer “amor”, e, uma vez que é bem melhor dizê-lo a cantar, o sujeito poético fez uma canção. Desta forma, resolveu o problema de expressão e conseguiu ficar mais perto, bem mais perto…

Contos & Recontos 7, Carla Marques e Inês Silva. Lisboa, ASA2013, p. 152

 


terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Havia muito sol do outro lado (Crónica de José Eduardo Agualusa)

https://pixabay.com/


     Havia muito sol do outro lado

Aquilo tornara-se um vício. Ele ouvia um telefone a tocar e logo estendia o braço e levantava o auscultador.

– E se fosse para mim?

Os amigos faziam troça:

– No consultório do teu dentista?

Uma noite estava sozinho, no Rossio, à espera de um táxi, quando o telefone tocou numa cabina ao lado. Era no fim da noite e chovia: uma água mole, desesperançada, tão leve que parecia emergir do próprio chão. Ruben enfiou as mãos nos bolsos do casaco.

– É claro que não vou atender – disse alto. – Não pode ser para mim. Se atender este telefone é porque estou a enlouquecer.

O telefone voltou a tocar. Não chegou a tocar cinco vezes. Ele correu para a cabina e atendeu.

– Está?

Estava muito sol do outro lado. Era, tinha de ser, uma tarde de sol.

– Posso falar com o Gustavo?

A voz dela iluminou a cabina. Ruben pensou em dizer que era o Gustavo. Estava ali, àquela hora absurda, abandonado como um náufrago na mais triste noite do mundo. Tinha direito de ser o Gustavo (fosse ele quem fosse).

– Você não vai acreditar, mas a sua chamada foi parar a uma cabina telefónica.

Ela riu-se. Meus Deus – pensou Ruben – era como beber sol pelos ouvidos.

– Não brinques! És tu, Gustavo, não és?…

Sim ele tinha o direito de ser o Gustavo:

– Infelizmente não. Você ligou para uma cabina telefónica, no Rossio, eu estava à espera de um táxi e atendi.

Quase acrescentou: "pensei que pudesse ser para mim". Felizmente não disse nada. Ela voltou a rir:

– Tenho a sensação de que esta chamada vai ficar-me cara. Sabe onde estou?


Pulau Penang


Estava em Pulau Penang, na Malásia, e dali, do seu quarto, num hotel chamado Paradise, podia ver todo o esplendor do mar.

– Nunca vi nada com esta cor – sussurrou – só espero que Deus me dê a alegria de morrer no mar.

Ele ficou em silêncio. Aquilo parecia a letra de um samba. Ela começou a chorar:

– Desculpe que vergonha… Nem sequer sei como se chama.

Ruben apresentou-se: – Ruben, 34 anos, trabalho em publicidade.

Pediu-lhe o número de telefone e ligou utilizando o cartão de crédito. Aquela chamada ficou-lhe cara. Casaram oito meses depois. Ele diz a toda a gente que foi o destino. Ela, pelo sim pelo não, proibiu-o de atender telefones.

José Eduardo Agualusa, A substância do amor e outras crónicas. 3.ª edição, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2009, pp. 53-54

 ***


Escreve um pequeno comentário, entre 80 e 100 palavras, sobre o sentido global do texto de José Eduardo Agualusa, atentando na caracterização de Ruben, nas atitudes perante o telefonema oriundo de Pulau Penang e na importância do destino na vida das pessoas.

(Proposta de escrita por Carla Marques e Inês Silva, em Contos & Recontos 7. Lisboa, ASA2013, p. 152)

 

       Sugestão de resposta:

O sentido global do texto é mostrar como o destino pode intervir na vida das pessoas, de forma surpreendente e maravilhosa.

Ruben é uma personagem solitária, que tem o hábito de atender telefones alheios, na esperança de encontrar alguém que lhe fale.

As atitudes perante o telefonema de Pulau Penang são de curiosidade, encantamento e coragem. Ruben decide arriscar-se a conhecer a mulher que lhe ligou por engano, e acaba por se apaixonar e casar com ela.

O destino é a força que une as duas personagens, que vivem em lugares tão distantes e diferentes.

O texto é uma celebração do amor e da magia do acaso.


quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Romance de D. Pedro e Dona Inês (Natália Correia)

Pedro e Inês, os amantes infelizes, por Sérgio Marques, 2021

 

Romance de D. Pedro e Dona Inês

 

Era seu colo de neve
tocado daquela graça
do contorno mais breve
onde o infinito se enlaça.

Morta, em sua fronte uma constelação
era presságio do ritual macabro
duma coroação.

O que bebera em sua carne a claridade
que dos deuses escorre para a mais pura taça
partiu com mãos de tempestade
apressando com ira
e com desgraça
a fatalidade que os ungira.

E só parou quando mudo no espanto
onde o enlevo da morte se adivinha
o fim do mundo ficou esperando
aos pés da mais fantástica rainha.

 

Natália Correia, Poemas (1955)

 

O poema é inspirado na história de amor trágico entre o infante D. Pedro e a sua amante Inês de Castro, que foi assassinada por ordem do rei D. Afonso IV, pai de D. Pedro, em 13551. Após a morte de Inês, D. Pedro declarou que se tinha casado secretamente com ela e mandou coroá-la como rainha, expondo o seu cadáver no trono.

O poema apresenta uma estrutura narrativa, podendo ser dividido em três momentos: a descrição da beleza de Inês (primeira estrofe), o relato do seu assassinato (segunda e terceira estrofes) e a reação de D. Pedro (quarta estrofe).

As imagens da primeira parte parecem ser ambíguas, visto que a neve pode simbolizar a palidez da pele de Inês após a morte, mas também pode simbolizar a brancura e a delicadeza da sua pele em vida. A graça e o contorno podem sugerir a beleza e a delicadeza da sua forma mesmo na morte, mas também podem sugerir a elegância e a perfeição da sua forma em vida. O infinito pode representar a transcendência da beleza de Inês, mesmo após sua morte, mas também pode representar a eternidade do amor entre Inês e D. Pedro.

A meu ver, os versos da primeira estrofe parecem evocar a beleza serena do corpo morto de Inês após a sua morte violenta, usando imagens de pureza e tranquilidade para contrastar com a tragédia que ocorreu. Assim, o contorno breve do corpo mortal demarcaria a fronteira entre o físico e o espiritual, como se estivesse tocando o infinito.

A segunda estrofe introduz elementos sombrios na narrativa, com a menção de uma constelação na sua fronte como presságio do "ritual macabro / duma coroação" póstuma, como de facto veio a acontecer.

A terceira estrofe revela a crueldade do destino, sugerindo que o que atraía a claridade dos deuses na sua carne foi arrancado com fúria e desgraça. O sujeito poético emprega nesta parte do texto uma linguagem bem sombria e dramática para narrar o ato cruel que tirou a vida de Inês. Palavras como "tempestade", "ira", "desgraça" e "fatalidade" são escolhidas cuidadosamente para expressar a fúria e a injustiça que marcaram o crime. A palavra "tempestade" evoca uma sensação de caos e violência, sugerindo que o ato foi tumultuoso e selvagem. "Ira" ressalta a intensidade da raiva subjacente a essa ação violenta, enquanto "desgraça" aponta para o trágico e infortunado destino de Inês. A palavra "fatalidade" enfatiza a inevitabilidade do ocorrido, como se o destino estivesse selado desde o início.

Na quarta estrofe, o sujeito poético retrata a profunda reação de D. Pedro perante o cadáver de Inês, revelando seu espanto e dor de maneira comovente.

A utilização de uma hipérbole, ao afirmar que "o fim do mundo ficou esperando / aos pés da mais fantástica rainha," é notável. Essa expressão enfatiza a intensidade do amor de D. Pedro por Inês e a extensão de seu sofrimento. Ao sugerir que o "fim do mundo" estava à espera, a poeta indica que, para D. Pedro, nada mais importava a não ser o seu amor por Inês. Essa hipérbole realça o aspeto trágico e atemporal do amor do protagonista, como se a própria ordem do mundo estivesse suspensa ou interrompida diante da morte de Inês.

Além disso, ao chamar Inês de "rainha" depois de sua morte, a poeta destaca o caráter fantástico e paradoxal da situação. Inês, embora morta, é descrita como uma rainha, talvez indicando que o seu amor e beleza transcenderam a vida e a morte, conferindo-lhe uma realeza eterna. Esse uso do termo "rainha" também ressalta a importância de Inês na vida de D. Pedro e a profunda reverência que ele sentia por ela, independentemente das circunstâncias.

O poema "Romance de D. Pedro e Dona Inês" de Natália Correia é um texto que evoca uma atmosfera sombria e trágica, mergulhando na lenda histórica do amor proibido entre D. Pedro I de Portugal e Dona Inês de Castro.

 

Túmulos de D. Pedro e D. Inês, dispostos frente a frente, no Mosteiro de Alcobaça



terça-feira, 1 de agosto de 2023

A tradução como interpretação no Cântico dos Cânticos: o caso da cor da pele da noiva

 


“Sou negra – MAS bela”? - Não!

(A propósito dos episódios de racismo desta semana que envergonham toda a raça humana)

O nome – ainda que não o punho – de Salomão foi responsável por aquele que pode ser considerado o brinde-surpresa da Bíblia: o facto de, neste heteróclito e tantas vezes contraditório conjunto de livros (de épocas e autorias muito diversas) sobre a história da relação dos judeus com Jeová, se encontrar lá no meio uma pequena antologia de versos eróticos de que Jeová está totalmente ausente.

O motivo que justificou a inclusão desta antologia erótica no Antigo Testamento foi a atribuição da sua autoria ao rei Salomão. Na versão grega do Antigo Testamento, o título afirma-se como “Cântico dos Cânticos, que é de Salomão” e o nome do filho de David surge, com efeito, no interior do texto; de tal forma, aliás, que não é impossível experimentarmos a ilusão de ser o próprio rei a enunciar alguns dos versos emitidos por uma boca masculina, em resposta a outros versos claramente enunciados por uma mulher. No entanto, tal como no caso do livro de Sabedoria (também falsamente atribuído a Salomão), questões de cronologia tornam impossível a aceitação de que tenha sido o grande rei judeu a compor este conjunto de versos desgarrados em que um noivo e uma noiva antevêem (e, a dada altura, parecem gozar) as delícias do leito conjugal.

Excluída a possibilidade da autoria salomónica, fica então a pergunta: o que fazer deste pequeno livro, no seio da austera Bíblia, livrinho esse cujo tema é sintetizado pela palavra “sexo”? Porque com ou sem a assinatura de Salomão, o conteúdo do livro é inescapável: é uma antologia de versos eróticos.

Confrontados com a necessidade de explicar a razão da existência do Cântico dos Cânticos, exegetas bíblicos de todas as épocas e quadrantes (judeus, católicos, ortodoxos, protestantes, etc.) desenvolveram uma artilharia de interpretações metafóricas do Cântico, através das quais procuraram fazer-nos ver que não é de sexo entre um casal humano que aqui se trata, mas do amor de Deus (o “noivo”) ou de Jesus por uma noiva que pode ser o povo eleito, a igreja católica ou até a Virgem Maria. A liturgia das Vésperas Marianas inclui trechos do Cântico dos Cânticos, como “Pulchra es, amica mea” (“És bela, minha amiga”), e – surpreendentemente – os versos do primeiro capítulo deste livrinho que começam “Nigra sum – sed formosa” (“Sou negra – mas bela”, Cântico dos Cânticos 1: 5).

Esta voz feminina que aqui nos fala descrevendo-se como negra (“mas” bela) sugere um caminho de reflexão bem interessante. Porquê o “mas”? Que surge tanto na tradução portuguesa da Bíblia dos Capuchinhos, como na consagrada tradução latina da Vulgata? Na versão grega do Antigo Testamento, a noiva do Cântico dos Cânticos diz de si própria “sou negra e bela” (μέλαινά εμι κα καλή). Segundo o comentário ao Cântico de Othmar Keel, também é nessa linha que devemos entender o original hebraico (e por isso o ilustre teólogo suíço traduz “schwarz bin ich und anziehend”). São Jerónimo, autor da tradução latina, deve ter sentido a necessidade de pôr uma desculpa na boca da Sulamita (como a noiva é designada no capítulo 7 do Cântico) por ser negra, levando-a a afirmar que era bela apesar de ser negra. Os tradutores da Bíblia dos Capuchinhos mantêm espantosamente o “mas”, mitigando-o por meio da alteração de “negra” para “morena”: “Sou morena, mas formosa... não estranheis eu ser morena: foi o sol que me queimou...” Tanto em hebraico, em grego como em latim, a noiva é claramente negra. Não há volta a dar.

E o noivo – surpresa! – é branco. “O meu amado é alvo e rosado”, canta a noiva negra (5: 10); o ventre dele é da cor de marfim (5: 14); as pernas são “pilares de alabastro” (5: 15). Além de ser uma antologia de versos eróticos incrustada no meio da Bíblia, o Cântico dos Cânticos celebra aquilo que, ainda nos anos 60 do século passado, era proibido no chamado Bible Belt dos EUA: um casamento “misto”. Ainda bem que, “no fundo”, se trata de um texto altamente alegórico que nada tem que ver com aquilo que ostensivamente se lê no próprio texto... Ainda bem que é tudo sobre (os nunca mencionados) Jeová ou Jesus ou Maria ou a Igreja... É que ler o Cântico dos Cânticos de forma literal e simplista seria decerto muito redutor! É melhor dizermo-nos que os peitos referidos (8: 10) não são peitos, mas símbolos de realidades místico-divinas. Contudo, temos o direito de ser selectivos com a aplicação destas leituras alegóricas, pois por vezes é mais aconselhável ler o texto à letra! É claro que o noivo a entrar no “seu jardim” para “colher lírios” no “canteiro dos aromas” (6: 2) só designa mesmo actividades hortícolas...

Sarcasmo à parte (e perdoem-me todos aqueles que perfilham a ideia de que o Cântico dos Cânticos é o grande texto religioso sobre o amor místico de Deus): como são belos os versos desta extraordinária antologia erótica; versos para os quais a filologia bíblica contemporânea encontra paralelos expressivos em tantas outras literaturas de territórios próximos de Israel (mormente o Egipto antigo e helenístico). Quão belos são os versos que nos dizem “forte como a morte é o amor; implacável como o abismo é a paixão” (8: 6). Como é verdade, meu Deus, que não há fortuna no mundo que possa comprar o amor (8: 7). E como é mais verdade ainda que se identifica o verdadeiro amor por ser aquele que, simplesmente, é portador da paz (8:10).

 

#RacismoNão #viniciusjunior #Bíblia #teologia

 

Crónica de Frederico Lourenço, «Sou negra – MAS bela? - Não!» in https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco, 28-05-2023


Orfeu Negro ou Orfeu do Carnaval,
Marcel Camus, Brasil, Itália, 1959

 

  

Poderá também gostar de:

 

 

Cantar de Cantares - Códice Alcaíns, Javier Alcaíns.
Barcelona, Moleiro editor, 1999. ISBN: 9788488526700

domingo, 23 de julho de 2023

Proençaes soem mui bem trobar, D. Dinis

 


Proençaes soem mui bem trobar
e dizem eles que é com amor;
mais os que trobam no tempo da frol
e nom em outro, sei eu bem que nom
am tam gram coita no seu coraçom
qual m’eu por mia senhor vejo levar.

Pero que trobam e sabem loar
sas senhores o mais e o melhor
que eles podem, sõo sabedor
que os que trobam quand’a frol sazom
á, e nom ante, se Deus mi perdom,
nom am tal coita qual eu ei sem par.

Ca os que trobam e que s’alegrar
vam eno tempo que tem a color
a frol consigu’e, tanto que se for
aquel tempo, logu’em trobar razom
nom am, nom vivem em qual perdiçom
oj’eu vivo, que pois m’á de matar.

D. Dinis (CV 127, CBN 489)

A Lírica Galego-Portuguesa, 2.ª ed., edição de Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, Lisboa, Comunicação, 1985, p. 286.

 

Notas

soem (verso 1) – costumam.

mais (verso 3) – mas.

frol (verso 3) – flor.

coita (verso 5) – sofrimento amoroso.

levar (verso 6) – suportar; sofrer.

Pero que (verso 7) – embora.

quand’a frol sazom / á (versos 10 e 11) – na estação das flores.

par (verso 12) – igual; semelhante.

Ca (verso 13) – pois; porque.

tanto que se for / aquel tempo, logu’em trobar razom / nom am (versos 15 a 17) – assim que acaba aquele tempo, logo deixam de ter razões para trovar.

 

Análise de uma composição trovadoresca galego-portuguesa

1. Apresentação:

Identificação: «Proençaes soen mui ben trobar»

Género: cantiga de amor e simultaneamente sátira literária

Presença nos cancioneiros: CV 127, CBN 489

Autor: D. Dinis

 

2. Paráfrase da cantiga: (por Natália Correia, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses):

 

Os provençais que bem sabem trovar!
e dizem eles que trovam com amor,
mas os que só na estação da flor
vejo trovar jamais no coração
semelhante tristeza sentirão
qual por minha senhora ando a levar.

Muito bem trovam! Que bem sabem louvar
as suas bem-amadas! Com que ardor
os provençais lhes tecem um louvor!
Mas os que trovam durante a estação
da flor e nunca antes, sei que não
conhecem dor que à minha se compare.

Os que trovam e alegres vejo estar
quando na flor está derramada a cor
e que depois quando a estação se for,
de trovar não mais se lembrarão,
esses, sei eu que nunca morrerão
da desventura que vejo a mim matar.

 

3. Tema/ Assunto: contraposição da sinceridade amorosa peninsular ao artificialismo do amor à maneira provençal.

 

4. Estrutura formal: 3 estrofes uníssonas e «capcaudadas».

10a 10b 10b 10c 10c 10a

 

5. Questionário sobre a cantiga “Proençaes soen mui ben trobar”, de D. Dinis.

5.1. Explicite o contraste que o trovador estabelece, na primeira estrofe, entre a sua prática poética e a dos «Proençaes» (verso 1).

5.2. Analise o valor simbólico atribuído, ao longo do poema, à palavra «frol».

5.3. Refira duas características temáticas que permitem integrar este texto no conjunto das cantigas de amor.

5.4. Neste poema, é possível reconhecer traços de sátira literária.

Comprove esta afirmação, com base em dois aspetos relevantes.

 

Explicitação dos cenários de resposta

5.1. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Na primeira estrofe, o trovador estabelece um contraste entre a sua prática poética e a dos «Proençaes» (v. 1) do modo seguinte:

− a prática poética do trovador, ao contrário da dos «Proençaes» (v. 1), não se limita a uma certa estação do ano (como se subentende por «trobam no tempo da frol / e nom em outro» vv. 3-4);

− o trovador considera que os «Proençaes» (v. 1) sofrem muito menos por amor do que ele («nom / am tam gram coita no seu coraçom» vv. 4-5).

5.2. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

Ao longo do poema, a palavra «frol» adquire um valor simbólico:

− como marca da primavera, literariamente conotada com o amor e com a poesia («tempo da frol» v. 3 , aquele em que os «Proençaes» v. 1 costumam trovar);

− como indício da chegada de uma estação do ano («quand'a frol sazom / á» vv. 10-11) propícia ao sentimento amoroso;

− como sugestão de um ambiente alegre e cheio de cor («eno tempo que tem a color / a frol consigu'» vv. 14-15).

5.3. Na resposta, devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

O texto pode integrar-se no conjunto das cantigas de amor com base nestas características:

− a afirmação do sofrimento por amor, ou coita amorosa, de que padece o sujeito poético («gram coita» v. 5; «tal coita» v. 12);

− a devoção a uma mulher amada, designada por «mia senhor» (v. 6);

− um sentimento tão intenso que leva o sujeito poético a prever a sua morte por amor («em qual perdiçom / oj’eu vivo, que pois m’á de matar» vv. 17-18).

5.4. Na resposta, devem ser desenvolvidos os dois tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

A presença de traços de sátira literária neste poema pode ser comprovada com base nos aspetos seguintes:

− a expressão «dizem eles» (v. 2) sugere uma desconfiança irónica no que respeita à motivação dos «Proençaes» (v. 1);

− ao longo do poema, a prática poética dos «Proençaes» (v. 1) é desdenhada pelo sujeito poético (por nela reconhecer sinais de artificialismo).

(Questionário disponível no Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa. Prova 734 | 2.ª Fase | Ensino Secundário | 2023 | 11.º Ano de Escolaridade | Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 22/2023, de 3 de abril. República Portuguesa – Educação / IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P.)

 

 

   Poderá também gostar de:

 

Lição n.º 43 de Português – 7.º e 8.º anos (Projeto #EstudoEmCasa), sobre "Os provençais que bem sabem trovar" e "Cantiga sua, partindo-se", 2021-04-20.

► Assistir à aula da Professora Tereza Cadete Sampainho, em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e538278/portugues-7-e-8-anos

 

“Poesia trovadoresca galego-portuguesa”, José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-18. Síntese didática disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/poesia-trovadoresca-galego-portuguesa.html