Há 100 anos, celebrou-se em
Portugal o 4.º centenário de Luís de Camões. Foi estreada na Faculdade de
Letras de Lisboa uma nova cadeira, chamada Estudos Camonianos. Na aula
inaugural, o Prof. José Maria Rodrigues sintetizou desta maneira a razão de
lermos o maior poeta de Portugal:
«Estudemos "Os Lusíadas",
para neles haurirmos o mesmo estímulo que impulsionou o Poeta a escrevê-los;
debruçados sobre as suas estâncias, compenetremo-nos bem do nosso glorioso
passado e sentiremos pulsar em nós uma alma nova, um desejo ardente de vermos
respeitado e engrandecido o nome português, de vermos novamente esboçar-se um
Portugal maior.»
Lidas no ano em que celebramos o
5.º centenário de Camões, as palavras deste professor e padre católico
deixam-nos uma sensação estranha. O que é isso, «um Portugal maior?» A
terminologia faz-nos pensar hoje no horrível Donald Trump e no seu slogan «Make
America Great Again».
Poucos anos depois da lição
inaugural de José Maria Rodrigues, Portugal passaria a ser dominado (e sê-lo-ia
durante 48 anos) pela ditadura salazarista. Na vizinha Espanha, surgiu Franco;
em Itália, já surgira Mussolini. A União Soviética e a China estavam
mergulhadas nas trevas de regimes totalitários. Quanto ao nazismo, nascia por
volta desta altura: a lição de José Maria Rodrigues foi proferida na Faculdade
de Letras de Lisboa em 1924, mas foi publicada (em Coimbra, curiosamente) em
1925, o ano da publicação de «Mein Kampf» de Adolf Hitler.
Deu-se a 2.ª Guerra Mundial,
seguida pela Guerra Fria. E, em Fevereiro de 1961, começou a Guerra Colonial
Portuguesa, que durou até ao 25 de Abril de 1974. O povo português que, em
séculos anteriores, investira na escravização de africanos no comércio negreiro
tinha passado agora a assumir a missão de matar africanos. Em nome de «um
Portugal maior».
A liberdade que o 25 de Abril nos
trouxe há 50 anos permite-nos afirmar sem medo que o maior argumento contra
esse «Portugal maior» são os crimes contra a humanidade que foram necessários
para o conseguir: o comércio negreiro, a exploração desumana do Brasil e de
outras colónias, o terror religioso da Inquisição. E, como se esse passado
deprimente não bastasse, a ditadura fascista de Salazar ainda obrigou a geração
do meu pai a envolver-se, contra os ditames da sua consciência de católico
progressista, numa guerra colonial. O serviço militar que o meu pai cumpriu na
guerra em Angola foi um trauma que o marcou para toda a vida. Participar,
obrigado, na matança de angolanos deixou sequelas de que ele nunca se curou.
Vale a pena, esse «Portugal maior»?
Dir-se-á que essa é, justamente, a
ideia de Portugal que Camões defende n'«Os Lusíadas». Mas há muito que foram
identificados (por António José Saraiva, Helder Macedo e outros) os elementos
deste poema complexo e subtil, os quais nos levam a perceber que Camões nos
apresenta, n' «Os Lusíadas», duas faces da mesma moeda: uma face é a «glória»
do império português; a outra face é o custo humano que ele implica.
Não podemos esperar de Camões, como
é óbvio, que ele escrevesse no século XVI como um professor de Estudos
Pós-Coloniais numa universidade contemporânea. Camões foi um homem do seu
tempo, que trabalhou com os conceitos vigentes na época em que viveu. Mas se
lermos «Os Lusíadas» tomando como guia os estudos de António José Saraiva e de
Helder Macedo (há também o livro um pouco simplista, embora bem intencionado,
de José Madeira, «Camões contra a Expansão e o Império», 2000), veremos que,
afinal, a epopeia camoniana não é aquilo que o Portugal de Salazar quis ver
nela.
Camões compôs uma epopeia
polifónica, em que várias vozes têm lugar de fala. Temos de ouvir todas as
vozes, porque é a sua soma que nos traz a voz do próprio Luís de Camões. Quando
o Velho do Restelo chama os bois pelos nomes e recusa a resignificação como
«esforço e valentia» da «bruta crueza e feridade» das conquistas portuguesas
(Lusíadas 4.99), temos de perceber - como António José Saraiva percebeu tão bem
- que o Velho do Restelo também é Camões.
Camões coloca o contraditório da
mensagem imperialista na boca de várias personagens, mas acima de tudo temos de
ler com atenção os muitos desabafos n'«Os Lusíadas» escritos na voz do próprio
cantor épico: é nesses desabafos que intuímos quanto Camões estava lúcido no
tocante à realidade do imperialismo português.
Cada vez mais me convenço disto: se
lermos «Os Lusíadas» com olhos para as atitudes diferenciadas que Camões adopta
na abordagem ao fenómeno «Portugal», veremos que a sua intenção não foi de
propor um «Portugal maior» (como disse José Maria Rodrigues), mas sim um
Portugal MELHOR.
Viva o 25 de Abril! Y
“25 de Abril:
50 anos | Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço,
Coimbra, 24-04-2024
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