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domingo, 21 de julho de 2024

Natal... Na província neva. Fernando Pessoa


 

Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

 

s. d.

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  - 115.

1ª publ. in Notícias Ilustrado , nº 29. Lisboa: 30-12-1928.

Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2449

 

Linhas de leitura do poema "Natal... Na província neva" de Fernando Pessoa

O primeiro verso do poema, "Natal... Na província neva," estabelece um cenário que combina um tempo específico, o Natal, com um espaço concreto, a província. Este verso carrega uma expressividade rica em conotações afetivas: o Natal, com as suas conotações de união e fraternidade, e a província, evocando a ideia de tradições e cenários pitorescos típicos da época natalícia. A imagem da neve reforça a atmosfera de um inverno típico, contrastando com o calor e aconchego dos lares.

O verso "Os sentimentos passados" refere-se à reemergência das emoções associadas a experiências e memórias antigas, que se intensificam durante o Natal. Esta época do ano, tradicionalmente ligada à família, desperta sentimentos nostálgicos, reavivando laços afetivos que se fortalecem com a proximidade dos entes queridos.

A frase exclamativa "Como a família é verdade!" (v. 6) sugere uma afirmação intensa e emocional sobre a importância e a autenticidade da família. Este tipo de construção frásica sublinha o valor que o eu lírico atribui ao ambiente familiar, visto como um refúgio verdadeiro e seguro, em contraste com o mundo exterior, frequentemente percebido como hostil e falso.

A figura de estilo presente no verso "’Stou só e sonho saudade" é a aliteração, com a repetição dos sons sibilantes 's'. Esta repetição cria um efeito sonoro que evoca a sensação de solidão e melancolia, intensificando o sentimento de saudade. A escolha de palavras reforça a profundidade do isolamento sentido pelo eu poético, que sonha com um passado perdido e inacessível.

O último verso, "Do lar que nunca terei!", resume a temática central do poema: a nostalgia e o anseio por um ideal de felicidade familiar que parece inalcançável. Esta expressão final evidencia a desilusão do eu poético, que sonha com um lar acolhedor e uma plenitude de vida que ele acredita nunca alcançar. Esta desesperança e a idealização de um passado feliz perdido são características marcantes da obra de Pessoa.

Quanto à análise formal, este poema é composto por três quadras, cada uma com versos de sete sílabas métricas (redondilha maior), uma forma tradicionalmente ligada ao lirismo popular português. A rima é cruzada (ABAB), conferindo ao poema uma musicalidade suave. O uso do transporte, em que uma frase ou ideia se estende para o verso seguinte, é observado nos versos 3-4, 9-10 e 11-12, contribuindo para a fluidez e ritmo do poema.

O poema exibe várias características temáticas e formais típicas da poesia de Fernando Pessoa ortónimo:

Temáticas:

- Distância entre o sonho e a realidade: o desejo de um lar idealizado nunca alcançado.

- Evocação da infância: a felicidade perdida que é rememorada com saudade.

- Solidão e melancolia: a sensação de isolamento e a busca por um aconchego emocional.

- Desesperança: a consciência da impossibilidade de reviver o passado ou atingir a plenitude desejada.

Formais:

- Aproximação ao lirismo tradicional: uso da quadra, redondilha maior e rima cruzada.

- Linguagem simples e clara: facilidade (aparente) de compreensão e espontaneidade.

- Uso do presente do indicativo: a intensidade dos sentimentos é capturada no momento presente.

- Pontuação emotiva: utilização de exclamações que enfatizam as emoções.

- Suavidade rítmica: aliterações, ritmo cadenciado e transportes que contribuem para a musicalidade do poema.

 




sexta-feira, 19 de julho de 2024

As minhas asas, Almeida Garrett

Poema XIX do Livro Segundo de Flores sem fruto de Almeida Garrett. Lisboa: na Imprensa Nacional, 1845. Disponível em: https://permalinkbnd.bnportugal.gov.pt/records/item/90769-flores-sem-fructo

Acompanha o poema “As minhas asas” de Almeida Garrett e procura responder às seguintes questões.

1. Caracteriza as asas do sujeito poético.

2. Indica quem lhas deu.

3. Enumera as ameaças que, em vão, atentaram contra as suas asas.

4. Assinala o momento de viragem no poema.



 AS MINHAS ASAS


Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.
— Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que m’as deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.

Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
— Veio a ambição, co’as grandezas,
Vinham para m’as cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra
Batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
— Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi, entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essa luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
— Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu
Pena a pena, me caíram...
Nunca mais voei ao céu.

Poema XIX do Livro Segundo de Flores sem fruto de Almeida Garrett. Lisboa: na Imprensa Nacional, 1845. Disponível em: https://permalinkbnd.bnportugal.gov.pt/records/item/90769-flores-sem-fructo

  

Esquema interpretativo do poema “As minhas asas”, de Almeida Garrett


 



Fonte: Projeto #EstudoEmCasa – Aula n.º 48 de Português dos 7.º e 8.º anos sobre os poemas "O papagaio", de Sebastião da Gama, e "As minhas asas", de Almeida Garrett, 2021-05-07.

 Assistir à aula da Professora Tereza Cadete Sampainho, em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e542348/portugues-7-e-8-anos

 

***

Outro questionário sobre o poema “As minhas asas”, de Almeida Garrett

1. Divide o poema em duas partes lógicas.

2. Enumera as tentações a que o sujeito poético resistiu.

3. Identifica aquela à qual sucumbiu.

4. Indica as consequências de ter sucumbido a essa tentação. 

Fonte: Projeto #EstudoEmCasa – Aula n.º 48 de Português dos 7.º e 8.º anos sobre os poemas "O papagaio", de Sebastião da Gama, e "As minhas asas", de Almeida Garrett, 2021-05-07. Disponível em: https://estudoemcasa.dge.mec.pt/2020-2021/7o-e-8o/portugues/48

 

INTERTEXTUALIDADE



Acompanha o tema “Asas”, de Rui Reininho, e regista:

- para que serve as asas;

- o que não se faz às asas;

- quando deixam de ser usadas;

- o que significam.

Fonte: Projeto #EstudoEmCasa – Aula n.º 48 de Português dos 7.º e 8.º anos sobre os poemas "O papagaio", de Sebastião da Gama, e "As minhas asas", de Almeida Garrett, 2021-05-07.

 

ASAS

Asas servem pra voar
Para sonhar ou pra planar
Visitar, espreitar, espiar
Mil casas do luar

As asas não se vão cortar
Asas são pra combater
Num lugar infinito
Num vácuo para ir espiar o ar

Asas são pra proteger
Te pintar, não te esquecer
Visitar-te, olhar, espreitar-te 
Bem alto do luar

E só quando quiseres pousar
A paixão que te roer
É o amor que vês nascer
Sem prazo, idade de acabar
Não há leis para te prender
Aconteça o que acontecer

Mas só quando quiseres pousar
A paixão que te roer
É o novo amor que vês nascer
Sem prazo, idade de acabar

Mas só quando quiseres pousar
A paixão que te roer
É o amor que vês nascer
Sem prazo, idade de acabar

Não há leis para te prender
Aconteça o que acontecer
Não vejo mais pra te prender
Aconteça o que acontecer

Não há leis para te prender
Aconteça o que acontecer

Rui Reininho / GNR 

 

As asas, como mencionadas na letra da canção, têm vários significados, simbolizando a liberdade, os sonhos, a capacidade de explorar e a proteção. Elas representam também a paixão e o amor, e são um símbolo de ausência de limites e de renovação constante.

Para que servem as asas:

As asas servem para voar, sonhar e planar. Elas representam liberdade, a capacidade de transcender limitações e explorar novos horizontes.

Além disso, as asas também podem simbolizar proteção e a capacidade de enfrentar desafios.

O que não se faz às asas:

A letra menciona que “as asas não se vão cortar”. Isso sugere que não devemos restringir nossa liberdade ou nossa capacidade de sonhar e explorar.

Num sentido mais amplo, podemos interpretar isso como não sufocar os nossos desejos e aspirações.

Quando deixam de ser usadas:

As asas deixam de ser usadas quando decidimos “pousar”, ou seja, quando escolhemos parar de voar e enfrentar a realidade.

Isso pode representar momentos em que abandonamos os nossos sonhos ou desistimos de lutar.

O que significam:

As asas simbolizam liberdade, paixão, amor e a busca por algo maior.

Elas também podem representar a dualidade entre o desejo de voar e a necessidade de encontrar um lugar para pousar e se estabelecer.

Em resumo, a letra da canção “Asas” convida-nos a refletir sobre os nossos sonhos, paixões e a importância de manter a nossa capacidade de explorar, mesmo quando enfrentamos desafios e limitações.


segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Natal (José Manuel R Barroso)


 

NATAL

 

Porque multiplicaste os pães e os peixes

nas nossas mãos nuas?

Porque deixaste sementes tão fundas

nos nossos corações?

Porque nos deixaste a autoridade tão grande

da Palavra, se somos o homem

que olha o rio e nele não se reconhece?

 

Poema e fotografia de José Manuel R Barroso, disponíveis em https://www.facebook.com/josemanuel.reis.908, 25-12-2023


terça-feira, 1 de agosto de 2023

A tradução como interpretação no Cântico dos Cânticos: o caso da cor da pele da noiva

 


“Sou negra – MAS bela”? - Não!

(A propósito dos episódios de racismo desta semana que envergonham toda a raça humana)

O nome – ainda que não o punho – de Salomão foi responsável por aquele que pode ser considerado o brinde-surpresa da Bíblia: o facto de, neste heteróclito e tantas vezes contraditório conjunto de livros (de épocas e autorias muito diversas) sobre a história da relação dos judeus com Jeová, se encontrar lá no meio uma pequena antologia de versos eróticos de que Jeová está totalmente ausente.

O motivo que justificou a inclusão desta antologia erótica no Antigo Testamento foi a atribuição da sua autoria ao rei Salomão. Na versão grega do Antigo Testamento, o título afirma-se como “Cântico dos Cânticos, que é de Salomão” e o nome do filho de David surge, com efeito, no interior do texto; de tal forma, aliás, que não é impossível experimentarmos a ilusão de ser o próprio rei a enunciar alguns dos versos emitidos por uma boca masculina, em resposta a outros versos claramente enunciados por uma mulher. No entanto, tal como no caso do livro de Sabedoria (também falsamente atribuído a Salomão), questões de cronologia tornam impossível a aceitação de que tenha sido o grande rei judeu a compor este conjunto de versos desgarrados em que um noivo e uma noiva antevêem (e, a dada altura, parecem gozar) as delícias do leito conjugal.

Excluída a possibilidade da autoria salomónica, fica então a pergunta: o que fazer deste pequeno livro, no seio da austera Bíblia, livrinho esse cujo tema é sintetizado pela palavra “sexo”? Porque com ou sem a assinatura de Salomão, o conteúdo do livro é inescapável: é uma antologia de versos eróticos.

Confrontados com a necessidade de explicar a razão da existência do Cântico dos Cânticos, exegetas bíblicos de todas as épocas e quadrantes (judeus, católicos, ortodoxos, protestantes, etc.) desenvolveram uma artilharia de interpretações metafóricas do Cântico, através das quais procuraram fazer-nos ver que não é de sexo entre um casal humano que aqui se trata, mas do amor de Deus (o “noivo”) ou de Jesus por uma noiva que pode ser o povo eleito, a igreja católica ou até a Virgem Maria. A liturgia das Vésperas Marianas inclui trechos do Cântico dos Cânticos, como “Pulchra es, amica mea” (“És bela, minha amiga”), e – surpreendentemente – os versos do primeiro capítulo deste livrinho que começam “Nigra sum – sed formosa” (“Sou negra – mas bela”, Cântico dos Cânticos 1: 5).

Esta voz feminina que aqui nos fala descrevendo-se como negra (“mas” bela) sugere um caminho de reflexão bem interessante. Porquê o “mas”? Que surge tanto na tradução portuguesa da Bíblia dos Capuchinhos, como na consagrada tradução latina da Vulgata? Na versão grega do Antigo Testamento, a noiva do Cântico dos Cânticos diz de si própria “sou negra e bela” (μέλαινά εμι κα καλή). Segundo o comentário ao Cântico de Othmar Keel, também é nessa linha que devemos entender o original hebraico (e por isso o ilustre teólogo suíço traduz “schwarz bin ich und anziehend”). São Jerónimo, autor da tradução latina, deve ter sentido a necessidade de pôr uma desculpa na boca da Sulamita (como a noiva é designada no capítulo 7 do Cântico) por ser negra, levando-a a afirmar que era bela apesar de ser negra. Os tradutores da Bíblia dos Capuchinhos mantêm espantosamente o “mas”, mitigando-o por meio da alteração de “negra” para “morena”: “Sou morena, mas formosa... não estranheis eu ser morena: foi o sol que me queimou...” Tanto em hebraico, em grego como em latim, a noiva é claramente negra. Não há volta a dar.

E o noivo – surpresa! – é branco. “O meu amado é alvo e rosado”, canta a noiva negra (5: 10); o ventre dele é da cor de marfim (5: 14); as pernas são “pilares de alabastro” (5: 15). Além de ser uma antologia de versos eróticos incrustada no meio da Bíblia, o Cântico dos Cânticos celebra aquilo que, ainda nos anos 60 do século passado, era proibido no chamado Bible Belt dos EUA: um casamento “misto”. Ainda bem que, “no fundo”, se trata de um texto altamente alegórico que nada tem que ver com aquilo que ostensivamente se lê no próprio texto... Ainda bem que é tudo sobre (os nunca mencionados) Jeová ou Jesus ou Maria ou a Igreja... É que ler o Cântico dos Cânticos de forma literal e simplista seria decerto muito redutor! É melhor dizermo-nos que os peitos referidos (8: 10) não são peitos, mas símbolos de realidades místico-divinas. Contudo, temos o direito de ser selectivos com a aplicação destas leituras alegóricas, pois por vezes é mais aconselhável ler o texto à letra! É claro que o noivo a entrar no “seu jardim” para “colher lírios” no “canteiro dos aromas” (6: 2) só designa mesmo actividades hortícolas...

Sarcasmo à parte (e perdoem-me todos aqueles que perfilham a ideia de que o Cântico dos Cânticos é o grande texto religioso sobre o amor místico de Deus): como são belos os versos desta extraordinária antologia erótica; versos para os quais a filologia bíblica contemporânea encontra paralelos expressivos em tantas outras literaturas de territórios próximos de Israel (mormente o Egipto antigo e helenístico). Quão belos são os versos que nos dizem “forte como a morte é o amor; implacável como o abismo é a paixão” (8: 6). Como é verdade, meu Deus, que não há fortuna no mundo que possa comprar o amor (8: 7). E como é mais verdade ainda que se identifica o verdadeiro amor por ser aquele que, simplesmente, é portador da paz (8:10).

 

#RacismoNão #viniciusjunior #Bíblia #teologia

 

Crónica de Frederico Lourenço, «Sou negra – MAS bela? - Não!» in https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco, 28-05-2023


Orfeu Negro ou Orfeu do Carnaval,
Marcel Camus, Brasil, Itália, 1959

 

  

Poderá também gostar de:

 

 

Cantar de Cantares - Códice Alcaíns, Javier Alcaíns.
Barcelona, Moleiro editor, 1999. ISBN: 9788488526700

sábado, 11 de janeiro de 2020

A veste dos fariseus, Sophia M. B. Andresen



A VESTE DOS FARISEUS

Era um Cristo sem poder
Sem espada e sem riqueza
Seus amigos o negavam
Antes do galo cantar
A polícia o perseguia
Guiada por Fariseus

O poder lavou as mãos
Daquele sangue inocente
Crucificai-o depressa
Lhe pedia toda a gente
Guiada por Fariseus

Foi cuspido e foi julgado
No centro duma cidade
Insultos o perseguiram
E morreu desfigurado

O templo rasgou seus véus
E Pilatos seus vestidos
Rasgaram seu coração
Maria Mãe de João
João Filho de Maria

A treva caiu dos céus
Sobre a terra em pleno dia

Nem uma nódoa se via
Na veste dos Fariseus

Sophia de Mello Breyner Andresen, Grades
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1970



O nome do poema faz referência ao antigo agrupamento religioso hebraico da época pós-exílica232 de Jerusalém, os fariseus. Nesse período da história, havia diversos grupos judaicos que divergiam em relação à doutrina religiosa, mas eles buscavam manter entre si alguns traços essenciais de sua crença. Os fariseus são uma vertente judaica que preza os rituais e os dogmas da Torá, livro sagrado do Judaísmo. Vincula-se a esse grupo a formação das sinagogas e, em 1 a.C., eram as lideranças desses templos religiosos. Estavam também associados ao ensino e ao culto do Judaísmo.
Para eles, seguir os ensinamentos sagrados já seria o suficiente para a salvação do homem. Nesse sentido, não criam, à época de Cristo, em um salvador como o messias, conforme observa Schubert.233 Assim, o grupo é reconhecido pela busca da pureza dos preceitos judaicos e, em razão disso, são vistos como fortes opositores ao Cristianismo. Dessa maneira, encontramos na Bíblia passagens em que os Fariseus desconfiam das atitudes de Jesus:
1. Jesus tomou de novo a barca, passou o lago e veio para a sua cidade. 2. Eis que lhe apresentaram um paralítico estendido numa padiola. Jesus, vendo a fé daquela gente, disse ao paralítico: "Meu filho, coragem! Teus pecados te são perdoados." 3. Ouvindo isto, alguns escribas murmuraram entre si: "Este homem blasfema." 4. Jesus, penetrando-lhes os pensamentos, perguntou-lhes: "Por que pensais mal em vossos corações? 5. Que é mais fácil dizer: Teus pecados te são perdoados, ou: Levanta-te e anda? 6. Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem na terra o poder de perdoar os pecados: Levanta-te – disse ele ao paralítico -, toma a tua maca e volta para tua casa."234

“Escribas” são referencias aos Fariseus, pois muitos deles em suas origens tinham a profissão ligada à escrita dos manuscritos sagrados. Eles acreditavam que Jesus blasfemava ao falar com pecadores, como doentes, prostitutas e arrecadadores de impostos. Ainda segundo versículo catorze do 12.º capítulo do evangelho de Mateus, os fariseus tramam a morte de Jesus:
9. Partindo dali, Jesus entrou na sinagoga. 10. Encontrava-se lá um homem que tinha a mão seca. Alguém perguntou a Jesus: É permitido curar no dia de sábado? Isto para poder acusá-lo. 11. Jesus respondeu-lhe: Há alguém entre vós que, tendo uma única ovelha e se esta cair num poço no dia de sábado, não a irá procurar e retirar? 12. Não vale o homem muito mais que uma ovelha? É permitido, pois, fazer o bem no dia de sábado. 13. Disse, então, àquele homem: Estende a mão. Ele a estendeu e ela tornou-se sã como a outra. 14. Os fariseus saíram dali e deliberaram sobre os meios de o matar.235

De acordo com a Bíblia, os fariseus não toleravam as ações de misericórdia e compaixão de Jesus que transgrediam as leis de Moisés pregadas por eles. Para Jesus, o grupo de fariseus era visto como uma “geração adúltera e perversa”, os quais sempre insistem que o filho de Deus prove suas palavras, mostrando-lhes um milagre. Jesus ainda aconselhava a seus apóstolos a resguardarem-se da doutrina dos fariseus.
Entre a tensão que havia na pregação de Jesus e a busca pelo cumprimento das leis dos fariseus, encontramos não necessariamente uma disputa, mas, sim, a manutenção da força ideológica que as leis mosaicas tinham naquela época. Jesus, de facto, representava uma ruptura com os costumes e, assim, temos a oposição de muitos fariseus à sua missão, conforme apresenta a Bíblia.
Nesse sentido, podemos recuperar no poema “A veste dos fariseus” uma visão negativa desse grupo, pautada na ideia de hipocrisia, traição e busca pelo poder. O texto, que apresenta cinco estrofes formadas por versos em redondilha maior, mantém a voz poética descrevendo a cena da Paixão de Cristo, trazendo “um Cristo sem poder / Sem espada e sem riqueza” que é perseguido pela polícia “Guiada por Fariseus”. Em referência à cena bíblica de sua negação, o Cristo do poema é também negado por seus amigos antes do amanhecer. Como relata o texto sagrado, Jesus, após ser denunciado por seu discípulo Judas, é perseguido pelo exército romano e, em razão disso, Pedro, seu outro apóstolo, nega-o três vezes quando questionado.
No poema, Jesus é perseguido pela polícia, a qual é orientada pelos fariseus. É interessante observar que o termo “polícia” aparece como uma marca do tempo atual, pois Cristo é condenado e castigado pelo exército romano, não havia referência à polícia naquele momento histórico. A noção de força e poderio suscitada pela imagem da “polícia” se opõe à figura indefesa de Jesus “sem espada e sem riqueza”. Acima dessa oposição, está a influência dos fariseus que controlam ideologicamente a polícia que persegue o suposto messias, ressaltando o poder desse grupo judaico.
Na estrofe seguinte, é inserida uma segunda entidade histórica: a imagem de Pôncio Pilatos236 é trazida também a partir da noção do poder:
O poder lavou as mãos
Daquele sangue inocente
Crucificai-o depressa
Lhe pedia toda a gente
Guiada por Fariseus

A relação dos Fariseus e de Pôncio Pilatos é explicitada nessa estrofe, mostrando, por um lado, o poder da coerção – efetuada pelo exército e governo romano – e por outro o poder da ideologia – alusão aos fariseus, que seriam os mentores religiosos dos judeus. Assim, o poder é associado à injustiça – “O poder lavou as mãos / Daquele sangue inocente” – e à busca incessante por sua manutenção implícita na figura dos fariseus, que têm seu poder questionado com a vinda de um homem que se declara filho de Deus. Somente a morte de Cristo poderia assegurar que o poder da religião e da lei se reintegrasse.
Se Pôncio Pilatos lava as mãos em relação à crucificação do homem que se apresenta como filho de Deus, os fariseus tampouco aparecem explicitamente como culpados ou responsáveis pelo que se passa. Essa ideia aparece nos versos finais do poema: “Nem uma nódoa se via / Na veste dos Fariseus”. Suas túnicas não estavam manchadas pelo sangue do homem que condenaram injustamente. Não há culpa assumida. Esse aspecto é ressaltado em Grades, pois a imagem da ausência de mancha aparece destacada na estrutura do texto pelo dístico final. Em Livro Sexto238, do qual o poema é extraído, os dois dísticos finais aparecem unidos em uma quadra que encerra o texto.
Nesse sentido, o poema alude a aspectos ligados à corrupção moral, à mentira e, em especial, à injustiça e à busca constante pela manutenção do poder. Pela simbólica construção por meio dos fariseus, temos a denúncia de um tempo marcado pela não integridade ética e pela não compaixão. Sophia Andresen, assim, delata por sua poética a manipulação de opiniões e a inverdade entre os homens e aqueles que têm o poder.
Em Grades, a autora busca, por meio da poesia, denunciar a corrupção e a injustiça mascaradas no âmbito político de civilizações importantes para o desenvolvimento do Ocidente, como Roma, pela grandeza de seu império e pela importância do Direito romano, que é base para a elaboração do Direito de diversas nações ocidentais, e Jerusalém, pelo Cristianismo. Além dessas sociedades, Sophia Andresen também traz o universo de Portugal, pois essa nação se consolida historicamente como importante para o mundo ocidental a partir das grandes navegações entre os séculos XV e XVI e a reorganização mundial decorrente delas.

Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen, Nathália Nahas. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2015

______________
232 Esse período compreende, aproximadamente, os anos de 333 a.C. a 70 d.C., iniciado com a conquista da Pérsia por Alexandre, o Grande. Após a sua morte, em 323 a.C., seu império foi dividido entre seus generais e governantes. Os exílios do povo judeu ocorrem entre os anos 586 e 333 a.C., na Babilônia e na Pérsia. Havia ainda uma grande comunidade de judeus que partiram para o Egito nesse período.
233 SCHUBERT, Kurt. Os partidos religiosos da época Neotestamentária. 2.ª ed. São Paulo: Paulinas, 1979, p. 32.
234 Evangelho de São Mateus, capítulo 9. In: Bíblia Sagrada. Versão Eletrônica.
235 Ibidem, capítulo 12.
236 Pôncio Pilatos foi prefeito romano da província da Judeia do ano 26 ao 36 d.C. Entre seus encargos de prefeito, estavam as atividades administrativas e econômicas do território, mas era sua função também assegurar a ordem na cidade, sendo sua responsabilidade o aspecto judicial. Ele é mencionado nos evangelhos por ter mandado executar Jesus de Nazaré, que se proclamava filho de Deus, por uma proposição do sinédrio local, ou seja, o grupo de autoridades judaicas da província. Pilatos é representado por sua suposta ação de lavar as mãos quando decide executar Jesus, o que simboliza sua não responsabilidade pela condenação, a qual recairia sobre o povo judeu. Informações extraídas de: CARTER, Warren. Pontius Pilate: portraits of a Roman Governor. Estados Unidos da América: Liturgical Press, 2003 e Evangelho de Mateus. Português. In: Bíblia Sagrada.

238 Segundo consta na Obra Poética, edição de Carlos Mendes de Sousa, 2011, p. 434

 

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CARREIRO, José. “A veste dos fariseus, Sophia M. B. Andresen”. Portugal, Folha de Poesia, 11-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/a-veste-dos-fariseus-sophia-m-b-andresen.html


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