Lisboa
com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores...
À força de diferente, isto é monótono,
Como à força de sentir, fico só a pensar.
Se, de noite, deitado mas desperto
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.
Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.
Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.
11/5/1934
Álvaro de
Campos, Poesia, edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assírio &
Alvim, 2002, pp. 491-492.
Questionário sobre o
poema “Lisboa com suas casas”, de Álvaro de Campos
1.Relacione o conteúdo do verso
7 com o dos primeiros seis versos do poema.
2.Na segunda estrofe, o
sujeito poético manifesta o desejo de sonhar algo diferente da realidade.
Explicite o contexto em que ocorre a manifestação
desse desejo, bem como a razão pela qual o sujeito poético não o consegue
concretizar.
3.Tanto no verso 8 como no
verso 22, são enunciados processos de transformação no sujeito poético, ambos
associados a uma ideia de intensificação.
Explicite esses processos de transformação.
4.Selecione a opção de
resposta adequada para completar a afirmação.
De entre os vários processos que contribuem para
imprimir ritmo ao poema, destaca-se a presença, em simultâneo,
(A) de um esquema rimático
fixo em todas as estrofes e da repetição de palavras em final de verso.
(B) da alternância entre
versos longos e versos curtos e de anástrofes frequentes.
(C) de um esquema rimático
fixo em todas as estrofes e de anástrofes frequentes.
(D) da alternância entre
versos longos e versos curtos e da repetição de palavras em final de verso.
Critérios específicos de classificação
1. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou
outros igualmente relevantes:
−
a repetição, quase obsessiva, da representação de Lisboa com as suas casas de
várias cores (vv. 1 a 6) leva o sujeito poético a associar o adjetivo
«diferente» (v. 7) à paisagem que perceciona;
−
a constância/persistência dessa regularidade conduz, todavia, à ideia expressa
pelo adjetivo «monótono» (v. 7), evidenciando um sentimento de tédio.
2. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou
outros igualmente relevantes:
−
o desejo do sujeito poético ocorre na solidão insone da noite, momento de
lucidez propício ao pensamento e ao devaneio/sonho;
−
o sujeito poético não consegue concretizar o seu desejo, pois a realidade
prevalece sobre o sonho, como se a imagem de «Lisboa com suas casas/De várias
cores» estivesse gravada no seu íntimo («Contra uma espécie de lado de dentro
de pálpebras» ‒ v. 17).
3. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou
outros igualmente relevantes:
−
no verso 8, a intensificação das emoções («À força de sentir») conduz ao
pensamento / à intelectualização das emoções / à racionalização;
−
no verso 22, a intensificação da consciência («à força de ser eu») conduz à
inconsciência / à não consciência de si / à anulação do «eu».
4. Chave: (D)
Fonte: Exame Final
Nacional de Português n.º 639 – 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º
55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 27-B/2022, de 23 de março). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P.,
2022, Época Especial
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obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.
Leia o seguinte poema de Nuno Júdice. A
epígrafe* do texto pertence a um poema de Álvaro de Campos, heterónimo de
Fernando Pessoa.
ARREDORES
«Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros»
Álvaro de Campos
No tempo em que havia quintas e
hortas em Lisboa, e
se ia para lá aos domingos, eu
ficava em casa. E em
vez de ir para as quintas e para
as hortas, em vez de
apanhar couves e de ordenhar
ovelhas, lia
poemas que falavam das quintas e
das hortas de Lisboa,
como se isso substituísse o ar do
campo e o cheiro
dos estábulos. É por isso que
hoje, quando me lembro dos arredores de Lisboa
onde havia quintas e hortas, o
que lembro são as horas de leitura de
poemas sobre esses arredores, e
os passeios que eles me faziam dar
aos domingos, substituindo os
lugares reais com mais exatidão
do que se eu tivesse ido a esses
lugares. Visitei, assim, quintas
e hortas pela mão do Cesário
Verde e do Álvaro de Campos, e
soube por eles tudo o que
precisava de saber sobre os arredores de Lisboa,
que hoje já não existem porque
Lisboa entrou por eles e transformou as quintas
em prédios e as ovelhas em
automóveis. Não me arrependo, então, de
ter lido Cesário e Campos
enquanto ouvia balir os rebanhos que vinham
pastar a Lisboa, nas traseiras do
meu prédio, onde as mulheres
das hortas vendiam leite e queijo
fresco, às escondidas
da polícia. Hoje, já não sei onde
se escondem essas mulheres,
nem há quintas e hortas em
Lisboa; mas ficaram os poemas
que ainda me levam a passear às
quintas e hortas que já não existem,
onde apanho couves e ordenho
ovelhas por entre prédios
e automóveis.
Nuno Júdice, O Estado dos Campos,
Lisboa, Dom Quixote, 2003
__________
*
epígrafe: citação que, colocada no início
de um livro, capítulo, poema, etc., pode indicar o tema ou o ponto de partida
do texto.
Apresente, de forma bem estruturada, as
suas respostas aos itens.
1. Explicite as
relações de sentido que se podem estabelecer entre o poema e o verso de Álvaro
de Campos citado em epígrafe.
2. Refira as
diferenças de comportamento entre o «eu» e os outros à sua volta.
3. Identifique
dois dos recursos estilísticos presentes no texto, exemplificando cada um deles
com uma ocorrência.
4. Comente a
importância do tema das mudanças provocadas pela passagem do tempo na construção
do sentido do poema.
Explicitação de cenários de resposta:
1. O verso de Álvaro de Campos que é
citado em epígrafe do poema Arredores remete
para o tema da visita às hortas que se cultivavam nos arredores de Lisboa –
hoje zonas urbanas integradas na cidade –, ao domingo, por parte dos habitantes
de Lisboa. Do mesmo modo que no verso de Álvaro de Campos, essa visita
dominical das hortas é referida no poema de Nuno Júdice como sendo feita sempre
e só pelos outros. Com uma diferença: a visita às hortas, para o caso deste
«eu», era, e por isso ainda pode ser, feita através da leitura de poemas.
2. Em vez de ir para as «quintas e
hortas», o «eu» ficava em casa, aos domingos, a ler poesia. Assim, em vez de
ir, como os outros, para os arredores de Lisboa, ficava a dar passeios nesses
arredores imaginados que os poemas lhe ofereciam. Hoje, quando os hábitos dos
habitantes de Lisboa mudaram e já ninguém vai aos domingos para as «quintas e
hortas em Lisboa», o «eu» continua a fazer os seus passeios imaginários por
meio dos mesmos poemas, que «ficaram».
3. Entre outros, destacam-se os
seguintes recursos estilísticos:
– repetição sistemática do sintagma «quintas e
hortas», com algumas variações, ao longo do poema;
– imagem, em «Visitei, assim, quintas / e hortas
pela mão do Cesário Verde e do Álvaro de Campos» e, também, em «Lisboa entrou
por eles e transformou as quintas / em prédios e as ovelhas em automóveis»;
– comparação, em «como se isso substituísse o ar
do campo e o cheiro / dos estábulos»;
– metáforas, nos quatro versos finais, em que as
«quintas e hortas» continuam a ser visitadas em imaginação, apesar de se terem
transformado, na realidade, em «prédios» e «automóveis».
4. A
contraposição entre o tempo pretérito e o tempo presente atravessa o texto,
pois a memória antiga dos domingos passados por outros («se ia», v. 2) nos
arredores de Lisboa, apresentada como uma memória de «horas de leitura» de
poemas de Cesário Verde e de Álvaro de Campos «sobre esses arredores», sublinha
o desaparecimento presente das «quintas», das «hortas» e dos «rebanhos». No entanto,
as mudanças que a passagem do tempo trouxe não afetam a representação desse
mundo tal como nos poemas se encontra, e que pode ser reencontrada de cada vez
que são lidos. A única diferença é que, antes, os poemas eram a representação
de lugares realmente existentes, «com mais exatidão» ainda – e, hoje, referem
lugares que já não existem.
“Arredores,
Nuno Júdice”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-20. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/arredores-nuno-judice.html
A cantiga de amigo “Em
Lixboa, sobre lo mar” (texto que a seguir transcreve, integrado num
poema do século XX) encontra-se registada nos cancioneiros B (Biblioteca Nacional,
nº 1157) e V (Vaticana, nº 759).
Trata-se de uma cantiga
de amigo (marinha), de dístico de rima toante (í-o e á-o), com refrão composto
de duas partes (uma intercalada entre o 1º e o 2º verso do dístico e a outra no
final da estrofe): fala a donzela (namorada) da sua decisão ou desejo de ir ver
o barco / navio, que o rei mandou preparar para uma missão e nela deseja partir
com o seu amigo. É seu autor João Zorro, o jogral de Lisboa e do Tejo (viveu
certamente durante o reinado de D. Dinis), e sobretudo das suas barcas, tão bem
evocadas no século XX por Fiama Hasse Pais Brandão. https://estrolabio.blogs.sapo.pt/394297.html
Estrutura formal do poema e sua
relação com o conteúdo;
Poema de intervenção;
Relações intratextuais com a
lírica trovadoresca;
Atualidade do tema.
Sobre o
poema “Barcas novas”, de FHPB:
Este poema
é constituído por
dois poemas para mostrar o próprio
processo de recriação:
o segundo poema retoma a forma da Cantiga de Amigo e canta o sentimento de dor
e tristeza causado pela partida dos soldados para a guerra colonial. O
ritmo e a repetição das
palavras produzem um jogo de sentidos que mostram que a Guerra não tem sentido. Este poema faz referência a uma fase dolorosa da história de Portugal: a Guerra Colonial.
Fiama Hasse
Pais Brandão toma como
epígrafe um poema antigo – mais especificamente uma cantiga de amor de João
Zorro (B
1151ª-1152ª, V 754) –
que, citado integralmente, se incorpora ao texto do presente como parte
essencial dele.
Inicialmente,
somos levados a ler esse poema a partir dos conceitos de dialogismo e
bivocalidade propostos por Bakhtin (2008). Em um movimento paródico, o poema de
Fiama toma o texto de João Zorro como ponto de partida, e, usando o mesmo
vocabulário e o mesmo estilo da Cantiga de Amor original, cria com ela um
diálogo no qual se contrapõem perspectivas passadas e presentes. Na epígrafe,
é dado um tema, o do trabalho humano ligado ao mar que se materializa na forma
de barcas; no desenvolvimento feito por Fiama, as barcas são qualificadas, não
são barcas quaisquer, mas barcas lavradas de armas que partem para destruir.
Assim, o segundo texto propõe em relação ao primeiro uma mudança significativa:
nele o lavrar do poema base – que tem o teor de sacrifício, trabalho e
também de oferenda (afinal as barcas parecem estar sendo ofertadas à bela
senhora aludida no refrão) – se faz presente, mas ganha por complemento uma
série de novos objetos perversos e malignos. Em um movimento de contínuas
substituições, que mimetiza em parte a estrutura paralelística da cantiga de
Zorro,5 a autora termina por fazer
com que todos esses termos – a saber, homens, armas, barcas e guerra – se
equivalham ao final. O resultado é um suplemento de sentido que subverte a
integridade do poema original: o que está aqui em questão não é mais um
trabalho que gera valor (barcas), mas um trabalho que produz só perda e morte,
uma vez que é um trabalho de guerra.
O contexto
português, no qual ambas as produções se inserem, torna essa contraposição
particularmente significativa. Lembremos que o trabalho com o mar é uma das
tradições mais fortes desse país que é rico em litoral e pobre em terras
agricultáveis. Assim, ao se colocarem frente a frente, os dois poemas mostram
dois lados (ou ainda, dois momentos) de uma discussão maior que toca questões
relativas a história e a identidade nacional portuguesa. No primeiro desses
momentos, teríamos representado o mundo da tradição: um mundo no qual os
objetos são produzidos a partir de saberes e técnicas aprendidas com os
antepassados, carregam uma experiência humana e comunitária, inserindo-se de
maneira integrada na vida daqueles que os fabricam e utilizam. Nesse mundo, o
poeta, que naturalmente se vincula ao seu meio, aos costumes orais do seu povo
e à memória herdada do passado, lembra muito o próprio artesão em seu fazer
(BENJAMIN, 1980, p. 63). Em oposição direta e contrária a isso, temos, no
segundo momento, o mundo moderno do trabalho reificante e alienado. Aqui, não
está em questão a manufatura de um novo objeto que se integra a seu meio (como
a barca, que depois de pronta ganha o mar e toca o coração da bela dama do
refrão); o lavrar invocado por Fiama não indica um fazer real, mas é
metáfora de um antitrabalho (o trabalho de destruição que já mencionamos
acima).
O que Fiama
Hasse Paes Brandão nos mostra – e a disposição dos dois blocos de texto na
página sugere justamente isso – é que os gestos encenados por ela e por Zorro
em seus respectivos poemas são equivalentes e complementares. No momento em que
o povo português coloca seus barcos no mar, descobre o caminho para as Índias e
posteriormente para a América, ele inaugura a empresa colonial. Com ela tem
início um grande movimento socioeconômico que culminará não só na subversão de
todo um modo de produção tradicional,6 mas,
em última instância, na própria guerra.
O que temos
aqui, ao final das contas, é um modo único de invocar poeticamente uma obra do
cânone. Segundo nossa interpretação, o texto de João Zorro não entra aqui como
simples ponto de diálogo, ou como referência a ser ratificada ou desconstruída.
Ao citar na integralidade a cantiga e dar a ela um espaço na página equivalente
a do seu próprio texto, Fiama a conclama, com toda a sua força, a vir integrar
o tempo presente. O resultado é que ela passa a ter, dentro do poema, o mesmo
estatuto que os versos da poeta portuguesa, com os quais se conjuga então para
formar algo novo. Opostas e espelhadas, a Cantiga de João Zorro e as estrofes
de Fiama se unem como as duas metades de um mesmo problema para formar então o
texto maior que é “Barcas novas”.
Atentemos, agora, noutra variação contemporânea a partir da cantiga do jogral medieval.
EM LISBOA, SOBRE O MAR Cantiga à maneira de Joan Zorro Em
Lisboa, sobre o mar,
minha
senhora tão linda,
barcas
novas vou lavrar
e
dentro delas cantar
uma
canção que não finda.
Nessas
barcas, sobre o mar,
esta
cantiga tão linda
em
Lisboa vou cantar,
Senhora,
por te louvar
Queria
uma vida infinda.
Barcas
novas vou levar,
senhora
minha, tão linda,
e
nessas águas cantar
em
teu louvor, sobre o mar,
uma
canção de atafinda.
Uma
canção sobre 0 mar,
minha
senhora tão linda,
Em
Lisboa vou cantar
Apenas
por te louvar
Meu
coração pulsa ainda.
José Rodrigues de Paiva, O breve fulgor do tempo: poesia
reunida
Companhia Editora de Pernambuco - Cepe, 2019
A cantiga é, na verdade, uma forma medieva "equivalente à cansó provençal ou à chanson francesa", uma estrutura poética tradicionalmente destinada ao canto e à instrumentação. À maneira de Joan Zorro — trovador que viveu entre o final do século XIII e o início do século XIV —, José Rodrigues de Paiva utiliza a quintilha com o esquema rimático ABAAB e o verso heptassilábico, a redondilha maior, medida que, como leciona Amorim de Carvalho (1904-1976) em Teoria geral da versificação, é o verso "[...] por excelência das canções populares e dos nossos romanceiros. De grande maleabilidade, pela sua acentuação incerta, presta-se a todas as expressões emocionais e a todos os temas." A composição evoca o mar lisboeta com as suas barcas. Enquanto trovador, o sujeito lírico louva a beleza da senhora. Mas exalta, também, como num metapoema moderno, o seu próprio canto.
Partindo da cantiga medieva de João Zorro, organizada em dois pares de dísticos de paralelismo semântico — anafóricos e intercomunicantes (o 2º v. do 1º é o 1º do 3º e o 2º do 2º é o 1º v. do 3º), unificados pelo refrão, José Rodrigues de Paiva cria o seu poema — Em Lisboa sobre o mar.
Mantém um verso tradicional, a redondilha maior, mas amplia a estrofe e o seu número. Opta, assim, pela quintilha, elaborando quatro, e funda a intertextualidade, prendendo-se de imediato ao 1.9 verso e disseminando vocábulos que configuram uma ordem lexemática de marinha ou barcarola: barcas novas.
O sujeito poético entra num discurso dialógico mitigado: distribui pelo poema uma série de apóstrofes que, recorrentemente, constroem uma cantiga de amor: minha senhora tão linda, Senhora, senhora minha, minha senhora tão linda. De notar que é na circularidade da 1.ª, na força expressiva da sua função emotiva, que o texto se conclui. O movimento de adoração é verdadeiramente em anábase, uma vez que ao ritmo contínuo dos três versos finais se soma a declaração do trovador moderno:
Apenas por te louvar
Meu coração pulsa ainda
Misto de cantiga de amor e
de barcarola ou marinha, o poema de José Rodrigues sugere o fluxo e refluxo das
águas, o seu movimento dual, não só por meio do isomorfismo, mas também do
esquema rimático regular, igualmente dual: a / ῖ. A rima predominante é em vogal oral
aberta, seguida de consoante líquida, em palavras oxítonas, e sugere liberdade,
ausência de fronteiras, vontade ilimitada de cantar, de louvar, de unir ao mar
o amor. A rima em vogal nasal in , muito mais intimista, frui a beleza da amada
cujo louvor quer levar até ao fim, usando o nome do artifício poético medieval
da atafinda. Cria-se um ritmo encantatório.
O trovador do século XX,
cônscio da função especular da sua poesia, do seu amor nela refletido, inscreve
na trama textual fios de metalinguagem, desde cantar — presença nas quatro quintilhas
— até canção e cantiga como seu objeto interno. A sua hipervalorização
prolonga-se sucessivamente — que não finda; tão linda; de atafinda. Bem no
coração do poema, o eu lírico aspira a uma vida infinda, reencontrando, talvez,
a expressiva sabedoria camoniana — para tão grande amor, tão curta a vida.
A poesia
da Geração 65, Marcos Alexandre Faber.
Companhia Editora de
Pernambuco - Cepe, 2019
CARREIRO, José. “Barcas novas - variações de uma cantiga de
Joan Zorro”. Portugal, Folha de Poesia, 08-05-2020.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/05/barcas-novas-variacoes-de-uma-cantiga.html
Duas palavras gregas (com roupagem latina) dominam a
actualidade mundial. Se, por um lado, a formulação que ouvimos todos os dias
(«coronavírus») fere os meus ouvidos de helenista/latinista - pois como é que
um substantivo («corōna») pode qualificar outro substantivo («vīrus»)? -, por
outro lado tenho-me entretido com os pensamentos ziguezagueantes sobre estas
duas palavras, suscitados pela sua repetição permanente. Sentado ontem ao
balcão de um pequeno restaurante de Coimbra, enquanto o noticiário televisivo
repetia em tons histéricos o nome «coronavírus», dei por mim a pensar como as
palavras têm a sua história; e como as pessoas a quem o ensino actual nega a
possibilidade de estudar Grego e Latim passam ao lado dessa história. Por via
da herança grega e latina, palavras como «corōna» e «vīrus» têm uma história
milenar, cuja viagem (pelo menos a reconstruível) começa com Homero e tem ponto
de passagem no Novo Testamento.
À partida, quando olhamos para as palavras latinas
«corōna» e «vīrus», diríamos que nada têm a ver uma com a outra: a primeira tem
como sentido primário «grinalda», «coroa»; a segunda tem como sentido primário
«veneno». No entanto, na utilização mais antiga que se conhece destas duas
palavras, elas estão estranhamente ligadas por um denominador comum: o arco do
qual se disparam flechas.
À imagem do arco está associada a palavra grega
«korōnē» (donde deriva em latim «corōna») desde a Ilíada, poema em que o termo
serve para designar a ponta do arco.
Por seu lado, a palavra latina «vīrus» é a forma
itálica da palavra grega «īós» (que no tempo de Homero talvez ainda se
pronunciasse «wīós»). Esta palavra «īós», antepassada da nossa palavra «vírus»,
é objecto de fascínio para os helenistas, porque tem três sentidos à primeira
vista diferentes: «flecha»; «veneno»; «ferrugem».
Podemos questionar hoje se, linguisticamente, a
etimologia de «īós» no sentido de «flecha» é a mesma de «īós» no sentido de
«veneno» e «ferrugem»; mas os antigos não tinham essa consciência. Se
perguntássemos a Homero a razão de as palavras para «flecha» e «veneno» serem
homógrafas, ele responder-nos-ia certamente que, muitas vezes, as flechas são
portadoras de veneno pelo facto de serem envenenadas. O arco do qual a primeira
flecha da Ilíada é disparada (arco esse, justamente, cuja descrição no Canto 4
nos dá a primeira atestação da palavra «korōnē») é tacitamente suspeito de
disparar flechas envenenadas.
Porquê? Porque o médico militar nesse canto da Ilíada,
«quando viu a ferida, onde embatera a seta aguda, / chupou dela o sangue e, bom
conhecedor, nela pôs fármacos / apaziguadores» (Ilíada 4.217-219).
Depois de Homero, «korōnē» e «īós» seguiram caminhos
divergentes. No que diz respeito a «korōnē», há que referir a sua acepção
ornitológica («corvo»), o que terá talvez conduzido à acepção de «coroa», quiçá
inspirada pela crista de algum pássaro. No entanto, em grego a acepção de
«coroa» é rara. Quando os soldados romanos tecem uma coroa de espinhos para pôr
na cabeça de Jesus, a palavra grega é «stéphanos» (στέφανος); na Vulgata, no
entanto, lemos «corōna».
Por seu lado, a palavra grega «īós» («veneno»),
correspondente a «vīrus» em latim, está praticamente ausente do Novo
Testamento, embora surja de modo curioso na Epístola de Tiago, onde a primeira
ocorrência aponta para a acepção de «veneno» (Tiago 3:8) e a segunda para a
acepção de «ferrugem» (5:2). Note-se que a conotação associada a «īós» em grego
é quase sempre negativa; mas temos uma excepção curiosa na expressão para
designar o mel, que Píndaro inventa num dos seus poemas: «veneno [īós]
inofensivo das abelhas».
Também em latim, «vīrus» tem quase sempre uma
conotação negativa; contudo, o poeta Estácio, no séc. I d.C., surpreende-nos ao
referir um «vírus benigno» com propriedades medicinais, que pode ser colhido
«nos campos dos Árabes» (Estácio, «Silvae», 1.4.104).
Que «vīrus» será esse em concreto? Estácio não nos
diz. O facto de lhe chamar «benigno» leva a crer que será bem diferente do
nosso coronavírus, que, fiel à história mais antiga das palavras que o compõem,
tem percorrido em flecha o mundo inteiro.
Um último pensamento: vários autores romanos (Horácio,
Plínio [tio], Marcial) aplicaram ao substantivo «vírus» o adjectivo «grave».
Esperemos que este vírus que agora nos ocupa se reveja mais na sua identidade
homérica de flecha... e que acabe por se tornar, já agora, como escreveu Píndaro,
ἀμεμφής: inofensivo.
Lembra-se
do que sentiu quando, a meio da infância ou no princípio da adolescência, lhe
oferecerem aquele caderno com um pequeno cadeado, onde supostamente poderiam
caber todos os seus segredos e pelo caminho tudo o que lhe viesse à cabeça?
Quem sabe, voltar a esta experiência talvez funcione como um antídoto para os
dias de incerteza em que agora mergulhámos e, por isso, lhe deixamos este desafio:
comece a escrever um diário, se possível já a partir de hoje.
Pode
aproveitar um caderno que tenha por casa ou utilizar o seu “fiel” computador. O
meio para o caso não é relevante. O que importará mesmo é fazer o seu relato
deste tempo que poderá ser único pelas piores razões, mas que também nos vai
desafiar a darmos o que de melhor possamos ser capazes.
E sabe
que escrever um diário pode ajudar a que tal aconteça? Foi o que descobriu uma
equipa de psicólogos norte-americanos, num estudo realizado no princípio do
século. Afirmam eles, num artigo publicado no Journal of Experimental
Psychology, que quando se está passar por um acontecimento traumático ou
particularmente stressante, “a nossa capacidade de concentração não é a que
deveria ser” e por isso se torna muito difícil definir “estratégias de
enfrentamento” que permitam lidar com situações que escapam de todo à rotina e
para as quais não existem respostas automáticas.
Mas
depois de terem trabalhado com cerca de uma centena de voluntários, esta mesma equipa
chegou à conclusão que para isto há um remédio fácil à mão: “Uma coisa tão
simples como escrever cerca de 20 minutos sobre os problemas que nos estão a
afectar pode ter efeitos importantes não só na saúde física e mental, como
também em termos de capacidades cognitivas” e permitir assim enfrentar melhor
situações que sejam particularmente difíceis.
Por outro
lado, escrever um diário vai permitir-lhe que se lembre mais tarde dos
pormenores de que estes dias também irão ser feitos e passar o testemunho a
outros. Como se tem vindo a comprovar, para o curso da História também têm
entrado a concurso estes pequenos “nadas” do quotidiano. Que só permanecem no
tempo se foram registados: a memória acaba por não ser uma boa amiga para este
efeito.
Está à
espera de quê? Não aproveite estes dias de confinamento para tentar resolver
tudo o que se foi acumulando por fazer em casa e comece a escrever sobre este
novo quotidiano. Até porque neste mundo em overdose de imagens, as palavras
poderão ter sempre “um poder curativo”.
Francesca Morelli: ecco cosa
ci sta spiegando il virus
Credo che il cosmo abbia il suo modo di riequilibrare
le cose e le sue leggi, quando queste vengono stravolte.
Il momento che stiamo vivendo, pieno di anomalie e
paradossi, fa pensare...
In una fase in cui il cambiamento
climatico causato dai disastri ambientali
è arrivato a livelli preoccupanti, la Cina in primis e tanti paesi a seguire,
sono costretti al blocco; l'economia collassa, ma l'inquinamento scende in
maniera considerevole. L'aria migliora; si usa la mascherina, ma si respira...
In un momento storico in cui certe
ideologie e politiche discriminatorie, con
forti richiami ad un passato meschino, si stanno riattivando in tutto il mondo,
arriva un virus che ci fa sperimentare che, in un attimo, possiamo diventare i
discriminati, i segregati, quelli bloccati alla frontiera, quelli che portano
le malattie. Anche se non ne abbiamo colpa. Anche se siamo bianchi, occidentali
e viaggiamo in business class.
In una società fondata sulla produttività
e sul consumo, in cui tutti corriamo 14
ore al giorno dietro a non si sa bene cosa, senza sabati nè domeniche, senza
più rossi del calendario, da un momento all'altro, arriva lo stop.
Fermi, a casa, giorni e giorni. A fare i
conti con un tempo di cui abbiamo perso il valore, se non è misurabile in
compenso, in denaro. Sappiamo ancora cosa farcene?
In una fase in cui la crescita dei propri
figli è, per forza di cose, delegata spesso
a figure ed istituzioni altre, il virus chiude le scuole e costringe a trovare
soluzioni alternative, a rimettere insieme mamme e papà con i propri bimbi. Ci
costringe a rifare famiglia.
In una dimensione in cui le relazioni, la
comunicazione, la socialità sono giocate prevalentemente nel
"non-spazio" del virtuale, del
social network, dandoci l'illusione della vicinanza, il virus ci toglie quella
vera di vicinanza, quella reale: che nessuno si tocchi, niente baci, niente
abbracci, a distanza, nel freddo del non-contatto.
Quanto abbiamo dato per scontato questi
gesti ed il loro significato?
In una fase sociale in cui pensare al
proprio orto è diventata la regola, il
virus ci manda un messaggio chiaro: l'unico modo per uscirne è la reciprocità,
il senso di appartenenza, la comunita, il sentire di essere parte di qualcosa
di più grande di cui prendersi cura e che si può prendere cura di noi. La
responsabilità condivisa, il sentire che dalle tue azioni dipendono le sorti
non solo tue, ma di tutti quelli che ti circondano. E che tu dipendi da loro.
Allora, se smettiamo di fare la caccia
alle streghe, di domandarci di chi è la colpa o perché è accaduto tutto questo,
ma ci domandiamo cosa possiamo imparare da questo, credo che abbiamo
tutti molto su cui riflettere ed impegnarci.
Perchè col cosmo e le sue leggi,
evidentemente, siamo in debito spinto. Ce lo sta spiegando il virus, a caro
prezzo.
“Ecco cosa ci sta
spiegando il vírus”, Francesca Morelli, 2020-03-10
Acredito que o cosmos tem
sua própria maneira de equilibrar as coisas e suas leis, quando elas estão
perturbadas.
O momento em que estamos a
viver, cheio de anomalias e paradoxos, faz-nos pensar...
Numa época em que as mudanças
climáticas causadas pelos desastres ambientais atingiram níveis preocupantes, a
China em primeiro lugar, e muitos países depois, são forçados a congelar; a
economia entra em colapso, mas a poluição diminui consideravelmente. O ar
melhora; você usa a máscara, mas respira...
Num momento histórico em
que certas ideologias e políticas discriminatórias, com fortes referências a um
passado mesquinho, estão sendo reativadas em todo o mundo, chega um vírus que
nos faz experimentar que, em um instante, podemos nos tornar os discriminados, os
segregados, os presos na fronteira, os portadores de doenças. Mesmo que a culpa
não seja nossa. Mesmo que sejamos brancos, ocidentais e viajando em classe
executiva.
Numa sociedade baseada na
produtividade e no consumo, em que todos corremos 14 horas por dia atrás do
desconhecido, sem sábados nem domingos, sem mais vermelhos no calendário, de um
momento para o outro, vem a paragem.
Parados, em casa, dias e
dias. Para contar com um tempo cujo valor perdemos, se não for mensurável em
compensação, em dinheiro.
Ainda sabemos o que fazer
com ele?
Numa fase em que o
crescimento dos filhos é, por necessidade, muitas vezes delegado a outras
figuras e instituições, o vírus fecha as escolas e obriga-as a encontrar
soluções alternativas, para voltar a colocar mães e pais junto dos filhos.
Obriga-nos a começar uma nova família.
Numa dimensão onde as
relações, a comunicação, a sociabilidade são jogadas principalmente no
"não-espaço" da rede social virtual, dando-nos a ilusão de
proximidade, o vírus tira-nos a verdadeira proximidade, a verdadeira
proximidade: sem tocar, sem beijar, sem abraçar, à distância, no frio do
não-contacto.
Quanto é que tomámos estes
gestos e o seu significado como garantidos?
Numa fase social em que
pensar no próprio jardim se tornou a regra, o vírus envia-nos uma mensagem
clara: a única saída é a reciprocidade, o sentido de pertença, a comunidade, o
sentimento de fazer parte de algo maior para cuidar e que pode cuidar de nós. A
responsabilidade partilhada, o sentimento de que o destino não é só de vocês,
mas de todos à vossa volta depende das vossas ações. E que tu dependes deles.
Então, se pararmos de
fazer caça às bruxas, pensando de quem é a culpa ou por que tudo isso
aconteceu, mas pensando no que podemos aprender com isso, acho que todos nós temos
muito o que pensar e nos comprometer.
Porque com o cosmos e suas
leis, obviamente, temos uma dívida de gratidão.
NÓS I Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre E a Cólera também andaram na cidade, Que esta população, com um terror de lebre, Fugiu da capital como da tempestade. II Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas (Até então nós só tivéramos sarampo), Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas que ele ganhou por isso um grande amor ao campo! III Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga: O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos; Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga. IV Na parte mercantil, foco da epidemia, Um pânico! Nem um navio entrava a barra, A alfândega parou, nenhuma loja abria, E os turbulentos cais cessaram a algazarra. V Pela manhã, em vez dos trens dos baptizados, Rodavam sem cessar as seges dos enterros. Que triste a sucessão dos armazéns fechados! Como um domingo inglês na city, que desterros! VI Sem canalização, em muitos burgos ermos, Secavam dejecções cobertas de mosqueiros. E os médicos, ao pé dos padres e coveiros, Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos! VII Uma iluminação a azeite de purgueira , De noite amarelava os prédios macilentos. Barricas de alcatrão ardiam; de maneira Que tinham tons de inferno outros arruamentos. VIII Porém, lá fora, à solta, exageradamente, Enquanto acontecia essa calamidade, Toda a vegetação, pletórica , potente, Ganhava imenso com a enorme mortandade! IX Num ímpeto de seiva os arvoredos fartos, Numa opulenta fúria as novidades todas, Como uma universal celebração de bodas, Amaram-se! E depois houve soberbos partos. X Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa, Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas, E em permanência olhando o horizonte em brasa, Não quis voltar senão depois das grandes chuvas. XI Ele, dum lado, via os filhos achacados , Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda! E via, do outro lado, eiras , lezírias , prados, E um salutar refúgio e um lucro na vivenda! XII E o campo, desde então, segundo o que me lembro, É todo o meu amor de todos estes anos! Nós vamos para lá; somos provincianos, Desde o calor de Maio aos frios de Novembro!