Segundo
Arnaldo Saraiva, a poesia de Nuno Júdice
surge integrada na tradição literária romântica e simbolista. A escrita deste
poeta apresenta como características
fundamentais: o eu hiperbolizado e atrofiado; a poética do desassossego
e da inspiração; a analogia universal (sentimentos humanos/sentimentos do
universo); cenários outonais, arruinados ou crepusculares.
Noémia
Jorge, Preparação para o Exame Nacional Português 10, Porto, Porto
Editora, 2013
Características
temáticas e discursivas da poesia de Nuno Júdice
A TERRA
DO NUNCA
Se eu fosse para a terra do
nunca,
teria tudo o que quisesse numa cama de nada:
os sonhos que ninguém teve quando
o sol se punha de manhã;
a rapariga que cantava num canteiro
de flores vivas;
a água que sabia a vinho na boca
de todos os bêbedos.
Iria de bicicleta sem ter de pedalar,
numa estrada de nuvens.
E quando chegasse ao céu, pisaria
as estrelas caídas num chão de nebulosas.
A terra do nunca é onde nunca
chegaria se eu fosse para a terra do nunca.
E é por isso que a apanho do chão,
e a meto em sacos de terra do nunca.
Um dia, quando alguém me pedir a terra do nunca,
despejarei todos os sacos à sua porta.
E a rapariga que cantava sairá da terra
com um canteiro de flores vivas.
E os bêbedos encherão os copos
com a água que sabia a vinho.
Na terra do nunca, com o sol a pôr-se
quando nasce o dia.
Nuno Júdice, As coisas mais simples, Lisboa,
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2006
«Se eu
fosse para a terra do nunca», começa assim o poema “A terra do nunca”, de Nuno
Júdice. Verso que nos transporta, automaticamente, para a nossa infância, para a
ilha fictícia de Peter Pan, personagem do ideário infantil que se recursou a
crescer. A conjunção subordinativa condicional que inicia o poema remete-nos
para o mundo do sonho, para o facto de estarmos perante uma situação
hipotética, pois não é possível o regresso físico à nossa infância. Contudo,
através da imaginação, e se tal fosse realmente possível, o que faria o sujeito
poético? Como seria a terra do nunca? A resposta é dado ao longo do poema, com
a apresentação de situações impossíveis - «teria tudo o que quisesse numa cama
de nada:/ os sonhos que ninguém teve quando/ o sol se punha de manhã» (vv.
2-3); «Iria de bicicleta sem ter de pedalar,/numa estrada de nuvens.» (vv. 9 e
10); «teria (…) a água que sabia a vinho na boca/ de todos os bêbados» (vv. 7 e
8); «(…) pisaria/ as estrelas caídas num chão de nebulosas.» (vv. 11 e 12) - e
com a presença de vocábulos e de expressões que contribuem para a caracterização
deste mundo imaginado e com conotação positiva: «cantava» (v. 5), «nuvens» (v.
10), «céu» (v. 11), «estrelas» (v. 12), «flores vivas» (v. 20).
O
seguinte dístico encerra o poema «Na terra do nunca, com o sol a pôr-se/ quando
nasce o dia.», descrevendo uma situação impossível e contrária à realidade e reportando-se,
possivelmente, à entrada no mundo da fantasia.
ASTRONOMIA
Vou
buscar uma das estrelas que caiu
do céu, esta noite. Ficou presa a um
ramo de árvore, mas só ela brilha,
único fruto luminoso do verão passado.
Ponho-a num frasco, para não se
oxidar; e vejo-a apagar-se, contra
o vidro, à medida que o dia se
aproxima, e o mundo desperta da noite.
Não se pode guardar uma estrela. O
seu lugar é no meio de constelações
e nuvens, onde o sonho a protege.
Por isso, tirei a estrela do frasco e
meti-a no poema, onde voltou a brilhar,
no meio de palavras, de versos, de imagens.
Nuno
Júdice,
O Breve Sentimento do Eterno, Lisboa, Edições Nelson de Matos, 2008
No
soneto “Astronomia”, a evasão para a infância dá-se através de um mundo de fantasia
que é construído à volta do “eu” poético.
Apesar
de, no final do poema, conseguirmos compreender que estamos diante de uma
reflexão sobre arte poética, todo o poema nos faz lembrar brincadeiras de
criança, onde o impossível se torna possível: «Vou buscar uma das estrelas que
caiu/ do céu, esta noite. » (vv. 1 e 2). O sujeito poético guarda esta estrela
num «frasco», contudo, percebe que «Não se pode guardar uma estrela.» (v. 9),
pois ela pertence ao céu, «onde o sonho a protege.» (v. 11).
Constatando
este facto, o que faz o sujeito lírico com a estrela que apanhou? A resposta é
dada no terceto final, onde tudo se desvenda: «meti-a no poema, onde voltou a
brilhar, / no meio de palavras, de versos, de imagens.».
De
forma muito simples, como se de uma brincadeira se tratasse, Nuno Júdice revela-nos
como se produz um poema, num jogo de metáforas que aludem ao mundo do sonho.
Numa
entrevista para o programa “Ler +, Ler melhor” (RTP Informação, 2012. Programa
integrado no Plano Nacional de Leitura), Nuno Júdice afirmou, a propósito da
sua poesia, que esta era “no fundo (…) uma reflexão sobre o mundo, sobre a
vida, e sobre os homens, sobre todos nós.” De facto, os temas tratados em Nuno Júdice
são transversais à condição humana, o que os torna intemporais.
TORRE DE BABEL
Antes de Babel,
todos os tradutores estavam no desemprego.
Antes de Babel,
a indústria dos dicionários estava falida.
Antes de Babel,
não havia Cervantes, nem Goethe, nem Alliance Française.
Antes de Babel,
a tradução simultânea estava entregue a papagaios.
Antes de Babel,
não havia: «Tens muito jeito para línguas.»
Antes de Babel,
até a serpente assobiava na língua de Eva.
Depois de Babel,
é que ninguém se entende.
Depois de Babel,
só o que os olhos dizem é o mesmo em todas as línguas.
Nuno Júdice, Guia de
Conceitos Básicos, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2010
Em
“Torre de Babel”, Nuno Júdice abre-nos uma janela de reflexão para a nossa vida
em sociedade. Ao longo de oito dísticos, é-nos descrito o mundo antes de se ter
construído a torre bíblica: «todos os tradutores estavam no desemprego», «a
indústria de dicionários estava falida», «as escolas de línguas estavam
fechadas», (…). Júdice parece entrar numa paródia, onde a descrição do antes
nos permite caracterizar o presente.
No
final do poema o poeta dá-nos o que faltava para o compreendermos na totalidade,
descreve-nos, em dois dísticos, o que aconteceu «Depois de Babel»: «ninguém se
entende» e «só o que os olhos dizem é o mesmo em todas as línguas». O poema
permite uma discussão acerca da nossa sociedade contemporânea, refletindo acerca
de valores e prioridades, levantando, ainda, questões éticas. Permite-nos uma reflexão,
ainda, a respeito da dicotomia “ser” vs “parecer”, uma vez que os olhos
nos são apresentados, no último verso, como o reflexo da realidade, a linguagem
que fala a verdade.
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Justin Mulder |
ANUNCIAÇÃO
Esperas que o
anjo pouse, e te abrace
com o seu tédio de asas. Entregas-lhe
os teus lábios abertos como a flor
saciada de água. Abres-lhe o teu corpo,
para que ele
pouse no copo dos teus
seios, e beba o licor da primavera.
«Quem és tu?» perguntas-lhe, «anjo
ou demónio?» E não te responde;
segura-te a
mão; puxa-te para o
canto. Vais atrás dele, sem saber se
há regresso. Pedes-lhe que não olhe
para trás, que
se esqueça do mundo.
E ambos se afastam, sem dar resposta,
como tivessem decidido, e o soubessem.
Nuno
Júdice,
O Breve Sentimento do Eterno, Lisboa, Edições Nelson de Matos, 2008
No
soneto “Anunciação”, Júdice remete-nos, inevitavelmente, para a dicotomia romântica
“mulher-anjo” - “mulher-demónio”, que tanta tinta fez correr. O exagero das emoções
e o tom confessional tão típicos da poesia romântica agradam ao público mais jovem,
pois estamos perante uma fase de desenvolvimento de alguma hiperbolização.
O
sujeito poético descreve a presença de um «anjo» que se aproxima de alguém, a
quem esse alguém entrega os seus lábios «abertos como a flor/ saciada de água»
(vv. 3 e 4) e, posteriormente, todo o seu corpo.
Na
segunda quadra, é questionada a identidade deste «anjo»: «’Quem és tu?’ perguntas-lhe,
‘anjo/ ou demónio?’», não havendo qualquer resposta por parte deste interveniente
misterioso. O «anjo» apodera-se deste ser (apresentado vulnerável perante esta
figura soberba) e afastam-se, «…sem dar resposta./ Como tivessem decidido, e o soubessem.».
O poema
retrata, na perfeição, a entrega sem limites e sem hesitações de dois seres que
se amam. Não pensam nas consequências, esquecem o mundo circundante - «Pedes-lhe
que não olhe/ para trás, que se esqueça do mundo» (vv. 11 e 12) – e vivem inteiramente
um para o outro. Não é este o mundo em que mergulhamos quando a palavra de
ordem é “paixão”, tão típica dos amores adolescentes?
AUSÊNCIA
Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
Ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
Magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
Por isso, de deixar alguns sinais — um peso
Nos olhos, no lugar da tua imagem, e
Um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
Tivessem roubado o tacto. São estas as formas
Do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
As coisas simples também podem ser complicadas,
Quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz a tua memória; e a
Realidade aproxima-me de ti, agora que
Os dias correm mais depressa, e as palavras
Ficam presas numa refração de instantes,
Quando a tua voz me chama de dentro de
Mim — e me faz responder-te uma coisa simples,
Como dizer que a tua ausência me dói.
Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2001
O poema
“Ausência” é, também, um poema de amor (se podemos assim o classificar, de
forma simples e concreta). Conquanto, como o próprio título deixa antever, os
sentimentos aqui ilustrados advêm da ausência de um “tu” poético, dando o amor
lugar a sofrimento.
O
sujeito poético, perante a ausência do “tu”, apercebe-se da diferença entre sonho
e realidade, pertencendo o “tu” da enunciação a um passado que agora só se realiza
em sonho, diante, no entanto, da consciência da realidade: «… quando nos damos
conta da/ diferença entre sonho e a realidade. Porém, / é o sonho que me traz a
tua memória; e a realidade aproxima-me de ti, agora que/ os dias correm mais
depressa» (vv. 11 e 12).
O poema
termina exatamente como começou: «dizer que a tua ausência me dói». De forma
muito assertiva, o “eu” poético afirma que tem um objetivo principal: «Quero dizer-te
uma coisa simples: a tua/ ausência dói-me» (vv. 1 e 2). É «simples» de compreender
e «simples» de anunciar, mas complexo em todo o sentimento que desencadeia,
como é a própria definição do amor (Recorde-se, a este propósito, a tentativa
de definição do Amor no soneto camoniano “Amor é fogo que arde sem se ver”.)
“Ouvimos”,
na epopeia camoniana, os apelos de Inês de Castro e a declaração do seu amor
por D. Pedro e pelos filhos de ambos; “ouvimos” as reflexões do poeta e deixamo-nos
comover por esta história de amor, tomando o partido de D. Pedro aquando da vingança
contra os «terríficos algozes». Júdice não nos apresenta o D. Pedro justiceiro,
apresenta-nos o D. Pedro apaixonado, investe o “Cru” da sensibilidade que o levou
a tomar determinadas atitudes. É este D. Pedro que existe em cada homem apaixonado,
pelo que o poema não se reporta apenas ao tempo histórico que evoca, investe-se
de uma intemporalidade perfeita, resumindo o amor àquilo que é, na sua essência,
independentemente dos contextos socioculturais: «Mas é isto o amor: / ver-te mesmo
quando te não vejo, ouvir a tua/ voz que abre as fontes de todos os rios» (vv.
9 – 11).
A parte
final do poema é, nitidamente, uma declaração de amor (do “eu” para o “tu”, de
forma direta, e do “tu” para o “eu” de forma indireta), revestindo-se de universalidade
e transpondo por completo o tempo histórico evocado pelo título da composição:
«Tu: / a primavera luminosa da minha expetativa, / a mais certa certeza de que
gosto de ti, como / gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.».