Contigo, na nossa terra
quisera eu bailar
contigo, eu trocara a jura
de a gente se amar
contigo, na nossa terra
quisera eu viver
mas vivo numa outra terra
a trabalhar
e a ganhar
p´ra viver
e a viver
p´ra ganhar
Eu sei que na minha terra
há gente a lutar
quisera eu estar lá com eles
sem ter que emigrar
mas tanto atirei semente
sem ter colher
que pedi um passaporte
para emigrar
e ganhar
p´ra viver
e viver
p´ra ganhar
Eu fui lavar saudades ao Tejo
a aguinha doce deu-me logo um beijo
eu fui lavar saudades ao Douro
abraços desses valem mais do que ouro
Aqui em terra distante
vivo mal e bem
sinto saudades imensas
de quem me quer bem
tenho um salário melhor
não há que duvidar
mas era na minha terra
que eu queria estar
e ganhar
p´ra viver
e não ter
que emigrar
Haja um dia que vem vindo
quem dera que já
em que eu faça uma viagem
de cá para lá
e que o trabalho me renda
sem ter de emigrar
que eu viva na minha terra
a trabalhar
e ganhar
p´ra viver
e não ter
que emigrar
Eu fui lavar saudades ao Tejo
a aguinha doce deu-me logo um beijo
eu fui lavar saudades ao Douro
abraços desses valem mais do que ouro
Letra,
música e interpretação de Sérgio Godinho, do álbumCampolide.
Editora Orfeu, 1979
QUESTIONÁRIO
1. Estabelece a correspondência entre cada uma das
estrofes indicadas na coluna da esquerda e o seu assunto, na coluna da direita:
1.ª estrofe
2.ª estrofe
4.ª estrofe
5.ª estrofe
A. O sujeito poético descreve a sua vida atual.
B. O sujeito poético manifesta um desejo para o
futuro.
C. O sujeito poético revela um desejo e explica por que
razão não pode ser realizado.
D. O sujeito poético explica a causa da sua situação
atual.
2. De acordo com a leitura da letra da canção “Vivo numa outra terra”, de
Sérgio Godinho, classifica cada afirmação que se segue como verdadeira ou
falsa. Procede à correção das afirmações falsas.
2.1.O título sugere o tema da emigração.
2.2.O tema do poema é a vida em terra estrangeira e o
desejo de retornar à terra natal.
2.3.O sujeito poético está dividido entre viver mal
(devido ao baixo salário) e bem (por estar quase na sua terra).
2.4.Na quinta estrofe, o sujeito poético expressa o desejo
de ir e voltar da sua terra natal.
2.5.O sentimento dominante no poema é o desejo de
enriquecer, expresso principalmente na terceira, quarta e sexta estrofes.
2.6.O tempo verbal predominante na quinta estrofe é o
pretérito perfeito.
2.7.Há três refrões no poema: os quatro versos finais das
estrofes 1 e 2; as estrofes 3 e 6; os quatro versos finais das estrofes 4 e 5.
2.8.Conclui-se que o sujeito poético está satisfeito com a
sua vida na terra estrangeira.
RESPOSTAS
1.Chave de correção: C-D-A-B
1.ª estrofe: O sujeito poético
revela um desejo e explica por que razão não pode ser realizado.
2.ª estrofe: O sujeito poético
explica a causa da sua situação atual.
4.ª estrofe: O sujeito poético
descreve a sua vida atual.
5.ª estrofe: O sujeito poético
manifesta um desejo para o futuro.
2.1. Verdadeiro.
2.2. Verdadeiro.
2.3. Falso. O sujeito poético está dividido entre viver mal
(por estar longe da sua terra) e bem (devido ao salário melhor).
2.4. Falso. Na quinta estrofe, o sujeito poético expressa o
desejo de um dia poder voltar à sua terra natal e trabalhar lá sem precisar
emigrar.
2.5. Falso. O sentimento dominante no poema é a saudade,
expressa principalmente na terceira, quarta e sexta estrofes.
2.6. Falso.O tempo verbal predominante na quinta estrofe é
o presente do conjuntivo, que é usado para expressar um desejo ou vontade.
2.7. Verdadeiro.
2.8. Falso. O sujeito poético não está totalmente
satisfeito com a sua vida na terra estrangeira, pois sente saudades imensas da
sua terra natal e de quem lhe quer bem.
(Adaptado de: Diálogos 7, Fernanda Costa e Luísa Mendonça. Porto Editora, 2011)
CAMPOLIDE (1979), Sérgio Godinho
A imagem
é um retrato quase banal: um homem e uma caixa de viola numa estação de
comboios, um relógio onde ainda não são duas horas, um cartaz na parede com o
mesmo homem e a mesma viola, gente normal em volta. O homem da viola é Sérgio
Godinho, a estação, lê-se no painel de azulejo sobre a porta, é Campolide. Há
35 anos, o homem, a viola e a estação tornaram-se num disco com dez canções sem
tempo.
«Campolide»
é o sexto álbum de originais de Sérgio Godinho, quarto gravado e publicado após
o 25 de Abril e o regresso a Portugal do compositor. É, também, o segundo e
último que grava para a etiqueta Orfeu, de Arnaldo Trindade.
«Campolide»,
porém, não é sequer o título de qualquer das canções deste álbum. Chama-se
assim, apenas, porque foi gravado nos estúdios localizados no 103-C da Rua de
Campolide, ao tempo propriedade da empresa de Arnaldo Trindade e conhecidos
como «estúdios de Campolide», onde gravaram algumas das mais importantes
figuras da música portuguesa.
Foi aqui,
por exemplo, que em 1969 Adriano Correia de Oliveira registou o histórico «O
Canto e As Armas», sobre poemas de Manuel Alegre. Adriano cumpria o serviço
militar, tal como Rui Pato, que o acompanhou à viola: «O disco foi gravado
durante duas noites de patrulha da polícia militar do alferes Adriano, com ele
fardado e com a pistola, o capacete e a braçadeira poisados em cima do piano, e
o jipe a passear por Lisboa, com a cumplicidade de certos militares amigos»,
contaria Rui Pato, muitos anos depois.
Adriano
foi apenas uma das vozes que se fizeram ouvir nos estúdios de Campolide, que
durante anos estiveram para Lisboa um pouco como os estúdios de Abbey Road para
a capital inglesa. De Zeca Afonso a Fausto Bordalo Dias, passando por Carlos
Mendes, Maria da Fé ou Tony de Matos, praticamente não houve nome grande da
música portuguesa que por ali não tenha passado. Não admira, pois, que acabasse
por ser nome próprio de um disco. Este, de Sérgio Godinho.
«Campolide»,
publicado em 1979, tem uma ficha técnica de luxo: Carlos Zíngaro, Pedro
Caldeira Cabral, Pedro Osório, Guilherme Inês, Luís Caldeira ou José Eduardo
são alguns dos participantes, a que se juntam as colaborações especiais de
Adriano Correia de Oliveira, Fausto, José Afonso e Vitorino. Dos dez temas
desse disco, destacam-se “Arranja-me um Emprego”, “Cuidado com as Imitações”,
“Espectáculo” ou “Lá em Baixo”. Ou “Quatro Quadras Soltas”, o único registo que
reúne de uma assentada Sérgio, Fausto, Adriano e Zeca.
De resto,
não é gratuito dizer que a vida musical de Sérgio Godinho está, desde o início
ligada a Campolide: foi para a Sassetti, outra editora histórica, sedeada na
Avenida Conselheiro Fernando de Sousa, que gravou dois discos a partir do
exílio («Os Sobreviventes», em 1971, e «Pré-Histórias», em 72) e os dois
primeiros após a revolução («À Queima-Roupa», em 74, e «De Pequenino se Torce o
Destino», em 76) . Depois, já na Orfeu, é nos estúdios de Campolide que grava o
aclamado «Pano-Cru», de que fazem parte algumas das suas canções mais emblemáticas,
como “Balada da Rita”, “A Vida é Feita de Pequenos Nadas”, “Feiticeira” e,
principalmente, “O Primeiro Dia”. E, finalmente, «Campolide».
Criados
nos anos 60, os estúdios de Campolide viriam mais tarde a mudar de mãos, mas
não de rumo. Como Estúdios Rádio Triunfo, depois Namouche, e finalmente
Xangrilá, o 103-C da Rua de Campolide continuou até há pouco tempo a acolher
vozes e personagens importantes da música portuguesa. Agora, restam as memórias
de algumas gravações que fizeram história. Como o disco de Sérgio Godinho.
Aquilo tornara-se um vício. Ele ouvia um telefone a
tocar e logo estendia o braço e levantava o auscultador.
– E se fosse para mim?
Os amigos faziam troça:
– No consultório do teu dentista?
Uma noite estava sozinho, no Rossio, à espera de um
táxi, quando o telefone tocou numa cabina ao lado. Era no fim da noite e
chovia: uma água mole, desesperançada, tão leve que parecia emergir do próprio
chão. Ruben enfiou as mãos nos bolsos do casaco.
– É claro que não vou atender – disse alto. – Não
pode ser para mim. Se atender este telefone é porque estou a enlouquecer.
O telefone voltou a tocar. Não chegou a tocar cinco
vezes. Ele correu para a cabina e atendeu.
– Está?
Estava muito sol do outro lado. Era, tinha de ser,
uma tarde de sol.
– Posso falar com o Gustavo?
A voz dela iluminou a cabina. Ruben pensou em dizer
que era o Gustavo. Estava ali, àquela hora absurda, abandonado como um náufrago
na mais triste noite do mundo. Tinha direito de ser o Gustavo (fosse ele quem
fosse).
– Você não vai acreditar, mas a sua chamada foi
parar a uma cabina telefónica.
Ela riu-se. Meus Deus – pensou Ruben – era como
beber sol pelos ouvidos.
– Não brinques! És tu, Gustavo, não és?…
Sim ele tinha o direito de ser o Gustavo:
– Infelizmente não. Você ligou para uma cabina
telefónica, no Rossio, eu estava à espera de um táxi e atendi.
Quase acrescentou: "pensei que pudesse ser para
mim". Felizmente não disse nada. Ela voltou a rir:
– Tenho a sensação de que esta chamada vai ficar-me
cara. Sabe onde estou?
Pulau Penang
Estava em Pulau Penang, na Malásia, e dali, do seu
quarto, num hotel chamado Paradise, podia ver todo o esplendor do mar.
– Nunca vi nada com esta cor – sussurrou – só espero
que Deus me dê a alegria de morrer no mar.
Ele ficou em silêncio. Aquilo parecia a letra de um
samba. Ela começou a chorar:
– Desculpe que vergonha… Nem sequer sei como se
chama.
Ruben apresentou-se: – Ruben, 34 anos, trabalho em
publicidade.
Pediu-lhe o número de telefone e ligou utilizando o
cartão de crédito. Aquela chamada ficou-lhe cara. Casaram oito meses depois.
Ele diz a toda a gente que foi o destino. Ela, pelo sim pelo não, proibiu-o de
atender telefones.
José Eduardo Agualusa, A substância do amor e
outras crónicas. 3.ª edição, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2009, pp.
53-54
***
Escreve um pequeno comentário,
entre 80 e 100 palavras, sobre o sentido global do texto de José Eduardo
Agualusa, atentando na caracterização de Ruben, nas atitudes perante o
telefonema oriundo de Pulau Penang e na importância do destino na vida das pessoas.
(Proposta de escrita por Carla Marques e Inês Silva, emContos & Recontos 7.
Lisboa, ASA, 2013, p. 152)
Sugestão de resposta:
O sentido global do texto é mostrar
como o destino pode intervir na vida das pessoas, de forma surpreendente e
maravilhosa.
Ruben é uma personagem solitária, que
tem o hábito de atender telefones alheios, na esperança de encontrar alguém que
lhe fale.
As atitudes perante o telefonema de
Pulau Penang são de curiosidade, encantamento e coragem. Ruben decide
arriscar-se a conhecer a mulher que lhe ligou por engano, e acaba por se
apaixonar e casar com ela.
O destino é a força que une as duas
personagens, que vivem em lugares tão distantes e diferentes.
O texto é uma celebração do amor e da
magia do acaso.
Era uma
vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. Se cometera algum crime, se
pagava culpas de antepassados, ou se apenas se retirara por indiferença ou
vergonha – não se sabe. Talvez um pouco de tudo isto, tão certo é que do
belo e do feio, da verdade e da mentira, do que se confessa e do que se
esconde, fazemos todos nós a nossa casual existência. Vivia o homem fora dos
muros da cidade, e dessa segregação deliberada ou imposta acabou por fazer um
pequeno título de glória. Mas não podia evitar (isso não podia) que nos olhos
lhe pairasse a névoa melancólica que envolve todo o ser desterrado.
Algumas
vezes tentou entrar. Fê-lo não por um desejo irreprimível, nem sequer por
cansaço da situação, mas por mero instinto de mudança ou desconforto inconsciente.
Escolheu sempre as portas erradas, se portas havia. E se lhe
aconteceu julgar que entrara na cidade, talvez sim, mas era como se a par da
cidade real houvesse imagens dela, inconsistentes como a sombra que nos olhos
se tornava mais e mais densa. E quando essas imagens se desvaneciam, como
o nevoeiro que das águas se desprende ao toque luminoso do sol, era o deserto
que o rodeava, e ao longe, brancos e altos, com árvores plantadas nas torres e
jardins suspensos nas varandas, os muros da cidade brilhavam outra vez
inacessíveis.
De dentro
vinham rumores de festa. Assim lho dizia, mais do que os sentidos, a
imaginação. Rumores de vida seriam, pelo menos. Não a morte solitária que é a
contemplação obstinada da própria sombra. Não o desespero surdo da palavra
definitiva que se escapa no momento em que seria, melhor que uma palavra, uma
chave. E então o homem rodeava as longas muralhas, tateando, à procura da
porta que obscuramente lhe estaria prometida.
Porque o
homem acreditava na predestinação. Estar fora da cidade (se disso tinha real
consciência) era para ele uma situação acidental e provisória. Um dia, no dia
exato, nem antes, nem depois, entraria na cidade. Melhor dizendo: entraria em
qualquer parte, que a isto se resumia o seu esperar. Que a névoa da melancolia
se tornasse noite, seria um mal necessário, mas também provisório, porque o dia
predestinado traria uma explicação. Ou nem isso, sequer. Um fim, um simples
fim. Uma abdicação já serviria.
O homem
não sabia que as cidades que se rodeiam de altos muros (ainda que brancos e com
árvores) não se tomam sem luta. Não sabia o homem que antes da batalha pela
conquista da cidade outro combate teria de travar e vencer. E que nesta
primeira luta teria de lutar consigo mesmo. Ninguém sabe nada de si antes da ação
em que tiver de empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto ele
não se move. Não conhecemos o amor antes do amor.
Veio a
batalha. Como nos poemas de Homero, também os deuses entraram nela. Combateram
a favor e contra, algumas vezes uns contra os outros. O homem que lutava
para viver dentro dos muros da cidade cruzou espada e palavras com os deuses
que estavam do seu lado. Feriu e foi ferido. E a luta durou longos e
longos dias, semanas, meses, sem tréguas nem repouso, ora junto às muralhas,
ora tão longe delas que nem a cidade se via, nem se sabia bem já que prémio
estaria no fim do combate. Foi outra forma de desespero.
Até que
um dia o terreno da luta ficou livre e desimpedido, como um estuário onde as
águas descansam. Sangrando, o homem e o deus que lhe ficara olharam
de frente as portas, abertas de par em par. Havia um grande silêncio na cidade.
Ainda amedrontado, o homem avançou. A seu lado, o deus. Entraram – e
foi só depois que entraram que a cidade se tornou habitada.
Era uma
vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. E a cidade era ele
próprio. Cidade de José se lhe quisermos dar um nome.
Deste
Mundo e do Outro reúne, em 1971, através da Editorial Arcádia, 61
crónicas que haviam sido publicadas entre 1968 e 1969 no jornal A Capital.
Nos anos
90, José Saramago, na conferência intitulada “A crónica como aprendizagem: uma
experiência pessoal”, afirma: “Vários pontos, nessas crónicas, poderão ser
retidos se se quiser caracterizar, no seu autor, tanto uma forma de escrever
como um modo de sentir: em primeiro lugar, certa coincidência de atitude entre
a crónica e o poema lírico (articulação com o momento presente, brevidade do
texto, possibilidade de captação das ressonâncias evocativas do seu sentido);
em segundo lugar, a prática constante de uma prosa medida, susceptível de criar
no escritor um treino dos recursos estilísticos em função da densidade e da economia
expressivas; em terceiro lugar, o hábito de colocar em conjunção de interesses
a dinâmica do tempo que se vive, a sensibilidade do sujeito que o vive e as
potencialidades verbais susceptíveis de definirem essa mesma expressão.”
Do livro Deste
Mundo e do Outro, selecionámos a primeira crónica (possivelmente na esperança
de ter sido esta a 1.ª crónica escrita pelo autor, mas sem dados que nos permitam
tal afirmação). “A cidade”, é o seu nome. Uma qualquer cidade, uma crónica que
começa como uma história para crianças, com “Era uma vez…”, levando-nos pois, por
ora, para um universo ficcional. Esta cidade sem nome (para já), é rodeada por muros
e, fora deles, vive um homem. Não se sabe porquê, adiantando o autor algumas hipóteses
e admitindo, desde logo, que “tão certo é que do belo e do feio, da verdade e da
mentira, do que se confessa e do que se esconde, fazemos todos nós a nossa
casual existência.” Uma primeira lição, um primeiro alerta para uma ética que
paira sobre os que vivem dentro dos muros da cidade e que lhes impede uma visão
clara. Este homem, que é o protagonista da história, não consegue, ele próprio,
discernir acerca do que é real ou não, tantas são as imagens ensombradas que se
adensam ao seu redor sempre que tenta entrar na cidade/no real, afinal tão
longe do seu alcance, tão longe do deserto em que se encontra, tão inacessível.
Este homem imagina uma cidade em festa, uma cidade plena de vida e vai
“tacteando, à procura da porta que obscuramente lhe estaria prometida.” Ele
acredita estar predestinado a entrar, “Um dia, no dia exacto, nem antes, nem
depois….”, como acredita que, nesse dia, lhe chegará a explicação de tudo. Mas
o homem não sabe
…que as
cidades que se rodeiam de altos muros (ainda que brancos e com
árvores) não se tomam sem luta. Não sabia o homem que antes da batalha pela
conquista da cidade outro combate teria de travar e vencer. E que nesta
primeira luta teria de lutar consigo mesmo. Ninguém sabe nada de si antes da acção
em que tiver de empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto
ele não se move. Não conhecemos o amor antes do amor. (sublinhado nosso).
Segundo
alerta do autor: o primeiro combate do homem deve ser consigo próprio, de nada
lhe adiantando querer forçar uma batalha, querer entrar num real que lhe é
exterior, quando não se empenhou ainda o suficiente na acção que é o
conhecer-se a si mesmo. Está o autor a dirigir-se ao leitor ou a si próprio?
Cremos que a ambos. A advertência apela, sobretudo, ao cuidado a ter com “as
cidades que se rodeiam de altos muros (ainda que brancos e com árvores)”, ou
seja, cuidado com o que nos é dado como “natural” e verdadeiro.
Depois de
uma batalha em que “Como nos poemas de Homero, também os deuses entraram…”, as
portas estão, finalmente, “abertas de par em par” e paira “um grande silêncio
na cidade.” Homem e deus entram na cidade, “e foi só depois que entraram que a
cidade se tornou habitada.”
Era uma
vez um homem que vivia fora dos muros da cidade. E a cidade era ele próprio. Cidade
de José se lhe quisermos dar um nome.
Assim
termina a crónica. “Cidade de José…”, cidade de José Saramago, dizemos nós, a cidade
na qual o autor entra após uma batalha consigo próprio, a batalha do conhecimento
interior, a batalha a que incita os outros homens, se assim quiserem derrubar
os muros que não lhes deixam ver dentro de si. Numa palavra: a cidade da consciência.
CARREIRO, José. “A cidade - crónica de José Saramago”. Portugal,
Folha
de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 20-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/a-cidade-cronica-de-jose-saramago.html
João Cutileiro - Sophia em Lagos: Anos 60 [em linha]. Sophia de
Mello Breyner Andresen no seu tempo. Momentos e Documentos. Disponível em:
http://purl.pt/19841/1/galeria/arte-fotografia/joao-cutileiro/foto1.html
Mar
de Sophia - "Metade da minha alma é feita de maresia"
O Mar é transversal à vida e obra
da poeta: a Praia da Granja subentende os primeiros anos da sua vida e
adolescência; o Algarve a vida adulta e a passagem do Mar revolto do norte para
o soalheiro sul. A Grécia, mais do que uma idade, representa o encontro com um
ideal de beleza que percorre toda sua poesia, porque o gosto pela Grécia parte
do seu gosto pelo Mar, levando-a a apaixonar-se pela cultura helénica muito
antes de visitar a Grécia.
Roteiro
literário sobre Sophia de Mello Breyner Andresen
(Museu
Digital da Universidade do Porto)
Partindo da obra da autora foi
desenvolvido um roteiro que tem o Mar como fio condutor da narrativa. A partir
dos textos da poetisa o utilizador é orientado através de um conjunto de pontos
georreferenciados que, mais do que lhe mostrarem a importância do Mar na vida
de Sophia, procuram dar a conhecer o Mar de Sophia enquanto algo abstrato,
entendido como horizonte metafisico e emocional. Desta forma pretende mostrar a
relação que a autora desenvolveu com os espaços a partir dos seus textos.
(A) Prólogo
Vanessa Reis, no meio do Atlântico, 2019
INICIAL
O mar azul e branco e as
luzidias
Pedras — O arfado espaço
Onde o que está lavado se
relava
Para o rito do espanto e
do começo
Onde sou a mim mesma
devolvida
Em sal espuma e concha
regressada
À praia inicial da minha
vida
Sophia de Mello Breyner Andresen, Dual,
1972
(B) Mar do Norte
Walter
Rademacher. Vista aérea da ilha de Fohr. 2013. Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/File:Aerial_photograph_400D_2013_09_29_9551.JPG
[consultado a 04/09/2019]
Se Jann Hinrich Andresen não tivesse respondido ao
apelo do Mar, a cultura portuguesa não teria conhecido Sophia de Mello Breyner.
A relação da poeta com o Mar acontece mesmo antes desta nascer. Partindo de
Oevenum, nas Ilhas Frísias, com vontade de navegar rumo a sul, Jann Hinrich
desembarcou no Porto, onde enriqueceu com o comércio do vinho do Porto.
Para a poeta o Mar será também um elemento central da
sua vida, e por consequência da sua obra. Mas, ao contrário do bisavô, para
quem o Mar se transformou num local de eterna saudade, Sophia verá no Mar
felicidade e plenitude, um lugar de renovação física e espiritual. Aprendendo
no Mar o gosto pela forma bela, pela liberdade, pela poesia.
***
A
SAGA
-Avô – disse Joana – porque que estás sempre a
olhar para o mar?
-Ah! – respondeu Hans. – Porque o mar é o
caminho para a minha casa.
(…)
-Quando eu morrer – pediu Hans – mandem
construir um navio em cima da minha sepultura.
-Um navio? – murmurou o filho mais velho. – Um
navio como?
-Naufragado – disse Hans. E até morrer não
falou mais.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Histórias
da Terra e do Mar,1984
Túmulo
de Jann Henrich, bisavô de Sophia Andresen (Vanessa
Reis, 2019)
Como é narrado em A Saga, após a morte de Jann
Henrich, a sua vontade é cumprida, e ainda hoje podemos visitar o peculiar
jazigo no cemitério de Agramonte, no Porto. No conto A Saga, Sophia evoca a
memória deste antepassado através da personagem de Hans.
A
escultura foi produzida por António Teixeira Lopes, tendo como título
"Alegorias do Comércio, Fortuna e Navegação".
(C) Um Lugar Desmedidamente Grande
Jardim
Botânico do Porto - Entrada
da Quinta do Campo Alegre. Disponível em:
https://www.infoporto.pt/pt/jardim-botanico-do-porto/
Hoje, ao percorrer os Jardins da antiga Casa Andresen,
é-nos difícil imaginar o marulhar do Mar ao longe que Sophia descreve. Mas,
quando o seu avô adquiriu a Quinta no final do século XIX, os seus terrenos
chegavam ao Mar. Para Sophia a Quinta do Campo Alegre surgirá sempre associada
à sua infância, onde tudo era “desmedidamente” grande, e ao começo da vida.
Este lugar leva-a a acreditar na imanência da poesia e na crença de que só
teríamos de estar muito atentos para a conseguir ouvir. É aqui que escreve os
primeiros textos, imortalizando o local como sendo uma amálgama de cheiros,
cores e texturas.
O Jardim foi criado em 1951 pela Universidade do Porto
e instalado na Quinta do Campo Alegre.
Esta
quinta tinha pertencido à Ordem de Cristo, sendo adquirida em 1802 por João
Salabert passando a ser conhecida como Quinta Grande do Salabert. João da Silva
Monteiro adquiriu-a em 1875 e iniciou a construção da casa e do jardim.
Posteriormente, em 1895, foi comprada por João Henrique Andresen Júnior que
continuou a construção da casa e do jardim. Esta permaneceu na posse da sua
família até 1949, data em foi vendida ao Estado Português, passando depois para
a Universidade.
Busto
do escritor Ruben A., por Barata Feyo, no Jardim Botânico do Porto, Portugal. Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jardim_Bot%C3%A2nico_do_Porto
CARTA A RUBEN A.
Que tenhas morrido é
ainda uma notícia
Desencontrada e longínqua
e não a entendo bem
Quando — pela última vez
— bateste à porta da casa e te sentaste à mesa
Trazias contigo como
sempre alvoroço e início
Tudo se passou em planos
e projetos
E ninguém poderia pensar
em despedida
Mas sempre trouxeste
contigo o desconexo
De um viver que nos funda
e nos renega
— Poderei procurar o
reencontro verso a verso
E buscar — como oferta —
a infância antiga
A casa enorme vermelha e
desmedida
Com seus átrios de pasmo
e ressonância
O mundo dos adultos nos
cercava
E dos jardins subia a
transbordância
De rododendros dálias e
camélias
De frutos roseirais
musgos e tílias
As tílias eram como
catedrais
Percorridas por brisas
vagabundas
As rosas eram vermelhas e
profundas
E o mar quebrava ao longe
entre os pinhais
Morangos e muguet e
cerejeiras
Enormes ramos batendo nas
janelas
Havia o vaguear tardes
inteiras
E a mão roçando pelas
folhas de heras
Havia o ar brilhante e
perfumado
Saturado de apelos e de
esperas
Desgarrada era a voz das
primaveras
Buscarei como oferta a
infância antiga
Que mesmo tão distante e
tão perdida
Guarda em si a semente
que renasce
Junho de 1976
Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas, 1977
Sophia ao
colo de Laura Guimarães, sua ama. Porto, dezembro 1919. Disponível em: https://purl.pt/19841/1/1920/1920-3.html
Sophia de Mello Breyner nasce a 6 de novembro de 1919
no Porto, na Rua António Cardoso, perto da Quinta do Campo Alegre. Passou toda
a infância e juventude no norte. Muda-se para a capital quando foi frequentar o
curso de Filologia Clássica para a Universidade de Lisboa.
(D) "A praia da Granja é a praia inicial da minha vida"
Praia
da Granja (Vanessa
Reis, 2019)
“A Granja foi assassinada pela câmara de Gaia”,
afirmou Sophia, durante uma entrevista no início da década de 90, referindo-se
ao que chamava de “arquitetura dita moderna” e aos maus acessos à praia.
Atualmente muito menos frequentada, a Praia da Granja foi um lugar privilegiado
para a aristocracia portuguesa que aí se instalava para passar os verões e
receber os benefícios do iodo. Tradição que levou Sophia ao encontro deste
lugar. É aqui que tem o primeiro contacto com o Mar, chamando à Granja “paraíso
terrestre da minha infância e adolescência”.Foi aqui que escreveu muitos poemas, e se inspirou para o conto A Menina
do Mar, baseada numa história que a mãe lhe costumava contar.
ERA
UMA VEZ UMA PRAIA ATLÂNTICA
Do Atlântico frio mesmo
quando agitado saíamos quase sempre gelados e felizes, a bater os dentes, com a
ponta dos dedos branca, os beiços roxos. (…) Havia em tudo isto um conforto
rudimentar e fresco, um cheiro a sal, a ervas e a madeira e uma beleza feita de
ainda não haver plástico e de o contraplacado, o cromado e outras invenções
serem reservadas para usos diferentes. (…) Eu estava sentada à sombra do toldo
ao lado da minha mãe. As ondas inchavam o seu dorso e desabavam sobre a praia.
A areia molhada luzia. A vida era celestemente terrestre. Onde estávamos,
cheirava a maresia e a jardim. O perfume da felicidade invadia o mundo.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Era uma
vez uma praia Atlântica, 1997
Méditerranée, 1980, Paris, Éditions
de la Différence, edição especial com duas serigrafias de Vieira da Silva,
Paris, tradução de Joaquim Vital
A casa da Granja é a que é mencionada no conto “A
menina do Mar”, “A Casa Branca” e no poema “Musa”. Lugar predileto dos
primeiros verões de Sophia. Votada ao abandono é difícil de a localizar.
Maria Helena Vieira da Silva, artista plástica,
realizou um conjunto de serigrafias para uma edição francesa do livro Mediterraneé
de Sophia, sua amiga. Foram baseadas numa descrição feita no conto A Casa
Branca, texto inspirado pela Granja. (Sophia e a palavra. Noesis. nº 26 (1993)
pp. 50-51)
CASA BRANCA
Casa branca em frente ao
mar enorme,
Com o teu jardim de areia
e flores marinhas
E o teu silêncio intacto
em que dorme
O milagre das coisas que
eram minhas.
… … … … … … … … … … … … …
… …
A ti eu voltarei após o
incerto
Calor de tantos gestos
recebidos
Passados os tumultos e o
deserto
Beijados os fantasmas,
percorridos
Os murmúrios da terra
indefinida.
Em ti renascerei num
mundo meu
E a redenção virá nas
tuas linhas
Onde nenhuma coisa se
perdeu
Do milagre das coisas que
eram minhas.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Poesia, 1944
(E) "O Algarve era uma maravilha"
Ponta
de Sagres, Algarve (Vanessa
Reis, 2019)
É palpável a tristeza e revolta de Sophia em relação
ao desenvolvimento do Algarve nos fins do século XX. “Agora constrói-se demais
para o turista e de menos para as pessoas. É uma terra onde às vezes não pode
viver quem lá vive. Está tudo desfigurado, tudo esventrado.”
Visitando pela primeira vez em 1961, Sophia toma
contacto com um Algarve ainda tradicional. As infraestruturas turísticas eram
inexistentes e a jornada difícil. Desde o primeiro momento que a escritora se
maravilhou com a pureza e simplicidade da região e seus habitantes.
Ao descobrir o Algarve a sua relação com o Mar
altera-se, passando de um Mar frio e tempestuoso para um de claridade e
tranquilidade.
ESTAÇÕES DO ANO
Primeiro vem Janeiro
Suas longínquas metas
São Julho e são Agosto
Luz de sal e de setas
A praia onde o vento
Desfralda as barracas
E vira os guarda-sóis
Ficou na infância antiga
Cuja memória passa
Pela rua à tarde
Como uma cantiga
O verão onde hoje moro
É mais duro e mais quente
Perdeu-se a frescura
Do verão adolescente
Aqui onde estou
Entre cal e sal
Sob o peso do sol
Nenhuma folha bole
Na manhã parada
E o mar é de metal
Como um peixe-espada
Sophia de Mello Breyner Andresen,O Nome das Coisas, 1977.
Embora, com o passar dos anos, Lagos tenha sofrido
alterações ainda é possível recriar os passos que Sophia indicou à sua
empregada, imortalizados no poema Caminho da Manhã.
Achando a cidade “meticulosamente limpa” e os seus
habitantes “honestos”, Lagos torna-se o principal local onde Sophia permaneceu
nas visitas ao Algarve. Inspiração de vários poemas, a escritora identifica-se
e encontra conforto, reconhecendo Lagos como um local onde a “aliança com as
coisas” não se perdeu nem foi corrompida, numa continuidade entre o físico e
metafísico, entre o natural e o humano.
CAMINHO DA MANHÃ
Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma
sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro
um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras
transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim
irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas
conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da
cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas
estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande
praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o
mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e
olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem
o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali
entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no
sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao
terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra
peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem
há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem
como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar.
Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os
polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se
tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma
mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem
tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de
meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de
ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um
ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra
figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e
de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e
enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois
desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí
verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e
comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra,
no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das
paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará
como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do
grande Deus invisível.
Sophia de Mello Breyner Andresen,Livro Sexto, 1962.
(G) A Praia das Grutas
Praia
Don'Ana (Vanessa Reis, 2019)
Sophia
na praia Dona Ana, com um pescador e o filho Xavier. Início dos anos 60.
Disponível em: https://museudigital.pt/pt/acesso/ficha/g/roteiro/17 [Consultado
a: 04/09/2019]
A Praia Don' Ana esteve na boca do mundo em 2013
quando foi considerada como uma das praias mais bonitas do mundo. Em 2015
voltou a estar no centro das atenções devido a uma polémica obra de aumento do
areal. Por este e outros motivos, torna-se difícil imaginar a praia tão
frequentada por Sophia de Mello Breyner.
Guiada pelo barqueiro José Machucho, o contacto com as
grutas próximas da praia tem um profundo impacto em Sophia. Vê nelas um
santuário, um lugar de particular proximidade com o sagrado. Irá fazer da sua
visita um ritual, declamando poesia no seu interior. O isolamento e o silêncio
são agora difíceis de imaginar. Os remos deram lugar ao motor, o solitário
barqueiro a dezenas de guias e turistas. Permanecem as rochas, o mar e os jogos
de luz.
AS
GRUTAS
O esplendor poisava solene
sobre o mar. E — entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é
talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido
— quase me cega a perfeição como um sol olhado de frente. Mas logo as águas
verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e
rápido dos peixes. Porém a beleza não é só solene mas também inumerável. De
forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande rascasso vermelho
passa em frente de mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a luz recorta
promontórios e rochedos. É tudo igual a um sonho extremamente lúcido e
acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras, porém é tão grande
o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na
superfície das águas lisas como um chão.
As imagens atravessam os
meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à almadilha
da qual os pescadores dizem ser apenas água.
Estarão as coisas
deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar? Ressoa a vaga
no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou redondo e doirado o quarto
de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do ar e do mar, no
alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar. Desertas
surgem as pequenas praias.
Um fio invisível de
deslumbrado espanto me guia de gruta em gruta. Eis o mar e a luz vistos por
dentro. Terror de penetrar na habitação secreta da beleza, terror de ver o que
nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais
interiores a mim do que o meu próprio pensamento. Deslizam os meus ombros
cercados de água e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura
do labirinto paira roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam céu e
terra. As anémonas rodeiam a grande sala de água onde os meus dedos tocam a
areia rosada do fundo. E abro bem os olhos no silêncio líquido e verde onde
rápidos, rápidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e desenham a
claridade dos espaços matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água.
Esta manhã é igual ao princípio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se
viu.
O meu olhar tornou-se liso
como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam.
E eis que entro na gruta
mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são águas e paredes. Eu quereria
poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silêncio. Quereria que o
contivesse para sempre o círculo de espanto e de medusas. Aqui um líquido sol
fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas.
Mas já no mar exterior a
luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e limpa como um vidro. O azul
recorta os promontórios aureolados de glória matinal. Tudo está vestido de
solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar de gratidão com a cara encostada
contra as pedras.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto, 1962.
Filmado em 1968, este vídeo foi pensado como um
documentário sobre a escritora. A produção foi atribulada acabando por ser
feita em apenas quatro dias. Ainda assim é considerada como uma das obras
emblemáticas de João César Monteiro. Embora curto, o vídeo acaba por refletir
vários textos de Sophia e imortalizar as suas viagens às grutas.
(H) Senhora da Rocha: “Imóvel muda atenta
como uma antena”
Ermida
da Nossa Senhora da Rocha (Vanessa
Reis, 2019)
Situada num extenso
promontório, a Ermida de Nossa Senhora da Rocha parece situar-se sobre o Mar. Materializa
o medo imemorial dos perigos de navegar, sendo plausível que a atual estrutura
tenha vindo concretizar práticas anteriores. Remontando pelo menos ao período
Visigótico, nela se encerra uma escultura de Nossa Senhora que Sophia
relacionou com a estátua da Vitória de Samotrácia, conservada no Louvre. Embora
ambas tivessem como objetivo a proteção dos mareantes, a poeta reflete acerca
da religiosidade católica comparando-a a grega. A figura da Nossa Senhora surge
assim pequena em comparação a imponente escultura grega, sem, no entanto, se
tornar inferior na sua capacidade protetora.
SENHORA
DA ROCHA
Tu
não estás como Vitória à proa
Nem
abres no extremo do promontório as tuas asas
Nem
caminhas descalça nos teus pátios quadrados e caiados
Nem
desdobras o teu manto na escultura do vento
Nem
ofereces o teu ombro à seta da luz pura
Mas
no extremo do promontório
Em
tua pequena capela rouca de silêncio
Imóvel
muda inclinas sobre a prece
O
teu rosto feito de madeira e pintado como um barco
O
reino dos antigos deuses não resgatou a morte
E
buscamos um deus que vença connosco a nossa morte
É
por isso que tu estás em prece até ao fim do mundo
Pois
sabes que nós caminhamos nos cadafalsos do tempo
Tu
sabes que para nós existe sempre
O
instante em que se quebra a aliança do homem com as coisas
Os
deuses de mármore afundam-se no mar
Homens
e barcos pressentem o naufrágio
E
por isso não caminhas cá fora com o vento
No
grande espaço liso da luz branca
Nem
habitas no centro da exaltação marinha
O
antigo círculo dos deuses deslumbrados
Mas
rodeada pela cal dos pátios e dos muros
Assaltada
pelo clamor do mar e a veemência do vento
Inclinas
o teu rosto
Imóvel
muda atenta como antena
Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, 1967.
(I) Ingrina
Praia
da Ingrina (Vanessa Reis, 2019)
A pequena praia de Ingrina
conserva, em virtude do seu isolamento, uma certa rusticidade e um ambiente
intemporal. Contrariando a tendência da região, não existem grande
empreendimentos nas redondezas nem mares de gente, tornando mais fácil imaginar
a visão de Sophia. A autora encontrou nessa praia a epítome da sua relação com
o lugar, imortalizando-a num poema com o seu nome. A sinestesia entre o calor
do Sol, o som omnipresente das cigarras, o cheiro dos orégãos e o Mar confluem
para um sentimento de plenitude e de comunhão com o espaço. Desta união emanava
uma sensação de renovação e renascimento, ao qual a poeta deseja sempre
regressar.
INGRINA
O grito da cigarra ergue a
tarde a seu cimo e o perfume do orégão invade a felicidade. Perdi a minha
memória da morte da lacuna da perca do desastre. A omnipotência do sol rege a
minha vida enquanto me recomeço em cada coisa. Por isso trouxe comigo o lírio
da pequena praia. Ali se erguia intacta a coluna do primeiro dia — e vi o mar
refletido no seu primeiro espelho. Ingrina.
É esse o tempo a que
regresso no perfume do orégão, no grito da cigarra, na omnipotência do sol. Os
meus passos escutam o chão enquanto a alegria do encontro me desaltera e sacia.
O meu reino é meu como um vestido que me serve. E sobre a areia sobre a cal e
sobre a pedra escrevo: nesta manhã eu recomeço o mundo.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, 1967.
(J) Grécia
Sophia
Andresen e Agustina Bessa-Luís. Grécia. 1963 Disponível em:
http://purl.pt/19841/1/1960/1960-1.html
Sophia
na Grécia com a pintora Graça Morais. 14 dezembro 1988. Disponível em: http://purl.pt/19841/1/1980/galeria/f2/foto1.html
Sophia
com as filhas Maria e Sofia na Grécia, 1972. Disponível em: http://purl.pt/19841/1/1970/galeria/f14/foto1.html
A semelhança de muitos países
da costa do Mediterrâneo, a Grécia viveu nas últimas décadas um aumento
exponencial do turismo, com os benefícios e prejuízos inerentes. Nas palavras
de Sophia “Eu tenho ido muitas vezes à Grécia. O que muda é o aumento do
turismo. Na Grécia como em toda a parte o turismo está a estragar muitas as
coisas.”. A relação de Sophia com a cultura grega remonta a sua infância. No
ano em que Sophia aprendeu a ler, estando numas termas com a família sem
livros, comprou um com o título “Mitologia Grega”. Fica completamente fascinada
pelas fotografias das estátuas, que lhe lembram “qualquer coisa da claridade,
da respiração do Mar e do ritual das ondas”. Era o início de uma paixão pela
cultura helénica que acompanhará Sophia o resto da sua vida. Esta seria
aprofundada aos 12 anos através da leitura de Homero. Esta paixão seria
concretizada já na idade adulta, numa viagem que realizou com Agustina
Bessa-Luís e seu marido. A imaginação de Sophia fica aquém da realidade, que
deixa a escritora extasiada, confessando a Jorge de Sena: “Mas sinto que só sei
falar mal disto tudo. (…) Na Grécia tudo é construído como religação do homem à
natureza. (…) Mas os tempos Gregos só são compreensíveis situados no mundo que
os rodeia. A ligação entre a arquitetura e o ar, a luz, o mar, os promontórios,
os espaços é total. (…) De certa maneira encontrei na Grécia a minha própria
poesia”.
RESSURGIREMOS
Ressurgiremos ainda sob
os muros de Cnossos
E em Delphos centro do
mundo
Ressurgiremos ainda na
dura luz de Creta
Ressurgiremos ali onde as
palavras
São o nome das coisas
E onde são claros e vivos
os contornos
Na aguda luz de Creta
Ressurgiremos ali onde
pedra estrela e tempo
São o reino do homem
Ressurgiremos para olhar
para a terra de frente
Na luz limpa de Creta
Pois convém tornar claro
o coração do homem
E erguer a negra exatidão
da cruz
Na luz branca de Creta
Sophia de Mello Breyner Andresen,Livro Sexto, 1962.
Página
do diário de viagem. Disponível em: http://purl.pt/19841/1/1960/galeria/f27/foto1.html
Na sua primeira viagem à Grécia, Sophia de Mello
Breyner parte da Granja, seguindo de carro. Atravessa Itália de Norte a Sul
passando depois, o estreito de Otranto, em Brindisi.
Como
ponto de referência da descrição da paisagem, Sophia irá referir o Algarve, que
considera ser a “Grécia Portuguesa”.
(K) Delfos: O centro do Mundo
Skyring.
Ruínas Templo de Delfos. 2017 Disponível em:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Delphi_Temple_of_Apollo.jpg [consultado
a 04/09/2019]
Ao chegar a Delfos, Sophia
deparou-se com: “(…) o lugar mais espantoso que vi na minha vida, um lugar
deslumbrante e solene entre montanhas altíssimas, com fontes geladas em frente
dum vale coberto de arvoredos e bosques e com um pedaço de mar a brilhar entre
as encostas”. A localização mantém-se, mas as condições de visita são mais
restritivas, adaptadas ao paradigma turístico contemporâneo. Alguns dos locais
visitados por Sophia estão hoje vedados, resultando numa experiência distinta.
Sophia reconhece em Delfos o centro do mundo grego, nele se compondo os vários
elementos da paisagem: as montanhas, a luz do sol e o Mar como pano de fundo,
elemento agregador e dominante do lugar. A ele se liga a vitalidade do espaço.
DELPHICA - IV
Desde a orla do mar
Onde tudo começou intacto
no primeiro dia de mim
Desde a orla do mar
Onde vi na areia as
pegadas triangulares das gaivotas
Enquanto o céu cego de
luz bebia o ângulo do seu voo
Onde amei com êxtase a
cor o peso e a forma necessária das conchas
Onde vi desabar
ininterruptamente a arquitetura das ondas
E nadei de olhos abertos
na transparência das águas
Para reconhecer a anémona
a rocha o búzio a medusa
Para fundar no sal e na
pedra o eixo reto
Da construção possível
Desde a sombra do bosque
Onde se ergueu o espanto
e o não-nome da primeira noite
E onde aceitei em meu ser
o eco e a dança da consciência múltipla
Desde a sombra do bosque
desde a orla do mar
Caminhei para Delphos
Porque acreditei que o
mundo era sagrado
E tinha um centro
Que duas águias definem
no bronze de um voo imóvel e pesado
Porém quando cheguei o
palácio jazia disperso e destruído
As águias tinham-se
ocultado no lugar da sombra mais antiga
A língua torceu-se na
boca de Sibila
A água que primeiro eu
escutei já não se ouvia
Só Antinoos mostrou o seu
corpo assombrado
Seu nocturno meio-dia
Delphos, maio de 1970
Sophia de Mello Breyner Andresen,Dual, 1972.
(L) Creta: O Labirinto do Minotauro
Marc
Ryckaert. Baia de Vai, Creta. 2010. Disponível em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vai_R05.jpg
[consultado a: 04/09/2019]
Ao visitar Creta nos anos 70
Sophia toma contacto com as ruínas do passado minoico da ilha. No entanto, para
a poeta a essência do local residia não nos palácios destruídos, mas sim no
Mar, intemporal. Como no resto da sua obra, encontra no Mar uma energia
primordial, que dita a vida dos homens que com ele se relacionam.
Consequentemente, este elemento é central na sua interpretação e assimilação do
espaço, visto que dele tudo parte e nele tudo acaba. Naturalmente a realidade
de Creta sofreu alterações com o passar dos anos. Contudo, ainda é possível
capturar alguma da essência descrita por Sophia, uma vez que esta parte de
elementos transcendentes, como o Mar.
O MINOTAURO
Em Creta
Onde o Minotauro reina
Banhei-me no mar
Há uma rápida dança que
se dança em frente de um toiro
Na antiquíssima juventude
do dia
Nenhuma droga me
embriagou me escondeu me protegeu
Só bebi retsina tendo
derramado na terra a parte que pertence aos deuses
De Creta
Enfeitei-me de flores e
mastiguei o amargo vivo das ervas
Para inteiramente
acordada comungar a terra
De Creta
Beijei o chão como
Ulisses
Caminhei na luz nua
Devastada era eu própria
como a cidade em ruína
Que ninguém reconstruiu
Mas no sol dos meus
pátios vazios
A fúria reina intacta
E penetra comigo no interior
do mar
Porque pertenço à raça
daqueles que mergulham de olhos abertos
E reconhecem o abismo
pedra a pedra anémona a anémona flor a flor
E o mar de Creta por
dentro é todo azul
Oferenda incrível de
primordial alegria
Onde o sombrio Minotauro
navega
Pinturas ondas colunas e
planícies
Em Creta
Inteiramente acordada
atravessei o dia
E caminhei no interior
dos palácios veementes e vermelhos
Palácios sucessivos e
roucos
Onde se ergue o respirar
de sussurrada treva
E nos fitam pupilas
semi-azuis de penumbra e terror
Imanentes ao dia —
Caminhei no palácio dual
de combate e confronto
Onde o Príncipe dos
Lírios ergue os seus gestos matinais
Nenhuma droga me
embriagou me escondeu me protegeu
O Dionysos que dança
comigo na vaga não se vende em nenhum mercado negro
Mas cresce como flor
daqueles cujo ser
Sem cessar se busca e se
perde se desune e se reúne
E esta é a dança do ser
Em Creta
Os muros de tijolo da
cidade minóica
São feitos de barro
amassado com algas
E quando me virei para
trás da minha sombra
Vi que era azul o sol que
tocava o meu ombro
Em Creta onde o Minotauro
reina atravessei a vaga
De olhos abertos
inteiramente acordada
Sem drogas e sem filtro
Só vinho bebido em frente
da solenidade das coisas —
Porque pertenço à raça
daqueles que percorrem o labirinto
Sem jamais perderem o fio
de linho da palavra
Outubro de 1970
Sophia de Mello Breyner Andresen,Dual, 1972.
(M) Travessa das Mónicas
Sophia na casa da Travessa das Mónicas, 1964 <https://purl.pt/19841/1/galeria/arte-fotografia/Eduardo-Gageiro/intro.html>
“Quando era nova e vim para
Lisboa sentia-me longíssimo da praia porque no Porto vivi mais perto do Mar.
Não gostava de Lisboa tinha uma grande nostalgia do Norte. Depois isso passou e
gosto de Lisboa, embora a cidade esteja difícil e suja.” Depois de casar,
Sophia acaba por se fixar em Lisboa, na Travessa das Mónicas, próxima do
Convento da Graça. A casa será um ponto de encontro para intelectuais e amigos.
Torna-se ainda um refúgio para a poeta, sobretudo o seu jardim, com vista para
o rio Tejo. Embora o estuário do rio domine o horizonte de Lisboa, este não é o
Mar, ainda distante. O jardim seria assim, uma tentativa de colmatar a falta de
maresia e do som das ondas, procurando focar sobre a luz refletida sobre a
água.
«Vista
de Lisboa» [da varanda da Travessa das Mónicas] Nikias Skapinakis 1981 Óleo s/
madeira Col. Família SMBA <https://purl.pt/19841/1/galeria/arte-fotografia/colecao-arte/f2/foto1.html>
LISBOA
Digo:
«Lisboa»
Quando atravesso — vinda
do sul — o rio
E a cidade a que chego
abre-se como se do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua
extensão noturna
Em seu longo luzir de
azul e rio
Em seu corpo amontoado de
colinas —
Vejo-a melhor porque a
digo
Tudo se mostra melhor
porque digo
Tudo mostra melhor o seu
estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de
ser e de não-ser
Com seus meandros de
espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar
de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de
intriga e máscara
Enquanto o largo mar a
Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma
grande barca
Lisboa cruelmente construída
ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
— Digo para ver
Sophia de Mello Breyner Andresen, Navegações, 1983.
Sophia
e Francisco durante um passeio no rio Tejo ao largo de Lisboa, anos 50.
Disponível em: http://purl.pt/19841/1/1950/1950.html
Sophia.
Anos 90. Disponível em http://purl.pt/19841/1/1990/galeria/f9/foto1.html
(N) Epílogo
(Vanessa
Reis, 2019)
O POEMA
O poema me levará no
tempo
Quando eu não for a
habitação do tempo
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê
O poema alguém o dirá
Às searas
Sua passagem se
confundirá
Com o rumor do mar com o
passar do vento
O poema habitará
O espaço mais concreto e
mais atento
No ar claro nas tardes
transparentes
Suas sílabas redondas
(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)
Mesmo que eu morra o
poema encontrará
Uma praia onde quebrar as
suas ondas
E entre quatro paredes
densas
De funda e devorada
solidão
Alguém seu próprio ser
confundirá
Com o poema no tempo
Sophia de Mello Breyner Andresen,Livro Sexto, 1962.
Roteiro literário: Mar de Sophia - "Metade da
minha alma é feita de maresia", Vanessa Reis / Museu Digital da Universidade do
Porto <https://museudigital.pt/pt/roteiros/17>
A aplicação Museu Digital da
Universidade do Porto é um projeto da Vice-Reitoria
para a Cultura, com o apoio tecnológico da Weblevel -
Tecnologias de Informação, que tem como objetivo preservar e
divulgar o património material e imaterial de uma Universidade que cresce com a
cidade Porto, contribuindo para a criação de um locus digital vivo e sem muros,
onde as histórias dos artefactos, das pessoas e da construção da ciência são
dinamicamente (co)criadas, (re)usadas e enriquecidas.
O
Mar como fio condutor
O Mar,
enquanto temática, está presente em toda a obra de Sophia. Começa por refletir
as vivências da poeta no norte de Portugal, em particular na Praia da Granja e,
depois do Livro Sexto (1962), passa a sofrer influência do Algarve e do
Mediterrâneo18. Ainda assim, muitas vezes surge sem que esteja
associado a um lugar geográfico, uma vez que é tido como um elemento de
renovação e aproximação ao real19, sinónimo de felicidade, liberdade20,
pureza e verdade21.
A
procura pela verdade das coisas e a religação do Homem com o Real é fundamental
na obra de Sophia de Mello Breyner, sendo o Mar um dos elementos preponderantes
para alcançar tais objetivos. Pois, como a poeta explica, existem três níveis
que devemos ter em consideração quando procuramos definir poesia: a Poesia,
grafada com maiúscula, que se refere à própria existência das coisas,
encontrando-se de forma imanente no Mundo; a poesia, escrita com minúsculas,
que é a relação pura do Homem com as coisas; e o poema. Para Sophia, o poema é
necessário ao poeta, porque funciona como mediador entre a lacuna que existe
entre a Realidade (Poesia) e o Homem22.
“Não
podendo fundir totalmente a sua vida com a existência das coisas, o poeta cria
um objeto em que as coisas lhe aparecem transformadas em existência sua. Não
podendo fundir-se com o mar e com o vento, cria um poema onde as palavras são
simultaneamente palavras, mar e vento. Não podendo atingir a união absoluta com
a Realidade, o poeta faz o poema onde o seu ser e a Realidade estão
indissoluvelmente unidos. Por isso o poema é o selo da aliança do homem com as
coisas.”23
Paralelamente
ao Mar, a Praia surge no mesmo nível de importância porque, como explica Carlos
Ceia - “(…) a praia é sempre o começo do mar (…)”24 - e é a partir
da praia que a poeta observa e contempla o Mar, não tendo um conhecimento
empírico sobre o mesmo25.
Também
nos depoimentos de Sophia nas diversas entrevistas, conseguimos identificar a
importância na infância e adolescência da praia da Granja, a “descoberta” que
foi o Algarve no início dos anos 60 e o maravilhamento que a Grécia sempre lhe
suscitou. Mas, paralelamente a estas informações, a poeta menciona vários acontecimentos
que justificam o facto do Mar e, em particular o Mar nestes locais, se ter
tornado tão especial e fundamental à sua vida e obra.
“O mar
foi sempre, na minha vida e desde a primeira infância, uma presença de
felicidade. Era na praia que passava férias e uma das imagens que está sempre
no fundo da minha memória, é aquele mar coberto de brilhos da infância que se
vê com enorme deslumbramento. O prazer extraordinário dos banhos, o aprender a
nadar. Eu tinha a sorte de viver numa praia que tinha grandes marés cheias e
grandes marés vazias, cheias de conchas e de rochas. Isso fez com o mar
fosse sempre para mim de um enorme fascínio26, onde o quotidiano e o
maravilhoso se confundiam porque, não havia nada mais maravilhoso do que
aquelas grutas e poças de água, entre os rochedos, cheias anémonas cor-de-rosa
algas de todas as cores e, uma água muito transparente. Esse espanto perante
o mar, que é um espanto perante o mundo, espanto maravilhoso que eu
reconheci nas navegações portuguesas, que foram uma epopeia de espanto.”27
Tal
como José Carlos Vasconcelos afirma na entrevista que fez a Sophia de Mello
Breyner para o Jornal de Letras Artes e Ideias em 199128:
“(…) a imagem do jardim foi desaparecendo, enquanto o mar e a praia se
mantiveram (…)”. De facto, como me fui apercebendo, o Mar é constante na obra
da poeta, acabando por se refletir na sua vida. Contudo, a poesia de Sophia não
se limita a descrever o que vê. Como explica Federico Bertolazzi no texto “O
cântico da longa e vasta praia”: Eco atlântico em itinerário mediterrâneo:
“Em
geral toda a relação de Sophia com os lugares geográficos passa por uma
elaboração de poética: o lugar em si, o espaço físico, é desconstruído e
depurado procurando-se nele uma imanência primordial que possa voltar a
exprimir a sua primitiva potência.”29
Como
fui procurando demonstrar o Mar, antes de mais, revelou-se pertinente devido à
sua transversalidade na obra de Sophia de Mello Breyner. Contudo, à medida que
fui avançando e cruzando os textos com as declarações de Sophia, compreendi que
estamos perante algo mais amplo e complexo. Ao contrário de outras temáticas, o
Mar é constante e assume valores simbólicos próprios no trabalho da poeta e,
ainda que muitas vezes haja referência a lugares específicos, a conceção do Mar
em Sophia extravasa-os amplamente.
Considero
que quando Sophia menciona o Mar vai além do substantivo, sintetizando em si a
ideia de uma cultura greco-latina muito própria que aglutina em si a conceção
do Mar enquanto elemento físico, simbólico e cultural. Razão pela qual me levou
a grafar o vocábulo com maiúscula. O Mar que quero mostrar com este roteiro não
se cinge aos aspetos tangíveis associados à palavra, mas ao significado que
esta assume na conceção da obra de Sophia. Funcionando como um lugar idílico
que preservou as características primordiais e, por isso, permite restabelecer
o tão desejado elo, outrora perdido, entre o Homem e as coisas.
Posto
isto, o Mar assume-se como alma mater do roteiro porque, partindo da ideia
de que o lugar descrito extravasa o espaço observado, procurei construir uma
narrativa que permitisse compreender o Mar enquanto conceção simbólica na obra
de Sophia partindo de âncoras físicas.
18 CEIA, Carlos – O desafio do
Mar in Iniciação aos mistérios da poesia de Sophia de Mello Breyner.
Lisboa: Vega, 1996, p. 61.
19 BERTOLAZI, Federico - O
cântico da longa e vasta praia” eco atlântico em itinerário mediterrâneo in Atas
do Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto: Porto
Editora, 2013, p. 120.
20 O desafio do Mar… p.
61.
21 CERQUEIRA, Gabriella Potti – Mar
de Concreto: Uma leitura da cidade e de sua relação com o mar nos poemas de
Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, 2011. Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa.
22 ANDRESEN, Sophia de Mello
Breyner – Poesia e Realidade. Colóquio Letras. nº 8. Abr. (1960)
pp 53-54.
23 Poesia e Realidade… p
54.
24 O desafio do Mar…p. 64.
25 O desafio do Mar…p. 64.
26 Os negritos aqui apresentados
e que se irão repetir noutras citações, foram acrescentados por mim, por
acreditar que sintetizam as ideias chave que quero transmitir quando os
selecionei.
27LEMOS, Vergílio – Sophia: “As
navegações portuguesas foram uma epopeia de espanto. Revista Oceanos. nº
4 (1990) pp. 127 – 130.
28 VASCONCELOS, José Carlos de –
Sophia: a luz dos versos. Jornal de Letras, Artes e Ideias. nº 468
(1991) pp. 8-13.
Leia o excerto de uma entrevista de Virgílio de Lemos a Sophia de Mello Breyner Andresen, publicada na revista Oceanos. A seguir, responda ao questionário.
Oceanos –
Se revisitarmos a sua obra, incidindo sobre «Mediterrâneo», «Navegações», «Ilhas»,
sem esquecer «Geografia», somos tentados a dizer que, [estando em] continuidade
com a tradição literária portuguesa, a sua poesia é também rutura, na sua nova
maneira de viver por dentro as Descobertas.
Sophia –
O mar foi sempre, na minha vida e desde a primeira infância, uma presença de
felicidade. Era na praia que passava as férias e uma das imagens que está
sempre no fundo da minha memória é aquele mar coberto de brilhos da infância
que se vê com enorme deslumbramento. […]
Esse espanto perante o mar, que é um espanto
perante o mundo, espanto maravilhado e um pouco arcaico – o que está no sorriso
da estátua arcaica – é o maravilhamento do homem diante do descobrir do mundo:
é um maravilhamento que eu reconheci nas navegações portuguesas, que foram uma
epopeia do espanto.
Quando você fala de rutura, talvez ela se possa
explicar porque foi diferente o meu ponto de partida. É a partir da minha
própria descoberta do mar e da revolução do mundo que se constrói a minha visão
dos Descobrimentos. E o que são os Descobrimentos senão a combinação, em grau
excelente, do aperfeiçoamento técnico e científico com uma intuição visionária?
Partiram à procura do Prestes João – e não o descobriram. Mas descobriram o mundo.
Oceanos –
Conhecemos […] a sua relação com o mar e com as ilhas. Mas qual a sua relação
específica com o oceano Atlântico, donde partiram as naus e os navegantes?
Sophia –
Há com efeito uma grande parte da minha poesia que é muito atlântica. «As
praias onde a direito o vento corre», como diz um dos meus poemas, são praias
da costa portuguesa, onde há aquele longo vento
norte, ao longo das
longas praias. A minha primeira relação é com o Atlântico: com
as praias onde eu passava o Verão da minha infância, com a mãe, a avó, as
primas. Praias imensamente atlânticas onde há imagens que ficaram claras.
Enquanto no Mediterrâneo só há ondas quando há temporal, no Atlântico há ondas
todos os dias quando há maré cheia […]. Essa é a minha primeira relação com o
mar, o Atlântico, o mar do qual realmente os Portugueses partiram.
Oceanos –
Mas como transformou tudo isso em matéria de poesia? E o que a levou a escrever
sobre as «Navegações»?
Sophia –
Muito mais que da História, a ideia surgiu de uma viagem a Macau: pus-me a
pensar o que terá sido chegar ao Oriente desprevenido… Quando de manhã me
debrucei e vi o mar de que ouvira falar, vi nesse mar, diante das costas do
Vietname, uma espessa floresta até uma longa praia. Vi o mar e três ilhas de
coral azul, deslumbrantes, com umas lagunas azuis à roda, e pensei o que terá
sido o maravilhamento e o espanto dos homens que chegaram aqui, sem terem visto
um mapa, sem terem lido uma descrição. Antes deles, ninguém vindo do Ocidente
tinha passado por ali. Até aí, os ocidentais não tinham tido qualquer
comunicação com os povos desses lugares. E assim, todo o livro Navegações
é construído à volta desse espanto, desses Descobrimentos.
Oceanos,
n.º 4, julho, 1990 (adaptado)
1. Para responder
a cada um dos itens de 1.1. a
1.7., selecione a única opção que permite obter uma afirmação
correta.
Escreva,
na folha de respostas, o número de cada item e a letra que identifica a opção
escolhida.
1.1. A rutura que a
poesia de Sophia estabelece relativamente à tradição literária portuguesa concretiza-se
na
(A) exploração de temas,
mitos e símbolos do universo marítimo.
(B) crítica à dimensão
guerreira e expansionista dos Descobrimentos.
(C) rejeição do lirismo
tradicional em nome do pensamento científico.
(D) descoberta pessoal do
sentido pleno das navegações portuguesas.
1.2. Ao
caracterizar as navegações portuguesas como uma «epopeia do espanto» (linha
12), a escritora pretende realçar
(A) o deslumbramento face
ao novo conhecimento.
(B) a curiosidade face à
evolução tecnológica.
(C) o temor e a coragem
face ao mundo desconhecido.
(D) a contemplação e a
dúvida face à inovação.
1.3. Segundo
Sophia, o aspeto que mais contribuiu para a escrita do livro Navegações
foi a
(A) recordação da
infância passada na costa atlântica.
(B) informação recolhida
em livros sobre o Oriente.
(C) evocação do
sentimento vivido pelos descobridores.
(D) nostalgia da época
das navegações portuguesas.
1.4. Na expressão
«na minha vida» (linha 5), «minha» é um
(A) determinante que
funciona como deíctico temporal.
(B) pronome que funciona
como deíctico pessoal.
(C) determinante que
funciona como deíctico pessoal.
(D) pronome que funciona
como deíctico temporal.
1.5. A conjunção
«Enquanto» (linha 26) introduz uma ideia de
(A) tempo.
(B) condição.
(C) causa.
(D)
contraste.
1.6. Na expressão
«vi o mar de que ouvira falar» (linhas 32 e 33), a forma verbal «ouvira»
corresponde, em relação à forma verbal «vi», a um tempo
(A) anterior.
(B) posterior.
(C) inacabado.
(D) simultâneo.
1.7. Na expressão
«o que terá sido o maravilhamento» (linha 35), o conteúdo é apresentado como
uma
(A) certeza.
(B) hipótese.
(C) obrigatoriedade.
(D) concessão.
2. Responda de
forma correta aos itens apresentados.
2.1. Identifique a
função sintática desempenhada pelo pronome pessoal em «e não o descobriram» (linha
17).
2.2. Indique o
valor da oração subordinada adjetiva relativa presente em «Há com efeito uma
grande parte da minha poesia que é muito atlântica.» (linha 21).
2.3. Classifique o
ato ilocutório presente em «Mas como transformou tudo isso em matéria de
poesia?» (linha 29).
“Roteiro
literário: Mar de Sophia - Metade da minha alma é feita de maresia”,
José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-26. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/roteiro-literario-mar-de-sophia-metade.html