«Neste poema, o Autor procurou reproduzir, por meio do
alfabeto convencional, as caraterísticas fonéticas do falar do povo da Ilha
Terceira, recorrendo no entanto, quando as limitações do alfabeto não permitiam
os efeitos desejados, a alguns sinais diacríticos do alfabeto fonético internacional.»
(Nota de Luiz Fagundes Duarte à edição de 2006)
VERSOS QU’O PAI QUE FOI P’O
TRABALHO FEZ A SUA FILHA
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Tanta
frieza, inha mãe!
Incarrilha‑s’este
inverno:
Ei! Tantas
lamas que têm
As istǐradas
do rovêrno!
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5
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Greta‑s’os
pézes. E a lũa
É nova:
têmos‑ĕa feita!
Dês a
medre e a faça nũa
Talhada
só, forte e bũa,
Nacendo sã‑iscorreita.
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10
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Parece o
paúl da Praia
O sarrado
da luzerna.
Não há nem
pisca na baia,
Mins ê nã
sei se lá vaia,
Qu’ia
cobrando ũa perna.
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15
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A gente só
tem bandalhos
Que nem
bandeiras do bodo.
Ist’é que
são uns trabalhos!
P’í a‑fora,
nos atalhos,
A gente
alaga‑se todo.
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20
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Inda mal
loze o biraco,
E toca a
mundar a ǐeito,
C’o pão de
milho no saco.
Isto faz
dar o cavaco,
Mins é
mundar, e cum geito.
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25
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Cando não,
mê pai dá fé
De qu’a
gente é calaceiro:
— Anda,
Pedro, pũi‑t’a pé,
Qu’o
carneiro mocho inté
Já
s’aluvanta prumeiro.
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30
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Maria, eh
moça, que fazes?
Nã
desapegas do qŭente.
Vê lá que
pão é que trazes;
Toma tino,
qu’os rapazes
São todos
três de bum dente.
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35
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E agora,
bota sintido,
Nã fiques
comā ǐsmalmada,
Que já te
tens devertido:
Qué‑s’êsse
milho iscolhido
E essa
bezerra tratada.
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40
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A gente
torna de brebe
E qué ver
já tuǐdo pronto.
O cordeiro
alvo da neve,
Não há
ninguêm que lo leve,
Anda por í
comā tonto.
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45
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E ò mei‑dia,
eh ř’paria,
Anda cá,
nã sei se m’oives:
Qué‑s’ũa
bũa papia
De farinha
alva e macia
Pǎ
vê
se s’ingana as coives.
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50
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Tês irmãos
hoj’ vêm mais cedo,
Qu’é pǒ
via da toirada.
Deixá‑los
ir ò fòlguedo!
Vai se
qués, nã teinas medo,
Que ficas
bem arrumada.
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55
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Mins toma
tento na bola,
Nã vaias
fazê toliça;
Qu’ê já
sei qu’o meste‑iscola,
Qu’é filho
do bate‑sola,
Há ǐanos
que te derriça.
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60
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Mins se
topars algum moço
Da tua
abetuaduira,
Nã le
vires o piscoço:
Ruim cão
que vê um osso
E nã lo
passa à fressuira.
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65
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Qu’ò
dispois, cando ele vinher
Tê comio
pà licença,
Tê pai,
c’o bem que te quer,
Vai dezer
que sim, mulher,
Pâ
cunsolar a criença.
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70
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Cásim
vocês! Tamêm eu
Que ’stou
aqui me casei.
E o pão
alvo que Dês deu,
Apresantado
no céu
Seja
sempre, à bũa lei!
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75
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E adês! A
Virze te impare
E te dê
sorte, Maria.
E sejas o
sol e o ar
Do moço
que te luvar
Para a sua
cumpanhia.
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Vitorino Nemésio
Arco da Traição de
Coimbra, 10‑VII‑1922
(Versos qu’o pai que foi p’ó trabalho fez à sua
filha. Angra do Heroísmo: Secretaria Regional da Educação e Cultura/Direção
Regional dos Assuntos Culturais (edição facsimilada, não comercial, do
manuscrito original), 1979.
Na
sua aparente singeleza, estes Versos dão conta de um jovem escritor que, em
pleno processo de adaptação a um novo meio geográfico e cultural, tenta
reconstituir poeticamente algumas realidades culturais, mas também sociais e
económicas, da sua ilha natal – e que, sobretudo, procura registar pela escrita
a fonética, o léxico e o ritmo da linguagem popular que lhe serviu de leito de aprendizagem
da vida. Por isso realçarei alguns aspetos específicos do trabalho de
representação – ou de alusão –, pela escrita, de alguns traços do falar
terceirense, bem como de algumas peculiaridades socioeconómicas da ilha
Terceira no primeiro quartel do século XX.
O
jovem Nemésio tenta reproduzir neste poeminha (tal como viria a fazer, por
exemplo, no conto Quatro prisões debaixo de armas, no romance Mau
Tempo no Canal ou nos poemas de Festa Redonda), alguns traços
fonéticos e fonológicos caraterísticos do falar da Ilha Terceira, que procurou
reproduzir por meio do alfabeto convencional, recorrendo no entanto, quando as
limitações do alfabeto não permitiam os efeitos desejados, a alguns sinais
diacríticos do alfabeto fonético internacional. Tendo em conta que, mesmo
assim, tais representações poderão constituir dificuldades para um leitor não
familiarizado com o dialeto da Terceira, forneço aqui as descodificações e explicações
necessárias para uma leitura tanto quanto possível correta do texto.
Foram
respeitadas as grafias utilizadas no testemunho de base do poema; porém, sempre
que foram detetadas, muito pontualmente, soluções do autor que não obedecem aos
critérios por ele aplicados para idênticas situações, procedi à sua correção de
acordo com a forma mais adequada presente no texto. As palavras que não constituem
representações fonéticas específicas foram transcritas de acordo com a
ortografia atual (teem > têm, veem (de vir) > vêm, êle > ele, ó
(contração) > ò).
Símbolos
gráficos utilizados pelo poeta para representar sons específicos:
ǎ,
â, ā
Formas alternativas para a vogal oral média‑baixa semiaberta central [α]
resultante de reduções ou de contrações como pra > pa [pα], como a
> coma [ko’mα].
ĕ
Aproximante com valor da semivogal [j]: têmos‑ĕa [‘temozjα]
(por têmo‑la].
ê
Vogal fechada [e] resultante de monotongação e também de
apócope de [r]: ê, Dês, mê, fazê, tê, tê (por eu, Deus, meu, fazer,
teu, ter).
ǐ
Semivogal [j], resultante de ditongação ou de resolução de hiato:
tuǐdo, a ǐeito, há ǐanos (por tudo,
a eito, há anos).
ǒ
Vogal [o], resultante de reduções como por > po
[‘po].
ř
Consoante fricativa pós‑dorso‑uvular [r]:
ř’paria [rpα’riα] (por rapariga).
ŭ
Aproximante com valor da semivogal [w]: quente [kwẽtə]
Principais
fenómenos fonéticos representados:
Apócope do [r]: fazer
> fazê, ver > vê, ter > tê, por > pǒ, quer‑se > qué‑se
Despalatalização das
consoantes dorsopalatais [ɲ] e [ʎ]: tenhas >
teinas, lhe > le, lho > lo
Ditongação da vogal [u]
em posição tónica: tudo > tuǐdo,
fressura > fressuǐra, tudo
> tuǐdo, abetuadura
> abetuaduǐra.
Ditongação da vogal
tónica por influência (metafonia) de uma átona anterior: do
quente > do qŭente, a eito > a ǐeito, há anos > há ǐanos (o
diacrítico em <ŭ> e <ǐ>
representa, respetivamente, as semivogais [w] e [j]).
Elevação da vogal [e]
para [i]: escolhido > iscolhido, pescoço > piscoço, despois
> dispois, sentido > sintido, engana > ingana, casem > casim
Elevação da vogal nasal
[õ] para [ũ]: Consolar > cunsolar, bom > bum, mondar >
mundar, companhia > cumpanhia, põe‑te > pũi‑te
Eliminação de hiato (por
epêntese de consoante ou de semivogal ou por nasalização da primeira vogal): vier >
vinher, não o > nã lo, a eito > a ǐeito, lua
> lũa, boa
> bũa
Monotongação: Deus >
Dês, eu > ê, não > nã, teu > tê, quando > cando, adeus > adês, virgem
> virze, meu > mê
Produção como [oj] do
ditongo [ow]: coives, oives (do verbo ouvir)
Recuo das vogais
anteriores para posteriores: alevanta > aluvanta, primeiro > prumeiro,
levar > luvar
Síncope de [g] em posição
intervocálica: comigo > comio, rapariga > ř’paria
Sonorização da consoante
fricativa labiodental surda [v] para a aproximante bilabial [β]: breve
> brebe (este fenómeno acontece também, por exemplo, em vassoura
> bassoura, varrer > barrer).
Formas
lexicais e vocabulário específicos:
Bandeiras do bodo [v. 16]
Estandartes
simbólicos usados nas cerimónias em honra do Espírito Santo.
Bate‑sola [v. 58] Sapateiro
remendão.
Bodo [v. 16] Distribuição
gratuita de pão e vinho pelos Imperadores dos Sétimo e Oitavo Domingos do
Pentecostes, no âmbito do culto do Espírito Santo. Sendo estes, na cultura popular
tradicional dos Açores, as festividades mais importantes do ano, para as quais
as pessoas vestem as suas melhores roupas, a expressão «roupa do bodo» refere‑se à melhor roupa que se tem.
Brebe [v. 40] breve.
Bũa [v. 8] boa.
Cando não [v. 25] quando
não.
Carneiro mocho [v. 28] Carneiro
sem cornos, de nascença ou porque lhos cortaram.
Cásim vocês! [v. 70] casem
vocês.
Cobrando [v. 13] quebrando.
Comio [v. 66] comigo.
Da tua abetuaduira [v.
61] da
tua abotoadura. Que seja digno de ti.
De bum dente [v. 34] de bom
dente. De bom gosto, que gosta de coisas (neste caso, de raparigas) boas.
Fazê toliça [v. 56] fazer
toliça (por tolice, disparates)
Greta‑se [v. 5] gretam‑se. Ficar com gretas (feridas)
nos pés.
Incarrilha‑se [v. 2] encarrilha‑se. Ficar enregelado por causa do
frio.
Ingana as coives [v. 49] engana as
couves. Qualquer alimento que se use para tornar mais saboroso o caldo de
couves, uma das bases alimentares nos meios rurais pobres e remediados.
Inha mãe! [v. 1] minha mãe
(aférese). A forma mais frequente é nha mãe.
Ismalmada [v. 36] esmalmada.
Ficar desalmado, sem ação.
Istǐradas [v. 4] estradas.
A forma mais correta seria istrǐadas, com
ditongação da vogal tónica aberta por influência da vogal átona anterior (um
fenómeno de metafonia, muito caraterístico da Terceira), aqui o [i] inicial que
por sua vez resulta da elevação do [e] protético. Nemésio utilizou a semivogal
<ǐ> para desfazer o grupo consonântico [tr].
Loze o biraco [v. 20] luz o
buraco. A luz do amanhecer que entra pelo buraco da fechadura, ou por qualquer
outra abertura da casa, sinal de que está na hora de sair da cama.
Lũa [v. 5] lua.
Mins [v. 13, 24, 55, 60] mas.
Mundar a ǐeito [v. 21] mondar a
eito. Trabalhar sem parar.
Nã lo passa [v. 64] não o
passa
Nã teinas [v. 53] não
tenhas.
Nũa [v. 7] numa.
P’í a‑fora [v. 18] por aí
afora.
Pà licença [v. 66] pà (de
para a > prà) licença. Para pedir a mão da noiva ao pai.
Pão alvo [v. 72] Pão de
farinha de trigo peneirada (e daí alva), para o distinguir do de farinha não
peneirada (escura). Ter pão alvo em casa era sinal de ser‑se remediado.
Papia [v. 47] [pα’piα]
Espécie de biscoito, de forma redonda e achatada, feita à base de farinha e
açúcar e com sementes de funcho.
Pisca [v. 12] um quase
nada.
Pǒ via [v. 51] por via.
Por causa.
Pũi‑t’a
pé [v. 27] põe‑te a pé.
Qu’ó dispois [v. 65] porque ao
depois.
Que te derriça [v. 59] Que está
interessado em ti (namoro).
Ř’paria [v. 45] rapariga.
Note‑se a
síncope do [g] intervocálico, muito frequente (como também em amiga > amia).
Roverno (Estradas do) [v.
4] governo
(Estradas do). Estradas nacionais. Forma atualmente não usada na Terceira,
deverá tê‑lo sido
nos tempos de infância do poeta.
Ruim cão que vê um osso e
nã lo passa à fressuǐra [vv. 63‑64] Mal faz quem não aproveita bem
aquilo que de bom tem pela frente.
Sã‑iscorreita [v. 9] sã e
escorreita. Que nasceu saudável e sem defeitos. A sequência <sã e es> é
reduzida ao ditongo nasal [ãj].
Sarrado [v. 11] cerrado.
Parcela de terreno agrícola, cercado por muros, caraterístico da paisagem
açoriana. Assimilação da vogal átona [e] à tónica [a].
Te impare [v. 75] te
ampare.
Têmos‑ĕa [v. 6] têmo‑la.
Trabalhos [v. 17] Preocupações,
dificuldades, sofrimento.
Vaia [v.13] vá.
Primeira pessoa do presente do conjuntivo do verbo ir.
Virze [v. 79] Virgem.
* * *
De
facto, neste poema, e como definiria Nemésio, a linguagem é alusão: o que aqui
interessa não é o documentário etnográfico, nem tão pouco o pitoresco
interpretado pelo poeta a partir da vivência nos meios rurais remediados. O que
interessa é a inventariação, poeticamente produtiva, de traços distintivos de
cariz linguístico, socioeconómico e sociocultural que o poeta utiliza como meio
de comunicação: é a procura de formas linguísticas através das quais, depois de
reavaliadas como linguagem, o poeta representa a sua própria realidade – e essa
realidade tinha muito de imaginação. Era a isso que se referia Wittgenstein, na
frase mais atrás citada e que vale sempre a pena recordar: «é óbvio que um
mundo imaginado, por muito diferente que seja do real, tem que ter algo – uma
forma – em comum com o real».
Naturalmente.
Excerto
de “Vitorino Nemésio – Linguagem – Alusão”, Luiz Fagundes Duarte. Os
palácios da memória: ensaios de crítica textual. Imprensa da
Universidade de Coimbra, junho 2019, pp. 339-348.
Publicação
original em: «Nemésio – linguagem – alusão». In Hoisel, Evelina; Ribeiro, Maria
de Fátima (2007) (orgs.). Viagens. Vitorino Nemésio e Inteletuais Portugueses
no Brasil. Salvador: Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, pp.
215-223.
CARREIRO, José. “Versos
qu’o pai que foi p’o trabalho fez a sua filha, Vitorino Nemésio”. Portugal,
Folha de Poesia, 31-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/versos-quo-pai-que-foi-po-trabalho-fez.html