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segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Pessoa, leitor de Horácio

foto da biblioteca de Pessoa, na Casa Fernando Pessoa. 
Horácio ao lado de Homero

 

Quem lê Horácio recebe o seu lugar na comunidade das mentes mais argutas do passado, que encontraram neste poeta um estímulo da inteligência. Quando Camões escreveu a ode «Fogem as neves frias» ou a expressão estapafúrdia «Acroceráunios infamados» (ver Lusíadas 6.82), quis mostrar ao leitor que leu Horácio; talvez que tinha inteligência mais do que suficiente para entender Horácio. No âmbito restrito dos Estudos Clássicos, ainda hoje pasmamos com o rol ilustre de nomes que quiseram dedicar ao estudo de Horácio o melhor das suas capacidades intelectuais. Seria possível citar muitos nomes ingleses, alemães, italianos, americanos, etc. Mas vou só referir o nome de uma latinista de referência para mim, uma mulher extraordinária que assinou, em colaboração com o Professor Robin Nisbet, os melhores comentários alguma vez escritos à obra de Horácio: Margaret Hubbard, professora em Oxford (morreu em 2011, aos 86 anos), célebre pela sua inteligência cintilante, pelos três cigarros que fumava ao mesmo tempo (um na mão e dois acesos no cinzeiro), pelo gosto com que bebia quantidades valentes de vinho branco sem que lhe se notasse a mínima alteração; e namorada, em determinada fase da sua vida, da filósofa e escritora Iris Murdoch.

Outro obcecado por cigarros e por Horácio foi Fernando Pessoa, o homem que obrigou o mundo a rever a definição da palavra «génio». Quem visitar a Casa Fernando Pessoa, vê na biblioteca particular do autor a edição parisiense de Horácio, preparada por F. Plessis e P. Lejay (na edição de 1911, segundo o catálogo da biblioteca). Este livro existe também em várias bibliotecas da Universidade de Coimbra. Mas não pode ter sido a única edição de Horácio consultada por Pessoa, porque a edição de Plessis e Lejay omite alguns poemas que, já nos séculos XVI e XVII, eram considerados escandalosos. Um deles é a Ode 1 do Livro 4, em que Horácio se declara apaixonado: não por Lídia, Cloe ou Neera, mas sim por um jovem chamado Ligurino. Um manuscrito conservado no espólio de Fernando Pessoa mostra que Pessoa escolheu justamente esta ode para uma tentativa de tradução do latim para português. Assim, é certo que, além da edição que se encontra hoje na Casa Fernando Pessoa, o criador dos heterónimos consultou também Horácio noutras edições (remeto para o artigo de Luiz Fagundes Duarte, na revista Euphrosyne 1993, pp. 203-216).

Pessoa sabia latim, mas traduziu apenas o princípio da ode horaciana sobre Ligurino. Aliás, fez várias versões dos versos iniciais; e depois desistiu. Fez o mesmo com o início da Arte Poética. Talvez ele tenha sentido aquilo que eu próprio muitas vezes tenho sentido: como é difícil (ou mesmo impossível) transpor para a tradução a beleza das palavras em latim. É a frustração com esse problema que me tem impelido a fazer edições bilíngues de Vergílio e de Horácio: para que, ao menos, o texto latino esteja debaixo dos olhos dos leitores; e para que a tradução portuguesa tenha como objetivo primeiro constituir uma ajuda para a decifração do texto original.

Mas o que Pessoa (esse génio!) conseguiu com as Odes de Horácio foi um feito maior do que traduzi-las. Recriou-as. Fez renascer a voz de Horácio, 2000 anos após a morte do poeta romano. Na verdade, a poesia do heterónimo Ricardo Reis é uma recriação espantosa de Horácio. Sem que haja, porém, uma única citação literal do poeta romano! É como se a alma de Horácio tivesse reencarnado em Pessoa, tal como a de Homero teria reencarnado no poeta romano arcaico Énio (segundo testemunho do próprio Énio... presunção e água benta!). Reis não precisa de citar Horácio para ser Horácio. Aliás, quem cita Horácio literalmente não é Reis mas Álvaro de Campos, dando assim outro testemunho da obsessão de Pessoa por Horácio.

Leia-se o poema de Campos que começa com o verso recheado de palavras latinas «O mesmo "Teucro duce et auspice Teucro"». Campos está aqui a citar uma ode horaciana: em concreto, a Ode 7 do Livro 1. O segundo verso do poema de Campos dá-nos mais uma palavra em latim e mais uma alusão à mesma ode de Horácio: «É sempre "cras" - amanhã - que nos faremos ao mar». Este verso remete para o último da ode de Horácio: «Amanhã araremos de novo o mar enorme». E a expressão de Campos «nada que desesperar...» traduz o latim «nil desperandum» da ode horaciana.

Ricardo Reis não traduz, portanto, versos de Horácio. Transforma-se em Horácio. E escreve os poemas que Horácio poderia ter escrito se tivesse composto em português. Horácio escreveu quatro livros de Odes. Reis acrescentou mais um livro ao conjunto: um livro que destila a quintessência de Horácio e também interpreta e soluciona problemas famosos nas odes horacianas.

Um exemplo fascinante é a ode de Reis que começa com as palavras «Floresce em ti, ó magna terra, em cores / a vária primavera». Este poema de Ricardo Reis explica duas odes horacianas que têm causado perplexidade aos intérpretes, porque são dois poemas sobre a chegada da primavera em que, abruptamente, Horácio muda para o tema da morte (Ode 1.4; Ode 4.7). Reis explica a associação que Horácio fez entre a primavera e a morte: «Mas dorme em cada campo o outono dele. / O inverno cresce com as folhas verdes.» Ou seja: a morte está latente em cada nascimento.

É sabido que Fernando Pessoa quis de tal modo encarnar Horácio que andou às voltas com os problemas da métrica usada pelo poeta romano. No espólio de Pessoa, há testemunhos desse fascínio pela métrica latina, estudados pelo saudoso Fernando Lemos no seu livro «Fernando Pessoa e a Nova Métrica» (Lisboa, 1993). No entanto, não é na métrica de Horácio (impossível de reproduzir em português) que assenta o horacianismo de Ricardo Reis: é muito mais na dicção. A colocação das palavras nas frases lembra os hipérbatos da textura em «puzzle» das frases horacianas. Um exemplo expressivo é o poema de Reis que começa «As rosas amo dos jardins de Adónis, / Essas vólucres amo, Lídia, rosas». Na ordem direta, teríamos «Amo as rosas dos jardins de Adónis; amo essas rosas vólucres, Lídia».

Já agora: vólucres? Os especialistas de Pessoa discutem se o poeta escreveu «vólucres» ou «volúveis». Parece-me claro que Reis está a referir-se ao verso de Horácio «as flores demasiado breves da rosa amena» (Ode 2.3); e, de facto, Horácio usa o adjetivo latino «volucer» (cujo sentido é «alado», «rápido», «fugidio», «transitório»). Mas também usa «volubilis» uma vez nas Odes: curiosamente, é a última palavra da ode sobre a paixão por Ligurino.

E por falarmos em dúvidas quanto a uma palavra que Ricardo Reis escreveu: na única ode ricardiana em que Quinto Horácio Flaco é nomeado, será que o poeta português lhe chamou «louro Flaco» ou «louco Flaco»? As edições de Ricardo Reis são discrepantes: tanto lemos «louco Flaco» como «louro Flaco». Não há nada na poesia do próprio Horácio que nos leve a pensar que ele era louro: o que ele diz do seu cabelo é que ficou prematuramente grisalho (Epístolas 1.20.24). Mas no final da Arte Poética, fica claro que o poeta verdadeiro terá necessariamente um toque de loucura.

Dir-se-á que «louCo FlaCo» resulta numa aliteração inestética. Mas é bem horaciana. Veja-se o v. 22 da Arte Poética: «Currente rota Cur urCeus exit?» (em português: «enquanto a roda rodopia, porque sai um cântaro?»).

A dicção de Reis, com o seu puzzle de palavras, é parte integrante do prazer que nos é proporcionado pelos poemas de Ricardo Reis e de Horácio. Em 1973, Margaret Hubbard (certamente com três cigarros acesos e com um copo de vinho branco à sua frente) fez esta pergunta a respeito da poesia lírica horaciana: «what is the nature of the pleasure one feels or should feel in it?»

A resposta, quanto a mim, está na dicção: no puzzle de palavras e de sentidos; e também no desafio prazeroso que coloca à nossa inteligência. É um prazer que nos toma e domina, tal como o dos jogadores de xadrez de Ricardo Reis, que sentem o «inútil gozo / sob a sombra tranquila do arvoredo / de jogar um bom jogo».

Mas este gozo não é tão inútil assim: funciona, como os jogadores de xadrez bem sabiam, como amortecedor pessoal contra as tragédias do mundo. Na 2.ª Guerra Mundial, prisioneiros de guerra alemães e ingleses encontraram um prazer partilhado na poesia de Horácio (como conta Patrick Leigh Fermor - mas isso fica para outro post, pois este já vai longo).

Queremos uma síntese dos 7795 versos de Horácio? Ricardo Reis conseguiu fazê-la numa frase: «Quem quer pouco tem tudo; quem quer nada é livre».

 

Frederico Lourenço, Coimbra, 29/10/2023

“Pessoa, leitor de Horácio” disponível em https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco


terça-feira, 25 de abril de 2023

fatalidade, liberdade e libertação

José Pedro Serra, Professor e pesquisador português que se dedica aos estudos clássicos, destaca dois aspetos do mito de Édipo que o tornam relevante para a reflexão filosófica: a oposição entre a fatalidade e a liberdade, e o equívoco ou o erro de juízo.

 

Édipo e a Esfinge (480-470 a.C.) Museu Gregoriano Etrusco

Sobre a oposição entre a fatalidade (o constrangimento) e a liberdade, José Pedro Serra, afirma o seguinte: «Sei bem que hoje somos todos muito orgulhosos e muito imprudentemente confiantes na nossa liberdade.

O século XIX, ao dizer ‘quando se abre uma escola, fecha-se uma prisão’, manifestava, inocentemente e ingenuamente também, toda a importância do meio social.

A psicanálise, ao contrário, descentrou o Homem de si próprio, isto é, fez com que a sua consciência seja já o resultado de pulsões inconscientes que a determinam.

E sabemos lá hoje quantas determinações genéticas, hereditárias, ainda modulam a nossa liberdade.

Por mim, não proclamo tão orgulhosamente essa via da liberdade, quanto muito a ela prefiro a via progressiva da libertação, o que é bem diferente.

 

O segundo aspeto tem a ver já não tanto com este aspeto da liberdade, mas com uma outra coisa que é o equívoco, isto é, o erro de juízo.

Foi ao errar no juízo que Édipo determinou a sua própria sorte.

Ora, o erro de juízo é a fatalidade do nosso ser finito, uma vez que é a nossa finitude que, em última análise, nos faz sempre ter um conhecimento precário de qualquer coisa que nos rodeia. Na verdade, nós sabemos sempre muito pouco acerca de tudo (para não dizer que, em última análise, não sabemos nada).

E é essa tragédia do vagabundear como fantasmas, decidindo coisas que, em última análise, se mostram exatamente contrárias a tudo o que nós pensámos e nós deliberámos, é isso mesmo que se ergue também na tragédia de Édipo (O rei Édipo, de Sófocles).»

(Texto transcrito a partir do episódio “O Mito de Édipo”, in MYTHOS, temporada 1, episódio 22, RTP2, 24-04-2023. Disponível em https://www.rtp.pt/play/p10954/e687125/mythos).

 

José Pedro Serra, MYTHOS

 

Na exposição acima transcrita, o Professor José Pedro Serra questiona a confiança excessiva na liberdade humana, que pode ser limitada e condicionada por fatores sociais, pulsões inconscientes e determinações genéticas.

Este pesquisador também propõe uma distinção entre liberdade e libertação. Segundo ele, a liberdade seria um estado absoluto e ideal, que não leva em conta as circunstâncias históricas e individuais de cada pessoa. Já a libertação seria um processo gradual e relativo, que implica a superaração das opressões e dos constrangimentos que impedem o desenvolvimento humano.

Assim, a afirmação de que a "via progressiva da libertação" é preferível à "via da liberdade" deve ser entendida como um apelo para que a luta pela liberdade esteja sempre conectada à luta pela libertação, e que a liberdade individual só será significativa se estiver enraizada num compromisso mais amplo com a justiça social.

Nesse sentido, a ideia de "via progressiva da libertação" pode ser uma abordagem mais realista e útil para lidar com as questões de liberdade e opressão. Essa abordagem enfatiza a importância de lutar contra as limitações que restringem a liberdade humana, em vez de simplesmente afirmar a existência de uma liberdade total e incondicional.

 

Ele também aponta para a tragédia da finitude humana, que nos impede de ter um conhecimento pleno da realidade e nos faz agir muitas vezes contra os nossos próprios interesses.

Neste sentido, Serra discute a questão do equívoco ou erro de juízo, que é uma forma de fatalidade que nos pode levar a determinar o nosso próprio destino. Por isso, o Professor faz referência ao mito de Édipo, que é uma história clássica sobre a tragédia que pode ocorrer quando tomamos decisões com base em informações limitadas ou equivocadas.

Em última análise, o texto explora a tensão entre a nossa capacidade de escolha e as limitações impostas pela nossa condição humana.

  

https://www.parlamento.pt/Paginas/2023/abril/25-de-Abril-2023.aspx


 


CARREIRO, José. “fatalidade, liberdade e libertação”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 25-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/fatalidade-liberdade-e-libertacao.html


domingo, 6 de novembro de 2022

As Feiticeiras de Teócrito

“Teócrito é o poeta do travo amargo que o amor deixa na boca de quem ama“, Frederico Lourenço 


Representação de Hécate, deusa padroeira das bruxas,
 que, no culto romano, chegou a ter como epíteto venéfica


 

 

 

 

 

 

 

 

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AS FEITICEIRAS

 

Traze-me os filtros1, anda! E as folhas de loureiro.

Envolve-me essa taça em lã avermelhada,

a ver se encanto assim o cruel estrangeiro

que há doze dias já me deixa abandonada...

 

Ave2, traze até mim o jovem meu amado.

 

Vou queimar lentamente este ramo de louro:

vede como crepita! Ei-lo já todo em brasa...

Assim fique também aquele por quem morro!

E que eu o veja ardendo, aqui, em minha casa!

 

Ave, traze até mim o jovem meu amado.

 

Derreter esta cera? Assim me ajude a Lua,

para que se derreta a sua própria alma!

Ou que eu o veja então rondar a minha rua,

como nas minhas mãos esta roda não para!

 

Ave, traze até mim o jovem meu amado.

 

Já o mar se calou; já o vento caiu...

Mas a dor, no meu peito, é que nunca se cala.

Que foi que se passou? Sei que tudo perdi;

e que sou, para ele, ainda menos que nada.

 

Ave, traze até mim o jovem meu amado.

 

Adaptação do início de Idílio II de Teócrito3, As Feiticeiras, vv.1-16, feita por David Mourão-Ferreira in Imagens da Poesia Europeia, Lisboa: Artis, Lda, 1970, pp.132-133.

 

__________

1 Filtros – Palavra etimologicamente relacionada com verbo grego phileo (amar), que designa meios de sedução, ou seja, feitiços, bebidas, sortilégios geralmente realizados no intuito de alcançar o amor de alguém.

2 Ave – Trata-se da ave chamada alvéloa, associada, na Antiguidade Clássica, a rituais de magia amorosa, tendentes a reconquistar os amantes infiéis. Segundo a mitologia, a vingativa deusa Hera, esposa de Zeus, teria transmutado em alvéloa uma ninfa que lhe seduzira o marido.

3 Teócrito –Poeta grego (c.310 a. C.-c.250 a. C.), criador do género bucólico, nascido em Siracusa. São-lhe atribuídos idílios, epigramas, uma canção sobre a morte de Adónis e um fragmento de um poema intitulado Berenice. É um poeta de grande imaginação e sensibilidade. Ao mesmo tempo, destaca-se pela sua destreza na versificação e pelo seu estilo. (Porto Editora – Teócrito na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2022-11-03]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$teocrito)

 


Para responder a cada um dos itens de 1 a 7, selecione a única opção correta, de acordo com o sentido do texto.

1. No refrão “Ave, traze até mim o jovem meu amado.”, a palavra sublinhada desempenha a função sintática de:

a. sujeito.

b. predicativo do sujeito.

c. vocativo.

d. complemento do nome.

 

2. No plural, a forma correspondente a “Envolve-me” (verso 2) é:

a. envolvei-me.

b. envolves-nos.

c. envolveis-nos.

d. envolvam-se.

 

3. As palavras “a ver se encanto” (verso 3) revelam a intenção de:

a. operar uma metamorfose.

b. deliciar.

c. fascinar.

d. enternecer.

 

4. A pronominalização do segmento sublinhado em “Vou queimar lentamente este ramo de louro” (verso 6) é:

a. vou o queimar.

b. vou queimá-lo.

c. vou-o queimar.

d. vou queimar-lhe.

 

5. Em “Ei-lo já todo em brasa...” (verso 7), a forma sublinhada tem por referente:

a. o cruel estrangeiro.

b. o jovem meu amado.

c. este ramo de louro.

d. aquele por quem morro.

 

6. No verso 11, o vocábulo “Lua” desempenha a função sintática de:

a. complemento direto.

b. sujeito.

c. predicativo do sujeito.

d. predicativo do complemento direto.

 

7. Ao dizer “que eu o veja então rondar a minha rua” (verso 13), a figura feminina manifesta a esperança de ver o jovem amado a:

a. andar constantemente em volta da sua rua.

b. tentar seduzi-la.

c. vigiar a sua rua.

d. patrulhar a sua rua.

 

8. Em “sou, para ele, ainda menos que nada” (verso 19), está presente:

a. uma hipérbole.

b. uma metáfora.

c. um eufemismo.

d. uma perífrase.

 

Chave de respostas: 1.c; 2.a; 3.c; 4.b ou 4.c; 5.c; 6.b; 7.a; 8.a.

(Fonte: Olimpíadas da Língua Portuguesa - Ensino Secundário. 1.ª Fase - 2016-02-19. Portugal, Direção-Geral da Educação, https://www.dge.mec.pt/olimpiadas-da-lingua-portuguesa)

 


 

«Esta formosa versão de David Mourão-Ferreira traduz apenas o início do poema.

O poema na sua totalidade cobre a gama emocional em torno da paixão e da perda, onde o recurso à magia negra é o instrumento para garantir o ancestral desejo de absoluto no amor: se não é para mim, não será para mais ninguém. Antes mutilado ou morto. E para o conseguir, os recursos de feitiço são variados como se espera.

O poema desenvolve a narrativa em duas partes: na primeira seguimos as etapas do processo de feitiço e na segunda tomamos conhecimento do desenvolvimento da paixão até ao desenlace que provoca esta busca do sobrenatural.»

Carlos Mendonça Lopes, https://viciodapoesia.com/2012/10/21/as-feiticeiras-de-teocrito-c-300-c-250-a-c/

 

Segue-se toda a história, vertida em português por Albano Martins:

 

AS FEITICEIRAS

 

Onde estão os meus ramos de loureiro? Téstilis, vai buscá-los!
Onde estão os filtros? Coroa a taça
de fina lã de ovelha tingida de púrpura,
e assim prenderei o amado que me tortura.
Há já doze dias que o miserável
não vem ver-me, nem se preocupa
em saber se estou morta ou viva…

 

Alvéola, traz a minha casa aquele homem!

 

Primeiro consome-se a farinha no fogo.
Espalha-a, Téstilis. Desgraçada, onde tens a cabeça?
Também para ti, ó infame, sou motivo de troça?
Espalha e diz ao mesmo tempo:”Espalho
os ossos de Délfis”.

 

Alvéola, traz a minha casa aquele homem!

 

Délfis desgosta-me, e eu, por causa de Délfis,
queimo loureiro. Tal como este crepita
ao contacto com o fogo e arde tão rapidamente
que nem sequer vemos a cinza, que assim
se consuma na chama a carne de Délfis.

 

Alvéola, traz a minha casa aquele homem!

 

Tal como derreto esta cera com a ajuda da deusa,
que assim o mínimo Délfis se derreta de paixão.
E como este disco de bronze gira,
movido por Afrodite, que assim
ele venha a girar à minha porta.

 

Alvéola, traz a minha casa aquele homem!

 

Já se calou o mar, calaram-se os ventos, mas não se cala
a dor no meu peito. Ardo completamente
por aquele que, pobre de mim, me fez, não sua esposa,
mas mulher má e desonrada.

 

Alvéola, traz a minha casa aquele homem!

 

Délfis perdeu esta franja da sua capa; agora
desfio-a e atiro-a ao fogo destruidor.
Aí, terrível Eros, porque sugaste
todo o sangue negro do meu corpo
como sanguessuga do pântano?

 

Alvéola, traz a minha casa aquele homem!

 

Esmagarei um lagarto e amanhã levar-lhe-ei
uma poção venenosa. Téstilis, vai agora
apanhar as ervas, amassa-as na soleira
da sua casa, antes que a noite acabe, cospe nelas
e diz:”Esmago os ossos de Délfis!”

 

Alvéola, traz a minha casa aquele homem!

 

Agora que estou só, como hei-de chorar o meu amor?
Por onde hei-de começar? Quem me trouxe este mal?…

 

Diz-me, soberana Lua, donde veio o meu amor.

 

Eu vi-o, e logo o delírio me tomou, logo se me sobressaltou
e feriu o coração, infeliz. A minha beleza murchou
e não prestei mais atenção àquela procissão.
Não sei como voltei para casa: um mal devorador
destroçou-me e estive prostrada no leito
durante dez dias e dez noites.

 

Diz-me, soberana Lua, donde veio o meu amor.

 

A minha tez tinha frequentemente
A cor do açafrão, os cabelos caíam-me todos
da cabeça, só me restavam
os ossos e a pele. A quem não recorri ou que casa
de que velha feiticeira não visitei? Mas nada
me aliviou, e o tempo passava, fugaz.

 

Diz-me, soberana Lua, donde veio o meu amor.

 

E assim revelei à escrava os meus verdadeiros propósitos:
“Vai, Téstilis, e arranja-me um remédio
para este penoso mal. O míndio apossou-se de mim
completamente, pobre de mim. Vai pois espreitar
a palestra de Timageto. Ele costuma ir lá,
ele gosta de estar ali.

 

Diz-me, soberana Lua, donde veio o meu amor.

 

E, quando o vires sozinho, faz-lhe um sinal
às escondidas e diz-lhe: “Simeta chama-te”,
e trá-lo aqui. Assim lhe disse, ela foi
e trouxe o reluzente Délfis a minha casa. E eu,
mal o vi transpor com pé ligeiro
a soleira da minha porta,

 

(Diz-me, soberana Lua, donde veio o meu amor.)

 

fiquei toda mais fria do que a neve,
da fronte escorreu-me um suor
semelhante a húmidas gotas de orvalho,
não conseguia articular palavra
nem sequer esses balbúcios que as crianças
pronunciam no sono, quando falam com as mães.
E o meu belo corpo ficou tão rígido
como o duma boneca.

 

Diz-me, soberana Lua, donde veio o meu amor.

 

Este homem insensível viu-me, fixou os olhos no chão,
sentou-se no mediu leito e, já sentado, disse
“Na verdade, Simeta, não te antecipaste mais
do que eu mesmo um dia destes me antecipei na corrida
ao encantador Filino: recebi o convite para vir a tua casa
no momento em que vinha para cá”.

 

Diz-me, soberana Lua, donde veio o meu amor.

 

…Assim ele falou. E eu, ingénua, pegando-lhana mão,
Fi-lo reclinar-se no macio leito. Em breve os nossos corpos
em contacto um com o outro, aqueceram, as nossas caras
tornaram-semais quentes do que antes
e cochichávamos docemente. Enfim,
para não alongar a história, querida Lua,
o mais importante aconteçeu
e atingimos ambos o que desejávamos.

 

E agora? Há já doze dias que não o vejo.
Não será que tem outros prazeres
e se esqueçeu de mim?
Mas hoje vou prendê-lo com os meus filtros.
Se insistir em fazer-me sofrer,
às portas do Hades – pelas Moiras! – terá que chamar.
Tal é, declaro-o, o poder dos venenos
que para ele guardo numa caixinha
e que, ó soberana, me ensinou um estrangeiro da Assíria.

 

Mas tu, radiante, ó soberana, dirige os teus potros para o Oceano.
Eu carregarei o meu fardo como até aqui.
Saúdo-te, ó Lua de face resplandecente! E saúdo também
as outras estrelas, que acompanham o carro da Noite tranquila.

 

Antologia da poesia grega clássica; trad., notas complementares Albano Martins. - Porto: Afrontamento, 2011.

 

Circe Invidiosa, Waterhouse (1896)


 

E agora o mesmo poema numa tradução de Rafael Brunhara:

 

TEÓCRITO — IDÍLIO 2 (“A FEITICEIRA”)

 

Onde as folhas de louro? Traz, Testílide. Onde os filtros mágicos?

Cinge o jarro com a mais fina lã carmesim[1]

porque amarrarei esse que é meu fardo, o amado

que por doze dias, miserável, não me visita,

nem sabe se eu estou viva ou morta, 5

nem <me> bateu à porta, cruel. Com certeza para outro lugar

partiu, Eros e Afrodite levando seu espírito inconstante.

Irei à palestra[2] de Timágeto

amanhã. Quando lá o vir, vou criticá-lo por me tratar assim.

Mas hoje o amarrarei com oferendas de fogo. Vamos, Lua, 10

brilha bela: a ti, nume, cantarei serena,

e à ínfera Hécate[3], que até os cães faz tremer[4]

quando passa pelas tumbas dos mortos e pelo sangue negro[5].

Olá, Hécate horrenda, ajuda-nos até o fim,

faz estes fármacos não inferiores aos de Circe, 15

aos de Medeia, aos da loira Perimede.[6]

Iynx, arrasta aquele homem para a minha casa! [7]

Cevada primeiro vou consumir no fogo, Vamos, polvilha,

Testílide. Parva, para onde teu espírito voou?

Acaso para ti, desgraçada, também me tornei objeto de escárnio? 20

Polvilha enquanto fala assim: “os ossos de Délfis[8] polvilho”

Iynx, arrasta aquele homem para a minha casa!

Délfis me perturbou: eu contra Délfis a folha de louro

queimo. E como ela crepita forte quando pega fogo

e de repente se inflama até que não vemos nem suas cinzas, 25

assim também nas chamas Délfis reduza à pó <sua> carne.

Iynx, arrasta aquele homem para a minha casa! 27

Agora queimarei os farelos do trigo. Tu, Ártemis, que até no Hades 33

podes mover o <portal de> adamante[9], e o que mais houver de firme…

Testílide! Os cães uivam para nós na cidade! 35

A Deusa está nas encruzilhadas! Faz ressoar o bronze o mais rápido possível!

Iynx, arrasta aquele homem para a minha casa!

Veja! Cala-se o pélago, calam-se as brisas,

mas não se cala a dor lá dentro do meu peito,

eu me queimo toda por aquele homem que — mísera! — me 40

fez ser, em vez de esposa, vil e não-virgem.

Iynx, arrasta aquele homem para a minha casa!

Assim como essa cera eu derreto com <a ajuda> da divindade, 28

assim derreta em desejo o míndio[10] Délfis de uma vez. 29

E como este rombo[11] de bronze roda pelo <poder> de Afrodite, 30

assim ele fique rodeando a minha porta! 31

Iynx, arrasta aquele homem para a minha casa! 32

Três vezes eu libo e três vezes, Dona, digo estas <palavras>: 43

se é mulher quem se deita ao lado dele, se é homem,

que se esqueça deles tanto quanto dizem que Teseu certa vez 45

em Dia[12] se esqueceu de Ariadne de belas tranças.

Iynx, arrasta aquele homem para a minha casa!

Hipômanes[13] é uma planta na Arcádia, pela qual todas

as potras enlouquecem nas montanhas e as ágeis éguas.

Assim também eu veja Délfis entrar nesta casa 50

como um louco, vindo da oleosa[14] palestra.

Iynx, arrasta aquele homem para a minha casa!

De seu manto Délfis perdeu esta franja[15],

e eu agora arranco fio por fio e jogo no fogo selvagem:

Aiai, Eros perturbador, por que o sangue negro do meu corpo 55

bebeste todo, preso em mim como sanguessuga do pântano?

Iynx, arrasta aquele homem para a minha casa!

Um lagarto esfolarei e vil poção[16] levarei <para ele> amanhã.

Testílide, pega agora as ervas e espreme suavemente

sobre a soleira <da casa> dele, enquanto ainda é noite,[17] 60

e diz sussurrando “espremo os ossos de Délfis”. 62

Iynx, arrasta aquele homem para a minha casa!

Agora que estou só, a partir de onde chorarei meu desejo,[18]

de onde começarei? Quem me trouxe esse mal? 65

A filha de Eubulo, nossa Anaxo, foi como canéfora[19]

ao bosque de Ártemis, para quem naquela ocasião muitas

feras caminhavam em procissão por todos os lados, entre elas uma leoa.[20]

Olha de onde veio o meu desejo, Dona Lua.

E Teumárida, ama da Trácia, ela que está entre os deuses, 70

mas era minha vizinha de porta, rogou e implorou

para eu assistir à procissão. Eu, desgraçadíssima,

a acompanhei arrastando um belo vestido de linho

e toda envolta no manto de Clearista[21].

Olha de onde veio o meu desejo, Dona Lua. 75

Eu já estava no meio do caminho, onde <estão as terras> de Lícon[22],

e vi Délfis indo junto com Eudamipo.

As barbas deles eram mais loiras que helicriso

e o peito reluzia mais do que tu, Lua,

porque tinham acabado de deixar o belo exercício do ginásio. 80

Olha de onde veio o meu desejo, Dona Lua.

E assim que o vi, enlouqueci, meu coração foi lançado ao fogo,

parvo, a beleza esvaiu-se, e àquela procissão eu não

assisti mais, nem sei como eu voltei

para casa, mas uma febre abrasadora me abalou 85

e fiquei de cama por dez dias e dez noites.

Olha de onde veio o meu desejo, Dona Lua.

E muitas vezes minha pele tornava-se igual ao fustete[23],

começaram a cair da cabeça todos os cabelos, fiquei

só pele e ossos. E à casa de quem eu não entrei? 90

A que velha que entoava encantos eu deixei de ir?

Mas não foi nada fácil, e o tempo, fugindo, acabava.

Olha de onde veio o meu desejo, Dona Lua.

E desse modo à escrava contei a história verdadeira:

“Vamos, Testílide, para a minha dura febre descobre um remédio. 95

Tem-me toda, mísera, o míndio. Vai

e espera na palestra de Timágeto.

Lá ele frequenta, lá ele gosta de sentar-se.

Olha de onde veio o meu desejo, Dona Lua.

E quando souberes que ele está sozinho, acena discretamente, 100

diz: ‘Simeta te chama’ e o traz aqui.

Assim falei. Ela foi e trouxe o de pele brilhosa

à minha casa, Délfis. Quando eu o vi

atravessar a soleira da minha porta com pé ágil –

Olha de onde veio o meu desejo, Dona Lua — 105

gelei-me toda, mais que a neve, e do meu rosto

escorria água, como o úmido orvalho,

não podia falar, não mais do que criança que

balbucia no sono chamando a mãe querida,

mas meu belo corpo enrijeceu todo como um boneco de cera. 110

Olha de onde veio o meu desejo, Dona Lua.

E quando me viu, o insensível cravou os olhos no chão,

sentou-se na cama e, ao sentar-se, contou a história:

“De fato, Simeta, me ultrapassaste — tanto quanto eu

ultrapassei outro dia o grácil Filino[24] na corrida — 115

ao me convidar para estar sob este teu teto.

Olha de onde veio o meu desejo, Dona Lua.

Pois eu teria vindo, sim, pelo doce Eros, eu teria vindo,

com dois ou três amigos, logo à noite[25],

as maçãs de Dioniso [26] guardando no colo, 120

na cabeça o álamo branco, sacro rebento de Héracles,

todo enrolado em nastros purpúreos[27].

Olha de onde veio o meu desejo, Dona Lua.

E se me recebesses, isso seria aprazível (pois ágil

e belo todos os rapazes me chamam). 125

e eu dormiria se só beijasse a tua bela boca,

mas se me rejeitasses e a porta tivesses <fechado> com um ferrolho,

de qualquer modo machados e tochas cairiam sobre ti.

Olha de onde veio o meu desejo, Dona Lua.

Mas agora, afirmo que estou devendo primeiro um “obrigado” à Cípris[28], 130

e, depois da Cípris, a ti, a segunda, que me tiraste do fogo,

mulher, quando me convocaste para este teu recinto,

eu que já estava meio em chamas. Eros muitas vezes

acende um brilho mais fogoso do que o de Hefesto em Líparas[29], –

Olha de onde veio o meu desejo, Dona Lua — 135

com vis insânias ele afugenta até a virgem da alcova

e faz a noiva abandonar a cama ainda quente

do marido.” Assim ele falou. E eu, tão crédula,

a sua mão peguei e o reclinei no leito macio;

logo corpo esquentava corpo, as <nossas> faces 140

ficaram mais cálidas do que antes e docemente sussurrávamos.

Para não me alongar demais, amiga Lua,

o principal foi feito, e alcançamos os dois o <nosso> anseio.

Até ontem, pelo menos, ele não se queixava de mim

nem eu dele. Mas visitou-me a mãe de Filista, 145

nossa flautista, e de Melixo,

hoje, quando galopavam no céu os corcéis[30]

da rósea Aurora levando-a do Oceano,

e disse-me muitas coisas, aliás, que Délfis estava apaixonado,

e, ainda, que se o desejo era por mulher ou por homem, 150

ela disse não saber ao certo, só sabia esse tanto: ele sempre a Eros

estava brindando vinho sem mistura e, no fim, saía correndo,

dizia que ia cobrir aquela casa com guirlandas.

Essas coisas minha hóspede me contou, e são verdadeiras,

pois então Délfis visitava-me três ou quatro vezes <por dia> 155

e frequentemente até deixava em minha casa o <seu> frasco dório[31];

mas hoje já é o décimo segundo dia que não o vejo.

Acaso ele tem outro prazer e se esqueceu de mim?

Agora, sim, com filtros mágicos vou amarrá-lo; mas se ele ainda

atormentar, é à porta do Hades, — pelas Moiras! [32] — que baterá. 160

Tais fármacos vis eu afirmo guardar na <minha> cesta,

tendo aprendido sobre eles, Senhora, com um estrangeiro assírio[33].

Mas digo-te adeus! Vira <teus> potros em direção ao Oceano,

Dona, e, enquanto isso, eu suportarei meu desejo como já venho suportando.

Adeus, Lua de brilhoso trono, adeus, todas as outras 165

estrelas, assistentes na carruagem da Noite imperturbável!

 

_____________________________

 

Π μοι τα δάφναι; φέρε, Θεστυλί. π δ τ φίλτρα;

στέψον τν κελέβαν φοινικέ οἰὸς ώτ,

ς τν μν βαρν εντα φίλον καταδήσομαι νδρα,

ς μοι δωδεκαταος φ’ τάλας οδ ποθίκει,

οδ’ γνω πότερον τεθνάκαμες ζοο εμές, 5

οδ θύρας ραξεν νάρσιος. ά ο λλ

χετ’ χων τ’ ρως ταχινς φρένας τ’ φροδίτα.

βασεμαι ποτ τν Τιμαγήτοιο παλαίστραν

αριον, ς νιν δω, κα μέμψομαι οά με ποιε.

νν δέ νιν κ θυέων καταδήσομαι. λλά, Σελάνα, 10

φανε καλόν· τν γρ ποταείσομαι συχα, δαμον,

τ χθονί θ’ κάτ, τν κα σκύλακες τρομέοντι

ρχομέναν νεκύων νά τ’ ρία κα μέλαν αμα.

χαρ’, κάτα δασπλτι, κα ς τέλος μμιν πάδει,

φάρμακα τατ’ ρδοισα χερείονα μήτε τι Κίρκας 15

μήτε τι Μηδείας μήτε ξανθς Περιμήδας.

υγξ, λκε τ τνον μν ποτ δμα τν νδρα.

λφιτά τοι πρτον πυρ τάκεται. λλ’ πίπασσε,

Θεστυλί. δειλαία, π τς φρένας κπεπότασαι;

ά γέ θην, μυσαρά, κα τν πίχαρμα τέτυγμαι; 20

πάσσ’ μα κα λέγε τατα· ‘τ Δέλφιδος στία πάσσω.’

υγξ, λκε τ τνον μν ποτ δμα τν νδρα.

Δέλφις μ’ νίασεν· γ δ’ π Δέλφιδι δάφναν

αθω· χς ατα λακε μέγα καππυρίσασα

κξαπίνας φθη κοδ σποδν εδομες ατς, 25

οτω τοι κα Δέλφις ν φλογ σάρκ’ μαθύνοι.

υγξ, λκε τ τνον μν ποτ δμα τν νδρα. 27

νν θυσ τ πίτυρα. τ δ’, ρτεμι, κα τν ν ιδα 33

κινήσαις δάμαντα κα ε τί περ σφαλς λλο

Θεστυλί, τα κύνες μμιν ν πτόλιν ρύονται· 35

θες ν τριόδοισι· τ χαλκέον ς τάχος χει.

υγξ, λκε τ τνον μν ποτ δμα τν νδρα.

νίδε σιγ μν πόντος, σιγντι δ’ ἀῆται·

δ’ μ ο σιγ στέρνων ντοσθεν νία,

λλ’ π τήν πσα καταίθομαι ς με τάλαιναν 40

ντ γυναικς θηκε κακν κα πάρθενον μεν.

υγξ, λκε τ τνον μν ποτ δμα τν νδρα.

ς τοτον τν κηρν γ σν δαίμονι τάκω, 28

ς τάκοιθ’ π’ ρωτος Μύνδιος ατίκα Δέλφις. 29

χς δινεθ’ δε όμβος χάλκεος ξ φροδίτας, 30

ς τνος δινοτο ποθ’ μετέραισι θύραισιν. 31

υγξ, λκε τ τνον μν ποτ δμα τν νδρα. 32

ς τρς ποσπένδω κα τρς τάδε, πότνια, φων· 43

ετε γυν τήν παρακέκλιται ετε κα νήρ,

τόσσον χοι λάθας σσον ποκ Θησέα φαντί 45

ν Δί λασθμεν υπλοκάμω ριάδνας.

υγξ, λκε τ τνον μν ποτ δμα τν νδρα.

ππομανς φυτόν στι παρ’ ρκάσι, τ δ’ πι πσαι

κα πλοι μαίνονται ν’ ρεα κα θοα πποι·

ς κα Δέλφιν δοιμι, κα ς τόδε δμα περάσαι 50

μαινομέν κελος λιπαρς κτοσθε παλαίστρας.

υγξ, λκε τ τνον μν ποτ δμα τν νδρα.

τοτ’ π τς χλαίνας τ κράσπεδον λεσε Δέλφις,

γ νν τίλλοισα κατ’ γρί ν πυρ βάλλω.

αα ρως νιαρέ, τί μευ μέλαν κ χρος αμα 55

μφς ς λιμντις παν κ βδέλλα πέπωκας;

υγξ, λκε τ τνον μν ποτ δμα τν νδρα.

σαύραν τοι τρίψασα κακν ποτν αριον οσ.

Θεστυλί, νν δ λαβοσα τ τ θρόνα ταθ’ πόμαξον

τς τήνω φλις καθ’ πέρτερον ς τι κα νύξ, 60

κα λέγ’ πιτρύζοισα ‘τ Δέλφιδος στία μάσσω.

υγξ, λκε τ τνον μν ποτ δμα τν νδρα.

Νν δ μώνα οσα πόθεν τν ρωτα δακρύσω;

κ τίνος ρξωμαι; τίς μοι κακν γαγε τοτο; 65

νθ’ τωβούλοιο καναφόρος μμιν ναξώ

λσος ς ρτέμιδος, τ δ τόκα πολλ μν λλα

θηρία πομπεύεσκε περισταδόν, ν δ λέαινα.

φράζεό μευ τν ρωθ’ θεν κετο, πότνα Σελάνα.

καί μ’ Θευμαρίδα Θρσσα τροφός, μακαρτις, 70

γχίθυρος ναίοισα κατεύξατο κα λιτάνευσε

τν πομπν θάσασθαι· γ δέ ο μεγάλοιτος

μάρτευν βύσσοιο καλν σύροισα χιτνα

κμφιστειλαμένα τν ξυστίδα τν Κλεαρίστας.

φράζεό μευ τν ρωθ’ θεν κετο, πότνα Σελάνα. 75

δη δ’ εσα μέσαν κατ’ μαξιτόν, τ Λύκωνος,

εδον Δέλφιν μο τε κα Εδάμιππον όντας·

τος δ’ ς ξανθοτέρα μν λιχρύσοιο γενειάς,

στήθεα δ στίλβοντα πολ πλέον τύ, Σελάνα,

ς π γυμνασίοιο καλν πόνον ρτι λιπόντων. 80

φράζεό μευ τν ρωθ’ θεν κετο, πότνα Σελάνα.

χς δον, ς μάνην, ς μοι πυρ θυμς άφθη

δειλαίας, τ δ κάλλος τάκετο. οκέτι πομπς

τήνας φρασάμαν, οδ’ ς πάλιν οκαδ’ πνθον

γνων, λλά μέ τις καπυρ νόσος ξεσάλαξεν, 85

κείμαν δ’ ν κλιντρι δέκ’ ματα κα δέκα νύκτας.

φράζεό μευ τν ρωθ’ θεν κετο, πότνα Σελάνα.

καί μευ χρς μν μοος γίνετο πολλάκι θάψ,

ρρευν δ’ κ κεφαλς πσαι τρίχες, ατ δ λοιπά

στί’ τ’ ς κα δέρμα. κα ς τίνος οκ πέρασα, 90

ποίας λιπον γραίας δόμον τις πδεν;

λλ’ ς οδν λαφρόν, δ χρόνος νυτο φεύγων.

φράζεό μευ τν ρωθ’ θεν κετο, πότνα Σελάνα.

χοτω τ δώλ τν λαθέα μθον λεξα·

’ε δ’ γε, Θεστυλί, μοι χαλεπς νόσω ερέ τι μχος. 95

πσαν χει με τάλαιναν Μύνδιος· λλ μολοσα

τήρησον ποτ τν Τιμαγήτοιο παλαίστραν·

τηνε γρ φοιτ, τηνε δέ ο δ καθσθαι.

φράζεό μευ τν ρωθ’ θεν κετο, πότνα Σελάνα.

κπεί κά νιν όντα μάθς μόνον, συχα νεσον, 100

κεφ’ τι “Σιμαίθα τυ καλε, κα φαγέο τεδε.

ς φάμαν· δ’ νθε κα γαγε τν λιπαρόχρων

ες μ δώματα Δέλφιν· γ δέ νιν ς νόησα

ρτι θύρας πρ οδν μειβόμενον ποδ κούφ

φράζεό μευ τν ρωθ’ θεν κετο, πότνα Σελάνα 105

πσα μν ψύχθην χιόνος πλέον, κ δ μετώπω

δρώς μευ κοχύδεσκεν σον νοτίαισιν έρσαις,

οδέ τι φωνσαι δυνάμαν, οδ’ σσον ν πν

κνυζενται φωνεντα φίλαν ποτ ματέρα τέκνα·

λλ’ πάγην δαγδι καλν χρόα πάντοθεν σα. 110

φράζεό μευ τν ρωθ’ θεν κετο, πότνα Σελάνα.

καί μ’ σιδν στοργος π χθονς μματα πάξας

ζετ’ π κλιντρι κα ζόμενος φάτο μθον·

ά με, Σιμαίθα, τόσον φθασας, σσον γώ θην

πρν ποκα τν χαρίεντα τράχων φθασσα Φιλνον, 115

ς τ τεν καλέσασα τόδε στέγος ‘μ παρμεν.

φράζεό μευ τν ρωθθεν κετο, πότνα Σελάνα.

νθον γάρ κεν γώ, να τν γλυκν νθον ρωτα,

τρίτος ἠὲ τέταρτος ἐὼν φίλος ατίκα νυκτός,

μλα μν ν κόλποισι Διωνύσοιο φυλάσσων, 120

κρατ δ’ χων λεύκαν, ρακλέος ερν ρνος,

πάντοθι πορφυρέαισι περ ζώστραισιν λικτάν.

φράζεό μευ τν ρωθ’ θεν κετο, πότνα Σελάνα.

καί κ’, ε μέν μ’ δέχεσθε, τάδ’ ς φίλα (κα γρ λαφρός

κα καλς πάντεσσι μετ’ ιθέοισι καλεμαι), 125

εδόν τ’, ε κε μόνον τ καλν στόμα τες φίλησα·

ε δ’ λλ μ’ θετε κα θύρα εχετο μοχλ,

πάντως κα πελέκεις κα λαμπάδες νθον φ’ μέας.

φράζεό μευ τν ρωθ’ θεν κετο, πότνα Σελάνα.

νν δ χάριν μν φαν τ Κύπριδι πρτον φείλειν, 130

κα μετ τν Κύπριν τύ με δευτέρα κ πυρς ελευ,

γύναι, σκαλέσασα τεν ποτ τοτο μέλαθρον

ατως μίφλεκτον· ρως δ’ ρα κα Λιπαραίω

πολλάκις φαίστοιο σέλας φλογερώτερον αθει·

φράζεό μευ τν ρωθ’ θεν κετο, πότνα Σελάνα. 135

σν δ κακας μανίαις κα παρθένον κ θαλάμοιο

κα νύμφαν φόβησ’ τι δέμνια θερμ λιποσαν

νέρος. ς μν επεν· γ δέ νιν ταχυπειθής

χειρς φαψαμένα μαλακν κλιν’ π λέκτρων·

κα ταχ χρς π χρωτ πεπαίνετο, κα τ πρόσωπα 140

θερμότερ’ ς πρόσθε, κα ψιθυρίσδομες δύ.

ς καί τοι μ μακρ φίλα θρυλέοιμι Σελάνα,

πράχθη τ μέγιστα, κα ς πόθον νθομες μφω.

κοτε τι τνος μν πεμέμψατο μέσφα τό γ’ χθές,

οτ’ γ α τήν. λλ’ νθέ μοι τε Φιλίστας 145

μάτηρ τς μς αλητρίδος τε Μελιξος

σάμερον, νίκα πέρ τε ποτ’ ρανν τραχον πποι

Ἀῶ τν οδόεσσαν π’ κεανοο φέροισαι,

κεπέ μοι λλα τε πολλ κα ς ρα Δέλφις ραται.

κετε νιν ατε γυναικς χει πόθος ετε κα νδρός, 150

οκ φατ’ τρεκς δμεν, τρ τόσον· αἰὲν ρωτος

κράτω πεχετο κα ς τέλος χετο φεύγων,

κα φάτο ο στεφάνοισι τ δώματα τνα πυκαξεν.

τατά μοι ξείνα μυθήσατο, στι δ’ λαθής.

γάρ μοι κα τρς κα τετράκις λλοκ’ φοίτη, 155

κα παρ’ μν τίθει τν Δωρίδα πολλάκις λπαν·

νν δέ τε δωδεκαταος φ’ τέ νιν οδ ποτεδον.

οκ λλο τι τερπνν χει, μν δ λέλασται;

νν μν τος φίλτροις καταδήσομαι· α δ’ τι κά με

λυπ, τν ίδαο πύλαν, να Μοίρας, ραξε· 160

τοά ο ν κίστ κακ φάρμακα φαμ φυλάσσειν,

σσυρίω, δέσποινα, παρ ξείνοιο μαθοσα.

λλ τ μν χαίροισα ποτ’ κεανν τρέπε πώλως,

πότνι’· γ δ’ οσ τν μν πόθον σπερ πέσταν.

χαρε, Σελαναία λιπαρόθρονε, χαίρετε δ’ λλοι 165

στέρες, εκάλοιο κατ’ ντυγα Νυκτς παδοί.

 

* A edição do texto grego é de Gow, Theocritus: edited with a translation and a commentary (Cambridge, Cambridge University Press, 1973 [1 ed. 1950]. Segui, no entanto, algumas indicações outras presentes em seu aparato crítico, indicadas no texto grego.

[1] As folhas de louro teriam a função de afastar o mal. Por sua vez, o jarro, preparado para a libação, é envolvido em lã vermelha como o próprio pré-requisito para enfeitiçar o amado, Délfis.

[2] Ou ginásio (ver v.80). Era um espaço de prática de esportes. Délfis é um atleta.

[3] Hécate era a deusa das encruzilhadas, da magia e dos fantasmas. No tempo de Teócrito, já era assimilada à Lua e à Ártemis.

[4] Cães eram sacrificados a Hécate.

[5] O sangue de vítimas sacrificadas sobre os túmulos.

[6] Três poderosas feiticeiras gregas.

[7] Aqui começa o encantamento, que é narrado até o verso 63. A Iynx era um disco de madeira com dois furos no meio, por onde passava um cordão. O disco girava ao se afrouxar e tensionar alternadamente esse cordão. Era usado para atrair um amante.

[8] O nome do amado infiel.

[9] Os portais do mundo dos mortos são feitos de adamante — metal de excepcional dureza, comparável ao aço e ao diamante.

[10] Délfis vem da Míndia, uma cidade costeira da Cária, defronte à ilha de Cós. É possível, portanto, que o cenário em que se passa a história seja a ilha de Cós.

[11] O rombo, ou bramadeira, é uma peça de madeira ou metal atada a uma corda, que produz um barulho estrondoso quando girada.

[12] Dia é outro nome para Naxos. Teseu, depois de vencer o Minotauro com a ajuda de Ariadne, a abandona nessa ilha durante a sua fuga de Creta para Atenas.

[13] Do grego ”enlouquece-cavalos”.

[14] Os atletas passavam óleo em seus corpos antes de se exercitar.

[15] Objetos pessoais são lançados ao fogo para atrair a pessoa amada.

[16] O resultado do encantamento.

[17] Um verso foi interpolado aqui: “estou, de coração, atada, mas ele não faz caso de mim” (κ θυμ δέδεμαι· δέ μευ λόγον οδένα ποιε) para dar sentido ao original, que parece ter sido corrompido.

[18] A partir deste verso, Simeta explicará como se apaixonou.

[19] Do grego “portadora do cesto”; meninas que levavam em procissão cestos com oferendas que seriam sacrificadas aos deuses.

[20] Como deusa dos ermos, Ártemis é patrona das feras selvagens.

[21] As festividades religiosas eram uma das raras ocasiões em que mulheres podiam circular livremente pelas ruas. Clearista empresta um manto a Simeta para a procissão.

[22] Possivelmente uma fazenda à meio do caminho.

[23] Pequena árvore de flores amareladas.

[24] Filino era um famoso corredor de Cós, que teria sido cinco vezes vencedor nas Olímpiadas. Délfis está se gabando.

[25] Ou seja, ele viria durante o kômmos, uma típica procissão festiva e desregrada de jovens que ocorre nas ruas depois do simpósio.

[26] Maçãs eram um presente comum às namoradas entre os antigos. Elas, aqui, pertencerem a Dioniso, podendo sugerir que Délfis viria do simpósio, durante o kômmos.

[27] Héracles era o deus patrono dos atletas.

[28] Outro nome de Afrodite, deusa nascida em Chipre.

[29] Ilhas à nordeste da Sicília. Lá havia um vulcão que se pensava ser a forja de Hefesto.

[30] A Aurora, o Sol, a Lua e a Noite são representados viajando pelo céu em carruagens puxadas por cavalos.

[31] Que ele utilizava para se untar de óleo na palestra. Dórico talvez se refira ao formato do frasco.

[31] Deusas que personificavam a morte e o destino.

[32] o sentido de “assírio” é aqui mais amplo. Talvez se refira aos babilônios, peritos em magia.

 

Rafael Brunhara, «Teócrito — Idílio 2 (“a feiticeira”)», in https://rafaelbrunhara.medium.com/te%C3%B3crito-id%C3%ADlio-2-a-feiticeira-5d13d3919a39, 2021-04-29

 

 


“As Feiticeiras de Teócrito”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-06. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/as-feiticeiras-de-teocrito.html