Ao longo de sua carreira, Manuel
Bandeira escreveu vários poemas que podem ser considerados “poéticas”, ou seja,
eles tratam do “fazer poesia”, ora dizendo para quê a poesia serve, ora dizendo
como ela deve ser. Este trabalho apresenta um estudo sobre seis destes poemas,
procurando verificar as diferenças e semelhanças entre eles e, ainda, se o que
o poeta preconiza é o que ele faz nos próprios poemas. […]
“Poética” integra o quarto livro de
poemas de Manuel Bandeira, intitulado Libertinagem e publicado em 1930.
Podemos perceber que nele o autor expressa como deveria ou não deveria ser a
poesia, de acordo com a sua perspectiva, paralela aos preceitos modernistas.
Dentre os poemas de Bandeira que podem ser considerados uma ars poética,
talvez este seja o mais conhecido e aclamado. Quanto a isto, citamos o crítico
Ivan Junqueira, quando afirma que «‘Poética’ não é apenas um dos melhores
poemas do autor, mas também um dos mais importantes que escreveu, talvez o mais
significativo no que se refere ao discurso metalingüístico e à síntese de seus
procedimentos líricos» (2003, p.107).
Quanto ao poema estar de acordo com
os preceitos modernistas, vale ressaltar que isto é o que ocorre em todo o
livro em que se insere, já que os poemas de Libertinagem foram escritos entre
1924 e 1930, período de muita força do movimento. O próprio Bandeira admite, no
Itinerário de Pasárgada, que esses foram « os anos de maior força e calor do
movimento modernista. Não admira, pois, que seja entre os meus livros o que
está mais dentro da técnica e da estética do modernismo» (1984, p.91).
De acordo com “Poética”, a poesia
deve ser “livre”. Livre das formas preestabelecidas, das palavras empertigadas,
dos modelos tradicionais. Livre para falar de qualquer tema. Desta forma,
“Poética”, assim como “Os sapos”, soa como um grito de libertação. Grito que,
na verdade, perpassa todo o livro Libertinagem, desde seu título, pois
libertinagem aqui não tem o significado associado à “prática do libertino”, mas
sim, a uma “irreverência com relação a dogmas e crenças oficialmente aceitos”
(Dicionário Houaiss), uma vez que o próprio Bandeira, ao comentar o seu
livro anterior (O ritmo dissoluto), afirma que nele alcançou uma “completa
liberdade de movimentos” e complementa: “liberdade de que cheguei a abusar no
livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem” (1984, p.75). Ou,
como disse Ribeiro Couto, “libertinagem de temas, de matéria. Total liberdade”
(apud JUNQUEIRA, 2003, p.89). Ao comentar Libertinagem na sua História concisa
da literatura brasileira, Alfredo Bosi afirma que o livro apresenta “um
fortíssimo anseio de liberdade vital e estética” (2006, p.363).
Observamos que há um enunciado no
qual um sujeito estava em conjunção com um objeto de valor não desejável (o
lirismo comedido, bem-comportado, namorador, etc.) e em disjunção com o objeto
de valor desejável (o lirismo dos loucos, dos bêbados, etc.). Os valores não
desejados são aqueles que estão de acordo com a “poesia tradicional”. Ao dizer
que está farto de determinado tipo de lirismo, o sujeito rompe com o contrato
antes estabelecido com tal poesia e passa a querer estar sob o signo da “poesia
modernista”. Em termos passionais, temos, numa primeira fase, um sujeito da
liberalidade ou do desprendimento, uma vez que ele quer-não-estar em conjunção
com o objeto de valor (neste caso, o lirismo comedido), e um sujeito da
revolta, ou seja, um sujeito que se volta contra os valores de seu destinador
(a poesia “tradicional”). Em seguida, o que figura é um sujeito do desejo, ou
seja, aquele que quer-estar em conjunção com o objeto (ou seja, o “lirismo
livre”). Assim como em “Os sapos”, o sujeito, ao propor uma ruptura com os
valores preestabelecidos e acolher, logo sem seguida, novos valores, está
afirmando a descontinuidade. Tal ruptura vai ao encontro de um dos ideais no
movimento modernista que, nas palavras de Mário de Andrade, era uma estética
renovadora. Segundo ele, «o modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um
abandono de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma revolta contra o que
era a Inteligência nacional (...)» (2002, p.258).
Constatamos que o tema principal
deste texto é, obviamente, o “fazer poesia”, o que fica evidente desde o seu
título, dado que poética é “o estudo da criação poética em si mesma” (ARISTÓTELES
apud KOSHIYAMA, 1996, p.83). Ao longo do texto o narrador enumera
características disfóricas ou eufóricas para a poesia, representada aqui pelo
lexema lirismo, que aparece doze vezes. As características disfóricas
são introduzidas por expressões como estou farto, abaixo e de resto não é,
que “acentuam o caráter contestatório do poema” (BRANDÃO, 1987, p.22). O poema
pode ser dividido em blocos, sendo que em cada um deles determinadas figuras se
agrupam formando um percurso figurativo. Desta forma, o primeiro percurso
figurativo observado é aquele composto por comedido, bem-comportado,
funcionário público, livro de ponto, expediente, protocolo e manifestações de
apreço ao sr. diretor. Este é o percurso figurativo do “ajustado e rotineiro”
(Cf. BRANDÃO, 1992, p.124). Já as figuras dicionário, puristas, barbarismos
universais, sintaxes de exceção e ritmos inumeráveis compõem o percurso
figurativo do purismo de linguagem. No bloco que se inicia com o verso “Estou
farto do lirismo namorador”, os termos namorador, político, raquítico e
sifilítico formam o percurso figurativo do lirismo interesseiro. Por fim, o
último bloco com características disfóricas é aquele que contém as figuras
contabilidade, tabela de co-senos, secretário do amante exemplar, modelos de
cartas, que compõem o percurso figurativo da mecanização ou do excesso de
rigidez formal, no sentido da utilização de moldes preestabelecidos.
Observamos, ainda, que neste último bloco são expandidas tanto a série do
“lirismo rotineiro”, quanto a do “lirismo interesseiro”. O poema sugere que há,
na poesia disforizada, uma poderosa conexão com a tradição, o que não permite a
experimentação de novas formas artísticas.
Os quatro percursos figurativos
apontados estão, na verdade, interligados, remetendo a um único tema que é o da
opressão. Todas as figuras remetem, de alguma forma, a um tipo de
aprisionamento. O lirismo associado a tais figuras é um lirismo oprimido, preso
a comportamentos, formas, modelos, convenções, etc. De acordo com Brandão (1987,
p.23), este poema “recusa as manifestações líricas que se caracterizam seja
pela contenção, pela disciplina ou por estarem a serviço exclusivo de
interesses outros”. Por outro lado, na penúltima estrofe, as figuras loucos,
bêbedos e clowns de Shakespeare formam o percurso figurativo da liberdade –
corroborado pelo último verso: Não quero mais saber do lirismo que não é
libertação –, uma vez que estes papéis não estão presos às convenções sociais.
Basta lembrar que os bêbados e loucos usufruem de certa licença para fazer
qualquer coisa sem censura. Temos, pois, dois percursos figurativos em
oposição, dados que eles recobrem dois temas antagônicos: a opressão e a
liberdade do “fazer poético”.
Diante do que foi exposto até aqui,
percebemos que o poema euforiza um lirismo livre, uma poesia “livre das
amarras” e propõe uma ruptura (conforme comentamos quando da análise do nível
narrativo) com a poesia dita tradicional. A crítica de “Poética” se dirige mais
especificamente à poesia parnasiana e pós-parnasiana (cujos preceitos
principais eram o purismo, a supervalorização das formas, a perfeição) e à
poesia romântica, visto que «o lirismo namorador / raquítico / sifilítico
compõe um conjunto que tem sua referência na temática romântica. O poeta
questiona aqui alguns dos motivos mais utilizados por nossos românticos, o amor
inconseqüente, o patriotismo, o estado doentio» (BRANDÃO, 1987, p.24).
Com
relação ao plano da expressão, salta aos olhos que o poema é composto com uma
“liberdade de formas”, isto é, com divisão entre estrofes irregular, versos
livres, ritmo irregular, versos “muito longos”, etc.
1.
Com
base na leitura do poema, podemos afirmar corretamente que o poeta:
A) Critica
o lirismo louco do movimento modernista.
B)
Critica todo e qualquer lirismo na literatura.
C) Propõe
o retorno ao lirismo do movimento clássico.
D) Propõe
o retorno do movimento romântico.
E) Propõe
a criação de um novo lirismo.
Resposta: Alínea E.
Ao nos atermos aos pressupostos ideológicos que
demarcaram a estética modernista, todas as proposições, exceto a letra “E”,
consideram-se como incoerentes, uma vez que um dos posicionamentos de Manuel
Bandeira era de extrair poesia das coisas mais banais da realidade, renegando
assim o sentimentalismo exacerbado dos românticos (por isso, ele não retoma ao
movimento), bem como repudiando quaisquer traços formais em termos de estética,
razão pela qual se pautava, sobretudo, pelo uso do verso livre (por isso, não
retomou ao movimento clássico).
Dessa forma, o porquê de a letra “E” ser considerada
correta deve-se ao fato de que a nova proposta não era a de abominar a poesia,
tanto é que, como expresso anteriormente, a temática por ele explorada se
originava das coisas corriqueiras da vida.
2.
Assinale
a alternativa incorreta em relação à obra Melhores poemas, Manuel
Bandeira, e ao poema intitulado “Poética”.
A) No poema, o poeta faz uso do
verso livre e de uma pontuação não tão usual na língua culta, estas
características associam o poema a correntes de vanguarda.
B) Nos versos “Todas as palavras
sobretudo os barbarismos universais” (8) e “Todas as construções sobretudo as
sintaxes de exceção” (9) o poeta faz uso da função metalinguística, embora haja
no poema a predominância da função poética.
C) No poema, o autor ressalta
como temas a precariedade de sentimentos, a transitoriedade de afetos,
revelando um eu–lírico desiludido, destituído de sentimentos.
D) A leitura dos versos da quinta
estrofe, reforçados pelo uso de adjetivos, leva o leitor a inferir que o poeta
Manuel Bandeira, ironicamente, faz crítica aos aspetos abordados pelos poetas
românticos.
E) No poema, Manuel Bandeira faz
uso do verso livre, não utiliza as regras convencionais tanto na escrita quanto
na métrica – versificação – caracterizando o versilibrismo, deixando à mostra a
rutura com a poética e com a língua tradicionais, caracterizando um poema
pertencente à estética Moderna.
Resposta: alínea C.
3.
Analise
as proposições em relação à obra Melhores poemas, Manuel Bandeira, e ao poema
acima transcrito, e assinale (V) para verdadeira e (F) para falsa.
( ) A leitura da estrofe sete leva o leitor a
inferir que o poeta dá preferência ao lirismo mais autêntico, dos loucos, dos
bêbedos e dos clowns, não preso a valores sociais, em detrimento de um lirismo
tradicional.
( ) Nos versos “Quero antes o lirismo dos loucos”
(20) e “O lirismo difícil e pungente dos bêbedos” (22) se os vocábulos
destacados forem substituídos por pelos, não há prejuízo quanto ao sentido
original do texto e quanto à regência.
(
) Nos versos “Será contabilidade
tabela de cossenos secretário do amante exemplar com” (17) e “cem modelos de
cartas e as diferentes maneiras de” (18) os vocábulos assinalados, embora
possuam classificação gramatical diferente, não se flexionam para indicar o
gênero masculino ou feminino, sendo que a indicação de gênero ocorre por meio
de modificadores.
(
) O sinal gráfico ( [ ) nos
versos 4, 6, 18 e 19, usado para intercalar as estruturas poéticas – versos,
assume uma outra função, a de reforçar o descomprometimento com as regras
gramaticais, conferindo à nova forma de escrever também um novo valor poético e
literário.
(
) No verso “Quero antes o lirismo
dos loucos” (20) o verbo, quanto à transitividade, é bitransitivo, pois tem
como complementos verbais objeto direto – lirismo, e objeto indireto dos
loucos.
Assinale a alternativa correta,
de cima para baixo.
A) F – F
– F – V – F
B) V – V
– V – F – F
C) V – V
– F – V – F
D) V – F
– V – V – F
E) F – F
– V – F – F
Resposta: alínea D.
(Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC. Questões 38 e 39 do
vestibular 2018.1, de 26 de novembro, disponível em https://www.udesc.br/arquivos/udesc/id_cpmenu/5978/CADERNO_MANH__COM_GABARITO_15117379179292_5978.pdf;
gabarito disponível em https://arquivos.qconcursos.com/prova/arquivo_gabarito/58486/udesc-2017-udesc-vestibular-primeiro-semestre-manha-gabarito.pdf?_ga=2.69263824.1987684596.1702589541-1009661154.1702589541)
Proposta de escrita
criativa
Já estudamos a construção e o
objetivo de um manifesto. A proposta de produção será: vamos reescrever o
“Poema-manifesto” de Manuel Bandeira. Sabemos que o poeta, quando escreveu o
poema, estava farto das propostas que representam o pensamento estético
predominante na época. E, hoje, o que nos deixam fartos, quais situações de
nossa época estamos condenando. Considere a estrutura do poema, a nossa
realidade, faça as suas críticas e adaptações no poema.
Poética
ou ____________
Estou farto ____________
Do(da) ____________
Do (da) ____________
Estou ____________
Abaixo os(as) ____________
[...]
Quero ____________
O(a) ____________
O(a) ____________
O (a) ____________
- Não quero mais saber do(da) ____________
(Josely Cristiane Telles, Formação continuada – SEEDUC. Disponível
em https://canal.cecierj.edu.br/012016/47e2af0d48886eb3d1feff02a52356e8.pdf)
Só pra dizer que te Amo,
Nem sempre encontro o melhor termo,
Nem sempre escolho o melhor modo.
Devia ser como no cinema,
A língua inglesa fica sempre bem
E nunca atraiçoa ninguém.
O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.
Só pra dizer que te Amo
Não sei porquê este embaraço
Que mais parece que só te estimo.
E até nos momentos em que digo que não quero
E o que sinto por ti são coisas confusas
E até parece que estou a mentir,
As palavras custam a sair,
Não digo o que estou a sentir,
Digo o contrário do que estou a sentir.
O teu mundo está tão perto do meu
E o que digo está tão longe,
Como o mar está do céu.
E é tão difícil dizer amor,
É bem melhor dizê-lo a cantar.
Por isso esta noite, fiz esta canção,
Para resolver o meu problema de expressão,
Pra ficar mais perto, bem mais de perto.
Ficar mais perto, bem mais de perto.
Clã, Kazoo,
1997
Composição:
Hélder Gonçalves / Carlos Tê
Clã na foto da capa do álbum Kazoo, de 1997
Problema
de expressão
Os Clã não escreveram só canções.
Escreveram-nos canções. Para cantarmos de olhos fechados uma letra (de Carlos
Tê) que revolvia a nossa timidez na hora de dizer ‘Amo-te’. Na língua inglesa,
qualquer patetice fica mesmo sempre bem; em português, qualquer exteriorização
de intimidade assume-se como extravagante (afinal, todas as cartas de amor são
mesmo ridículas). A Carlos Tê reconhece-se o dom para simplificar conceitos
complexos e para complexificar conceitos simples. Mas a Carlos Tê reconhece-se
sobretudo o mérito de as suas letras nos fazerem vibrar como cordas. E foi ‘O
Problema de Expressão’, do álbum “Kazoo”, que nos fez começar a vibrar como
cordas com os Clã. É uma canção intimista, envolvente, delicada e viciante,
fazendo-nos sentir parte do elenco em que foi composta. Há vizinhança entre a
letra de ‘Problema de Expressão’ e a nossa sensibilidade.
Depois de se descobrir o amor, nem sempre
é fácil dizer ao outro que o amamos.
O sujeito de enunciação afirma
ter um problema de expressão para dizer que ama alguém, porque não encontra o
melhor termo ou modo.
Não entende o embaraço que o leva
a achar que só tem estima por ele. Em muitos momentos, sente coisas confusas,
não dizendo o que sente, mas sim o contrário.
Como é muito difícil dizer
“amor”, e, uma vez que é bem melhor dizê-lo a cantar, o sujeito poético fez uma
canção. Desta forma, resolveu o problema de expressão e conseguiu ficar mais
perto, bem mais perto…
Contos & Recontos 7, Carla Marques e Inês Silva. Lisboa, ASA, 2013,
p. 152
Aquilo tornara-se um vício. Ele ouvia um telefone a
tocar e logo estendia o braço e levantava o auscultador.
– E se fosse para mim?
Os amigos faziam troça:
– No consultório do teu dentista?
Uma noite estava sozinho, no Rossio, à espera de um
táxi, quando o telefone tocou numa cabina ao lado. Era no fim da noite e
chovia: uma água mole, desesperançada, tão leve que parecia emergir do próprio
chão. Ruben enfiou as mãos nos bolsos do casaco.
– É claro que não vou atender – disse alto. – Não
pode ser para mim. Se atender este telefone é porque estou a enlouquecer.
O telefone voltou a tocar. Não chegou a tocar cinco
vezes. Ele correu para a cabina e atendeu.
– Está?
Estava muito sol do outro lado. Era, tinha de ser,
uma tarde de sol.
– Posso falar com o Gustavo?
A voz dela iluminou a cabina. Ruben pensou em dizer
que era o Gustavo. Estava ali, àquela hora absurda, abandonado como um náufrago
na mais triste noite do mundo. Tinha direito de ser o Gustavo (fosse ele quem
fosse).
– Você não vai acreditar, mas a sua chamada foi
parar a uma cabina telefónica.
Ela riu-se. Meus Deus – pensou Ruben – era como
beber sol pelos ouvidos.
– Não brinques! És tu, Gustavo, não és?…
Sim ele tinha o direito de ser o Gustavo:
– Infelizmente não. Você ligou para uma cabina
telefónica, no Rossio, eu estava à espera de um táxi e atendi.
Quase acrescentou: "pensei que pudesse ser para
mim". Felizmente não disse nada. Ela voltou a rir:
– Tenho a sensação de que esta chamada vai ficar-me
cara. Sabe onde estou?
Pulau Penang
Estava em Pulau Penang, na Malásia, e dali, do seu
quarto, num hotel chamado Paradise, podia ver todo o esplendor do mar.
– Nunca vi nada com esta cor – sussurrou – só espero
que Deus me dê a alegria de morrer no mar.
Ele ficou em silêncio. Aquilo parecia a letra de um
samba. Ela começou a chorar:
– Desculpe que vergonha… Nem sequer sei como se
chama.
Ruben apresentou-se: – Ruben, 34 anos, trabalho em
publicidade.
Pediu-lhe o número de telefone e ligou utilizando o
cartão de crédito. Aquela chamada ficou-lhe cara. Casaram oito meses depois.
Ele diz a toda a gente que foi o destino. Ela, pelo sim pelo não, proibiu-o de
atender telefones.
José Eduardo Agualusa, A substância do amor e
outras crónicas. 3.ª edição, Lisboa, Publicações D. Quixote, 2009, pp.
53-54
***
Escreve um pequeno comentário,
entre 80 e 100 palavras, sobre o sentido global do texto de José Eduardo
Agualusa, atentando na caracterização de Ruben, nas atitudes perante o
telefonema oriundo de Pulau Penang e na importância do destino na vida das pessoas.
(Proposta de escrita por Carla Marques e Inês Silva, emContos & Recontos 7.
Lisboa, ASA, 2013, p. 152)
Sugestão de resposta:
O sentido global do texto é mostrar
como o destino pode intervir na vida das pessoas, de forma surpreendente e
maravilhosa.
Ruben é uma personagem solitária, que
tem o hábito de atender telefones alheios, na esperança de encontrar alguém que
lhe fale.
As atitudes perante o telefonema de
Pulau Penang são de curiosidade, encantamento e coragem. Ruben decide
arriscar-se a conhecer a mulher que lhe ligou por engano, e acaba por se
apaixonar e casar com ela.
O destino é a força que une as duas
personagens, que vivem em lugares tão distantes e diferentes.
O texto é uma celebração do amor e da
magia do acaso.
Tens cabelos brancos.
Mas porquê, avô?
Caiu muita neve
na estrada onde vou.
Tens rugas na face.
Mas porquê, avô?
Bateu muito sol
na estrada onde vou.
Tens olhos baços.
Mas porquê, avô?
Pousou nevoeiro
na estrada onde vou.
Tens calos nas mãos.
Mas porquê, avô?
Parti muita pedra
na estrada onde vou.
Tens coração grande.
Mas porquê, avô?
Nele mora a gente
que por mim passou.
Luísa
Ducla Soares, A Cavalo no Tempo. Porto, Porto Editora, 2019
Proposta de escrita
O
poema “Diz o avô” in A Cavalo no Tempo de Luísa Ducla Soares mostra um grande
carinho pelo avô.
Escolhe
uma pessoa da tua família ou do teu grupo de amigos que admires muito.
Escreve
um poema semelhante ao de Luísa Ducla Soares, no qual faças a caracterização
dessa pessoa.
(Recurso complementar do Bloco n.º 59 de Português 5.º ao 6.º ano. Projeto #EstudoEmCasa,
09-06-2021)
O avô e o neto | FERNANDO PESSOA
Ao ver o neto a brincar,
Diz o avô, entristecido:
“Ah, quem me dera voltar
A estar assim entretido!
“Quem me dera o tempo quando
Castelos assim fazia,
E que os deixava ficando
Às vezes p’ra o outro dia;
“E toda a tristeza minha
Era, ao acordar p’ra vê-lo,
Ver que a criada já tinha
Arrumado o meu castelo."
Mas o neto não o ouve
Porque está preocupado
Com um engano que houve
No portão para o soldado.
E, enquanto o avô cisma, e, triste,
Lembra a infância que lá vai,
Já mais uma casa existe
Ou mais um castelo cai;
E o neto, olhando afinal,
E vendo o avô a chorar,
Diz, “Caiu, mas não faz mal:
Torna-se já a arranjar."
Fernando
Pessoa (1926), in Poesia 1018-1930, Manuela Parreira da Silva, Ana M.ª
Linhas de leitura
do poema “O avô e o neto”, de Fernando Pessoa
O avô sente tristeza e
saudade. Sente também o desejo impossível de regressar à infância, ao tempo das
brincadeiras, em que a única tristeza era alguém poder estragar-lhe uma
brincadeira começada.
O neto não ouve o avô
exatamente porque as suas preocupações são apenas as brincadeiras, tudo o resto
é para ele incompreensível ou mesmo inexistente.
A criança, sempre
preocupada com a sua brincadeira, pensa que as lágrimas do avô se devem ao
facto de o castelo ter caído. É por isso que, para o consolar, o neto lhe diz
que não faz mal, que se torna a montar.
O poema mostra-nos a
grande diferença entre o mundo dos idosos e o mundo das crianças, um cheio de
tristeza, solidão e melancolia, outro cheio de despreocupação e alegria.
Mostra-nos também uma realidade a que ninguém pode fugir - a passagem do tempo
- porque o avô também já foi menino e o menino há de ser velho também.
Relativamente à estrutura
formal, o poema é constituído por seis estrofes de quatro versos (quadras): os
versos são de redondilha maior (sete sílabas métricas); a rima é cruzada, pois
apresenta o esquema rimático abab.
(Adaptado de
Plural 7 – Manual. Língua Portuguesa. 7.º ano do Ensino Básico [Exemplar do
Professor], ElisaCosta Pinto e Vera Saraiva Baptista. Lisboa,
Lisboa Editora, 2011, p. 185. ISBN 978-972-680-642-4)
O avô minguante, Daniela
Leitão. Iilustração de Catarina Silva. ISBN 978-989-777-626-7
Daniela Leitão, O avô minguante. Lisboa, Planeta de
Livros Portugal para Pingo Doce – Distribuição Alimentar, SA, 2022
Iilustração de Catarina Silva
Crítica ao livro O avô
minguante, de Daniela Leitão
O tempo encolheu o avô
Um avô contido nas palavras, mas que sabia todas as respostas. O tempo
fê-lo minguar. Para o neto, será sempre grande. Imenso.
De
nome Mário, o avô desta história colhe laranjas e lê poesia. Fora carteiro e
marinheiro. O neto descreve-o assim: “O meu avô era muito grande e muito alto.
Tinha braços tão longos que um dia lhe perguntei se poderiam dar a volta ao
mundo. Respondeu-me que o mundo andava tão pequenino que talvez até fosse possível.”
Respondia
a tudo o que o neto lhe perguntava, exceto no dia em que evitou dizer-lhe o que
tinha feito em África: “A esta pergunta o meu avô não respondeu logo. Guardou devagar
o mapa por entre as páginas de um livro. Olhava para mim, ainda mais sério do que
o costume, quando me disse que em África não tinham feito nada de bom. Pelo
silêncio que se seguiu, percebi que era melhor não fazer mais perguntas sobre
as viagens e as marés.”
Com
o avançar do tempo, à medida que o menino crescia, o avô parecia encolher. “Antigamente,
o cadeirão não tinha espaço para tanto avô, mas agora parecia engoli-lo quase
por inteiro (…) Disse-me que todos os avós são
minguantes porque todos os netos são crescentes e é nesse cruzamento que se
encontram tão bem. Apertei-lhe a mão com força e quis
ficar ali para sempre. Queria que o meu avô fosse aquele avô para sempre.”
Um
livro terno sobre o avançar do calendário, sobre livros e palavras e ainda
sobre as relações especiais entre avós e netos.
“O
Avô Minguante não é o resultado de uma experiência
específica com um avô, mas sim uma colagem que construí com base em referências
indiretas que tenho dessa relação, por falta de ter tido a oportunidade de
experienciar essa palavra, isto é, de ter conhecido os meus avôs. É a história
de uma relação imaginada entre um avô e um neto e, no fundo, um
conto sobre a passagem do tempo e sobre a forma como significamos as nossas palavras”,
descreve por e-mail a
autora deste texto vencedor da 9.ª edição do Prémio de Literatura Infantil do
Pingo Doce, Daniela Leitão.
Natural
de Almada e licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, diz ainda: “Este avô e este neto têm uma
relação muito especial, que gira em torno dos livros, das histórias de vida do
avô e das memórias que os dois constroem em conjunto. É nesse entendimento
mútuo que ambos encontram serenidade no confronto inevitável com a passagem do
tempo e o ciclo onde uns crescem e outros minguam.”
Pretende
então com este livro “relembrar-nos que é nas histórias que ouvimos e nas memórias
que protagonizamos que damos significado às nossas palavras, de tal forma que elas
se tornam só nossas e, por isso, resistentes a tudo e impossíveis de
desaparecer”.
Diz
ter esta narrativa guardada há muito tempo: “Queria acima de tudo que a
história que escrevi pudesse ter uma vida para além da vida que tem em mim.”
Muito contente com a edição final do texto, não consegue imaginá-lo de outra
forma. E louva o trabalho da ilustradora, Catarina Silva: “A Catarina conseguiu
captar maravilhosamente a mensagem do texto e vê-lo reescrito pelo seu olhar
sensível e talentoso deixou-me muito emocionada.”
Sobre
si própria, recorda: “Sou uma pessoa para quem as histórias habitam as suas memórias
de infância mais felizes. A minha mãe apresentava-me muitos livros e o meu pai lia-me
uma história todas as noites. Foi um ritual que durou alguns anos e que me
levou a conhecer muitas histórias, a repetir a leitura de muitas outras e, em
última instância, a desenvolver uma relação muito emocional com os livros. Foi
na partilha oral de histórias e na leitura que surgiu a primeira invocação para
o sonho da escrita.” Daí a dedicatória feliz: “À
minha mãe, que me ensinou os livros. Ao meu pai, que mos leu.”
Iilustração de Catarina Silva
Celebrar
o primeiro livro
Catarina
Silva, também vencedora do prémio pela ilustração (são 25 mil euros para cada
uma), diz ao Público que se identificou logo com o texto: “É um texto
muito bonito e sensível que fala sobre a finitude do ser humano e da forte
relação de neto e avô. Também eu sou neta de uma avó que
considero muito minha amiga e que vejo ficar mais pequenina com o passar do
tempo.”
À
pergunta sobre se foi fácil ilustrar a história, responde: “Não diria fácil, eu
ainda estou a começar o meu caminho neste mundo da ilustração, ainda tenho
muitos medos e inseguranças e ainda estou à procura e a experimentar linguagens
gráficas.”
E
diz ter-se divertido: “Assim que cheguei à linguagem que queria e que soube que
tinha vencido a fase de ilustração, comecei logo a trabalhar as imagens com
muito afinco, fiquei muito entusiasmada, então trabalhava de manhã à noite, as
imagens foram surgindo e o livro foi-se construindo assim, fluiu bem.” E
acrescenta: “A Daniela deu-me muita liberdade e confiou no meu trabalho, isso
foi importante para mim.”
Ainda
que pudesse, não alteraria nada ao trabalho feito, mesmo se considera que “há sempre
coisas que com o passar do tempo vamos encontrando e que podiam ser alteradas ou
melhoradas”. No entanto, conclui: “Foi o
nosso primeiro livro e devo celebrá-lo como tal e sentir orgulho por ser o
primeiro — não alteraria nada agora.”
Formada
em Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, tem desenvolvido
projetos na área de cenografia e figurinos, movimento e performance.
Mais recentemente, descobriu “um enorme carinho pela ilustração, pelos álbuns
ilustrados e pela cerâmica”.
Neste
trabalho, usou técnica mista, fez as composições a lápis e depois trabalhou a cor
digitalmente.
Sobre
os planos para aplicar o dinheiro ganho, discorre: “São tempos difíceis os que estamos
a viver agora. Certamente que o dinheiro vai dar muito jeito para a vida
acontecer e também gostava de investir uma parte em
livros de artistas que me inspiram e material para conseguir produzir mais
trabalho e projetos.”
Segundo
a organização do prémio, “as oito obras previamente premiadas traduziram-se em mais
de 149 mil livros lidos por milhares de crianças”. Para esta edição, houve
cerca de “4 mil candidaturas, repartidas pelas categorias de texto e
ilustração”. Títulos premiados nas anteriores edições, da mais antiga para a
mais recente: De onde Vêm as Bruxas?; Orlando — O Caracol
Apaixonado; O Meu Livro Tem Bicho; Há Monstros no Túnel; O Narciso com Pelos no
Nariz; O Protesto do Lobo Mau; Leituras e Papas de Aveia; Assim como Tu.
Quanto
ao avô Mário e a muitos outros, mesmo minguantes, continuarão enormes na memória
dos netos.
Tinham
ido à praia, porque estava uma manhã bonita. A avó vestia uma saia clara e
levava o neto pela mão. Ia muito contente, e o seu coração cantava.
O neto
levava um balde, porque se propunha apanhar conchas e búzios, como já fizera de
outras vezes em que tinha ido à praia com a avó.
Ir à
praia com a avó era uma das melhores coisas que lhe podiam acontecer nos dias
livres. Por isso também ele ia contente, e o balde dançava-lhe na mão.
A praia
estava como devia estar, com sol e ondas baixas. Quase não havia vento, e a
água do mar não estava fria. Por isso o neto teve muito tempo de procurar
conchas e búzios e de tomar banho no mar. A avó sentou-se num rochedo, e ficou
a olhar o neto, por detrás dos óculos. Nunca se cansava de olhá-lo, porque o
achava perfeito. Se pudesse mudar alguma coisa nele, não mudaria nada.
Olhava
para ele, também, para que não se perdesse. A mãe do neto confiava nela.
Deixava-o à sua guarda, em manhãs assim. A avó sentia-se orgulhosa: ainda era
suficientemente forte para ter alguém por quem olhar. Ainda era uma avó útil,
antes que viesse o tempo que mais temia, em que poderia tornar-se um encargo
para os outros. Mas na verdade essa ideia não a preocupava muito, porque
tencionava morrer antes disso.
Estava
uma manhã tão boa que também a avó tirou a blusa e a saia e ficou em fato de
banho. Depois tirou os óculos, que deixou em cima de um rochedo, e entrou no
mar, atrás do neto, que nadava à sua frente, muito melhor e mais depressa do
que ela.
– Não te
afastes, dizia a avó, um pouco ofegante. Volta para trás!
A avó
fazia gestos com as mãos, para que voltasse, o neto ria-se, mergulhava e nadava
para a frente, e depois regressava, ao encontro dela.
A avó não sabia
mergulhar, mas deixava o neto mergulhar sozinho. Ele só tinha cinco anos,
mas nadava como um peixe.
No entanto nunca ia
demasiado longe, nem mergulhava demasiado
fundo, para não
assustar a avó. Sabia que ela era um bocado assustadiça, e ele gostava de
protegê-la contra os medos.
A avó tinha medo de
muitas coisas: dos paus que podiam furar os olhos, das agulhas e alfinetes que
se podiam engolir se se metessem na boca, das janelas abertas, de onde se podia
cair, do mar onde as pessoas se podiam afogar. A avó via todos esses perigos e
avisava. Ele ouvia, mas não ligava muito. Só o suficiente.
Não tinha medo de
nada, mas, apesar disso, gostava de sentir o olhar da avó. De vez em quando
voltava a cabeça, para ver se ela lá estava sentada, a olhar para ele. Depois
esquecia-se dela a voltava a ser o rei do mundo.
Por isso se sentiam
tão bem um com o outro.
Quando saía com o
neto, a avó tinha a sensação de entrar para dentro de fotografias, tiradas nos
mesmos lugares, muitos anos antes. Era uma sensação de deslumbramento e de
absoluta segurança, porque as coisas boas já vividas ninguém as podia mudar:
eram instantes absolutos, que durariam para sempre.
Outras vezes a avó
pensava que a vida era como uma lição já tão sabida, tão aprendida de cor e
salteada, que ela se sentia verdadeiramente mestra. Mestra em quê? Ora, em tudo
e em nada: nascimento, morte, amor, filhos, netos, tudo, enfim. A avó tinha a
sensação de entender o mundo.
Embora lhe parecesse
que o via agora desfocado. Sobretudo ao longe. Ah, meu Deus, tinha-se esquecido
dos óculos, em cima do rochedo. Tinham de lá voltar, e depressa, a avó sem os
óculos não via nada. Mas quando chegaram ao local, não estavam lá. A avó não
entendia como isso pudera acontecer. Não teria sido naquele rochedo? Teria a
maré subido e uma onda os arrastara? Passara alguém que os levasse? Mas a
ninguém aproveitavam, e provavelmente nem tinha passado ninguém, a praia estava
quase deserta, porque ainda não era verão. Ora, não era grave, pensou a avó,
quando se cansou de procurar. Arranjaria outros óculos.
Contos & Recontos 7. Lisboa, Asa, 2013
Caminhou com o neto
à beira das ondas, e depois subiram para as dunas à procura de camarinhas que a
avó não via, mas o neto apanhava logo. Passou muito tempo e nem deram conta de
se terem afastado. O neto cada vez mais feliz, com o balde onde pusera os
búzios acabado de encher com camarinhas. Apesar da falta dos óculos, pensou a
avó, não deixava de ser, como das outras vezes, uma manhã perfeita.
Até se levantar o
vento.
Na verdade não se
percebeu por que razão o céu se toldou e se levantou cada vez mais vento.
Deixou de se ver o azul, debaixo de nuvens carregadas, e a areia começou a
zunir em volta. O vento levantava a areia, cada vez mais alto, a areia batia na
cara e era preciso semicerrar as pálpebras para não a deixar entrar nos olhos.
– Que coisa, disse a
avó.
A manhã acabara, e
agora iam depressa para casa.
Estariam bem, em
casa, jogando às cartas atrás de uma janela fechada.
Mas, de repente, a
avó não sabia onde estava. As dunas eram altas e não sabia que direção tomar.
Caminharam ao acaso, voltando as costas à praia. Mas deveriam virar à esquerda
ou à direita? A avó não sabia onde ficavam as casas. Não se via nada na linha
do horizonte, a não ser as dunas. E, sem óculos, a avó sentia-se perdida.
– Dói-me o pé, disse
o neto. Espetei um pico no pé.
– Calça as sandálias,
disse a avó. Calçaram ambos as sandálias, que traziam na mão.
– Ainda dói, disse o
neto. Dói o pé.
– Deixa ver, disse a
avó tirando-lhe outra vez a sandália. É um espinho, sim, disse a avó, que sem
óculos via bem ao perto. Mas está muito enterrado e não consigo tirá-lo. Em
casa eu tiro, com um alfinete. Agora vamos depressa.
– Dói o pé, disse o
neto começando a chorar.
– Já passa, disse a
avó.
O vento levava-lhe a
saia, a areia batia-lhes nos braços e nas pernas, subia até à cara e queria
entrar nos olhos. O neto esfregava os olhos, com as mãos sujas de areia.
– Não posso andar,
disse ele. Dói o espinho.
– A avó não pode
levar-te ao colo, disse ela. Não tem os ossos fortes.
Arrastou-o alguns
passos, pela mão. Ele chorava e escondia a cara na saia dela, para proteger os
olhos do vento.
– Não posso andar,
disse ele sentando-se e tapando a cara com o chapéu. Dói o pé.
– Eu levo-te um
bocadinho, cedeu a avó. Mas só um bocadinho.
Contos & Recontos 7. Lisboa, Asa, 2013
Levantou-o nos
braços e avançou contra o vento. Uns metros mais adiante, deviam chegar ao fim
das dunas e saberia a direção das casas.
O neto era muito
pesado, mas a avó não se dava por vencida. Caminhava resoluta, enterrando as
sandálias na areia. Agora o caminho entre as dunas começava a subir.
E depois dessa duna,
havia ainda outra duna. A avó começou a ter medo de estar perdida.
Muitos anos atrás, a
avó perdera uma criança. A lembrança veio subitamente e ela não conseguia
afastá-la. Sempre quisera esquecê-la, mas de repente ela voltava. Mesmo em
sonhos. Uma criança ardendo em febre, e ela correndo com ela nos braços,
através de um hospital labiríntico. E depois os dias passavam e ela perdia a
criança.
Durante muito tempo,
não soube onde estava, quando lhe vieram dizer que perdera a criança.
E agora estava outra
vez perdida, com uma criança nos braços.
Já tinha vivido algo
assim. A vida era só vento e areia e ela arrastando-se, lutando em vão, contra
o vento e a areia.
Doíam-lhe os ossos,
não aguentava carregar o peso dele. E se de repente ficasse imobilizada,
estendida no chão, como já lhe sucedera mais do que uma vez? Aquela hérnia na
coluna podia sair do lugar e ela ficar sem conseguir mexer-se. E se isso
acontecesse e ela ficasse ali, sem poder andar? E se a criança se afastasse,
sozinha, à procura de socorro, e se perdesse? Se ela perdesse a criança?
Pousou o neto, e
sentou-se a seu lado na areia.
– Vamos descansar um
pouco, disse ela ofegante. Põe a cabeça no meu ombro, para fugir do vento.
Apetecia-lhe chorar,
mas não podia dar-se por vencida. Ele estava à sua guarda e ela encontraria
maneira de voltar a casa.
Mas sentia-se
perdida. O mundo era uma coisa sem direções, e desfocada.
Já vivera isso
antes. Uma longa extensão de areia, deserta. E ela tão desamparada como a
criança que levava. Ambas perdidas, no vento e na areia.
– Avó, olha o cão do
senhor Lourenço! apontou de repente o neto, recomeçando a andar, na direção de
um cão que corria para eles.
– Louvado Deus,
disse a avó recomeçando também a andar. Porque então estariam salvos. O café do
senhor Lourenço iria aparecer, como um farol, no meio das dunas. Bastava seguir
o cão.
O neto esquecia o
espinho e esquecia a dor no pé, e quase corria, alegremente, atrás do cão.
Em breve se sentavam
à mesa do café, e viam o vento levantar a areia. Mas agora isso passava-se lá
fora, do lado de lá da janela.
A avó pediu um café
e o neto um chocolate quente. Sorriram um para o outro e o mundo voltou a ser
perfeito.
Aflijo-me demais e
dramatizo as coisas, pensou a avó. Afinal atravessámos o vento e a areia. E,
amanhã de manhã, vou ao oculista.
Teolinda Gersão, A
mulher que prendeu a chuva e outras histórias. Lisboa, Sextante Editora, 2013, pp. 77-84.
Avó, fala-me de ti https://www.familiam.pt/inicio/20-avo-fala-me-de-ti-9788090789005.html