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quarta-feira, 1 de março de 2023

Lisboa com suas casas de várias cores (Álvaro de Campos)

 



Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores,
Lisboa com suas casas
De várias cores...
À força de diferente, isto é monótono,
Como à força de sentir, fico só a pensar.

Se, de noite, deitado mas desperto
Na lucidez inútil de não poder dormir,
Quero imaginar qualquer coisa
E surge sempre outra (porque há sono,
E, porque há sono, um bocado de sonho),
Quero alongar a vista com que imagino
Por grandes palmares fantásticos,
Mas não vejo mais,
Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,
Que Lisboa com suas casas
De várias cores.

Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.
À força de monótono, é diferente.
E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.

Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,
Lisboa com suas casas
De várias cores.

11/5/1934

Álvaro de Campos, Poesia, edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, pp. 491-492.

 

Questionário sobre o poema “Lisboa com suas casas”, de Álvaro de Campos

1. Relacione o conteúdo do verso 7 com o dos primeiros seis versos do poema.

2. Na segunda estrofe, o sujeito poético manifesta o desejo de sonhar algo diferente da realidade.

Explicite o contexto em que ocorre a manifestação desse desejo, bem como a razão pela qual o sujeito poético não o consegue concretizar.

3. Tanto no verso 8 como no verso 22, são enunciados processos de transformação no sujeito poético, ambos associados a uma ideia de intensificação.

Explicite esses processos de transformação.

4. Selecione a opção de resposta adequada para completar a afirmação.

De entre os vários processos que contribuem para imprimir ritmo ao poema, destaca-se a presença, em simultâneo,

(A) de um esquema rimático fixo em todas as estrofes e da repetição de palavras em final de verso.

(B) da alternância entre versos longos e versos curtos e de anástrofes frequentes.

(C) de um esquema rimático fixo em todas as estrofes e de anástrofes frequentes.

(D) da alternância entre versos longos e versos curtos e da repetição de palavras em final de verso.

 

Critérios específicos de classificação

1. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

− a repetição, quase obsessiva, da representação de Lisboa com as suas casas de várias cores (vv. 1 a 6) leva o sujeito poético a associar o adjetivo «diferente» (v. 7) à paisagem que perceciona;

− a constância/persistência dessa regularidade conduz, todavia, à ideia expressa pelo adjetivo «monótono» (v. 7), evidenciando um sentimento de tédio.

2. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

− o desejo do sujeito poético ocorre na solidão insone da noite, momento de lucidez propício ao pensamento e ao devaneio/sonho;

− o sujeito poético não consegue concretizar o seu desejo, pois a realidade prevalece sobre o sonho, como se a imagem de «Lisboa com suas casas/De várias cores» estivesse gravada no seu íntimo («Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras» v. 17).

3. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

− no verso 8, a intensificação das emoções («À força de sentir») conduz ao pensamento / à intelectualização das emoções / à racionalização;

− no verso 22, a intensificação da consciência («à força de ser eu») conduz à inconsciência / à não consciência de si / à anulação do «eu».

4. Chave: (D)

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 – 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 27-B/2022, de 23 de março). Portugal, IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2022, Época Especial

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro.





domingo, 20 de novembro de 2022

Arredores, Nuno Júdice

Nuno Júdice

 

Leia o seguinte poema de Nuno Júdice. A epígrafe* do texto pertence a um poema de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa.

 

ARREDORES

«Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros»

Álvaro de Campos

 

No tempo em que havia quintas e hortas em Lisboa, e

se ia para lá aos domingos, eu ficava em casa. E em

vez de ir para as quintas e para as hortas, em vez de

apanhar couves e de ordenhar ovelhas, lia

poemas que falavam das quintas e das hortas de Lisboa,

como se isso substituísse o ar do campo e o cheiro

dos estábulos. É por isso que hoje, quando me lembro dos arredores de Lisboa

onde havia quintas e hortas, o que lembro são as horas de leitura de

poemas sobre esses arredores, e os passeios que eles me faziam dar

aos domingos, substituindo os lugares reais com mais exatidão

do que se eu tivesse ido a esses lugares. Visitei, assim, quintas

e hortas pela mão do Cesário Verde e do Álvaro de Campos, e

soube por eles tudo o que precisava de saber sobre os arredores de Lisboa,

que hoje já não existem porque Lisboa entrou por eles e transformou as quintas

em prédios e as ovelhas em automóveis. Não me arrependo, então, de

ter lido Cesário e Campos enquanto ouvia balir os rebanhos que vinham

pastar a Lisboa, nas traseiras do meu prédio, onde as mulheres

das hortas vendiam leite e queijo fresco, às escondidas

da polícia. Hoje, já não sei onde se escondem essas mulheres,

nem há quintas e hortas em Lisboa; mas ficaram os poemas

que ainda me levam a passear às quintas e hortas que já não existem,

onde apanho couves e ordenho ovelhas por entre prédios

e automóveis.

 

Nuno Júdice, O Estado dos Campos, Lisboa, Dom Quixote, 2003

__________

* epígrafe: citação que, colocada no início de um livro, capítulo, poema, etc., pode indicar o tema ou o ponto de partida do texto.

 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens.

1. Explicite as relações de sentido que se podem estabelecer entre o poema e o verso de Álvaro de Campos citado em epígrafe.

2. Refira as diferenças de comportamento entre o «eu» e os outros à sua volta.

3. Identifique dois dos recursos estilísticos presentes no texto, exemplificando cada um deles com uma ocorrência.

4. Comente a importância do tema das mudanças provocadas pela passagem do tempo na construção do sentido do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. O verso de Álvaro de Campos que é citado em epígrafe do poema Arredores remete para o tema da visita às hortas que se cultivavam nos arredores de Lisboa – hoje zonas urbanas integradas na cidade –, ao domingo, por parte dos habitantes de Lisboa. Do mesmo modo que no verso de Álvaro de Campos, essa visita dominical das hortas é referida no poema de Nuno Júdice como sendo feita sempre e só pelos outros. Com uma diferença: a visita às hortas, para o caso deste «eu», era, e por isso ainda pode ser, feita através da leitura de poemas.

2. Em vez de ir para as «quintas e hortas», o «eu» ficava em casa, aos domingos, a ler poesia. Assim, em vez de ir, como os outros, para os arredores de Lisboa, ficava a dar passeios nesses arredores imaginados que os poemas lhe ofereciam. Hoje, quando os hábitos dos habitantes de Lisboa mudaram e já ninguém vai aos domingos para as «quintas e hortas em Lisboa», o «eu» continua a fazer os seus passeios imaginários por meio dos mesmos poemas, que «ficaram».

3. Entre outros, destacam-se os seguintes recursos estilísticos:

– repetição sistemática do sintagma «quintas e hortas», com algumas variações, ao longo do poema;

– imagem, em «Visitei, assim, quintas / e hortas pela mão do Cesário Verde e do Álvaro de Campos» e, também, em «Lisboa entrou por eles e transformou as quintas / em prédios e as ovelhas em automóveis»;

– comparação, em «como se isso substituísse o ar do campo e o cheiro / dos estábulos»;

– metáforas, nos quatro versos finais, em que as «quintas e hortas» continuam a ser visitadas em imaginação, apesar de se terem transformado, na realidade, em «prédios» e «automóveis».

4. A contraposição entre o tempo pretérito e o tempo presente atravessa o texto, pois a memória antiga dos domingos passados por outros («se ia», v. 2) nos arredores de Lisboa, apresentada como uma memória de «horas de leitura» de poemas de Cesário Verde e de Álvaro de Campos «sobre esses arredores», sublinha o desaparecimento presente das «quintas», das «hortas» e dos «rebanhos». No entanto, as mudanças que a passagem do tempo trouxe não afetam a representação desse mundo tal como nos poemas se encontra, e que pode ser reencontrada de cada vez que são lidos. A única diferença é que, antes, os poemas eram a representação de lugares realmente existentes, «com mais exatidão» ainda – e, hoje, referem lugares que já não existem.

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 734 - 10.º e 11.º Anos de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março). Prova Escrita de Literatura Portuguesa, Lisboa, GAVE-Gabinete de Avaliação Educacional, 2009, 2.ª Fase

 


“Arredores, Nuno Júdice”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-11-20. Disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/11/arredores-nuno-judice.html


sexta-feira, 8 de maio de 2020

Barcas novas - variações de uma cantiga de Joan Zorro

Em Lixboa, sobre lo mar  |  Joan Zorro




A cantiga de amigo “Em Lixboa, sobre lo mar” (texto que a seguir transcreve, integrado num poema do século XX) encontra-se registada nos cancioneiros B (Biblioteca Nacional, nº 1157) e V (Vaticana, nº 759).
Trata-se de uma cantiga de amigo (marinha), de dístico de rima toante (í-o e á-o), com refrão composto de duas partes (uma intercalada entre o 1º e o 2º verso do dístico e a outra no final da estrofe): fala a donzela (namorada) da sua decisão ou desejo de ir ver o barco / navio, que o rei mandou preparar para uma missão e nela deseja partir com o seu amigo. É seu autor João Zorro, o jogral de Lisboa e do Tejo (viveu certamente durante o reinado de D. Dinis), e sobretudo das suas barcas, tão bem evocadas no século XX por Fiama Hasse Pais Brandão. https://estrolabio.blogs.sapo.pt/394297.html

Em Lixboa, sobre lo mar,
barcas novas mandei lavrar,
       ai mia senhor veelida!

Em Lixboa, sobre lo lez,
barcas novas mandei fazer,
       ai mia senhor veelida!

Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
       ai mia senhor veelida!

Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
       ai mia senhor veelida!

                           João Zorro

Lisboa tem suas barcas
agora lavradas de armas

Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens

Barcas novas levam guerra
as armas não lavram terra

São de guerra as barcas novas
no mar deitadas com homens

Barcas novas são mandadas
sobre o mar com suas armas

Não lavram terra com elas
os homens com sua guerra

Nelas mandaram meter
os homens com sua guerra

Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas

Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas.

Fiama Hasse Pais Brandão, Barcas Novas, Lisboa: Editora Ulisseia, 1967, p.9.


Tópicos de análise:
  • Estrutura formal do poema e sua relação com o conteúdo;
  • Poema de intervenção;
  • Relações intratextuais com a lírica trovadoresca;
  • Atualidade do tema.


Sobre o poema “Barcas novas”, de FHPB:
Este poema é constituído por dois poemas para mostrar o próprio processo de recriação:  o segundo poema retoma a forma da Cantiga de Amigo e canta o sentimento de dor e tristeza causado pela  partida dos soldados para a guerra colonial. O ritmo e a repetição das palavras produzem um jogo de sentidos  que mostram que a Guerra não tem sentido. Este poema  faz referência a uma fase dolorosa da história de Portugal: a Guerra Colonial.

Fiama Hasse Pais Brandão toma como epígrafe um poema antigo – mais especificamente uma cantiga de amor de João Zorro (B 1151ª-1152ª, V 754) – que, citado integralmente, se incorpora ao texto do presente como parte essencial dele.
Inicialmente, somos levados a ler esse poema a partir dos con­ceitos de dialogismo e bivocalidade propostos por Bakhtin (2008). Em um movimento paródico, o poema de Fiama toma o texto de João Zorro como ponto de partida, e, usando o mesmo vocabulário e o mesmo estilo da Cantiga de Amor original, cria com ela um diálogo no qual se contra­põem perspectivas passadas e presentes. Na epígrafe, é dado um tema, o do trabalho humano ligado ao mar que se materializa na forma de barcas; no desenvolvimento feito por Fiama, as barcas são qualificadas, não são barcas quaisquer, mas barcas lavradas de armas que partem para destruir. Assim, o segundo texto propõe em relação ao primeiro uma mudança significati­va: nele o lavrar do poema base – que tem o teor de sacrifício, trabalho e também de oferenda (afinal as barcas parecem estar sendo ofertadas à bela senhora aludida no refrão) – se faz presente, mas ganha por complemento uma série de novos objetos perversos e malignos. Em um movimento de contínuas substituições, que mimetiza em parte a estrutura paralelística da cantiga de Zorro,5 a autora termina por fazer com que todos esses termos – a saber, homens, armas, barcas e guerra – se equivalham ao final. O re­sultado é um suplemento de sentido que subverte a integridade do poema original: o que está aqui em questão não é mais um trabalho que gera valor (barcas), mas um trabalho que produz só perda e morte, uma vez que é um trabalho de guerra.
O contexto português, no qual ambas as produções se inserem, torna essa contraposição particularmente significativa. Lembremos que o trabalho com o mar é uma das tradições mais fortes desse país que é rico em litoral e pobre em terras agricultáveis. Assim, ao se colocarem frente a frente, os dois poemas mostram dois lados (ou ainda, dois momentos) de uma discussão maior que toca questões relativas a história e a identidade nacional portuguesa. No primeiro desses momentos, teríamos represen­tado o mundo da tradição: um mundo no qual os objetos são produzidos a partir de saberes e técnicas aprendidas com os antepassados, carregam uma experiência humana e comunitária, inserindo-se de maneira integra­da na vida daqueles que os fabricam e utilizam. Nesse mundo, o poeta, que naturalmente se vincula ao seu meio, aos costumes orais do seu povo e à memória herdada do passado, lembra muito o próprio artesão em seu fazer (BENJAMIN, 1980, p. 63). Em oposição direta e contrária a isso, temos, no segundo momento, o mundo moderno do trabalho reificante e alienado. Aqui, não está em questão a manufatura de um novo objeto que se integra a seu meio (como a barca, que depois de pronta ganha o mar e toca o coração da bela dama do refrão); o lavrar invocado por Fiama não indica um fazer real, mas é metáfora de um antitrabalho (o trabalho de destruição que já mencionamos acima).
O que Fiama Hasse Paes Brandão nos mostra – e a disposição dos dois blocos de texto na página sugere justamente isso – é que os gestos en­cenados por ela e por Zorro em seus respectivos poemas são equivalentes e complementares. No momento em que o povo português coloca seus barcos no mar, descobre o caminho para as Índias e posteriormente para a América, ele inaugura a empresa colonial. Com ela tem início um grande movimento socioeconômico que culminará não só na subversão de todo um modo de produção tradicional,6 mas, em última instância, na própria guerra.
O que temos aqui, ao final das contas, é um modo único de in­vocar poeticamente uma obra do cânone. Segundo nossa interpretação, o texto de João Zorro não entra aqui como simples ponto de diálogo, ou como referência a ser ratificada ou desconstruída. Ao citar na integralidade a cantiga e dar a ela um espaço na página equivalente a do seu próprio texto, Fiama a conclama, com toda a sua força, a vir integrar o tempo presente. O resultado é que ela passa a ter, dentro do poema, o mesmo estatuto que os versos da poeta portuguesa, com os quais se conjuga então para formar algo novo. Opostas e espelhadas, a Cantiga de João Zorro e as estrofes de Fiama se unem como as duas metades de um mesmo problema para for­mar então o texto maior que é “Barcas novas”.

O mar, a nau, a batalha: a sobrevivência das formas na Antologia da memória poética da Guerra Colonial, Lisa Carvalho Vasconcellos. ABRIL – Revista do NEPA/UFF, Niterói, v.10, n.20, p. 79-90, jan.-jun. 2018






Atentemos, agora, noutra variação contemporânea a partir da cantiga do jogral medieval. 

EM LISBOA, SOBRE O MAR
Cantiga à maneira de Joan Zorro

Em Lisboa, sobre o mar,
minha senhora tão linda,
barcas novas vou lavrar
e dentro delas cantar
uma canção que não finda.

Nessas barcas, sobre o mar,
esta cantiga tão linda
em Lisboa vou cantar,
Senhora, por te louvar
Queria uma vida infinda.

Barcas novas vou levar,
senhora minha, tão linda,
e nessas águas cantar
em teu louvor, sobre o mar,
uma canção de atafinda.

Uma canção sobre 0 mar,
minha senhora tão linda,
Em Lisboa vou cantar
Apenas por te louvar
Meu coração pulsa ainda.

José Rodrigues de Paiva, O breve fulgor do tempo: poesia reunida
Companhia Editora de Pernambuco - Cepe, 2019
 
A cantiga é, na verdade, uma forma medieva "equivalente à cansó provençal ou à chanson francesa", uma estrutura poética tradicionalmente destinada ao canto e à instrumentação. À maneira de Joan Zorro — trovador que viveu entre o final do século XIII e o início do século XIV —, José Rodrigues de Paiva utiliza a quintilha com o esquema rimático ABAAB e o verso heptassilábico, a redondilha maior, medida que, como leciona Amorim de Carvalho (1904-1976) em Teoria geral da versificação, é o verso "[...] por excelência das canções populares e dos nossos romanceiros. De grande maleabilidade, pela sua acentuação incerta, presta-se a todas as expressões emocionais e a todos os temas." A composição evoca o mar lisboeta com as suas barcas. Enquanto trovador, o sujeito lírico louva a beleza da senhora. Mas exalta, também, como num metapoema moderno, o seu próprio canto. 
Partindo da cantiga medieva de João Zorro, organizada em dois pares de dísticos de paralelismo semântico — anafóricos e intercomunicantes (o 2º v. do 1º é o 1º do 3º e o 2º do 2º é o 1º v. do 3º), unificados pelo refrão, José Rodrigues de Paiva cria o seu poema — Em Lisboa sobre o mar. 
Mantém um verso tradicional, a redondilha maior, mas amplia a estrofe e o seu número. Opta, assim, pela quintilha, elaborando quatro, e funda a intertextualidade, prendendo-se de imediato ao 1.9 verso e disseminando vocábulos que configuram uma ordem lexemática de marinha ou barcarola: barcas novas. 
O sujeito poético entra num discurso dialógico mitigado: distribui pelo poema uma série de apóstrofes que, recorrentemente, constroem uma cantiga de amor: minha senhora tão linda, Senhora, senhora minha, minha senhora tão linda. De notar que é na circularidade da 1.ª, na força expressiva da sua função emotiva, que o texto se conclui. O movimento de adoração é verdadeiramente em anábase, uma vez que ao ritmo contínuo dos três versos finais se soma a declaração do trovador moderno: 
Apenas por te louvar
Meu coração pulsa ainda
 
Misto de cantiga de amor e de barcarola ou marinha, o poema de José Rodrigues sugere o fluxo e refluxo das águas, o seu movimento dual, não só por meio do isomorfismo, mas também do esquema rimático regular, igualmente dual: a / . A rima predominante é em vogal oral aberta, seguida de consoante líquida, em palavras oxítonas, e sugere liberdade, ausência de fronteiras, vontade ilimitada de cantar, de louvar, de unir ao mar o amor. A rima em vogal nasal in , muito mais intimista, frui a beleza da amada cujo louvor quer levar até ao fim, usando o nome do artifício poético medieval da atafinda. Cria-se um ritmo encantatório.
O trovador do século XX, cônscio da função especular da sua poesia, do seu amor nela refletido, inscreve na trama textual fios de metalinguagem, desde cantar — presença nas quatro quintilhas — até canção e cantiga como seu objeto interno. A sua hipervalorização prolonga-se sucessivamente — que não finda; tão linda; de atafinda. Bem no coração do poema, o eu lírico aspira a uma vida infinda, reencontrando, talvez, a expressiva sabedoria camoniana — para tão grande amor, tão curta a vida.
 
A poesia da Geração 65, Marcos Alexandre Faber.
Companhia Editora de Pernambuco - Cepe, 2019



CARREIRO, José. “Barcas novas - variações de uma cantiga de Joan Zorro”. Portugal, Folha de Poesia, 08-05-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/05/barcas-novas-variacoes-de-uma-cantiga.html


segunda-feira, 16 de março de 2020

COVID-19, Coronavírus




A coisa veio de mansinho
Até parecia a gozar
Um vírus vindo da China
Todo lampeiro a matar

Ninguém levou muito a sério
Que a China fica no boda
Mas depois saltou barreiras
E é dono da porra toda

Chama-se Coronavírus
Que parece um nome querido
Não se deixem enganar
Que este sacana é fodi#%
Agora que já cá está
Não vamos fingir que não
É fazer o que é preciso
E dar conta do cabrão

Lavem muito essas manitas
E evitem espaços fechados
Espirrar é só para a manga
Não queremos mais infectados
Caso sintam coisas estranhas
O hospital é pra esquecer
Liguem prá Linha Saúde
Que algum dia hão de atender

Se vier a quarentena
Vamos ter de recolher
Mas em calhando é melhor isso
Do que, sei lá, falecer
É o bicho, é o bicho
Mas aqui não manda nada
Que nós somos portugueses
E somos bons prá porrada

Ainda assim, meus fofinhos
Nada como acautelar
Se todos fizermos isto
O Corona vai a andar
Ah, e só mesmo para acabar
Parem lá de açambarcar
Tenham calma com o papel
O rabo dá pra lavar

Partilhado em: A Pipoca Mais DoceAna Garcia Martins, 2020-03-12.

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«Corōna» e «vīrus» em tempo de coronavírus

Duas palavras gregas (com roupagem latina) dominam a actualidade mundial. Se, por um lado, a formulação que ouvimos todos os dias («coronavírus») fere os meus ouvidos de helenista/latinista - pois como é que um substantivo («corōna») pode qualificar outro substantivo («vīrus»)? -, por outro lado tenho-me entretido com os pensamentos ziguezagueantes sobre estas duas palavras, suscitados pela sua repetição permanente. Sentado ontem ao balcão de um pequeno restaurante de Coimbra, enquanto o noticiário televisivo repetia em tons histéricos o nome «coronavírus», dei por mim a pensar como as palavras têm a sua história; e como as pessoas a quem o ensino actual nega a possibilidade de estudar Grego e Latim passam ao lado dessa história. Por via da herança grega e latina, palavras como «corōna» e «vīrus» têm uma história milenar, cuja viagem (pelo menos a reconstruível) começa com Homero e tem ponto de passagem no Novo Testamento.

À partida, quando olhamos para as palavras latinas «corōna» e «vīrus», diríamos que nada têm a ver uma com a outra: a primeira tem como sentido primário «grinalda», «coroa»; a segunda tem como sentido primário «veneno». No entanto, na utilização mais antiga que se conhece destas duas palavras, elas estão estranhamente ligadas por um denominador comum: o arco do qual se disparam flechas.

À imagem do arco está associada a palavra grega «korōnē» (donde deriva em latim «corōna») desde a Ilíada, poema em que o termo serve para designar a ponta do arco.
Por seu lado, a palavra latina «vīrus» é a forma itálica da palavra grega «īós» (que no tempo de Homero talvez ainda se pronunciasse «wīós»). Esta palavra «īós», antepassada da nossa palavra «vírus», é objecto de fascínio para os helenistas, porque tem três sentidos à primeira vista diferentes: «flecha»; «veneno»; «ferrugem».

Podemos questionar hoje se, linguisticamente, a etimologia de «īós» no sentido de «flecha» é a mesma de «īós» no sentido de «veneno» e «ferrugem»; mas os antigos não tinham essa consciência. Se perguntássemos a Homero a razão de as palavras para «flecha» e «veneno» serem homógrafas, ele responder-nos-ia certamente que, muitas vezes, as flechas são portadoras de veneno pelo facto de serem envenenadas. O arco do qual a primeira flecha da Ilíada é disparada (arco esse, justamente, cuja descrição no Canto 4 nos dá a primeira atestação da palavra «korōnē») é tacitamente suspeito de disparar flechas envenenadas.

Porquê? Porque o médico militar nesse canto da Ilíada, «quando viu a ferida, onde embatera a seta aguda, / chupou dela o sangue e, bom conhecedor, nela pôs fármacos / apaziguadores» (Ilíada 4.217-219).

Depois de Homero, «korōnē» e «īós» seguiram caminhos divergentes. No que diz respeito a «korōnē», há que referir a sua acepção ornitológica («corvo»), o que terá talvez conduzido à acepção de «coroa», quiçá inspirada pela crista de algum pássaro. No entanto, em grego a acepção de «coroa» é rara. Quando os soldados romanos tecem uma coroa de espinhos para pôr na cabeça de Jesus, a palavra grega é «stéphanos» (στέφανος); na Vulgata, no entanto, lemos «corōna».

Por seu lado, a palavra grega «īós» («veneno»), correspondente a «vīrus» em latim, está praticamente ausente do Novo Testamento, embora surja de modo curioso na Epístola de Tiago, onde a primeira ocorrência aponta para a acepção de «veneno» (Tiago 3:8) e a segunda para a acepção de «ferrugem» (5:2). Note-se que a conotação associada a «īós» em grego é quase sempre negativa; mas temos uma excepção curiosa na expressão para designar o mel, que Píndaro inventa num dos seus poemas: «veneno [īós] inofensivo das abelhas».

Também em latim, «vīrus» tem quase sempre uma conotação negativa; contudo, o poeta Estácio, no séc. I d.C., surpreende-nos ao referir um «vírus benigno» com propriedades medicinais, que pode ser colhido «nos campos dos Árabes» (Estácio, «Silvae», 1.4.104).

Que «vīrus» será esse em concreto? Estácio não nos diz. O facto de lhe chamar «benigno» leva a crer que será bem diferente do nosso coronavírus, que, fiel à história mais antiga das palavras que o compõem, tem percorrido em flecha o mundo inteiro.

Um último pensamento: vários autores romanos (Horácio, Plínio [tio], Marcial) aplicaram ao substantivo «vírus» o adjectivo «grave». Esperemos que este vírus que agora nos ocupa se reveja mais na sua identidade homérica de flecha... e que acabe por se tornar, já agora, como escreveu Píndaro, μεμφής: inofensivo.

Frederico Lourenço, Coimbra, 2020-03-07
***

Lembra-se do que sentiu quando, a meio da infância ou no princípio da adolescência, lhe oferecerem aquele caderno com um pequeno cadeado, onde supostamente poderiam caber todos os seus segredos e pelo caminho tudo o que lhe viesse à cabeça? Quem sabe, voltar a esta experiência talvez funcione como um antídoto para os dias de incerteza em que agora mergulhámos e, por isso, lhe deixamos este desafio: comece a escrever um diário, se possível já a partir de hoje.

Pode aproveitar um caderno que tenha por casa ou utilizar o seu “fiel” computador. O meio para o caso não é relevante. O que importará mesmo é fazer o seu relato deste tempo que poderá ser único pelas piores razões, mas que também nos vai desafiar a darmos o que de melhor possamos ser capazes.

E sabe que escrever um diário pode ajudar a que tal aconteça? Foi o que descobriu uma equipa de psicólogos norte-americanos, num estudo realizado no princípio do século. Afirmam eles, num artigo publicado no Journal of Experimental Psychology, que quando se está passar por um acontecimento traumático ou particularmente stressante, “a nossa capacidade de concentração não é a que deveria ser” e por isso se torna muito difícil definir “estratégias de enfrentamento” que permitam lidar com situações que escapam de todo à rotina e para as quais não existem respostas automáticas.

Mas depois de terem trabalhado com cerca de uma centena de voluntários, esta mesma equipa chegou à conclusão que para isto há um remédio fácil à mão: “Uma coisa tão simples como escrever cerca de 20 minutos sobre os problemas que nos estão a afectar pode ter efeitos importantes não só na saúde física e mental, como também em termos de capacidades cognitivas” e permitir assim enfrentar melhor situações que sejam particularmente difíceis.

Por outro lado, escrever um diário vai permitir-lhe que se lembre mais tarde dos pormenores de que estes dias também irão ser feitos e passar o testemunho a outros. Como se tem vindo a comprovar, para o curso da História também têm entrado a concurso estes pequenos “nadas” do quotidiano. Que só permanecem no tempo se foram registados: a memória acaba por não ser uma boa amiga para este efeito.

Está à espera de quê? Não aproveite estes dias de confinamento para tentar resolver tudo o que se foi acumulando por fazer em casa e comece a escrever sobre este novo quotidiano. Até porque neste mundo em overdose de imagens, as palavras poderão ter sempre “um poder curativo”.

Clara Viana, “Escrever um diário é um antídoto para tempos de incerteza”, Público, 2020-03-16

***


Francesca Morelli: ecco cosa ci sta spiegando il virus

Credo che il cosmo abbia il suo modo di riequilibrare le cose e le sue leggi, quando queste vengono stravolte.
Il momento che stiamo vivendo, pieno di anomalie e paradossi, fa pensare...
In una fase in cui il cambiamento climatico causato dai disastri ambientali è arrivato a livelli preoccupanti, la Cina in primis e tanti paesi a seguire, sono costretti al blocco; l'economia collassa, ma l'inquinamento scende in maniera considerevole. L'aria migliora; si usa la mascherina, ma si respira...
In un momento storico in cui certe ideologie e politiche discriminatorie, con forti richiami ad un passato meschino, si stanno riattivando in tutto il mondo, arriva un virus che ci fa sperimentare che, in un attimo, possiamo diventare i discriminati, i segregati, quelli bloccati alla frontiera, quelli che portano le malattie. Anche se non ne abbiamo colpa. Anche se siamo bianchi, occidentali e viaggiamo in business class.
In una società fondata sulla produttività e sul consumo, in cui tutti corriamo 14 ore al giorno dietro a non si sa bene cosa, senza sabati nè domeniche, senza più rossi del calendario, da un momento all'altro, arriva lo stop.
Fermi, a casa, giorni e giorni. A fare i conti con un tempo di cui abbiamo perso il valore, se non è misurabile in compenso, in denaro. Sappiamo ancora cosa farcene?
In una fase in cui la crescita dei propri figli è, per forza di cose, delegata spesso a figure ed istituzioni altre, il virus chiude le scuole e costringe a trovare soluzioni alternative, a rimettere insieme mamme e papà con i propri bimbi. Ci costringe a rifare famiglia.
In una dimensione in cui le relazioni, la comunicazione, la socialità sono giocate prevalentemente nel "non-spazio" del virtuale, del social network, dandoci l'illusione della vicinanza, il virus ci toglie quella vera di vicinanza, quella reale: che nessuno si tocchi, niente baci, niente abbracci, a distanza, nel freddo del non-contatto.
Quanto abbiamo dato per scontato questi gesti ed il loro significato?
In una fase sociale in cui pensare al proprio orto è diventata la regola, il virus ci manda un messaggio chiaro: l'unico modo per uscirne è la reciprocità, il senso di appartenenza, la comunita, il sentire di essere parte di qualcosa di più grande di cui prendersi cura e che si può prendere cura di noi. La responsabilità condivisa, il sentire che dalle tue azioni dipendono le sorti non solo tue, ma di tutti quelli che ti circondano. E che tu dipendi da loro.
Allora, se smettiamo di fare la caccia alle streghe, di domandarci di chi è la colpa o perché è accaduto tutto questo, ma ci domandiamo cosa possiamo imparare da questo, credo che abbiamo tutti molto su cui riflettere ed impegnarci.
Perchè col cosmo e le sue leggi, evidentemente, siamo in debito spinto. Ce lo sta spiegando il virus, a caro prezzo.

“Ecco cosa ci sta spiegando il vírus”, Francesca Morelli, 2020-03-10





Reflexão da psicóloga Francesca Morelli
(Tradução)

Acredito que o cosmos tem sua própria maneira de equilibrar as coisas e suas leis, quando elas estão perturbadas.
O momento em que estamos a viver, cheio de anomalias e paradoxos, faz-nos pensar...
Numa época em que as mudanças climáticas causadas pelos desastres ambientais atingiram níveis preocupantes, a China em primeiro lugar, e muitos países depois, são forçados a congelar; a economia entra em colapso, mas a poluição diminui consideravelmente. O ar melhora; você usa a máscara, mas respira...
Num momento histórico em que certas ideologias e políticas discriminatórias, com fortes referências a um passado mesquinho, estão sendo reativadas em todo o mundo, chega um vírus que nos faz experimentar que, em um instante, podemos nos tornar os discriminados, os segregados, os presos na fronteira, os portadores de doenças. Mesmo que a culpa não seja nossa. Mesmo que sejamos brancos, ocidentais e viajando em classe executiva.
Numa sociedade baseada na produtividade e no consumo, em que todos corremos 14 horas por dia atrás do desconhecido, sem sábados nem domingos, sem mais vermelhos no calendário, de um momento para o outro, vem a paragem.
Parados, em casa, dias e dias. Para contar com um tempo cujo valor perdemos, se não for mensurável em compensação, em dinheiro.
Ainda sabemos o que fazer com ele?
Numa fase em que o crescimento dos filhos é, por necessidade, muitas vezes delegado a outras figuras e instituições, o vírus fecha as escolas e obriga-as a encontrar soluções alternativas, para voltar a colocar mães e pais junto dos filhos. Obriga-nos a começar uma nova família.
Numa dimensão onde as relações, a comunicação, a sociabilidade são jogadas principalmente no "não-espaço" da rede social virtual, dando-nos a ilusão de proximidade, o vírus tira-nos a verdadeira proximidade, a verdadeira proximidade: sem tocar, sem beijar, sem abraçar, à distância, no frio do não-contacto.
Quanto é que tomámos estes gestos e o seu significado como garantidos?
Numa fase social em que pensar no próprio jardim se tornou a regra, o vírus envia-nos uma mensagem clara: a única saída é a reciprocidade, o sentido de pertença, a comunidade, o sentimento de fazer parte de algo maior para cuidar e que pode cuidar de nós. A responsabilidade partilhada, o sentimento de que o destino não é só de vocês, mas de todos à vossa volta depende das vossas ações. E que tu dependes deles.
Então, se pararmos de fazer caça às bruxas, pensando de quem é a culpa ou por que tudo isso aconteceu, mas pensando no que podemos aprender com isso, acho que todos nós temos muito o que pensar e nos comprometer.
Porque com o cosmos e suas leis, obviamente, temos uma dívida de gratidão.
O vírus está a explicar-nos, a um grande custo.


“Isto é o que nos explica o vírus”, Francesca Morelli. Título original: “Ecco cosa ci sta spiegando il vírus”, VITA.IT, 2020-03-10










Lisboa ainda



Lisboa não tem beijos nem abraços

não tem risos nem esplanadas

não tem passos

nem raparigas e rapazes de mãos dadas

tem praças cheias de ninguém

ainda tem sol mas não tem

nem gaivota de Amália nem canoa

sem restaurantes sem bares nem cinemas

ainda é fado ainda é poemas

fechada dentro de si mesma ainda é Lisboa

cidade aberta

ainda é Lisboa de Pessoa alegre e triste

e em cada rua deserta

ainda resiste.


Manuel Alegre, poema escrito em 20 de março de 2020



A VIDA TRIUNFA EM CASA 

 

Esta ausência não foi por nós pedida, 

este silêncio não é da nossa lavra, 

já nem Pessoa conversa com Pessoa, 

com o feitiço sempre imenso da palavra 

Este tempo só é o nosso tempo 

porque é nossa a dor que nos sufoca 

e faz de cada dia a ferida entreaberta 

do assombro que esquivando-se nos toca 

Esta ausência é dos netos, dos filhos, dos avós, 

é a casa alquebrada pelo medo, 

é a febre a arder na nossa voz 

por saber que o mal a magoa em segredo 

Este silêncio é um sussurro tão antigo 

que mata como a peste já matava; 

vem de longe sem nada ter de amigo 

com a mesma angústia que nos castigava 

Esta ausência é uma pátria revoltada 

que se fecha em casa sempre à espera 

que a febre não a vença nem lhe roube 

a luz mansa que lhe traz a Primavera 

Esta casa somos nós de sentinela,

à espera que a rua de novo nos console 

e que festeje debruçada à janela 

a alegria que só nasce com o sol 

Esta ausência mais tarde há-de ter fim, 

por nada lhe faltar nem inocência; 

que se escute o desejo de saúde 

anunciando que vai pôr fim à inclemência 

Que se abram as portas e as janelas, 

que o medo, derrotado, parta sem destino 

por ser esse o sonho colorido 

que ilumina o riso de um menino. 

 

José Jorge Letria, 20 de março de 2020

https://expresso.pt/coronavirus/2020-03-21-Jose-Jorge-Letria-escreve-poema-sobre-o-covid-19-A-Vida-Triunfa-em-Casa



INTERTEXTUALIDADE  |  PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER

NÓS 

I
Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E a Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

II
Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo),
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

III
Se acaso o conta, ainda a fronte  se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar  dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga.

IV
Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.

V
Pela manhã, em vez dos trens  dos baptizados,
Rodavam sem cessar as seges  dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na city, que desterros!

VI
Sem canalização, em muitos burgos  ermos,
Secavam dejecções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

VII
Uma iluminação a azeite de purgueira ,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons de inferno outros arruamentos.

VIII
Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica , potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!

IX
Num ímpeto de seiva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

X
Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.

XI
Ele, dum lado, via os filhos achacados ,
Um lívido flagelo e uma moléstia  horrenda!
E via, do outro lado, eiras , lezírias , prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!

XII
E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de Maio aos frios de Novembro!


Cesário Verde

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CARREIRO, José. “COVID-19, Coronavírus”. Portugal, Folha de Poesia, 16-03-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/03/covid-19-coronavirus.html