ESTRADAS
Não era noite nem dia.
Eram campos campos campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
cheias de azul e silêncio.
Silêncio que se derrama
pela terra escalavrada
e chega no horizonte
suando nuvens de sangue.
Era hora do poente.
Quase noite e quase dia.
E nos campos campos campos
abertos num sonho quieto
sequer os passos de Nena
na branca estrada se ouviam.
Passavam árvores serenas,
nem as ramagens mexiam,
e Nena, pra lá do morro,
na curva desaparecia.
Já de noite que avançava
os longes escureciam.
Já estranhos rumores de folhas
entre as esteveiras andavam,
quando, saindo um atalho,
veio à estrada um vulto esguio.
Tremeram os seios de Nena
sob o corpete justinho.
E uma oliveira amarela
debruçou-se da encosta
com os cabelos caídos!
Não era ladrão de estradas,
nem caminheiro pedinte,
nem nenhum maltês errante.
Era António Valmorim
que estava na sua frente.
— Ó Nena de Montes Velhos,
se te quisessem matar
quem te havera de acudir?
Sob este corpete justinho
uniram-se os seios de Nena.
— Vai te António Valmorim.
Não tenho medo da morte,
só tenho medo de ti.
Mas já a noite fechava
a saída dos caminhos.
Já do corpete bordado
os seios de Nena saíam
— como duas flores abertas
por escuras mãos amparadas!
Ai que perfume se eleva
do campo de rosmaninho!
Ai como a boca de Nena
se entreabre fria fria!
Caiu-lhe da mão o saco
junto ao atalho das silvas
e sobre a sua cabeça
o céu de estrelas se abriu!
Ao longe subiu a lua
como um sol inda menino
passeando na charneca…
Caminhos iluminados
eram fios correndo cerros.
Era um grito agudo e alto
que uma estrela cintilou.
Eram cabeços redondos
de estevas surpreendidas.
Eram campos campos campos
abertos de espanto e sonho…
Manuel
da Fonseca (1911-1993), Planície, Coimbra, 1941
As cores, os sons e os
movimentos da planície alentejana estão, por exemplo, magistralmente reunidos
no poema “Estradas”, composição de Planície. Cinematograficamente, o
movimento da objetiva em abertura, que vai de um plano de proximidade a um
plano longínquo, é conseguido graficamente através da repetição sintática do
substantivo, como a sugerir horizontalmente a vastidão longilínea da terra:
Não era noite nem dia
Eram campos, campos, campos
abertos num sonho quieto. (“Estradas”, poema de Planície)
Ainda é digno de nota o
emprego dos significantes sensoriais no poema, que remetem à audição (o
silêncio, os passos de Nena que sequer se ouviam na estrada, a ausência do
vento, que mais uma vez implica em silêncio, e contribuem para a atmosfera de
isolamento da menina que terá ali a sua primeira experiência de amor, e adiante
os rumores de folhas que anunciam a chegada do amante), ao olfato (o
perfume do campo de rosmaninho), ao tato (os seios que tremem sob o
corpete justinho, e a seguir são amparados por escuras mãos, a boca fria de
Nena que se entreabre) e à visão (as diversas cores que brilham no
poema: o azul e o vermelho na primeira estrofe; o branco, o negro e o amarelo
na segunda; a oposição entre a escuridão da noite – física e metafórica, pois a
noite é também metáfora do amante de escuras mãos que fechava a saídas dos
caminhos, impedindo a passagem de menina - e a claridade trazida pela Lua, nas
estrofes finais, remetendo ao percurso de descoberta da sexualidade vivido pela
jovem menina tornada mulher, já anunciado no verso final da primeira estrofe
“Quase noite e quase dia”, a noite física e o dia metafórico de início da vida
de Nena).
O tom da narração lembra
ainda o exercício do contador de histórias, através de vários recursos, como:
1) o predomínio dos verbos
no pretérito imperfeito, típico das narrativas tradicionais, como os contos de
fadas, o que, associado à técnica cinematográfica da linguagem, de ampliação e
redução da objetiva, dá a impressão de que a história vai se desenrolando às
vistas do leitor, como em um filme;
2) as anáforas do verbo ser
no pretérito imperfeito, no versos da primeira estrofe – “Eram
campos, campos, campos” / “Eram cabeços redondos” / “Era a
hora do poente”, ou a repetição paralelística do advérbio “Já”, complementado
pelo advérbio “quando”, nos versos da segunda estrofe – “Já da noite que
avançava”/ “Já estranhos rumores de folhas”/ “quando, saindo um
atalho”, que sugerem uma ação em continuum interrompida por outra, assim
como a estrada da vida da personagem de repente se modifica;
3) a atmosfera típica das
cantigas de amigo medievais, que encenam o exercício do amor através dos
elementos da natureza - como a moça que vai ao alto e encontra o cervo que
volve a água, ou a moça que vai lavar camisas e as tem levadas pelo vento, que
metaforiza o amado –; aqui a experiência de amor vem conotada nos elementos da
natureza, como as estevas, os cabeços redondos, a noite, as flores, a estrela,
e nos significantes sensoriais que revelam uma linguagem sensorial bastante
correlata à experiência vivida no nível do conteúdo;
4) a repetição
paralelística de expressões, como as referências aos seios de Nena – a cada
referência modificados num crescente de aproximação erótica -, ou a repetição
com variação dos versos que fazem abrir e fechar o poema, mostrando no entanto
a diferença da paisagem, e, conseqüentemente, das vidas que nela se
personificam:
Não era noite nem dia.
Eram campos, campos, campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas. (versos 1 a 5)
Eram cabeços redondos
de estevas surpreendidas.
Eram campos, campos, campos
abertos de espanto e sonho... (versos 68 a 70)
FONTE:
“Memória
e tradição do contar na experiência e na permanência neorrealista”, Michele
Dull Sampaio Beraldo Matter. Congresso Internacional da Associação
Internacional de Professores de Literatura Portuguesa (24.: 2014: Campo Grande,
MS). Anais do 24º Congresso Internacional de Professores de Literatura
Portuguesa, 20 a 25 de outubro de 2013, Campo Grande/MS/Brasil [recurso eletrônico] /
Santos, Rosana Cristina Zanelatto... [et al.], organizadores. – Campo Grande:
Ed. UFMS, 2014.
Poderá também
gostar de:
CARREIRO, José. “Não
era noite nem dia, Manuel da Fonseca”. Portugal, Folha de Poesia, 06-04-2020.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/04/nao-era-noite-nem-dia-manuel-da-fonseca.html
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