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quinta-feira, 4 de julho de 2024

Canção dos rapazes da ilha, Aguinaldo Fonseca


 

CANÇÃO DOS RAPAZES DA ILHA

 

Eu sei que fico.
Mas o meu sonho irá
Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos frutos, nos colares
E nas fotografias da terra,
Comprados por turistas estrangeiros
Felizes e sorridentes.
Eu sei que fico mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Metido na garrafa bem rolhada
Que um dia hei de atirar ao mar.

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá...

Eu sei que fico
Mas o meu sonho irá
Nos veleiros que desenho na parede.

 

Aguinaldo Fonseca, Suplemento Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde: Boletim de Propaganda e Informação. Praia, publicação da Imprensa Nacional, outubro de 1958

 

Análise literária do poema

O poema "Canção dos rapazes da ilha" de Aguinaldo Fonseca, publicado no Suplemento Cultural n.º 1 da revista Cabo Verde em outubro de 1958, aborda a realidade de jovens confinados à vida insular e os sonhos que transcendem essa limitação física. Através de uma estrutura repetitiva e um tom melancólico, o sujeito poético apresenta um contraste entre a imobilidade física e a liberdade do espírito e da imaginação.

O poema inicia com uma declaração contraditória: “Eu sei que fico. / Mas o meu sonho irá” (vv. 1-2). Estes versos contêm as duas certezas do sujeito poético: a realidade de permanecer fisicamente na ilha e a capacidade dos seus sonhos de transcender essa limitação. Esta contradição estabelece o tom para o resto do poema, em que o sujeito poético explora como os seus sonhos poderão viajar e alcançar lugares além da sua prisão insular.

O sonho do sujeito poético propaga-se de várias formas. Ele imagina o seu sonho voando pelo ar (“Pelo vento, pelas nuvens, pelas asas”), manifestando-se em objetos vendidos a turistas (“Nos frutos, nos colares / E nas fotografias da terra”), encerrado numa garrafa atirada ao mar (“Metido na garrafa bem rolhada / Que um dia hei de atirar ao mar”), e nos desenhos dos veleiros na parede (“Nos veleiros que desenho na parede”). Cada uma destas imagens reforça a ideia de que, embora fisicamente confinado, o espírito e a imaginação do sujeito poético podem viajar e deixar uma marca.

A impossibilidade de o sujeito poético sair da ilha é sugerida pela sua condição socioeconómica e pela insularidade. A pobreza, implícita nas suas circunstâncias, e a realidade geográfica de viver numa ilha limitam as oportunidades de fuga física, acentuando a prisão física em contraste com a liberdade imaginativa.

O poema constrói-se sobre diversos contrastes que enriquecem a leitura:

Presente/Futuro: O presente é representado pela certeza de que o sujeito poético fica, enquanto o futuro é sugerido pelo sonho que irá.

Realidade/Fantasia: A realidade da permanência física contrasta com a fantasia do sonho viajante, capaz de se propagar pelo ar e pelos mares.

Pobreza/Riqueza: A pobreza é subentendida na condição de ficar, enquanto a riqueza é simbolizada pelos objetos que contêm os sonhos, vendidos a turistas estrangeiros.

Prisão/Liberdade: A prisão física de ficar é contraposta à liberdade do sonho que viaja.

Infelicidade/Felicidade: A infelicidade da imobilidade é contrastada com a felicidade imaginada e idealizada nos sonhos que se movem.

Estes contrastes são centralizados na estrutura do poema, particularmente na repetição dos versos "Eu sei que fico. / Mas o meu sonho irá", em que a conjunção adversativa “mas” enfatiza a diferença entre o presente aprisionado e a libertação futura.

O título "Canção dos rapazes da ilha" sugere que o poema não é apenas a expressão de um indivíduo, mas representa um sentimento coletivo de uma geração de jovens confinados a uma realidade insular. A "canção" simboliza a voz unificada destes rapazes que, apesar das suas limitações físicas, nutrem sonhos e esperanças de um futuro além das fronteiras da sua ilha. Este sentimento coletivo é emblemático da Geração do Suplemento Cultural, conhecida por sua postura de revolta e pelo desejo de transcender as limitações impostas pelo contexto colonial e geográfico.

 

Geração do Suplemento Cultural

A Geração do Suplemento Cultural, nascida em 1958, aparece como uma Geração muito identificada com uma verdadeira postura de revolta.

O Suplemento Cultural saiu apenas uma vez, pois o segundo foi impedido de sair às bancas pela censura colonial da época.

A situação de Cabo Verde na época levava a que este grupo de homens, reunido à volta desta Geração, questionasse politicamente as verdadeiras causas/razões de tal realidade comprometida, apelando, assim, à revolta humana

Desta forma, é amplamente reconhecido que este Suplemento Cultural marcou, definitivamente, uma atitude radicalmente diferente em relação às Gerações anteriores. Apesar de irem buscar a maturidade literária aos homens da Geração da Claridade (1936) e a maturidade político-social aos homens da Geração da Certeza (1944), os homens da Geração do Suplemento Cultural apresentam-se como homens da Geração da recusa (a favores específicos ao sistema colonial) que aposta na valorização da coletividade - cabo-verdiana, obviamente. O "eu" poético é, assim, um "eu coletivo", um "eu/nós", onde o poeta se apresenta como o porta-voz da dimensão cultural coletiva, identificando-se solidariamente com o seu povo.

Do ponto de vista político-social, a Geração do Suplemento Cultural assume uma postura de combate, de revolta e de alerta, abrindo caminho à mais pura vontade de independência.

Fala do homem que aposta na terra que é sua, negando tendências antigas (seculares, mesmo) de evasão, de fuga, desvalorizando o elemento "mar" para dar vida ao elemento "terra".

Os seus textos são rítmicos, repetitivos, exatamente porque são enfáticos, destinados a revelar claramente as realidades.

A sua principal missão era a de captar a fidelidade do homem cabo-verdiano à sua terra natal e, nas circunstâncias naturais e dimensões espirituais, levá-lo às últimas consequências, por forma a que resultasse na atitude de reconstrução do enraizamento da cultura intelectual em bases profundas e coerentes. A sua maior intenção era a de fazer da arte literária uma projeção intencionalmente combativa da problemática do ilhéu.

Consciencializar o homem cabo-verdiano de que este faz parte integrante de um processo histórico geral que o envolve, era, no momento, o trabalho mais ativo que esta Geração do Suplemento Cultural tinha de levar a cabo.

Porto Editora – Geração do Suplemento Cultural na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2024-07-01]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$geracao-do-suplemento-cultural

 


sábado, 17 de fevereiro de 2024

Mar Me Quer


 

Mar Me Quer

 

O Mar me quer, eu sou feliz só por preguiça
deixei escapar a maré, adormecido
Zeca Perpétuo, sou reformado do mar
tenho juízo de mamba pelo seu olhar

Mar me quer, bem me quer 
Canto chão de luarmina
o coração é uma praia
diz Celestiano à menina

Mar me quer, bem me quer 
com olhos de tubarão
meu avô falava certo
quem demora tem razão

Todas as noites despetalou flores a mulata 
Dona Luarmina, minha vizinha 
logo de manhã passa sonhos pelo rosto 
atrasa a ruga, impede o tempo

 

Letra e música de João Afonso

 

João Afonso Lima (Beira, 1965) é um cantor português. Viveu em Moçambique até 1978, com seus pais e irmãos. Colheu influências da música urbana africana e da música popular portuguesa, esta última pela influência de Zeca Afonso, seu tio materno. A sua colaboração em Maio Maduro Maio (1994), em parceria com José Mário Branco e Amélia Muge, valeu-lhe a atribuição do Prémio José Afonso.

Cristina Mielczarski Santos, A ponte entre a palavra da alma e a palavra do papel: epistolário ficcional miacoutiano. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2013. http://hdl.handle.net/10183/77153

 

***

 

O poema "Mar Me Quer" de João Afonso é uma adaptação musical da novela Mar Me Quer, do escritor moçambicano Mia Couto, cuja leitura se encontra orientada na nossa página da Lusofonia.

Na novela Mar Me Quer, «Mulata Luarmina e Zeca Perpétuo partilham território de vizinhança, chão de terra tão mais velho que eles, olhando o mar que é sempre quem mais viaja.

Luarmina ensombreada de um qualquer silêncio, que de tão longo parece segredo, entardece todos os dias na companhia de Zeca, ouvindo as histórias que vão povoando a paisagem.

Zeca Perpétuo sonha sempre o mesmo: se embrulhar com ela, arrastá-la numa grande onda que os faça inexistir.

Luarmina foi aprendendo mil defesas para as insistências namoradeiras de Zeca, mas um dia resolve negociar falas e outras proximidades, não em troca de aventuras sonhiscadas de Zeca, mas de suas exatas memórias.

E como diz o avô Celestiano "o coração é uma praia", em que o mar, porque nos quer, acaricia memórias e apazigua ausências.

Avô Celestiano é a sabedoria do tempo. Mas também é o fabricador de sonhos. Por via dos sonhos, ele visita os vivos e conduz, na sombra dos aléns, os destinos e os amores de Zeca e Luarmina.

"O que faz andar a estrada? … o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. … para isso que servem os caminhos. Para nos fazerem parentes do futuro." (Mia Couto, Mar Me Quer

 

Natália Luiza, Mar me quer, Coimbra, Cena Lusófona, 2002(Adaptação dramatúrgica da novela homónima de Mia Couto, encomendada pela Cena Lusófona, e colocada em palco pela companhia Teatro Meridional, num espetáculo estreado em maio de 2001, no Teatro Taborda em Lisboa.)

 



 

LER MAIS EM:

 

Mar me quer (1998) -  leitura orientada

Apresentação da obra

Resumo da obra

Desfiar memórias como quem vai desfolhando flores (sobre Mar me quer, de Mia Couto)

Mar me quer: a outra face da lua

O mundo ficcional de Mia Couto – Mar me quer ou o coração é uma praia

Mar me quer: carta como elemento de primeiro contacto.

Imaginância rima com infância: os livros de receção infanto-juvenil de Mia Couto - Mar me quer

Mar me quer, de Mia Couto, entre as literaturas do insólito e juvenil

Mar me quer - propostas de trabalho

 


terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Havia muito sol do outro lado (Crónica de José Eduardo Agualusa)

https://pixabay.com/


     Havia muito sol do outro lado

Aquilo tornara-se um vício. Ele ouvia um telefone a tocar e logo estendia o braço e levantava o auscultador.

– E se fosse para mim?

Os amigos faziam troça:

– No consultório do teu dentista?

Uma noite estava sozinho, no Rossio, à espera de um táxi, quando o telefone tocou numa cabina ao lado. Era no fim da noite e chovia: uma água mole, desesperançada, tão leve que parecia emergir do próprio chão. Ruben enfiou as mãos nos bolsos do casaco.

– É claro que não vou atender – disse alto. – Não pode ser para mim. Se atender este telefone é porque estou a enlouquecer.

O telefone voltou a tocar. Não chegou a tocar cinco vezes. Ele correu para a cabina e atendeu.

– Está?

Estava muito sol do outro lado. Era, tinha de ser, uma tarde de sol.

– Posso falar com o Gustavo?

A voz dela iluminou a cabina. Ruben pensou em dizer que era o Gustavo. Estava ali, àquela hora absurda, abandonado como um náufrago na mais triste noite do mundo. Tinha direito de ser o Gustavo (fosse ele quem fosse).

– Você não vai acreditar, mas a sua chamada foi parar a uma cabina telefónica.

Ela riu-se. Meus Deus – pensou Ruben – era como beber sol pelos ouvidos.

– Não brinques! És tu, Gustavo, não és?…

Sim ele tinha o direito de ser o Gustavo:

– Infelizmente não. Você ligou para uma cabina telefónica, no Rossio, eu estava à espera de um táxi e atendi.

Quase acrescentou: "pensei que pudesse ser para mim". Felizmente não disse nada. Ela voltou a rir:

– Tenho a sensação de que esta chamada vai ficar-me cara. Sabe onde estou?


Pulau Penang


Estava em Pulau Penang, na Malásia, e dali, do seu quarto, num hotel chamado Paradise, podia ver todo o esplendor do mar.

– Nunca vi nada com esta cor – sussurrou – só espero que Deus me dê a alegria de morrer no mar.

Ele ficou em silêncio. Aquilo parecia a letra de um samba. Ela começou a chorar:

– Desculpe que vergonha… Nem sequer sei como se chama.

Ruben apresentou-se: – Ruben, 34 anos, trabalho em publicidade.

Pediu-lhe o número de telefone e ligou utilizando o cartão de crédito. Aquela chamada ficou-lhe cara. Casaram oito meses depois. Ele diz a toda a gente que foi o destino. Ela, pelo sim pelo não, proibiu-o de atender telefones.

José Eduardo Agualusa, A substância do amor e outras crónicas. 3.ª edição, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2009, pp. 53-54

 ***


Escreve um pequeno comentário, entre 80 e 100 palavras, sobre o sentido global do texto de José Eduardo Agualusa, atentando na caracterização de Ruben, nas atitudes perante o telefonema oriundo de Pulau Penang e na importância do destino na vida das pessoas.

(Proposta de escrita por Carla Marques e Inês Silva, em Contos & Recontos 7. Lisboa, ASA2013, p. 152)

 

       Sugestão de resposta:

O sentido global do texto é mostrar como o destino pode intervir na vida das pessoas, de forma surpreendente e maravilhosa.

Ruben é uma personagem solitária, que tem o hábito de atender telefones alheios, na esperança de encontrar alguém que lhe fale.

As atitudes perante o telefonema de Pulau Penang são de curiosidade, encantamento e coragem. Ruben decide arriscar-se a conhecer a mulher que lhe ligou por engano, e acaba por se apaixonar e casar com ela.

O destino é a força que une as duas personagens, que vivem em lugares tão distantes e diferentes.

O texto é uma celebração do amor e da magia do acaso.


sábado, 24 de março de 2018

Um amargo dia mundial da poesia



Ontem, dia mundial da poesia (e da luta contra a discriminação racial), dirigi-me à Casa Fernando Pessoa, em campo de ourique, onde se ia proceder à leitura de Tabacaria em língua caboverdeana e ao lançamento duma edição bilingue, promovida por uma associação de afro-descendentes de lisboa.
Afazeres pouco poéticos fizeram com que eu chegasse alguns minutos depois da hora aprazada para o início da sessão. Uma tarjeta amarela, em inglês e português (Pessoa teria gostado), avisava que não seriam permitidas mais entradas. Remoendo as minhas razões, resolvi tocar à campainha. Logo um diligente vigilante acudiu à porta, dizendo educadamente que por razões de segurança não seriam admitidas mais entradas.
 Não sei quem dirige hoje a Casa Fernando Pessoa, nem quem lá trabalha, mas pedi ao vigilante se podia chamar alguém responsável, pois poderia ser alguém que eu conhecesse, dado que em tempos fui assíduo frequentador da Casa, concebi um programa para uma quinzena da cultura caboverdeana, fui convidado de um dia mundial da poesia, onde recitei excertos da Ode Marítima traduzida por mim para caboverdeano (numa casa cheíssima, com gente até nas escadas), fui convidado de um «Dias do Desassosego», com escritores brasileiros e portugueses (sendo um 10 de junho, fiz a minha abertura com um soneto de Camões traduzido por mim para caboverdeano), a biblioteca da casa possui alguns dos meus livros, por mim oferecidos, sou tradutor de Pessoa para o caboverdeano, utilizando o seu alfabeto oficial (uma antologia intitulada Na Sol di Nhas Angústia esteve pronta para sair em 2007, aquando da passagem de Francisco José Viegas pela casa e ainda hoje aguarda edição), ainda a semana passada o número de inverno da revista LER, dirigida pelo mesmo Fancisco José Viegas, publicou uma montagem minha da Ode Marítima em caboverdeano, razões não para ter algum tratamento privilegiado, mas apenas justificativas do interesse que eu tinha naquela sessão onde seria lido e apresentado  Tabacaria na minha língua materna, poema que eu próprio traduzi em 2007, e que aqui vos ofereço na versão de então.
 Passados instantes entrevi, pela fresta da porta meio aberta, uma senhora de fogachos loiros nos cabelos, que entretanto descera até ao patamar da recepção, falar com o vigilante, acenando que não com a cabeça. Logo este se dirigiu a mim, que se encontrava do lado de fora, dizendo: «Lamentamos, cavalheiro, por razões de segurança...». Gostei muito, eu simples poeta, de ser tratado por «cavalheiro», pois a minha aparência não deixava dúvidas: devido ao frio eu vinha trajado de sobretudo castanho-claro, finas luvas castanho-escuro, cachecol verde-escuro, chapéu preto à Pessoa. Quando já ia embora pelo passeio do outro lado da rua, sorrindo como o Esteves sem metafísica, vi aproximarem-se duas senhoras, cujo tez ainda divisei no lusco-fusco de fim de inverno, e sem delongas sumiram casa adentro. Sorri mais uma vez, com um sorriso triste, alvitrando, para meu consolo, que talvez se tratasse do múltiplo Fernando, reencarnado, não heteronimicamente mas em carne e osso, em femininas figuras, e teria vindo indagar ao que vinha tanta gente de pele escura e linguajar estranho.
 Aconteceu num dia mundial da poesia – e sou poeta. Aconteceu na cidade de lisboa – e dediquei-lhe em livro um monumento de palavras intitulado Lisbon Blues. Foi no bairro de campo de ourique, e estavam os meus livros numa feira no jardim da parada. Aconteceu na Casa Fernando Pessoa, e sou tradutor dele. Foi num dia mundial contra a discriminação racial e senti-me profundamente preto.

José Luiz Tavares
Lisboa, 22 de março de 2018
https://santiagomagazine.cv/index.php/cultura/1299-um-amargo-dia-mundial-da-poesia



TABAKARIA

N ka nada.
Nunka n ka ta ser nada.
N ka pode kre ser nada.
Trandu kel li, n ten dentu di mi tudu sonhu di mundu.
//
Janelas di nha kuartu, di nha kuartu di un-dus milion di mundu ki ningen 
                                                                                       ka sabe é kenha        
 (I s'es sabeba é kenha, kuse k'es sabeba?),
Nhos ta da pa un rua undi ninhun pensamentu ka ta txiga,
Rial, inpusivelmenti rial, sertu, diskonhisidamenti sertu,
Ku misteriu di kusas baxu di pedras ku seris,
Ku morti ta poi umidadi na paredi i kabelu branku na omis,
Ku distinu ta konduzi karosa di tudu pa strada di nada.
//
Oxi n sta dirotadu, sima ki n sabe verdadi.
Oxi n sta odja klaru, sima ki n sta pa n more,
I n ka tenba más armundadi ku kusas
Sinon un dispidida, ki ta bira es kaza i es ladu di rua
Fileras di karuaji dun konboiu, i un partida pitadu 
Di dentu di nha kabesa
I nhas nerbu sakudidu ku osu ta xukalia na ta bai.
N sta spantadu oxi, sima kenha ki pensa i atxa i skese.
Oxi n sta divididu entri lialdadi ki n debe
Tabakaria di kel otu ladu di rua, sima kusa rial pur fora,
I sensason ma tudu é sonhu, sima kusa rial pur dentu.
//
N fadja na tudu kusa.
Komu n ka fase ninhun prupózitu, si kadjar tudu era nada.
Skola k'es da-m
N dixi d'el pa janela di trás di kaza.
N ba ti txada ku prupostus tamanhu,
Mas so erbas ku arvis ki n atxa la,
I ora ki tenba algen era igual a kes otu.
N ta sai di janela, n ta xinta nun kadera. Na kuze ki n al pensa?
Kuze ki n sabe di kel ki n ta fase ben ser, mi ki n ka sabe kuze ki n é?                                                                                                   
Ser kel ki n ta pensa? Mas n ta pensa ma mi n é tantu kusa!
I ten tantus ki ta pensa ser mesmu kusa ki ka pode ten tantus!
Jeniu? Nes mumentu ten mil sérebrus ta sunha ta atxa, sima mi, ma
                                                                                        es é jeniu,
I kenha ki sabe, stória ka ta marka nen un,
Ka ten sinon strumu di tantu konkista futuru.
Nau n ka ta akridita na mi.
Na tudu manikómiu ten dodus maluku ku tantu serteza!
Mi ki n ka ten ninhun serteza, mi é más sertu o menus sertu?
Nau, nen na mi....
Na kantu kuartu pertu di seu i kuartus ka pertu di seu di mundu
Nes ora ka sta jenius pa-es-propi ta sunha?
Kantu aspirason altu nobri i tomadu ku klareza —
Sin, verdaderamenti altu nobri i tomadu ku klareza —,
I kenha ki sabe si pusível di rializa,
Ka ta odja nunka sol ta ratxa rial nen es ka ta atxa obidu di algen?
Mundu é pa kenha ki nanse pa konkista-l
I non pa kenha ki ta sunha ma pode konkista-l sikre e ten razon.
N ten sunhadu más ki kusas ki Napulion fase.
N ten pertadu na petu, k'é ka rial, más umanidadi ki kristu.
N ten fetu, sukundidu, filuzufia ki ninhun Kant ka skrebe.
Mas mi é, i si kadjar n ta ser senpri, kel di kuartu pertu di seu,
Sikre n ka mora na el;
N ta ser senpri kel ki ka nanse pa kel li;
N ta ser senpri apenas kel ki tinha kolidadis;
N ta ser senpri kel ki djuntu dun paredi sen porta e spera p'es abri-l 
                                                                                                     porta
I kanta kantiga d'infinitu nun kapuera,
I obi vos di dios nun posu tapadu.
Kre na mi? Nau, nen na nada.
Pa natureza dirama-m riba di kabesa ta arde
Si sol, si txuba, kel bentu ki ta atxa-m kabelu
I restu ki ta ben si ben, o ten ki ben, o dexa di ben.
Skravus kardíaku di strelas,
Nu ta konkista mundu interu antis d'e  labanta-nu di kama;
Mas nu ta korda i el fitxadu
Nu ta labanta e ka ta djobe nen pa nos,
Nu ta sai di kaza i el é tera interu,
Djuntadu ku sistema solar i karera nhu santiagu i indifinidu.
//
(Kume xukulati, minina,
Kume xukulati!
Odja ma ka ten más metafízika na mundu sinon xukulati.
Odja ma tudu rilijion ka ta nxina sinon faze fatiota.
Kume, minina tudu ntoladu, kume,
Si n podeba kume xukulati ku o-mesmu verdadi ki bu ta kume!
Mas mi n ta pensa i, na ta tra papel di prata, k'e di fodja di stanhu,
N ta bota tudu pa txon, sima n ten botadu bida):
//
Mas o-menus ta fika di margura di kel ki nunka n ka ta ser
Kaligrafia rápidu d'es versus
Portal kebradu pa inpusível.
Mas o-menus n konsagra pa mi un disprezu sen lágrimas,
Nobri pelu menus na jestu largu ki n ta fúlia
Kel ropa xuxu ki mi n é, sen rol, pa kusas na ses kontise,
I n ta fika la na kaza sen kamiza.
//
(Bo, ki bu ta konsola, ki bu ka izisti i purisu bu ta konsola,
Ó deuza grega, konsebedu sima un státua bibu,
Ó patrísia rumana, ki más nobri i más disdisgrasada é npusível                                                                              
Ó prinseza di trovadoris, ton gentil i kulurida,
Ó markeza di séklu dizoitu, dikotadu la lonji,
Ó kes mudjeris freska, famadu, di tenpu di nos pai,
Ó n ka sabe kuse k'é mudernu — n ka ta konsebe ben kuse —
Tudu kel li, seja kuse ki bu é, pode nspiradu pa nspira!
Nha kurason é un baldi dispixadu.
Sima kes ki ta invoka spritu ta invoka spritu, n ta invoka
Mi propi i n ka ta atxa nada.
N ta txiga pa janela i n ta odja rua ku un klareza total.
N ta odja lojas, n ta odja paseius, n ta odja karus ta pasa,
N ta odja kriaturas bibu ki ta kruza bistidu,
N ta odja katxor ki tanbé izisti
I tudu kel li ta peza-m sima ki n kondenadu bai pa lonji,
I kel li tudu é stranjeru sima tudu kuza.)
//
N vive, n studa, n ama, ti n akridita,
I ka ten algen ki ta pidi zimola ki n ka ta inveja oxi so pamodi el é ka mi
N ta odja pa ratadju di kada un, si txagas i mintira,
N ta pensa: si kadjar nunka bu ka vive nen bu ka studa nen bu ama nen 
                                                                                      bu ka kridita
(Pamodi é pusível fase rialidadi di tudu kel li sen fase nada di kel li);
Si kadjar n izisti apenas sima un lagartu ki kortadu rabu
I k'é rabu pa la di lagartu ta ramexe manenti.
//
N fase di mi kuse ki n ka sabe,
I kusé ki n podeba fase di mi n ka fase.
Kel domino ki n bisti staba eradu.
N fika konxedu logu pa kenha ki n ka era i n ka disminti, i n perde.
Kantu n razolbe tra maskra,
E staba pegadu na nha rostu.
Kantu n tra-l i n djobe na spedju
Dja n staba bedju.
N staba moku, dja n ka sabeba bisti domino ki n tra.
N bota maskra fora i n durmi na kau bisti
Sima un katxor ki jerensia ta tolera
Pamodi e ka ta fase ninhun mal
I n ta ba skrebe es stória pa n prova ma mi é sublimi.
Isensia muzikal di nhas versu inútil,
N ta kreba atxaba-bo sima kusa ki n faseba,
I n ka fikaba senpri dianti di tabakaria dipadianti,
Ta kalka ku pe konsiensia di sta izisti
Sima un tapeti ki un mokeru tropesa n'el
O un kapaxu ki siganus furta i ka baleba nada.
//
Mas donu di tabakaria txiga porta i e fika na porta.
Ku diskonfortu n djobe-l ku kabesa tortu
I ku diskonfortu di nha alma ta ntende mal.
El e ta more i mi n ta more.
El e ta dexa tabuleta, mi n ta dexa versus.
Nun sertu altura tabuleta ta more tanbé i rua undi ki tabuleta stevi,
I kel língua ki versus foi skritu na el.
Dipos ta more kel planeta ta da boita undi tudu kel li kontise.
Notus satéliti dotus sistema kualker kusa parsedu ku algen
Ta kontinua ta fase kusa parsedu ku versus ta vive baxu di kusas
                                                                     parsedu ku tabuletas,
Un kusa senpri dianti di kel otu,
Senpri un kusa ton inútil sima kel otu,
Inpusível senpri ton stúpidu sima rial,
Misteriu di fundu senpri ton sertu sima sonu di misteriu di superfisi
Senpri kel li senpri otu kusa o nen un kusa nen otu.
//
Mas un omi entra na tabakaria (pa kunpra sigaru?)
I rialidadi ki ta faze sentidu kai di rapenti riba di mi.
N arma labanta si xeiu di forsa, konvensidu, umanu,
I n sta ba tensiona skrebe es versus undi n ta fla u-kontráriu.
Ora ki n sta pensa skrebe-s n ta sende un sigaru
I na sigaru n ta saboria libertason di tudu pensamentu.
N ta sigi fumu di sigaru sima ki n sta sigi un rota singular,
I n ta goza, nun mumentu konpitenti i di sensason,
Libertason di tudu spekulason
I konsiensia ma metafízika é un konsikuensia di sta mal-dispostu.
//
Dipos n ta deta pa trás na kadera
I n ta kontinua ta fuma.
Timenti Distinu ta pirmiti-m kel li n ta kontinua ta fuma.
//
(Si n kazaba ku fidju-fémia di mudjer ki ta lababa-mi ropa
Si kadjar n ta serba filis).
N ta bisti kel li n ta labanta di kadera. N ta bai janela.
//
Omi sai di tabakaria (ta ba ta mete troku na djilbera?).
Ah, n konxe-l: é Stevis sen metafízika.
(Donu di tabakaria txiga porta)
Sima ki pur un instintu divinu Stevis vira e odja-m.
E fase-m adios ku mo, n grita-l adios o Stevis, i universu
Rakonstrui pa mi sen idial nen speransa, i Donu di Tabakaria poi ta suri.  

Rinxoa, abril di 2007

domingo, 27 de agosto de 2017

Alda Lara

Alda Lara
Poetisa angolana, Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque nasceu a 9 de junho de 1930, em Benguela.
Tendo vindo para Portugal muito nova, concluiu em Lisboa o ensino secundário. Distinguiu-se como aluna no Colégio de Paula Frassinetti da cidade de da Bandeira - hoje Lubango - e no Liceu D. Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa, onde terminou o 7.º ano.
Começando por frequentar a Faculdade de Medicina de Lisboa, acabou o curso em Coimbra, onde apresentou uma tese sobre "Psiquiatria Infantil". Reconhecida no meio académico, esta tese proporcionou-lhe um convite para se especializar em Paris, para que depois ingressasse num estabelecimento psiquiátrico de Lisboa. Contudo, a sua dedicação e amor à Terra-Mãe impediu-a de responder a esta solicitação.
Irmã do escritor Ernesto Lara Filho, casou-se com o escritor Orlando de Albuquerque, também médico de profissão, e frequentou, como muitos outros seus conterrâneos, a da Casa dos Estudantes do Império (CEI), onde desenvolveu imensa atividade.
Com uma grande ligação ao mundo literário, Alda Lara era reconhecida pela sua capacidade de declamação, cuja singularidade atraiu, entre outros, os poetas africanos. Assim, fez vários recitais em Lisboa e Coimbra, transformando estes lúdicos momentos em verdadeiros veículos de divulgação da poesia negra, até então ainda muito desconhecida.
Foi colaboradora de alguns jornais e revistas, nomeadamente do Jornal de Benguela, do Jornal de Angola, do ABC e Ciência e da revista Mensagem da CEI, da responsabilidade do Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola (ANANGOLA). Nesta revista publicou, no número de abril de 1952, o poema "Rumo", dedicado ao falecido estudante e contista moçambicano João Dias.
Integrando a Geração da Mensagem, fortemente influenciada formal e tematicamente pela corrente Modernista de 1922 e pelo Neorrealismo português, a autora vai saciar-se nas origens do seu povo, descaracterizado por imposição da cultura colonial. Neste pretérito ancestral, metaforicamente designado por "Mãe África", a autora, assim como todos os "poetas mensageiros" vai encontrar a Alma da sua produção textual através da qual procura "despir-se" da camisa opressiva da história colonial. O drama dos contratados, a situação da mulher angolana, a repressão exercida sobre o uso das línguas nativas, o desejo de regressar, etc., são, por isso, temas recorrente se abordados de forma avassaladora: " Quando eu voltar/que se alongue sobre o mar/o meu canto ao Criador!/Porque me deu a vida e o amor,/para voltar? / Ah! Quando eu voltar?/Hão de as acácias rubras,/a sangrar/numa verbena sem fim,/florir para mim./E o sol esplendoroso e quente,/ o sol ardente,/há de gritar na apoteose do poente,/o meu prazer sem lei?/A minha alegria enorme de poder/enfim dizer:/Voltei!?".
Tendo sido publicada postumamente num volume de poesia e num caderno de contos pelo seu marido, Orlando de Albuquerque, a sua obra figura em diversas antologias, a saber: Antologia de poesias angolanas, Nova Lisboa,1958; Amostra de poesia in Estudos Ultramarinos, n.º 3, Lisboa, 1959; Antologiada Terra Portuguesa - Angola, Lisboa, s/d; Poetas Angolanos, Lisboa, 1962;Poetas e Contistas Africanos , S. Paulo, 1963; Mákua 2, Antologia Poética , da Bandeira, 1963; Contos Portugueses do Ultramar- Angola , 2.º volume, Porto,1969; Livros Póstumos: Poemas , da Bandeira, 1966; Tempo de Chuva, Lobito, 1973.
Com uma atividade diversificada, fez também algumas conferências, uma das quais - "Conferência sobre problemas da Assistência Médica Missionária em África" - se encontra publicada, dada a sua importância e repercussão.
Depois da sua morte, a Câmara Municipal de da Bandeira instituiu o Prémio Alda Lara para poesia.
Faleceu em Cambambe, no Kwanza-Norte, a 30 de janeiro de 1962.


Alda Lara in Artigos de apoio Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2017. [consult. 2017-08-27]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$alda-lara





A ESCRITA FEMININA NO PANORAMA LITERÁRIO AFRICANO EM LÍNGUA PORTUGUESA


A produção literária de autoria feminina ainda é muito incipiente nos países africanos de língua portuguesa. Isto constitui um paradoxo, que durante as lutas libertárias as mulheres desempenharam importante papel político nas organizações que lutavam contra o colonialismo. […]
No cenário literário angolano figura como precursora na poesia Alda Lara, autora de Poemas (1966), Poesia (1979) e de um livro de contos intitulado Tempo de Chuva (1973). A temática da sua obra é a opressão, que assola homens e mulheres em geral, e, apesar de abordar questões universais como a fraternidade, a solidariedade e a paz, seu enfoque poético está direccionado para as formas de acção feminina na busca do espaço sonhado, em especial nos anos de 1950-1960, quando se intensificava o projecto libertário angolano.
Tal projecto se nutria da utopia de homens e mulheres compartilharem a construção da nação idealizada pelos angolanos. Com nítida percepção do sofrimento que assolava a humanidade da época, Alda Lara ultrapassa a concepção nacionalista para ouvir as «vozes silenciadas» além da África de língua portuguesa:

POEMA
Os gritos perderam-se sem encontrar eco.
Os punhos cerrados e os ódios calados
Dividiram os Homens,
que se não reconheceram mais...
Mas as lágrimas cavaram sulcos fundos
nos olhos vazios de esperança,
e os sulcos não se apagaram...

Trilhando entre o «eu», o sonho e o povo, características que a aproximam de Alda Lara, Noémia de Sousa direcciona seus versos para apreender o próprio «eu» como expressão da subjectividade feminina repleta de imagens que corporificam os desejos «espirituais, admirações, dores e sensações» (Inocência Mata, Literatura Angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta, p. 122). […]
Numa leitura intertextual entre «Negra», de Noémia de Sousa, e «Prelúdio»[1], de Alda Lara, verifica-se a força da voz poética feminina, que no dizer de Inocência Mata, em Literatura Angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta, se liga à ideia de regresso e comunhão com a Terra, com o Povo e com a causa colectiva.
As seguintes estrofes do poema «Prelúdio», de Alda Lara, ilustram a busca da identificação imagética da situação a que foram expostas as comunidades africanas de língua portuguesa, em especial as mulheres, durante a colonização:

Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra, desce com ela...
Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guisos,
nas suas mãos apertadas.
duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.
Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada...
Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?...
Que é feito desses meninos 
que ela ajudou a criar?...
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...
Mãe-Negra não sabe nada...
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo
Mãe-Negra!...
Os teus meninos cresceram,
e esqueceram as histórias
que costumavas contar...
Muitos partiram p'ra longe,
quem sabe se hão-de voltar!...
tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta bem calada.
É a tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada
Lisboa, 1951
As marcas da oralidade e da História permeiam a poesia de Alda Lara […].
Entre os temas propostos pelas escritoras, está o repensar da condição feminina, num cenário social marcado pela opressão, pela submissão feminina e pelas guerras coloniais que silenciaram a confraternização presente no ritual do contar estórias em volta das fogueiras. Mastambém lugar para o amor revivificado na intersecção dos tempos, ponto de convergência entre tradição e modernidade.
A poética e a prosa femininas nas comunidades africanas de língua portuguesa colocam o leitor diante de cenas e sinais de mulheres em espera e acção, em silêncio e canto, em cansaço e renovação, metaforizadas por vozes marcadamente orais que aproximam os sentidos na reescrita literária, reinventando imageticamente o papel da mulher nessas comunidades.

Jurema Oliveira, “A escrita feminina no panorama literário africano em língua portuguesa: Alda Lara, Noémia de Sousa, Ana Paula Tavares, Vera Duarte e Paulina Chiziane” in http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=657, 2002.





[1] Alda Lara, aquando da sua passagem por Coimbra, manifesta saudades não das acácias rubras e buganvílias de Benguela como também das pessoas, como a sua velha ama negra – Lydia – a quem dedicou o poemaPrelúdio”. (cf. Alda Lara na moderna poesia angolana, Amândio César).







ALDA LARA NA REVISTA MENSAGEM

A poetisa Alda Lara aparece na antologia [revista Mensagem] com alguns de seus mais conhecidos poemas. As características mais significativas de sua poesia são, sem dúvida, a expressão de um grande amor ao seu semelhante e a acolhida ao sofrimento do outro. Estas características podem privilegiar visões contrastantes sobre a beleza da natureza e o sofrimento do angolano (conformePrelúdio”) ou declarar um amor intenso a Angola, valendo-se da poesia para descrever as belezas “das acácias, dos dongos e dos cólios” que marcavam um forte contraste com os cenários europeus. É interessante observar, nos poemas de Alda- Lara, uma preocupação visual que se concretiza na composição de pequenos quadros que procuram captar as belezas de Angola, metonimizada peloscoqueiros de cabeleiras verdes”, e de sol ardente e pelas “acácias rubras, /salpicando de sangue as avenidas, /longas e floridas” (p. 111). Distante das descrições de cenários africanos presentes na chamadaliteratura exótica” produzida em vários momentos do período colonial ou nas famosas “cartes de visite”, postais ilustrados com paisagens e tipos humanos dos espaços colonizados, produzidos com a intenção de vender a diferença exótica aos europeus, os cenários poéticos criados com detalhes da natureza africana produzem outros significados na poesia de Alda Lara. A intenção mais evidente em seus poemas é a de expressar um grande amor à terra angolana (“Noites africanas langorosas/esbatidas em luares..../perdidas em mistérios…“)[1], exaltar a exuberância das cores das flores e os odores dos frutos, e, através desses artifícios de motivação pictórica, denunciar a opressão sofrida pelos angolanos, seus irmãos. Por isso, em alguns poemas, os recursos picturais utilizados pela poetisa procuram ressaltar o horror disseminado por acções humanas, pela opressão intensa sofrida pelo seu povo. Por isso é preciso considerar que, na poesia de Alda Lara, a descrição do horror e de atrocidades figura intenções que vão além de aspectos meramente descritivos. As cenas de mutilação, tal como aparecem, por exemplo, no belo poemaMomento” almejam descrever sentimentos de compaixão, repúdio, mas também dão à descrição um peso que ratifica a denúncia e inscreve nos versos a abjecção. Nesse sentido é importante prestar atenção ao uso intencional do gerúndio que funciona nas estrofes como uma espécie de pontuação dos focos que devem ser observados pelo leitor/espectador:

Nos olhos dos fuzilados,
Dos sete corpos tombados
De borco, no chão impuro
Eis!
...sete mães soluçando...
Nas faces dos fuzilados,
Nas sete faces torcidas
De espanto ainda, e receio,
sete noivas implorando...
E do ventre de além-mundo,
Sete crianças gritando
Na boca dos fuzilados...
Sete crianças gritando
Ecos de dor e renúncia
Pela vida que não veio...
Na boca dos fuzilados
Vermelha de baba e sangue,
sete crianças gritando!
(112-113).

O impacto da cena descrita, com recursos visuais explorados com grande perícia pela poetisa, fica intensificado na referência à dor das mães, das noivas e na alusão às crianças, que, por uma estratégia discursiva de grande efeito, podem ser visualizadas porque assim o permitem os significantes que compõem o primeiro verso da terceira estrofe: “e do ventre de além-mundo”, distendendo o tempo da acção invocada pelo poema.
No poemaRegresso” (pp. 116-118), referentes da terra angolana são empregados para ressaltar as cores vivas e os odores fortes que compõem paisagens singulares. O eu-poético se regista com marcas de intensa subjectividade e as paisagens lembradas são esmiuçadas para compor cenários em que as cores das casuarinas, das acácias rubras e dos cheiros exalados pelo “húmus vivificante” e pelo desenho do mar que contorna “uma cidade em convulsão” possam construir uma visão em que o feminino se mostra com intensidade na declaração do amor pela terra natal.
Conforme se destacou em outro trabalho, a visão e o olfacto são os sentidos privilegiados para propiciar recortes em que a terra africana é descrita em toda sua pujança, vista como um lugar paradisíaco, onde é possível viver o “prazer sem lei” expandido em excesso (cf. FONSECA: 2004). A simbologia da Mãe-Africa, reiterativa nos poemas de afirmação da identidade africana, inscreve um outro olhar que procura descrever os cenários da terra aquecida por um sol “esplendoroso e quente”. Também no poema “Presença [Africana]” (pp. 114-115), a relação entre o feminino e a terra angolana, entre o corpo da mulher e o da terra africana, ressalta aspectos que tornam Angola um micro-cosmo de um continente significado por “coqueiros de cabeleiras verdes! e corpos arrojados sobre o azul”. Nesse poema, a mulher, literariamente construída (“E apesar de tudo/ainda sou a mesma!/Livre e esguia”), realça-se com os atributos da terra africana e, através desse recurso poético, concretiza uma visão feminina do ideal a ser conquistado. A terra do “dendém”, “das palmeiras”, das “acácias rubras” é percebida através de atributos que se relacionam com a função materna (“mãe forte da floresta e do deserto”) ou com um sujeito que se declara afectivamente irmã (“ainda sou /a irmã-mulher”). Assim os poemas de Alda Lara, ao cantar o amor pelos irmãos miseráveis ou construir flagrantes em que a beleza da terra angolana é reiterada, expande o intimismo e faz da visão um mecanismo hábil à apreensão de cenários em que o outro (a Mãe-negra, os oprimidos, os companheiros de ideal) é a motivação maior de uma arte feita com a escrita.

“Mulher-poeta e poetisas em antologias africanas de língua portuguesa: o feminino como exceçãopor Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC-Minas, Brasil) in A mulher em África – Vozes de uma margem sempre presente, org. Inocência Mata e Laura Cavalcante Padilha, Lisboa, Edições Colibri, 2007, pp. 498-500.





[1] Versos do poemaNoite”, escrito em Outubro de 1948 (FERREIRA, p. 115).




ESBOÇO DE INTERPRETAÇÃO DA POESIA DE ALDA LARA



Alda Lara pertence a um núcleo de alta burguesia comercial, que dispunha das disponibilidades necessárias para dar aos filhos cursos superiores nas terras longes de Portugal. Elemento este que, como é óbvio, nos ajuda a colocar o poeta e a entender melhor a articulação do seu canto. Em tal caso a poesia surge como uma soma orgânica de conteúdos humanos e a poesia sugere a elaboração de uma atitude coerente que representa a totalidade de uma acção humana. Neste aspecto a poesia de Alda Lara caracteriza não o ambiente Benguelense que foi o da sua infância e de parte substancial da sua adolescência, mas também o despaisamento, o exílio, como será melhor dizer, do estudante angolano nas universidades portuguesas.

Decerto que Alda Lara por reflexo familiar sentiu a totalidade dos problemas cívicos que atingiram o cume nos anos 40; não os podia ainda investigar e sentir com exacto conhecimento de causa. E o facto de ter abandonado Benguela muito cedo para fazer em Lisboa e em Coimbra o seu curso de medicina, iria deixar-lhe na retina o canto rubro e incendiado (para alguns poetas angolanos também incendiário) das acácias das ruas de S. Filipe de Benguela, os cólios e os coqueiros e também a imagem dos quintalões benguelenses, que eram ainda o compromisso entre uma cultura que procurava assentar as suas bases numa efectiva mestiçagem e o despontar de atitudes mais rígidas entre as etnias (que a rápida valorização dos «produtos coloniais», nos anos seguintes a 1945 firmou definitivamente) que hoje são moeda corrente. Não podemos esquecer que é desse ambiente que lhe nasce o pendor patriarcalista que pode beber ainda no trato familiar, embora muitas vezes se perturbe perante a mestiçagem que é elemento comum, irreversível. Como iremos ver, a atitude irracional da poesia de Alda Lara, assenta em grande parte numa atitude utópica, que desconhece os elementos imediatos do real.

A poesia de Alda Lara está incompleta. É, antes de mais, uma poesia que vive no mundo da infância ou de uma primeira fase da adolescência. Poesia duplamente exilada, por consequência. Toda a vida interior do poeta se articula em relação a uma angolanidade que, embora não sendo conjugada com todos os elementos do real, é no entanto uma força aglutinadora que não pode ser descurada, mas nas palavras entrevemos, implícito ou explícito, o sentimento do exílio e, algumas vezes, a suspeita dolorosa de que a sua angolanidade não se apoderou dos elementos mais significativos. Ou, se não quisermos ir tão longe, a poesia sente que não cuidou de se apoderar de todos os elementos significativos. É este sentimento angustioso que leva Alda Lara a escrever no poema «Presença africana», em que se promete à sua terra, ainda intacta, ainda idêntica a rapariguinha que saiu de Benguela, não para se deixar destruir nas terras frias e opacas da Europa, mas sim para regressar viva, senhora de uma sageza actuante. Eis que Alda Lara examina os seus mínimos gestos para saber se, realmente, enquanto anda, bebe, dorme, trabalha, passeia, não se transformou na Outra, que poderia trair, que por certo trairia, a sua mesma angolanidade. Problema que, em tal caso, a obriga a verificar as roldanas da sua intimidade, para acabar, por verificar que, apesar de tudo, é ainda a mesma (mas quanta inoculta angústia aqui se insinua, no receio de que alguém possa destruir a afirmação denunciando-lhe os desvios). Pois é esta forma adversativa que nos importa reter que através dela chegaremos ao cerne de uma poesia desgarrada, por não lhe ter sido possível viver os problemas na sua imediatidade, pois eram elementos apenas sentidos. Não esqueçamos que lhe faltam pontos de referência, e que a sua linguagem trabalha num vácuo que o poeta não pode evitar; deseja ir ao mais fundo dos problemas, mas não lhe estão próximos, sente-os por refracção. E a ordem da sua poesia não é um lento caminhar através das essências de uma angolanidade racionalmente estruturada, mas um assalto precipitado aos signos, engendrando um estilo que, embora dotado de boas qualidades rítmicas, pretende chegar depressa. Esta busca apaixonada da sua própria raiz, não aniquila a possibilidade de um estilo, mas corroe o imo significativo da poesia transformando-a num elemento ambíguo. Coisa que Alda Lara sente, e que nos leva a concluir que a sua poesia não chegou a completar-se. Em vez do círculo fechado e total, temos o ângulo raso.

Vejamos outro poema de Alda Lara, em que é utilizada uma técnica contrapontística para nos fazer sentir, mais do que mostrar-nos, a sua angolanidade. É um dos seus poemas mais conhecidos, o «Regresso», que assenta, em primeiro lugar, na noção de exílio, fornecida pelo primeiro versoQuando eu voltar»). Essa mesma noção irá depois estabelecer o contraste entre os elementos citadinos, digamos lisboetas ou coimbrões, e os elementos ecológicos que definem a presença de Benguela. Uma presença em que distinguimos uma lenta cópula entre o azul ultramarino e o verde intenso, glauco. É assim que pressentimos que o poeta se viu forçado a fazer o inventário dos objectos da cidade, estabelecido através de um novelo de sensações que são não conscientes, mas também inconscientes e sub-conscientes. Neste caso, recorrendo à psicologia, verificamos que a «doce confusão natal» está recheada de elementos que, racionalmente, o poeta seria incapaz de expor coerentemente. E a exarcebação dos sentidos a que a força a cidade (torna-se necessário reconhecer, não o esqueçamos, todos os objectos que encontra e, também, indicar-lhes a função e o lugar respectivo; quer dizer que se trata de estabelecer uma nova hierarquia, tanto para os objectos como para os actos; naturalmente também para os pensamentos, o que, no caso peculiar de Alda Lara, força a pesquisa de novos dominadores para os sentimentos), leva-a a evocar os planos mais calmos da cidade natal, que é não um elemento de Angola, mas sim a sua Angola. Vejamos mais de perto o problema transposto para a poesia: «não mais o pregão das varinas, / nem o ar monótono, igual, / do casario plano…»; o contraponto fornecido pela fímbria costeira aparece imediatamente, para devolver o poeta ao seu terreno natal ou seja, a consciência de um lugar que lhe é próprio e cujas peculiaridades são, por assim dizer, anteriores ao seu nascimento. Alda Lara sente-as não como um elemento geral do meio ambiente, mas sim como coisa que lhe foi previamente destinada e que, portanto, não é obrigada a estudar e a valorizar; as coisas (os objectos e os actos existiam antes e, por isso, a sua identificação está garantida por uma intimidade que o poeta não poderá nunca ter com os elementos das cidades portuguesas: «hei-de ver outra vez as casuarinas / a debruar o oceano...». E, na terceira estrofe do poema, o plano dos sentimentos (que pressupõe um contínuo recurso aos elementos do subconsciente e do inconsciente), surge com toda a veemência: «Os meus sentidos, / anseiam pela paz das noites tropicais, / em que o ar parece mudo / e o silêncio envolve tudo... / Tenho sede... / Sede dos crepúsculos africanos / todos os dias iguais, / e sempre belos, / de tons quase irreais...».

por várias vezes tenho mostrado que a presença do mundo da infância na poesia angolana não é elemento que possa ser passado em claro, pois é ele uma constante. Encontramo-lo tanto nos poetas do Norte, como nos do centro ou do Sul. E se o recurso ao mundo da infância é, por via de regra, uma fuga ao mundo do homem adulto, do homem da praxis social, devemos entender aqui o problema com uma óptica diversa. Todos estes poetas procuram, projectando a poesia no passado, recuperar uma ausência da cor, que permitia ver o mundo definido como uma totalidade onde não seria possível discernir qualquer interstício traiçoeiro. A fragmentação do mundo em hierarquias de cor, repele o poeta para uma marginalidade que não pode deixar de ser encarada. A tentativa de solução do problema é, para alguns deles, uma projecção integral no passado, que desconhece a solução dialéctica dos problemas. A formação católica de Alda Lara iludiu-a sempre quanto à maneira de solucionar os problemas humanos. É por isso que o mundo assume uma significação puramente individual e a sua poesia vive de impulsos orgânicos, é certo, mas que não representam uma totalidade. Não esquecemos, não seria possível esquecê-lo, que Alda Lara conhece a existência de um povo, mas as suas preocupações nunca são profundamente sociais, ou pelo menos não compreende ela os problemas ao nível da «acção histórica dos grupos». O apelo do povo, esse está bem presente, mas Alda Lara não consegue descobrir os meandros da alienação, e a ruptura entre a sua posição e a acção dos grupos surge no poema «Regresso», em que a terra angolana nos é dada através de elementos impressionistas, onde o homem angolano está presente nas batucadas, que a infância do poeta recorda, «soando pelos longes, / noite fora...». Excluindo-se voluntariamente do grupo, recusando-se, pois, implicitamente, a somar a sua acção individual ao total das acções individuais que formam a essência real da acção histórica do grupo, Alda Lara tinha forçosamente que mergulhar num mundo de infância, que era o único capaz de lhe devolver a Benguela quieta dos quintalões, das amas negras, da rua onze — e não esqueçamos que esta rua é elemento poético usado também por Aires de Almeida Santos e Ernesto Lara (Filho); — formando um paraíso ideal, mas completamente alheio à acção do tempo.

Mas eis que parecem surgir em Alda Lara algumas tendências colectivas, que pretendem devolver-lhe a noção de mundo total. É no poema «Presença africana» que entrevemos uma autocrítica dilacerar o conformismo da sua poesia, obrigando-a a reexaminar o seu domínio próprio e a medir a relação existente entre o seu comportamento e a totalidade dos comportamentos sociais onde se define uma angolanidade empiricamente imediata. É por isso que os dois primeiros versos rompem directamente para a matéria do poema: («E apesar de tudo / ainda sou a mesma!»), que recordam um diálogo em que impende sobre o poeta a acusação de se ter modificado, num sentido contrário ao que pretende afirmar a sua poesia. Para se caracterizar o poeta há-de recorrer aos mais esplendorosos elementos do seu mundo infantil, pois que assim se poderá ainda reconhecer como pertencendo a esse mundo distante e que alguém lhe mostra perdido por sua própria culpa; por isso ela é: «a dos coqueiros, / de cabeleiras verdes / e corpos arrojados / sobre o azul... / A do dendém / nascendo dos abraços das palmeiras... / A do Sol bom, mordendo / o chão das Ingombotas…/ A das acácias rubras, / salpicando de sangue as avenidas / longas e floridas...», para se apoderar logo de elementos humanos que não conhecíamos na sua poesia (que não surgiam sequer no poema dedicado ao moçambicano João B. Dias[1]): «Sim! ainda sou a mesma... / — A do amor transbordando / pelos carregadores do cais / suados e confusos, / pelos bairros imundos e dormentes / (Rua 11!... Rua 11!...) pelos negros meninos / de barriga inchada / e olhos fundos… » É bem verdade que Alda Lara não se identifica inteiramente com esta humanidade, que é para ela, se não no todo pelo menos em parte, uma sub-humanidade (veja-se que os carregadores são suados — o que representa a caracterização física imediata, resultado de um trabalho bruto e que se nos apresenta como irracional, ou até como bestial; e confusos — o que pretende assumir um nível de representação psicológica, que, no entanto, não podemos interpretar como uma hipótese de fazer surgir a negação da negação, elemento dialéctico que Alda Lara não conhece, e cuja validade se recusa aceitar). Mas nãodúvida de que o poema assume uma outra capacidade de significação histórica, o que conduz o nível da significação puramente individual para outro plano (o que serve para nos mostrar como se interpenetram os elementos estéticos, filosóficos e outros, com os fornecidos pela biografia e pela psicologia), em que a possibilidade de uma modificação do mundo, do real, surge, impondo-se por força da própria redução do homem a um estado de sub-humanidade. O absurdo da situação individual, ou o absurdo da posição de alguns grupos (o que desvenda o papel das hierarquias da cor dentro deste plano), e a interpretação do mundo angolano obriga Alda Lara a assumir a responsabilidade de novas coordenadas para a sua angolanidade. Nenhum subjectivismo é possível, diz-nos o poeta, quando os negros meninos mostram a evidência das suas barrigas inchadas (as barrigas de gimbonzo, do vernáculo quimbundo), que denunciam, aos olhos do experto, uma ausência de elementos vitamínicos e proteínicos (sabemos que as barrigas inchadas desaparecem facilmente com uma dieta de leite bem equilibrada, mas o leite, sim, o leite onde está ele?), e por isso, aqui se efectiva uma mistura, embora ainda não harmoniosa, os dados sociológicos com os postulados éticos.

A última estrofe do poema é elucidativa quanto ao sentimento de ambiguidade que continua a atormentar Alda Lara: «Terra! / Ainda sou a mesma! / Ainda sou / a que num canto novo, / pura e livre, / me levanto, / ao aceno do teu Povo!...» Aqui se prometia a grande viragem na poesia de Alda Lara, pois que o poeta verifica existir como dado funcional e integral de um povo, embora fosse ele sentido à distância (notemos que não se trata do meu povo, mas antes do povo da terra angolana, o que denuncia um afastamento que não podemos caracterizar agora e aqui). Assim as situações ganham neste poema a sua dureza concreta e a absurdidade da ordem social pede uma acção que o poeta ainda não sabe qual possa ser (embora saiba que não basta exercer a medicina com justa consciência profissional para estar plenamente justificada). Mas sabe, o que o poema demonstra, que é necessário procurar uma posição em que o rigor da observação do concreto, se ligue aos elementos individuais. A evolução de Alda Lara condu-la, obrigando-a a percorrer um caminho sinuoso e semeado de obstáculos, à verificação de que a vida social é essencialmente prática. Posição esta que poderia encontrar a sua amplitude natural se a Alda Lara tivesse sido possível continuar a sua obra na terra áspera e suave de Angola, em contacto com a sua humanidade, com o seu povo. Este objectivo não pôde ela cumprir racionalmente, mas o seu corpo o está objectivando, na velha povoação comercial do Dondo, à sombra de uma das suas acácias rubras, símbolo dos poetas angolanos que procuram fundar as razões para promover, sempre com mais intensidade, a independência da sua poesia.

Alfredo Margarido, “Esboço de interpretação da poesia de Alda Lara”, in Mensagem, 1962
(apud Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa, Lisboa, Regra do Jogo, 1980, pp. 300-307)






[1] PoemaRumo” dedicado ao J.B.Dias em 1949 à sua memória em 1951.





      OS VALORES DO CENTRO

Se, simultaneamente, atentarmos nos textos escritos a partir do Centro e do Sul [de Angola], verificaremos ainda que em alguns deles perpassa, ora uma tímida consciência regional, ora uma procura de diferenciação face a Luanda. […]
Na apresentação da colecção Bailundo, no livro de Alexandre Dáskalos, há um manifesto assinado por Ernesto Lara Filho e Inácio Rebelo de Andrade, que se localizam no Huambo. A peça afirma claramente a intenção de “dar a conhecer os valores do centro de Angola, ao mesmo tempo que se pretende estender dois braçosum para o Norte e outro para o Sul [...] — para ligar num amplexo fraterno essas duas correntes literárias com vida própria [referem-se à colecção Autores Ultramarinos e à Imbondeiro]. […]
Numa carta sintomática, enviada a Inácio Rebelo de Andrade a partir de Lisboa e datada de 21 de Janeiro de 1962, Ernesto Lara Filho garante, a propósito da sequência a dar à Colecção Bailundo: “Eu creio que a Alda, [...] depois do Aires e com os «apports» do Alexandre Dáskalos e meu, apesar de pobres, temos muito ainda que dizer em Angola, devemos dizê-lo. Acho melhor sacrificar o resto da colecção a essa necessidade premente queimediatamente, de dizer algo, sobre o Centro de Angola, literariamente falando, claro. Aliás, autores ultramarinos acabam de publicar […] os seguintes poetas: António Jacinto, Agostinho Neto, Alexandre Dáskalos, Manuel Lima, etc etc, dando um carácter estritamente político à coisa. Bailundo é literatura como nós combinámos e de «pés fincados na terra». Assim, eu creio que ainda e acima de Imbondeiro e Autores Ultramarinos, vamos no caminho mais certo que é o moderado, o do centro, o do centro de Angola, por casualidade.” […]
Numa carta de Alda Lara ao irmão (parcialmente copiada por este naquela a que acabamos de aludir, e talvez escrita em 1961) a identificação regional da sua poesia é igualmente assumida conectando-se com o distanciamento face à estrita partidarização da Mensagem: “Gostaria que me dissesses o que devo fazer para te enviar uma selecção dos meus poemas para a Colecção Bailundo. Creio ser tempo de os pôr fora, e na verdade gostaria mais de os vêr «integrados» na Colecção Bailundo do que na dos Autores Ultramarinos. Nem sequer é por razões políticas. Nunca as tive e agora é que as não tenho mesmo. A política e tudo quanto dela deriva dá-me vómitos, para te falar com franqueza. E apenas porque situo a minha poesia mais próximo da tua ou da do Aires de Almeida Santos do que da dos outros. Compreendido? Mais tarde, a geração futura decidirá quais foram os verdadeiros «poetas». O resto é nada.”

Francisco Soares, Notícia da literatura angolana, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp. 215-218.
  



           
          ALDA LARA (1930-1962) – ANTOLOGIA POÉTICA E LINHAS DE LEITURA





TEMAS DE ESTUDO EM TORNO DA POÉTICA DE ALDA LARA:
  • Auto-representação do “eu”.
  • A imagética feminina: inconformismo vs destino de mulher.
  • Uma educação para os valores: solidariedade, fraternidade, generosidade, evangelismo…
  • Representação de África: os lugares de afecto, enfeitiçamento e amor pátrio.




LAGO

Todo o meu ser
é um lago fundo e doce

Por onde passeiam barcos
com meninos

namorados que se beijam
em noites sem destino

e também tu! Oh belo solitário
inesquecível

Todo o meu ser é um lago
doce e fundo

onde a tristeza,
é uma ansiosa e definível
aspiração

Campo Grande, Agosto de 1959





Linhas de leitura do poemaLago”:
- Interpretação da metáfora contida na 1ª estrofe.
- Dimensão psíquica revelada pela repetição da 1ª estrofe na 5ª.
- Importância da última estrofe para a compreensão do poema – o tempo ansioso.

RESPOSTA: 1.ª estrofe - “fundo” = intocável = solidão. “doce” = amável, expectante, carente.
Dimensão psíquica: obsessão.
A última estrofe confirma/explicita o que está implícito na primeira.




RONDA

Na dança dos dias
meus dedos bailaram...
Na dança dos dias
meus dedos contaram
contaram, bailando
cantigas sombrias...

Na dança dos dias
meus dedos cansaram...

Na dança dos meses,
meus olhos choraram
na dança dos meses
meus olhos secaram
secaram, chorando
por ti, quantas vezes!

Na dança dos meses
teus olhos cansaram...

Na dança do tempo,
quem não se cansou?!

Oh! dança dos dias
oh! dança dos meses
oh! dança do tempo
no tempo voando...

Dizei-me, dizei-me,
Até quando? até quando?






Linhas de leitura do poemaRonda”:
- O tempo ansioso.
- Relação do conteúdo do poema e
   1) o título;
   2) a pontuação expressiva.
- Musicalidade do poema.

RESPOSTA: Obsessão nas referências temporais que pressupõem expectação.
Relação do conteúdo do poema e o título: circularidade do tempo.
Pontuação ao serviço da angústia provocada pela circularidade do tempo.



APELO

Na outra margem do rio,
(e eu vejo-a!)
campos vedes de esperança,
abandonados ao calor de um sol eterno...
Na outra margem do rio,
onde não chega o inverno,
campos ondulantes de searas maduras.
para os pobres matarem nelas
todas as fomes do mundo...
Na outra margem,
Tudo se começa de novo
e nãodias passados
que amargurem os desgraçados.
Nãodinheiro,
E os homens dão-se as mãos,
que pelo dia inteiro
ouvi as canções que os seus lábios entoaram...

Nem raivas mal contidas,...
nem agonias perdidas,
nem dor...
que na outra margem do rio,
Amor...
………………………………………
E entre mim, e a outra margem,
esta terrível viagem.
Este rio caudaloso, imundo,
sujo de todos os calhaus,
que nele vomitou o mundo...
Entre mim e a outra margem,
O rio

Ah! barqueiro...
Porque tardas?...
Não vês que faz frio?...
Espero, mas desfaleço…
Não tardes mais barqueiro
Não tardes!...
que é tão longe ainda
a outra margem do rio
1949

Linhas de leitura do poemaApelo”:
- significado de “riocomo imagem psíquica do “eu”.
- Esperança e idealidade.






TESTAMENTO

À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhamdo algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

Linhas de leitura do poemaTestamento”:
- Figura de estilo que estrutura a 1ª estrofe: a antítese.
- Significado das personagens enumeradas.
- Atitude de doação do sujeito poético – generosidade, evangelismo



MOMENTO

Nos olhos dos fuzilados,
dos sete corpos tombados
de borco, no chão impuro,
eis!
sete mães soluçando...

Nas faces dos fuzilados,
nas sete faces torcidas
de espanto ainda, e receio,
sete noivas implorando…

E do ventre de além-mundo,
sete crianças gritando
na boca dos fuzilados...

sete crianças gritando
ecos de dor e renúncia
pela vida que não veio...

Na boca dos fuzilados
vermelha de baba e sangue,
sete crianças gritando!
1952


Linhas de leitura do poemaMomento”:
- Marcas populares: numerologia e estrofação.
- Significado das personagens convocadas.
- Valor da pontuação expressiva.



ROMANCE

Menina dos olhos belos
dos verdes olhos tão belos,
menina dos olhos tristes...
Sentada nessa varanda
onde não passa ninguém
porque esperas soluçando
todo o dia quem não vem?...

Menina dos belos olhos.
Mãos cruzadas. Olhar vago.
Nem o mais ligeiro afago
o vento aqui te deixou...
Posta então nessa varanda,
porque esperas noite e dia,
tão serena e tão sombria
quem por aqui passou?...

Se tu soubesses menina!...
Enquanto bordas sonhando
em tua toalha fina,
bem perto desta varanda,
quantas varandas quebraram!
quantas meninas deixaram
suas tão belas varandas,
e nunca mais se tornaram...
Quantas! Quantas!

E tu, sentada bordando...
E tu, sozinha esperando,
alta noite, longo dia,
por quem te esqueceu, passando...
E tu, sentada, sonhando...
Hão-de apagar-se as estrelas
há-de enrugar-se o arvoredo
E tu, sentada, sonhando
em silêncio, o teu segredo...

Menina! Parte! Olha o tempo!
Pega na tua, esta mão...
Irás pela madrugada
em teu cavalo alazão!
Irás de cabelo solto
e larga saia rodada,
irás de coração livre,
entoando uma canção!...

Irás! E contigo, certo,
teu destino liberto
tu, sozinha, à procura
doutra estrela, noutro céu,
em busca de quanta vida
esta morte em ti nasceu!...
1949-1950

Linhas de leitura do poemaRomance”:

- INTERTEXTUALIDADE com o romance tradicional português “A Bela Infanta” (versão de Almeida Garrett):
   Estava a bela infanta
   No seu jardim assentada,
   Com o pente de oiro fino
   Seus cabelos penteava
   Deitou os olhos ao mar
   Viu vir uma nobre armada;
   Capitão que nela vinha,
   Muito bem que a governava. […]

- Tempo ansioso.

- Inconformismo vs destino de mulher.



PRESENÇA AFRICANA

E apesar de tudo,
Ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!

Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a Irmã-Mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto...

A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
Nascendo dos braços das palmeiras...

A do sol bom, mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras, 
Salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...
Sim!, ainda sou a mesma.
A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11!... Rua 11!...)
pelos meninos
de barriga inchada e olhos fundos...

Sem dores nem alegrias,
de tronco nu
e corpo musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...

E eu  revendo ainda, e sempre, nela,
aquela
Longa história inconsequente...

Minha terra...
Minha, eternamente...

Terra das acácias, dos dongos,
dos cólios baloiçando, mansamente...
Terra!
Ainda sou a mesma.
Ainda sou a que num canto novo
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu povo!  
                              Benguela, 1953


Num momento em que se pretende, a nível da criação de cânones nacionais (neste caso angolano) uma poesia que galvanize, que revolte, que incite a agir, Alda Lara escrevia “Presença Africana”, poema de 1953 que evoca o nome da revista parisiense cujas páginas deram a conhecer ao mundo os cambiantes do movimento da Negritude, e onde Alda Lara assume ainda a proximidade em relação a este movimento.
A evocação de ancestrais culturas africanas é em Alda Lara substituída pela descrição da paisagem e sublinharia na última estrofe as notas de consciência social que denunciam os efeitos do colonialismo/capitalismo. Mas, como diz o crítico angolano Jorge de Macedo em Literatura angolana e Texto literário (1989), o que se pretendia em 1950 da literatura angolana era algo de teor mais agressivo: «Em Angola, o nacionalismo, expressamente proclamado pelo movimento Vamos Descobrir Angola, faz da literatura arma de revolução, com todas consequências lógicas, tais como a preferência por tematário sobre o protesto, denúncia, lamento, miserabilismo, a prisão, a tortura, o desejo de emancipação.» (Jorge de Macedo, 1989: 31).

Fonte: “Alda Lara, figura fundadora na poesia das mulheres angolanas”, Joana Passos. XIV Colóquio de Outono: Humanidades: novos paradigmas do conhecimento e da investigação, Universidade do Minho. Centro de Estudos Humanísticos (CEHUM), 2013






NOITE

Noites africanas langorosas,
esbatidas em luares...,
perdidas em mistérios...
cantos de tungurúluas pelos ares!...

..........................................................................
Noites africanas endoidadas,
onde o barulhento frenesi das batucadas,
põe tremores nas folhas dos cajueiros...
..........................................................................
Noites africanas tenebrosas...,
povoadas de fantasmas e de medos,
povoadas das histórias de feiticeiros
que as amas-secas pretas,
contavam aos meninos brancos...
E os meninos brancos cresceram,
e  esqueceram
as histórias...
Por isso as noites são tristes...
Endoidadas, tenebrosas, langorosas,
mas tristes... como o rosto gretado,
e sulcado de rugas, das velhas pretas...
como o olhar cansado dos colonos,
como a solidão das terras enormes
mas desabitadas...
É que os meninos brancos...,
esqueceram as histórias,
com que as amas-secas pretas
os adormeciam,
nas longas noites africanas...
Os meninos-brancos... esqueceram!...
 
Outubro de 1948





REGRESSO

Quando eu voltar,
que se alongue sobre o mar,
o meu canto ao Creador!
Porque me deu, vida e amor,
para voltar...

Voltar...
Ver de novo baloiçar
a fronde majestosa das palmeiras
que as derradeiras horas do dia,
circundam de magia...
Regressar...
Poder de novo respirar,
(oh!...minha terra!...)
aquele odor escaldante
que o húmus vivificante
do teu solo encerra!
Embriagar
uma vez mais o olhar,
numa alegria selvagem,
com o tom da tua paisagem,
que o sol,
a dardejar calor,
transforma num inferno de cor...
……………………………………..
Não mais o pregão das varinas,
nem o ar monótono, igual,
do casario plano...
Hei-de ver outra vez as casuarinas
a debruar o oceano...
Não mais o agitar fremente
de uma cidade em convulsão...
não mais esta visão,
nem o crepitar mordente
destes ruídos...
os meus sentidos
anseiam pela paz das noites tropicais
em que o ar parece mudo,
e o silêncio envolve tudo
Sede...Tenho sede dos crepúsculos africanos,
todos os dias iguais, e sempre belos,
de tons quasi irreais...
Saudade...Tenho saudade
do horizonte sem barreiras...,
das calemas traiçoeiras,
das cheias alucinadas...
Saudade das batucadas
que eu nunca via
mas pressentia
em cada hora,
soando pelos longes, noites fora!...
………………………………………..
Sim! Eu hei-de voltar,
tenho de voltar,
nãonada que mo impeça.
Com que prazer
hei-de esquecer
toda esta luta insana...
que em frente está a terra angolana,
a prometer o mundo
a quem regressa...

Ah! quando eu voltar...
Hão-de as acácias rubras,
a sangrar
numa verbena sem fim,
florir para mim!...
E o sol esplendoroso e quente,
o sol ardente,
há-de gritar na apoteose do poente,
o meu prazer sem lei...
A minha alegria enorme de poder
enfim dizer:
                   Voltei!...
1948



RUMO

(ao J.B.Dias em 1949 à sua memória em 1951)

É tempo, companheiro!
    
Caminhemos ...
Longe, a Terra chama por nós
e ninguém resiste à voz 
    
da Terra ...  
Nela,
o mesmo sol ardente nos queimou
a mesma lua triste nos acariciou,
e se tu és negro
e eu sou branca,

a mesma Terra nos gerou!  
     Vamos, companheiro
    
É tempo!
Que o meu coração
se abra à mágoa das tuas mágoas 
e ao prazer dos teus prazeres 
     irmão
Que as minhas mãos brancas
     se estendam 

para estreitar com amor
as tuas longas mãos negras... 
E o meu suor 
se junte ao teu suor
quando rasgarmos os trilhos 
de um mundo melhor!  
     Vamos!
que outro oceano nos inflama.. .
    
Ouves?
É a Terra que nos chama...
É tempo, companheiro!
    
Caminhemos ...



Como se pode ler, o poema contém um apelo para se construir “um mundo melhor” nesse lugar de pertença de brancos e negros que é Angola. Onde Alda Lara se afasta de Césaire e Senghor, ou se quisermos, da agenda da Négritude, é precisamente por não opor brancos e negros, numa união de raças que poderia ser interpretada como complacência em relação a continuidades coloniais. Por isso a poesia de Alda Lara foi menos estimada durante o contexto de guerra (de libertação e civil), porque é uma poesia de paz, não de rotura ou revolução, embora expresse um sentir coletivo e apoie a construção de uma renovada Angola pelos “novos”. Esta temática é precisamente a mesma do poema Regresso, também muito citado e tomado como exemplo emblemático da obra da autora.

Fonte: “Alda Lara, figura fundadora na poesia das mulheres angolanas”, Joana Passos. XIV Colóquio de Outono: Humanidades: novos paradigmas do conhecimento e da investigação, Universidade do Minho. Centro de Estudos Humanísticos (CEHUM), 2013


DANÇA DE RODA

Teus olhos estão chorando?...
pois que chorem moreninha...
Teus olhos estão esperando?...
pois que esperem moreninha...

Que importam lábios cerrados,
e pensamentos riscados,
e braços longos, nervosos,
presos a vidas inúteis,
presos a gostos quebrados?...

Mulher fez-se p’ra sofrer.
Para sofrer e esperar.

Mulher fez-se p’ra sofrer
e perdoar...

(Há milénios que sofremos...
não é tempo?...)

Mãe-burguesa era mulher.
Mas Mãe-burguesa morreu...
Enterrou-se no caminho
debaixo de uma palmeira
qualquer.

Nesse tempo era pequena.
Hoje,
a palmeira cresceu...


Mãe-burguesa não sou eu!
Mãe eu sou.
Burguesa não.

Quem dança na minha roda
ao som da minha canção?...
Danças tu a noite toda
coração!

Meus filhos estão dançando
meus netos dançando estão.
Minha roda é roda grande,
e é grande a minha canção!
1949/50



NOSSA SENHORA DO Ó

Nossa Senhora do Ó...
Senhora do ventre pleno,
do ventre belo e fecundo,
semente que deste o fruto
com que Deus salvou o mundo!

Senhora da inquietação...
da hora doce e sublime,
da espera silenciosa
por um destino mais fundo.

Senhora da dor inteira,
que liberta e que redime.

Nossa Senhora do Ó...

Pelas mãos que nesta hora
se entregam silenciosas
como tu ‘speraste outrora

Pelas mulheres que hoje, ao mundo,
lançam o grito sangrento
do seu destino mais fundo!

eu te peço
erguida e forte,
que embora gerado em sangue
e embora riscado a espinhos
nos calvários dos caminhos

esse destino se cumpra,
como se cumpriu o Teu!...
1950


INTERTEXTUALIDADE:
Sermão de Nossa Senhora do Ó” (1640)
    Padre António Vieira.
A figura mais perfeita e mais capaz de quantas inventou a natureza e conhece a geometria é o círculo. […]. E porque o O é um círculo, e o ventre virginal outro circulo, o que pretendo mostrar em um e outro é que, assim como o círculo do ventre virginal na conceição do Verbo foi um O que compreendeu o imenso, assim o O dos desejos da Senhora na expectação do parto foi outro circulo que compreendeu o eterno. […]
O sermão completo em: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/BT2803033.html#




AGUARELA MARÍTIMA

A Irmã-Mulher das gaivotas,
senta-se à beira do mar...
Solitária toda a tarde,
às gaivotas vem falar...

E enquanto as horas se quebram,
em estilhaços, no areal,
andam à tona das ondas,
restos de um sonho irreal...

A Irmã-Mulher das gaivotas,
é delgada como elas.
Anda vestida de branco,
como as gaivotas mais belas!...
Mas nunca pôde voar...
Nunca viu de perto, o céu,
nunca viveu sobre o mar...

Por isso essa grande mágoa,
serena e desesperada.
Por isso as pétalas de água
que caem na balaustrada...

E a ver as horas tombando,
sentada à beira do mar,
a Irmã-Mulher das gaivotas.
nos olhos cor de esmeralda,
traz um silêncio a chorar...

1951




ELOGIO DA ESPIRITUALIDADE

(a Charlotte Bronte)

Não digas que os meus seios
são duas rolas brancas,
cansadas de não partir...
ou que o meu corpo
é um fruto quente e bom,
que em noites de verão,
apetece morder e ferir...
Não digas que os meus lábios
são promessas de desejos
mal contidos,
ou que os meus cabelos soltos
lembram os afagos ligeiros
dos dias não cumpridos...

que as tuas mãos saibam colher
aquilo que não foi...

E tu venhas antes p’ra me dizer,
que a minha sensibilidade
é trémula e franzina,
como a graça
de uma flor-menina...
que a minha inteligência
é funda e nua,
como as noites que não tiveram lua,
e que a minha vontade,
é tão forte e tão plena,
que o teu amor,
a condena!...

1951


O GRANDE POEMA

Este é o poema que eu escrevi
para as crianças da minha terra!...
Para as crianças negras,
e brancas,
e mestiças,
sem distinção de cor...
comungando o Amor
que as unirá...

Este é o poema que eu escrevi a sonhar,...
de olhos perdidos no mar,
que me separa delas...

O poema que escrevi a sorrir
a gritar confianças desmedidas
nas ânsias partidas,...
quebradas,...
como velas de naufrágio!...

O poema que eu escrevi a soluçar,
sobre os livros
onde não encontrei
para os sonhos resposta um dia!...

1949


PÁTRIA

Irmão Negro!
Tu tens braços longos como a noite,
e vens na voz das casuarinas
batidas pelo vento,
beijar as bandeiras erguidas
sobre o teu sofrimento...
Tu que sais agora das cavernas
do medo e da escuridão,
para entoar ao sol escaldante
o canto da tua libertação
Que sulcas com rios de esperança
a vida morta do meu país,...
que fecundas com sangue e suor de esperança
a vida morna do meu país,...
TuIrmão NegroHomem da Terra!
junta a tua voz à minha voz,
e sob a agonia quente deste céu,
vem dizer também,
que a Pátria não morreu.

Vem dizer
que para além
de tudo o que é passado e porvir,
a Pátria das palmeiras e dos dongos ficará...
p’ra sempre ficará brilhando,
sobre a campa dos Homens que se foram
e sobre o berço dos Homens que hão-de vir

1957(?)

Alda Lara, Poemas, Porto, Vertente, 1984 (4ª ed.)







AS BELAS MENINAS PARDAS

As belas meninas pardas
são belas como as demais.
Iguais por serem meninas,
pardas por serem iguais.

Olham com olhos no chão.
Falam com falas macias.
Não são alegres nem tristes.
São apenas como são,
Todos os dias.

E as belas meninas pardas,
estudam muito, muitos anos.
Só estudam muito. Mais nada.
Que o resto, traz desenganos…

Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.

Nos passeios de Domingo,
Andam sempre bem-trajadas.
Direitinhas. Aprumadas.
Não conhecem o sabor que tem uma gargalhada,
(Parece mal rir na rua!)
E nunca viram a lua,
debruçada sobre o rio,
às duas da madrugada.
Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.

E desejam sobre -tudo, um casamento decente…

O mais, são histórias perdidas…
Pois que importam outras vidas?…
Outras raças?… Outros mundos?…
Que importam outras meninas,
felizes, ou desgraçadas?!…

As belas meninas pardas,
dão boas mães de família,
e merecem ser estimadas…
Alda Lara, Poemas, 1959

Linhas e leitura do poema “As belas meninas pardas”:
- Depois do retrato feito das meninas pardas, como poderemos interpretar o conteúdo do verso 34 e das reticências que encerram o poema?
- Explique as antíteses dos versos 14 e 15 e relacione-as com a mensagem do poema.



Por fim, para além da necessária discussão do lugar da obra de Alda Lara na história literária angolana sublinha -se uma outra vertente crítica da sua poética, focada nas expectativas sociais de género, no âmbito de famílias privilegiadas. A educação tradicional e os correspondentes padrões de decoro são representados por Alda Lara como um processo de estupidificação, de castração interior, para domesticar as mulheres. Dentro desta temática, cita -se “As Belas Meninas Pardas”, texto profundamente irónico, que desconstrói a validade de uma educação uniforme e limitativa.
Na voz, no olhar, nos sentimentos pré-determinados, ajustados ao protocolo social, descreve -se a educação da estimável mãe de família para a indiferença pelo que se passa para além dos limites do seu pequeno mundo superprotegido. A consciência dos limites descritos revela na voz poética um outro “saber humanamente”, o qual demarca poeta e leitor para além dos estreitos horizontes impostos pela educação tradicional a essas “belas meninas iguais”.

Fonte: “Alda Lara, figura fundadora na poesia das mulheres angolanas”, Joana Passos. XIV Colóquio de Outono: Humanidades: novos paradigmas do conhecimento e da investigação, Universidade do Minho. Centro de Estudos Humanísticos (CEHUM), 2013


Última atualização: 2020-04-09


 Fonte:
LUSOFONIA - PLATAFORMA DE APOIO AO ESTUDO A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO. 
Projeto concebido por José Carreiro.
1.ª edição: http://lusofonia.com.sapo.pt/alda_lara.htm, 2007.
2.ª edição: http://lusofonia.x10.mx/alda_lara.htm, 2016.
3.ª edição: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Lit-Afric-de-Ling-Port/Lit-Angolana, 2020.