[DEUS, SOBRE O MAGNO PROBLEMA
DA EXISTÊNCIA DE DEUS]
Valerá a pena perder tempo onde os outros já perderam, falhar onde
os outros já falharam?
Decidir desta questão é de alguma maneira decidir da sorte de Deus?
*
Não importa a existência de Deus (é um grave problema que não
importa) mas sim o do muro. Entre Ele e nós, entre o aqui e o Além - um muro.
De cuja natureza nada sabemos.
Já se falou o bastante sobre Deus e os seus pesados atributos.
Também já dissemos as orações todas.
Mas sobre o muro – mais alto do que nós e do que Ele e de que Ele é
tão vítima como nós?
*
Entre Deus e nós um muro, um abismo. Por que não nos temos entretido
a adjetivar o muro, o abismo? Dá que pensar.
*
Quem é que se empoleira nos muros, a olhar para um lado e para
outro? Os gatos, as crianças. Quem se empoleira no Muro?
*
Um bom tema de meditação: em que medida os atributos da Divindade
são consequência, designadamente, dos pequenos-almoços, das sobremesas, das más
digestões dos doutores da Igreja, do bom e do mau humor dos teólogos?
*
Do nosso medo, do nosso infinito desconhecimento, da nossa
esperança, da nossa pálida alegria – Ele é um fruto serôdio.
*
Quando eu era pequenino e Tu existias não era entre nós muito grande
a distância e mesmo a diferença, se excetuarmos a de não fazeres nunca chichi
na cama. Depois as complicaram-se: foste ficando para trás, não cresceste; eu
cresci, não tive outro remédio. A morte tomou posições. E quando a morte se
instala...
*
Atravancaste, mais do que o razoável, muitas vidas. Não se trata de
te criticar os excessos, cada um afirma-se ou apaga-se como pode. Mas pensando
nas vidas (atravancadas...) de tanta gente – os doentes e os timoratos, mas
também os ignorantes e os distraídos – fatalmente se acaba perguntando por quê.
Aqui para nós, não seria por que atravancando inchavas e inchando ganhavas
existência?
*
Os místicos? Os místicos é outra conversa. Ultrapassaram-Te pela
esquerda e já ninguém os agarra. Não cabem aqui – nem em parte nenhuma.
*
A estranha leveza que dás aos que não acreditam em Ti só pode ser da
ordem do sobrenatural. Quanto mais não acreditam, mais leves se sentem. Quanto
mais Te ferem (pensam que Te ferem) mais voam.
*
Senhor Deus que não existes, porque não existes, contigo o jogo é
sempre limpo e inocente.
Até quando?
Até quando a tua inexistência perdure, ou a nossa paciência se
canse, ou alguém apareça a estragar a brincadeira.
Mas quem?
Rui Caeiro,
DEUS, sobre o magno problema da existência de Deus, 1988
RETRATO
Uma demora lenta
nas palavras
um calor bom na
palma das mãos
uma maneira de
gostar das pessoas e das coisas
sem tolher
movimentos ou forçar as superfícies
beber aos golinhos
o café a ferver
ou o whisky
chocalhado com pedrinhas de gelo
viver viver
roçando as coisas ao de leve
sem poupar o veludo
das mãos e do corpo
sem regatear o
amor à flor da pele
olhar em torno de
si perdida ou esperar o verão
e saber de um
saber obscuro que o calor
todo o calor é de
mais dentro que vem
Rui Caeiro, Livro de Afectos, Lisboa, edição do autor, 1992
Rui Caeiro, Baba de caracol. Edição do Autor, Lisboa, dezembro de 1993 |
BABA DE CARACOL
É no teu corpo que as palavras se perdem
vives num reino de pedras e quietude
animais mansos duros impenetráveis
os teus gestos perpetuam-se no tempo
- só a esboçar levam anos, não há morte
para ti -
e é no espaço que se engastam para sempre
E no teu corpo como se nada fosse(s)
vão morrer os gestos e as palavras
Rui Caeiro, Baba de caracol. Edição do
Autor, Lisboa, dezembro de 1993
[TAMBÉM OS GRITOS SÃO FEITOS]
Também os gritos
são feitos
de palavras, isto
é
de uma grande
ausência
de palavras, isto
é
de silêncio
carregado
de veneno
Rui Caeiro, Baba de caracol. Edição do
Autor, Lisboa, dezembro de 1993
[CHEGAR AO MAIS ÍNTIMO DOS
ÍNTIMOS]
Chegar ao mais íntimo dos íntimos
os interstí-
culos das palavras
os sonhos
Rui Caeiro, Baba de caracol. Edição do
Autor, Lisboa, dezembro de 1993
[TODOS OS DIAS LOGO PELA MANHÃ]
Todos os dias logo pela manhã
as palavras
A cansada surpresa de estar vivo
as palavras
Rui Caeiro, Baba de caracol. Edição do
Autor, Lisboa, dezembro de 1993 (1ª ed.)
[FICA E SÓ O QUE FICA]
Fica e é só o que
fica: o primeiro encontro
o primeiro beijo
numa gare deserta
o mar por líquida
ou aérea testemunha
depois a longa
gestação do adeus
único e verdadeiro
adeus
o subtil
envenenamento da memória
Rui Caeiro, Baba de caracol. Edição do
Autor, Lisboa, dezembro de 1993 (1ª ed.)
2.ª edição: Língua Morta, Lisboa, 2010.
[AQUI NA PRAIA DA TORRE]
Aqui na Praia da Torre perto do lugar onde
mataram Gomes Freire de Andrade
aqui onde o Tejo por fim se rende e
se faz mar curvado sobre a areia
apanhando conchinhas e distraído
saboreando palavras lavadas e re
lavadas pela água das marés tais como
praia luz água nitidez búzio manhã
Deus ou Sophia de Mello Breyner Andresen
Rui Caeiro,
Olhar o nada, ver a Deus. Lisboa, Averno, 2003
A DOIS PASSOS
Quando penso em ti, essoutra que eu nunca
mais
soube ao certo quem era, ou quem eras, em
ti
e em tudo aquilo que me deste, tanto que
eu
nunca soube onde colocar e logo vinha o
vento
e levava, quando penso em ti e mais em
tudo
o que deixaste avariado na minha vida e
eram
todos os pobres artefactos dela, da minha
vida
quando penso em ti, isto é, quando penso
em
nós, nessa coisa insólita e paupérrima
que nós
éramos, ou que nós fomos um dia, é no
inferno
é ainda e só e mais uma vez no inferno
que eu
penso – esse tempo esse calor esse frio
essa espera
insuportável. É no inferno que penso, mas
devo
reconhecer, em abono da verdade, que não
era
no inferno que nós estávamos, era a dois
passos
dele e se queres mesmo saber era
agradável
pela boa e simples razão de que não havia
mais
nada, era intensa e insuportavelmente
agradável
Faltava um pouco o ar, é certo, mas quem
é que
se ia importar com uma coisa dessas,
havia um calor
que nos enregelava os ossos, havia um
frio que nos
aquecia. Era a dois passos do inferno –
estava-se bem.
Rui Caeiro, “Do inferno – cinco aproximações” in Telhados
de Vidro n.º 12, Lisboa, Averno, maio 2009
BAR
DOS 4 GÉMEOS
Para o Manuel de Freitas
E se por acaso
quiseres beber, tens
não direi toda a
terra pois tudo
aquilo que nela há
é escasso
mas uma estreita
faixa em forma
de retângulo ou em
forma de país
e lá dentro à
beira mar uma cidade
grande bonita e
feia que é até
a capital e lá um
largo – Praça do Rossio,
assim chamada – e
lá um bar
(ah, finalmente)
mas um bar
a céu aberto, sem
balcão de zinco
e sem barman, sem
tamboretes
nem cadeiras e
também sem copos
nem garrafas, mas
bar à mesma
– dos 4 gémeos,
assim chamado –
situado cerca do
meio da praça
e se por acaso
tiveres mesmo sede
abeira-te deles
(isto é, dos 4 gémeos
em bronze), põe a
cabeça a jeito
aproxima a boca e
bebe, consoante
a sede que for a
tua, e bebe – água,
que é o que há lá
para se beber.
Rui Caeiro, Revista Criatura n.º 5, outubro 2010. Núcleo
Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, Direção de Ana M. P.
Antunes, David Teles Pereira e Diogo Vaz Pinto. ISBN 9789899592131
[O NOSSO AMOR NÃO É COISA QUE
SE APRESENTE]
O nosso amor não é coisa que se apresente
a uma sociedade como esta cujas exigências
stop que é do nosso amor que se trata
o nosso amor cheira às folhas podres de Outono
e quanto a reverdecer vou ali e já venho
o nosso amor está de rastos e como há de ir
o nosso amor coelho esfolado o nosso amor
disco partido o nosso amor rato morto o nosso
amor ovo cozido ovo estrelado porque isso tanto faz
o nosso amor osso esburgado o nosso amor
brinquedo que um menino esventrou e não sabe
agora como é que vai poder consertar
o nosso amor chá de tília choque
anafilático paragem cardíaca
mas nosso amor apesar de ou nosso amor
tudo e mais alguma coisa o nosso amor
cinco sentidos viste-o ouviste-o tocaste-o
cheiraste-o degustaste-o o nosso amor
seja ou não seja e esteja ou não esteja
ele é para já e largamente quanto basta
Rui Caeiro, O Quarto Azul e Outros
Poemas, Lisboa, Letra Livre, 2011
[QUEM
VIVE PARA O AMOR ESTÁ LIXADO]
Quem
vive para o amor está lixado
não
tarda, que o amor é um amplo espaço
vazio
sem cor nem forma e um silêncio
tumular
por perto. Mau, muito mau
para
se levar alguém. Mas tu vieste
e
de imediato tudo fôra já decidido
como
quando alguém nasce e olha em torno
—
pouco importa se estranha ou não a paisagem.
Tínhamos
o nosso espaço e tínhamo-nos
a
nós, um ao outro por natural companhia
era
o amor, tudo indicava. Podia-se morrer
disso.
E tínhamos o tempo todo para ver.
Rui Caeiro, O Quarto Azul e Outros
Poemas, Lisboa, Letra Livre, 2011
A DOR DE UM GATO
Quando cegaste foi de vez. Sem aviso prévio e dos dois olhos em
simultâneo.
Não foi de um dia para o outro, foi mais o que se chama de um
momento para o outro.
De um momento para a noite, melhor dizendo.
Quando cegaste foi como se na casa uma espécie de morte tivesse dado
sinal de vida, essa sua espécie de vida.
Pois quantas vezes é assim, absurda e traiçoeira, que ela vem. E se
instala.
Tu, indeciso e desorientado, andavas sem rumo pela casa às topadas a
móveis, sacos de plástico, pilhas de livros.
Não foi um espetáculo bonito de se ver, acompanhado com miador que
eram verdadeiros gritos de dor, de aflição, ou de cólera.
Ou, mais provável, tudo isso junto.
Grande ironia do destino, pensei na altura, logo os teus olhos.
Que eram amplos, redondos, curiosos, sempre alerta e cheios de luz.
Uns olhos de fazer inveja a muita gente que eu cá sei.
E gritaste, durante uns bons minutos gritaste.
Um som não ouvido até então, um novo som arrancado à natureza, ou ao
mais fundo da tua animal sinceridade.
Um som que percutia os tímpanos com a sua nota de urgência e pânico.
Sabia-se de onde ele vinha, o som, não para onde ia.
Sim, para onde, se é que ia para algum lado? A quem se dirigia, se é
que era dirigido a alguma coisa ou alguém?
A mim não seria: sabias, com a tua antiga e animal sabedoria, que eu
nada te podia valer.
A Deus também não seria: os gatos, é coisa bem conhecida, não vão em
trapaças.
Resta o puro NADA como hipótese, resta a
GRANDE PUTA QUE A TODOS NOS PARIU!
Rui
Caeiro, Revista Piolho n.º 6, Edições Mortas, setembro 2011
AS
QUATRO ESTAÇÕES
Vem
o Inverno com o seu carrinho do frio
a
apertar nas curvas; a Primavera e os seus
paroxismos
que não duram muito; o Verão
e
os seus langores de ainda menos; e por fim,
mas
também pode ser no meio ou no princípio,
lá
vens tu, que não falhas nunca, melancólico
e
misericordioso Outono, a estenderes-me a taça
de
vinho puro que eu bebo lenta e gravemente
com
aquela lentidão, aquela gravidade característica
dos
que não têm religião nenhuma, ou têm apenas essa.
Rui Caeiro
AAVV, Este é o meu sangue (livro
coletivo), Lisboa, Tea For One, 2012, p. 20.
AAVV, Resumo – a poesia em 2012, Lisboa,
Fnac/Documenta, março 2013, p. 160.
[AINDA
ATACAS]
Ainda
atacas
como
pode atacar um amor já ido
lá
de vez em quando ainda atacas
irrompes
num súbito alarme
sacodes-me
de alto a baixo
impiedosa
mente
sacodes
me
e
devagar te afastas
como
um sol a pôr
se
Rui Caeiro, Sobre a
nossa morte bem muito obrigado, Edição Alambique, 2014
[DIANTE DA MORTE]
Diante da morte, diante de um suicida perante a morte, é de muito
mau gosto lançar mão de qualquer tipo de literatura. Em tal situação, e perante
um tal conviva, não tem qualquer préstimo o arsenal dos subterfúgios. Só talvez
o silêncio. O silêncio que a morte faz à sua volta, quando acontece. Quando,
por acaso maior ou menor e com mais ou menos solenidade, acontece.
Diante da morte, como em quase tudo, também é preciso distinguir. Há
o que é importante e o que não não é.
O que não é, pôr de lado. Não deitar fora mas, resoluto, pôr de
lado. Diante da morte não há tempo a perder. Frieza e paixão devem ser
habitualmente doseadas.
Diante da morte o importante é sentir. Sabe-se lá como. E o quê.
A morte, provavelmente. O tempo que falta até lá. O que ainda resta.
Sentir, degustar o tempo esse como um percurso: de aprendizagem. de
exaltação, de sabedoria.
Diante da morte o importante é estar.
Rui Caeiro, Sobre a
nossa morte bem muito obrigado, Edição Alambique, 2014
[POIS MORRE-SE DE MUITA COISA]
Pois morre-se de muita coisa, de muita coisa
se morre, morre-se por tudo e por nada
morre-se sempre muito
Por exemplo, de frio e desalento
um pouco todos os dias
mas de calor também se morre
e de esperança outro tanto
e é assim: como a esperança nunca morre
morre a gente de ter que esperar
Morre-se enfim de tudo um pouco
De olhar as nuvens no céu a passar
ou os pássaros a voar, não há mais remédio
ó amigos, tem que se morrer
Até de respirar se morre e tanto
tão mais ainda que de cancro
De amar bem e amar mal
de amar e não amar, morre-se
De abrir e fechar, a janela ou os olhos
tão simples afinal, morre-se
Também de concluir o poema
este ou qualquer outro, tanto faz
ou de o deixar em meio, o resultado
é o mesmo: morre-se
Data-se e assina-se – ou nem isso
Sobrevive-se – ou nem tanto
Morre-se – sempre
Muito
Rui Caeiro, Sobre a
nossa morte bem muito obrigado, Edição Alambique, 2014
MEMÓRIA
Um corpo
não esquece nunca
nem
nunca
vai embora
Um
corpo fica
devagar
em
outro como ele
Devagar
lhe percorre os caminhos
mais
secretos
de
um ainda mais secreto mapa
Rui Caeiro, O sangue
a ranger nas curvas apertadas do coração - obra reunida, Edição
Maldoror, 2019
Com os corpos que
temos à mão – e é só
o que temos, os
nossos corpos – tiramos
as medidas à cama:
largura
comprimento e
altura
Devagar a tua
língua vivi
fica o que resta
de mim
Devagar a tua
língua
vivifica o que
resta de
mim
Rui Caeiro, O sangue
a ranger nas curvas apertadas do coração - obra reunida, Edição
Maldoror, 2019
Entrevista a Rui Caeiro
Oeiras, 17 de Abril de 2018
Jogos Forais
Telefonámos a Rui Caeiro para lhe fazer a proposta da
entrevista. Não tivemos um sim declarado, mas uma advertência: “atenção que não
tenho nada de interessante a dizer, acreditem que vai ser um flop”.
Apesar deste aviso, marcou encontro connosco no Palácio do Egipto, e a
entrevista teve de tudo um pouco, menos do tal flop anunciado.
Jogos Florais: Gosta de poesia?
Não se trata de gostar ou de não gostar, trata-se de que
se tem de a aceitar quando ela se impõe.
JF: E isso é o mesmo enquanto escritor e leitor? Gosta
tanto de escrever poesia quanto de a ler?
Quando dei a resposta estava a pensar em escrever. Em
relação à leitura de outros, há poetas que leio sempre com elevado prazer e
elevada surpresa: um poeta contemporâneo chamado Luís de Camões, por
exemplo.
JF: O que é ser um poeta contemporâneo?
Alguém em quem nós somos capazes de nos rever mais do que
nos revemos nas figuras que nos apresentam para esse efeito, os chamados poetas
do JL, por exemplo.
JF: Acha que há poetas sobrevalorizados?
Sobrevalorizados...
é um não acabar.
JF: E subvalorizados?
O Diogo Vaz Pinto fez um artigo recente para o isobre
alguns tipos de que não se fala muito mas que são figuras muito fortes, Carlos
Poças Falcão e Rui Nunes, por exemplo. O Rui Nunes é daqueles casos em que eu
costumo dizer: “há aí uns tipos a escrever umas coisas e que pretendem ser
escritores, agora o Rui Nunes é outra coisa, esse é um escritor a sério, não
faz coisinhas, esse lida com a literatura, luta com a literatura, tem raiva à
literatura”. É preciso ter raiva à literatura para se fazer alguma coisa
interessante neste campo, porque de outra maneira estão apenas a repetir-se as
banalidades que andam no ar. O Rui Nunes é um caso. E tem outra característica
que eu aprecio muito, a pessoa e o poeta são parecidos, que é uma coisa que nem
sempre acontece. O Herberto é capaz de ser o nosso maior poeta da 2ª metade do
século XX, lidei um bocadinho com ele, não muito, mas a pessoa não me
encantava, também não me desencantava nem dava para embirrar, mas não
encantava. Já um Rui Nunes, ou aquele tipo do Porto que morreu há uns anos, o
Manuel António Pina... Fui entrevistá-lo ao Porto, e passados vinte e cinco
minutos, era como se já nos conhecêssemos há anos. E o melhor da entrevista
ficou fora do gravador, é uma coisa que acontece muito. E marcámos coisas para
o futuro, mas a morte dele veio estragar isso tudo. Outro tipo que é igual à
poesia dele – isto eu já escrevi várias vezes – é o António José Forte. Ele não
tinha nada ar de literato, o que é óptimo. Havia nele uma suavidade no falar –
e na maneira de ser – que não eram nada incompatíveis com a revolta que também
havia dentro dele: ele que era um anarquista e que era um puro.
JF: Já percebi que isso é um critério para o seu cânone
pessoal, não é?
Sim, sim.
Literato é de fugir.
JF: Já li o adjectivo “discreto” aplicado a si. O que é
ser um poeta discreto?
Quer dizer que, entre os muitíssimos defeitos que tenho,
não figura realmente o ser pretensioso, cagão, isso é coisa que eu não sou.
Nessa medida, serei discreto?
JF: Então tem qualquer coisa de modesto, coisa que escapa
aos literatos de que falou há pouco.
Sim, creio que sim.
JF: Quando fala da raiva da literatura parece também que
é uma raiva contra um certo tipo de literato. Faz sentido?
É cada vez mais consensual a ideia de que, se queremos
fazer alguma coisa em literatura, temos de a fazer contra a literatura, porque
se não estamos a repetir ou a papaguear o que já foi feito. Não vale a pena ser
um daqueles, como é que se chamam... os prémios saramagos, talvez com uma
excepção única, são tipos que sabem escrever, escrevem correctamente, mas o que
eles escrevem não adianta a ponta de um corno, porque aquilo já está feito, já
está feito de outra maneira e já está feito de melhor maneira, não vale a pena
ir por aí. Noutro dia estava aqui uma moça neste café a quem eu perguntei quem
é que ela gostava de ler e ela respondeu Pedro Chagas Freitas. Ela gostava
sinceramente dele, não deu para dizer “isso não interessa nada”. Não fiz isso.
Só o faço com pessoas que têm mais conhecimentos. Ela precisava de ler muito
até perceber que aquilo não interessa nada.
JF: Acha que as pessoas podem aprender a ler uma
literatura de melhor qualidade?
Eu trabalhei durante dez anos na editora &etc, e é
uma parte da minha vida a que confiro uma certa importância. Na &etc
entravam aves muito esquisitas e que, de alguma maneira, gostavam de poesia,
queriam escrever um livro: “tenho aqui umas folhinhas que trouxe, se não se
importasse...”. Na maior parte dos casos aquilo era de fugir, mas havia uma
coisa que estava sempre certa, e que se lhes podia dizer, que era: “nós temos
grandes poetas, um desses foi o tal Camões”, mas há ainda o Pessoa, o Pessanha,
o Sena... E a “Cantiga, partindo-se” de João Roiz de Castelo Branco, e o soneto
“O sol é grande” de Sá de Miranda.
Quando veio cá o escritor brasileiro Rubem Fonseca, ele
estava a falar com os seus colegas escritores portugueses e disse-lhes qualquer
coisa como: “vocês têm uma grande responsabilidade, vocês falam uma língua de
onde no século XVI saiu isto”. E pega num livrinho e lê um soneto do Camões: “e
portanto vocês têm a mesma língua, e isso dá-vos uma grande responsabilidade”.
Esse respeito, esse respeito pela língua, é uma coisa que talvez se consiga
ensinar. E então os tais meninos que apareciam na &etc, quase todos tímidos
(mas também apareciam uns, embora poucos, com o rei na barriga)… E uma coisa
que era sempre possível dizer-lhes: “há tantos poetas fundamentais que tu ainda
não deves ter lido, porque naquilo que tu escreves não há marca nenhuma da
escolha de um caminho que não seja a banalidade poética”.
Aconteceu uma coisa gira: esses a quem dei tampas não me
ficaram a detestar por causa disso, alguns ficaram até agradecidos pelas tampas
que levaram, isso é bonito. Devo dizer que não é o que acontecia na maior parte
dos casos, quem leva a tampa não gosta depois e deve sair a resmungar “puta que
os pariu!”. Houve uma feira no Regueirão dos Anjos num dos últimos sábados, e
foi ter comigo um tipo a quem em tempos eu tinha dado uma tampa, um desses: é
médico, um jovem médico, ele é muito bonitinho, a namorada também é muito
bonitinha, fazem um casal muito giro, e ele continua a escrever, e a ler, e a
comprar livros de poesia lá na feira, mas nunca publicou nada, por enquanto
ainda não, felizmente ou infelizmente, ver-se-á. Há casos assim.
O primeiro original que o poeta Manuel de Freitas
apresentou foi à &etc, e a resposta que ele levou foi: “isto tem coisas
boas, mas necessita de ser mais trabalhado”. E ele tem uma personalidade forte
e fez o seguinte: de certa maneira não ligou ao que dissemos, mas não se
zangou, levou aquilo a outra editora e a outra editora publicou, e quando
escreveu o seu segundo livro de poesia levou à &etc e foi publicado aí.
JF: Gostou de fazer esse trabalho de edição, contribuir
para editar poetas? Isso também é lidar com o mundo dos literatos e com as
ambições literárias das pessoas.
Sim. Quer dizer, ainda não tinham chegado ao ponto de ser
literatos, esses eram na maioria miúdos imberbes, tipos bastante novinhos e que
aguentam conselhos, bons ou maus, e tampas justas ou injustas. Foi giro, além
dos originais que recebíamos pelo correio, às vezes apareciam assim casos e eu
dizia ao Vítor Silva Tavares: “este aqui é melhor ver com cuidado”.
JF: E desses muitos autores há algum que destaque? Há um
publicado na &etc de que gosto muito, o Nunes da Rocha, também muito pouco
valorizado.
O Nunes da Rocha foi muito ajudado pelo Vítor Silva
Tavares, os livros não se vendiam muito e apesar disso o Vítor continuava a
publicar. Isso é a favor do Vítor, sabia que era bom, não pensava no valor
comercial, as tiragens eram sempre pequenas e sempre as mesmas, e procurava-se
que, mesmo os autores que se vendiam sempre mais ou menos, o dinheiro que se
fazia nesses desse para perder noutros, era este o espírito.
JF: Falámos há pouco de poetas discretos, e a certa
altura no seu último livro diz que os poetas são uma categoria particular de
malucos. Porquê?
No livro falo da loucura como algo de contra a corrente,
algo de libertador. Esta ideia também é contestável, na medida em que é uma
posição um bocado egoísta, ou romântica, mas é uma maneira de exaltar uma certa
atitude contra a corrente. Foi agora publicado no Homem do Saco um texto pequenino
meu, extraído de um livro algo extenso, e de que algumas pessoas até gostam,
mas em que eu já não me revejo e que nem tinha paciência para reler, mas não
sei porquê estava à procura de uma coisa qualquer e passei os olhos e pensei:
“este texto aqui safa-se, acho que o podia escrever agora”. O elogio que aí
faço aos bêbados é semelhante ao elogio que agora faço aos malucos, tem muito a
ver com a necessidade de fugir do quotidiano que temos, ou que tenho.
JF: Usa a poesia no seu quotidiano?
Acho que sim. Mesmo que não o quisesse fazer, isso
acontecia. Eu e a poesia passamos tempos juntos, sim.
JF: E de que maneira? Lendo, escrevendo ou citando de cor
poemas?
É mais deixando-me impregnar por ela, sendo o caso. É
mais estando atento à realidade e interpretando-a numa certa feição diferente.
No meu último livro, que são dois num, eu faço isso, aproveito cenas do
quotidiano que permitem uma ressonância diferente.
JF: Temos nos Jogos Florais uma secção, a Marginalia,
onde partilhamos curiosidades literárias. Nos seus Diálogos Marados,
também partilha histórias curiosas com algumas pessoas da cena literária
portuguesa com quem conviveu. Porque é que teve vontade de partilhar essas
histórias?
Foram histórias giras que me aconteceram e que eu gostava
de contar às pessoas, e que as pessoas achavam interessantes. E, se essas
achavam, podia ser que outras também achassem, e nessa medida algumas foram
para lá porque eram história desse tipo, e outras foram para lá porque foi a
maneira de eu confessar alguma coisa que precisava. E aquilo também seria uma
boa ocasião para o fazer, converter isso que eu precisava de dizer num diálogo
marado.
JF: Alguns não parecem assim tão marados?
Marado no sentido de serem algo esquisitos… têm todos
qualquer coisa de pouco habitual, têm todos qualquer coisa de especial. Por
exemplo, passo por dois tipos que vão a conversar sobre mulheres, e dizem duas
ou três bacoradas sobre mulheres, e estavam muito satisfeitos com o que tinham
acabado a dizer, e continuaram a dizer, só que entretanto já tinham passado por
mim e não apanhei mais, tal como lá digo, não devo ter perdido grande coisa.
Mas porque é que essas bacoradas em especial me interessaram, porquê aquelas e
não outras? Talvez tivessem algo de típico, algo em que muita gente embarca,
talvez houvesse muito mais gente que pudesse dizer aquilo, e dizer aquilo com
boa consciência, e talvez daí entraram na categoria solene de diálogos marados.
JF: O gato é uma figura literária na sua obra. Há algum
motivo especial para isso?
Sim, a minha mulher trabalhava na escola inglesa de
Carcavelos, o St. Julian’s. A escola tem um parque muito grande, e nesse parque
apareciam animais, nomeadamente gatos, e ela estava uma vez sentada lá no
parque, e houve um que lhe saltou para o colo. Saltar para o colo poderia ter o
significado de “vá lá, adopta-me”, e ela assim fez: meteu-o numa caixinha de
cartão e chegou com ele lá a casa. A partir daí o gato ficou uma pessoa
importante, talvez a pessoa mais importante da casa. Quando o gato morreu,
coisa de que eu falo noutro texto, adoptou-se logo outro.
Mas respondendo à pergunta. Há um motivo especial, sim, é
tudo aquilo que o gato tem de admirável, de criatura perfeita.
JF: Já no livro 49 espinhas para um gato faz
um elogio à figura do gato e revela a superioridade deste animal na relação que
tem com o ser humano. Mostra-nos, por exemplo, que o gato está longe de ser um
animal dócil e submisso e interessado em fazer companhia ao seu
dono...
Se estamos à espera dos carinhos que o gato nos faça,
podemos desistir logo, mas também é verdade que às vezes, inesperadamente, ele
é capaz de nos surpreender com um gesto completamente inesperado e que nos
fazer pensar: “não estava a ver-te a fazeres isso, não estava a ver-te a
procederes assim, não estava a ver-te a olhares dessa maneira”. Eu descrevo,
quando morreu o cão que nós tínhamos, que ele e o gato não gostavam um do
outro, é natural. Quando o cão morreu, aproveitei uma altura em que a minha
mulher foi aqui ao mercado – a nossa casa é a seguir, a casa é aqui –, ela foi
ao mercado e eu pus o cão dentro do saco de plástico preto. Quando saí com o
saco, a maneira como o gato olhava para o saco era qualquer coisa de
especialmente difícil de definir. O que significava esse olhar? É muito difícil
de dizer, uma curiosidade muito, muito intensa, e porventura uma compreensão
grande do que estava a acontecer, sim, certamente. O Luís Gomes, da livraria
Artes e Letras, fez uma edição de um livrinho meu, que se chama Um gato
no inferno, grande parte à base da vivência com esse gato e da morte dele.
Ele está no inferno como as amantes do Dante, as grandes amantes foram parar ao
inferno, porque amar muito é da ordem do infernal, do maldito. Foi um gato
muito amado e está no inferno, pronto, foi um livrinho que se chama Um
gato no inferno e que saiu com erros chatos, teve de ser emendado à
mão...
JF: Tem sempre muito cuidado nas suas edições, tem
edições de autor ou de editoras mais pequenas. Prefere publicações mais
discretas e mais afastadas das grandes editoras e da publicidade que elas
promovem?
Não me interessa muito publicar em grandes editoras, isso
propriamente não me interessa e acho mais piada às pequenas edições de autor,
aos editores de vão de escada, realmente acho mais piada a isso. O Snob, a
Língua Morte, a Averno...
JF: Compreendo essa ideia de estar longe das grande
editoras, mas não tem pena de se tornar menos acessível ao público em geral, e
só acessível a um nicho já ligado às pequenas editoras?
Eu tenho consciência de que as pessoas que gostam mesmo
de ler poesia não são em grande número. Digamos que são poucos, mas bons. Você
veja que dantes era capaz de se fazer uma tiragem de um livro de poesia de mais
de 1000 exemplares, hoje em dia só em casos muito especiais.
Eu escrevi um livro erótico, livro de poesia erótica (O
quarto azul e outros poemas), e o jovem editor da Letra Livre disse-me:
“isto até ao fim do ano está vendido”. Não foi nada assim, ficou anos na
prateleira.
O Rui Pires Cabral, que é um poeta que eu aprecio (filho
do António Manuel Pires Cabral, o pai até gostou de um livro meu...), dedicou
um livro “aos meus (seus) trezentos leitores”, e essa dedicatória significava
que trezentos era pouquíssimo. E hoje ter trezentos leitores já é muito bom. Os
hábitos de leitura vão-se alterando.
JF: Nos Jogos Florais escrevemos sobre poemas de que
gostamos. Tem algum poema favorito?
É difícil... Se me perguntassem por um poema de que goste
muito, a resposta poderia variar conforme o meu estado de espírito. Se
estivesse num dia de abatimento, poderia indicar um poema do Pavese, que é um
dos meus escritores preferidos; se estivesse num dia mais eufórico, poderia
pensar num tipo com mais saúde. As duas coisas são muito necessárias. Jorge de
Sena tinha muita saúde e muita genica. Esse dava para a resposta a dar nos dias
em que me sinto de espírito mais positivo.
JF: Acha que o Jorge de Sena tinha muita saúde? Em que
sentido? É que eu gosto muito dele, mas acho que era um bocadinho
bilioso...
Isso é outra coisa, isso é o espírito polemista.
JF: Nesse capítulo não há muitos como ele, pois não?
Ele não foi substituído, não. Em termos de crítica,
estamos bastante desasados neste momento.
JF: Costuma ler crítica literária.
Leio, leio.
JF: Lê o JL?
Passo os olhos pelo JL sempre, até para poder
dizer mal. Geralmente o JL, a sensação que me dá é que é sempre
mais do mesmo, tem uma determinada fórmula e vai repetindo. Uma vez por outra,
há uma coisa de antologia, como os artigos do Helder Macedo, que é um homem
muito inteligente e talentoso. Já é velhote. Mas isso são excepções. Agora o
resto…
JF: Costuma ler o que os críticos escrevem sobre si? E
parece-lhe que acertam?
Não há
propriamente críticos a escreverem sobre mim, há amigos meus...
JF: O Diogo Vaz Pinto também escreveu agora.
Sim, o Diogo, mas são amigos, são suspeitos. O que
encontro assim de mais significativo é o poeta espanhol que costuma escrever
para as revistas do Manuel de Freitas, Telhados de Vidros e Cão
Celeste. É de Barcelona e chama-se José Angel Cilleruelo. Eu gosto muito do
que ele escreve e a ele deu-lhe para simpatizar com as minhas coisas. E acho
que, daquilo que se escreveu sobre mim, descontando os exageros da amizade, ele
disse coisas relevantes. Escreveu um livro agora, mandou-me o livro e disse:
“tu és personagem deste livro”. Conta o nosso encontro no Paralelo W, aqui há
uns anos, e foi a única vez que o vi, que estive com ele. Mas ele já viveu dez
anos em Portugal, há uns anos atrás, de maneira que fala muito bem a nossa
língua e conhece muito bem a respectiva poesia, a Adília, a Golgona, ele
conhece esta gente toda.
JF: Associou esses dois nomes por algum motivo?
Ele já falou sobre as duas quando cá veio, mas nessa
altura eu não estive com ele. Acho que falou sobre uma e outra, mas não
exclusivamente.
JF: Já imaginou o seu nome contemplado numa nova edição
da História da Literatura Portuguesa?
Não, acho que tenho um bocado de horror a isso. Sendo eu
uma pessoa de muitas leituras, tenho muita consciência de que há muitas
centenas mais, e como tenho muita consciência disso não me sentiria bem se me
pusessem lá num pódio qualquer.
JF: Isso é modéstia? Outros não poderiam dizer o mesmo e
estão lá?
Eu acho que não é uma questão de modéstia, porque a
modéstia vira facilmente falsa modéstia. E no meu caso acho que tem a ver
com... Sou uma pessoa informada, sobretudo em matéria de poesia, e tenho
consciência realmente de que há bons e muito bons. Somos bons no romance, na
crónica não temos grandes, no conto também não, mas na poesia temos nomes
grandes.
JF: Acha que, numa História da Poesia, por exemplo, só
estão os melhores? É por essa razão que se exclui?
Seja qual for o critério para a selecção, há sempre
pessoas que eu vejo mais interessantes do que eu, antes de se poder falar de
mim. E não tem a ver com falsa modéstia, é mesmo o que eu penso.
JF: Também tem vários trabalhos como tradutor. Gostou
dessa experiência?
Quando estava ainda a trabalhar na EDP, onde estive vinte
e tal anos, nos últimos anos eu já tinha traduzido coisinhas várias, mas mais
sobretudo a partir da década de 90. Traduzi um suíço maluco, Henri Roorda, que
escreveu um livro a explicar porque é que se ia suicidar quando o acabasse de
escrever. E assim fez: acabou de escrever, bebeu um copo de vinho do Porto e
disparou. Isso era coisa de que o Vítor Silva Tavares gostava. Ele gostava de
coisas esquisitas, mordia logo. E assim foi, aquilo foi logo traduzido.
Traduzi o Pavese porque sempre gostei muito dele, de
tudo, da poesia, romance, novela, ensaio literário, diário. Ele tem dois livros
de poesia muito diferentes, um é poesia narrativa e o outro é poesia de amor.
Ao que consta, apaixonou-se por uma actriz americana que foi a Itália filmar.
Entrava num filme qualquer, tiveram o seu enrolo e depois ela foi-se embora.
Ele não terá aguentado essa ausência e suicidou-se, dizem que está relacionado
com isso.
Traduzi ainda um poeta espanhol chamado León Felipe, que
fugiu da Guerra Civil de Espanha para o México. Alguns poemas dele são
cantados, e muito bem cantados, pelo cantor espanhol Paco Ibañez. Traduzi uma
escolha de poesia do León Felipe, acho que muito por causa do último texto, que
me impressionou tanto... O último texto é uma carta que ele escreveu à irmã
dele, que era mais nova. Essa carta é tão bonita, tão bonita que ele próprio a
inclui num livro de poesia dele, e é apenas uma carta.
Traduzi o surrealista Robert Desnos, que escreveu um
encontro inventado com a figura do Jack, o estripador. Esse livrinho também me
encantou, e traduzi.
Traduzi uma novela que a Marguerite Yourcenar considera
uma obra-prima, e eu também acho que é, do escritor francês Roger Martin du
Gard, que hoje está muito esquecido, que é uma história com o seu lado
delicado. Trata de um encontro sexual entre dois irmãos, irmão e irmã, mas pela
forma discreta e natural como aquilo está contado é realmente um prazer de
leitura. Chama-se A Confidência Africana, e a cena crucial
passa-se no Norte de África. Também traduzi para a &etc Miguel de Unamuno e
o suíço Charles-Ferdinand Ramuz. E pronto, foram estas as traduções para a
&etc.
Como o Vítor tinha muito jeito e prática para fazer capas
e preparar as edições, eu “utilizei-o” muito para me ajudar nas minhas edições
de autor. Eram edições de autor, mas tinham capas muito giras, porque eram do
Vítor, não eram minhas, não tenho jeito nenhum para desenhar ou pintar. E
portanto fiz várias edições de autor. Enquanto lá estive, na &etc,
publiquei um único livro meu com a chancela da casa (Sobre a nossa morte bem
muito obrigado), e ainda hoje não sei se o devia ter feito, porque
trabalhando lá acho que talvez não o devesse ter feito. Os editores franceses
às vezes querem escrever uma coisinha sua. Sabe o que é que eles fazem? Não
publicam na sua editora. Dão a outro editor e ele edita se quiser.
JF: E será que tinha uma editora mais certa para si que
não a &etc?
Se calhar não, até porque o tema era delicado, era o
suicídio. Era uma coisa delicada e podia até ser comparada, de uma forma burra,
a uma incitação ao suicídio, mas não era isso. Mas podia ser interpretado assim,
de maneira que... isso é crime.
JF: Tem alguma embirração linguística ou poética?
Tenho várias, sim.
JF: Coisas que evita escrever ou que também não gosta de
ler nos outros, figuras de estilo, formas poéticas, palavras, etc.?
Ah, eu não estava a perceber a pergunta nesse
sentido.
JF: [risos] Estava a pensar em embirrações pessoais,
então? Isso já percebi que tem [risos].
Eu já estava a carburar em relação à outra resposta, mas
voltamos a esta. Não vejo assim algo muito concreto. De uma maneira geral, mas
isso faz parte da minha maneira de ser, não gosto de expressões
grandiloquentes. Acho que os versos mais tocantes e que continuam depois
connosco não foram feitos nessa linha da grandiloquência.
JF: E tem apreço por determinadas formas poéticas,
palavras, figuras de estilo?
Eu escrevi muito pouca poesia propriamente dita. NoLivro
de Afectos,há poesia, há versinhos, há linhas que não chegam ao fim, são
versos, aí há. E há também nessequarto azulde que já falei. Mas não há
assim muito mais.
JF: E no último livro que publicou não há poesia
propriamente dita?
Não é poesia propriamente dita. Histórias são histórias ou historietas. E no
texto sobre os malucos, às vezes, aqui e ali, há um tom poético.
JF: Então o que é para si poesia propriamente dita?
Implica sempre uma noção de forma, de técnica, de rima, de métrica?
Normalmente implicará, mas tenho de reconhecer que, por
exemplo, no livro Um maluco vem pousar-me na mão, quando eu digo
que gostava de contar a um maluco, desses mais credenciados, a história
completa dos meus fracassos, gostava de ver como é que ele reagia, e sobretudo
gostava de ouvir a sua gargalhada final, como conclusão resposta. Ora bem, esse
texto é prosa, mas eu acho que é um texto poético, e haverá mais, sobretudo
nos malucos.
JF: Senti ao longo da nossa conversa que o Rui Caeiro não
se sente confortável com o mundo dos ditos literatos, com o meio literário. Faz
sentido?
No que eu tive de convívio com o Herberto Helder, por
exemplo, ele nunca falava de literatura. Era a uma mesa de um bar, estivesse
quem estivesse, e falava normalmente com toda a gente, contava histórias, mas
não era a conversa de um literato. E ele apresentava-se como uma pessoa comum.
Não era o poeta, não era o buda, não. Era um homem que dizia palavrões,
frequentemente, como os amigos dizem quando estão num bar: “esse gajo é um
filho da puta e não sei quê...”
JF: De alguma maneira não gosta dos poetas que fazem
dissociação entre o poeta e a pessoa?
Bem, uma vez entrou no bar uma menina que estava a fazer
um trabalho de faculdade para apresentar e tinha escolhido como tema a obra do
HH, e ela disse: “gostava que me desse uns esclarecimentos sobre isto assim e
assim”. Aí ele não era o gajo porreirão que estava ali à mesa a beber com os
outros... Ela pediu que lhe desse umas ideias e ele disse-lhe: “minha menina,
eu sou muito pouco dador”. E ali matou a questão assim.
Respondendo agora à pergunta, eu sei que há outras
maneiras, há outras posturas em relação à literatura que não são
necessariamente piores ou mais imorais do que a minha. Isso é possível, desde
que seja feito com alguma autenticidade. Agora nós vemos cada vez mais
poetastros a surgirem e que já metem isso no currículo das gracinhas que têm feito.
Isso é que não pode ser. A poesia não é uma gracinha, a poesia vinga-se das
gracinhas. E há aí muita gente a escrever que está muito satisfeita porque tem
tido bom acolhimento e não sei quê. E a poesia? Onde é que fica?
JF: E o que é o bom acolhimento? É ter os tais 300
leitores?
É o ser publicado em editoras fortes, em livrinhos de
capa dura, letras em relevo, essas esquisitices que hoje estão muito na moda.
Como já disse, um poeta por quem tive sempre uma afeição particular, quer como
pessoa quer como poeta, de que falo nos Diálogos Marados, e com quem
convivi, foi o António José Forte, e ele praticamente não falava de literatura.
O que é que ele fazia em relação à literatura? Fazia-a. Quando ele escreve o
poema de amor à Aldina, com quem viveu os últimos anos da vida, quando ele faz
um poema sobre o deslumbramento do Maio de 68, aí está a lidar com a poesia. Na
conversa, na sua conversa do dia-a-dia, isso praticamente não vinha à baila. É
um tipo de quem tenho muita saudade e falo dele num dos textos de que eu gosto
mais no meu livro, nos Diálogos Marados, talvez porque é sobre ele.
É um texto em que eu pergunto ao Vítor – “Tu já és um fóssil do nosso meio
literário, já viste partir muita gente e alguns deles eram teus amigos. De qual
é que tens mais saudades?” E ele diz só esta palavra: “Forte”. E eu
compreendo.
Nos dez anos em que
trabalhei com o Vítor Silva Tavares algumas vezes me divertia a fazer-lhe
perguntas de chofre, a que ele devia dar respostas imediatas e concisas. Era um
jogo nosso, a que também ele se prestava de bom grado.
Uma vez disse-lhe: tu
tiveste a oportunidade de conhecer muita gente, muitos coirões do mundo das
letras. Muitos deles, decerto a maior parte, já morreram. Destes últimos, qual
é aquele de que sentes mais falta?
A resposta veio pronta,
seca e sem qualquer explicação adicional:
- Forte.
Leia-se: António José
Forte.
Rui Caeiro, Diálogos
Marados. Livraria Snob, 2018.
https://www.jogosflorais.com/entrevista/2018/9/entrevista-a-rui-caeiro
Rui Caeiro. Ínfimos ruídos que só os surdos ouvem
Faz 30 anos
que Rui Caeiro começou a publicar uma obra tão singular quanto discreta. O seu
livro mais recente é uma espécie de retábulo, uma mesa onde foi esculpindo
aqueles contornos e diálogos que mais o marcaram
Há uma descrição terrível de
uma passagem de “All the Pretty Horses”, de Cormac McCarthy, a que cheguei em
segunda mão e que, confrontada mais tarde com o original, me pareceu aí bem
menos flagrante. Gostara bastante mais do bolo que fora mastigando e adensando
a memória do leitor que a lera e ma contou, e como lhe aguçara os sentidos. A
imagem era a de um homem a andar por uma região desértica e que, ao fim de
dias, avista algo que lhe renova a esperança: uma figura parecia mexer-se à
distância. Recobrando um pouco as forças, estuga o passo para descobrir que a
mancha que lhe acenava com sinais de vida era, afinal, um cato no qual uma
tempestade havia empalado uma série de pequenos pássaros. Agarrados pelos
espinhos, alguns mortos, outros ainda vivos, contorciam-se gritando numa
pintura de terror contra a qual aquele homem via estilhaçar-se a última réstia
de esperança que o acompanhava.
A imagem ficou, e nem
interessa aqui cotejar o seu desvio face à de McCarthy, mas, por agora, notar o
tanto que ganha a literatura quando é despojada do seu disfarce, quando dá a
ver o seu rosto verdadeiro. Cioran diz-nos que o maior perigo que corre a
escrita literária é deixar os adornos, que seria o mesmo que ver a filosofia
desapossar-se da sua algaraviada. “Limitar-se-ão as criações do espírito à
transfiguração de bagatelas? E apenas existirá alguma essência fora do
articulado, no rito ou na catalepsia?” (“Silogismos da Amargura”, edição Letra
Livre, 2009.)
Rui Caeiro é um desses
autores cujos textos, quase sempre breves, têm algo de bolo alimentar. Um naco
fibroso de carne que custa a engolir, a pérola odiosa que nos ficava na
garganta nos tempos de infância em que tantas refeições acabavam por nos
ensinar muito sobre negociações de paz. A escrita deste autor é dessas que
acabamos por apreciar tanto mais quanto já fugimos de idílios, quando levamos
areia de alguns desertos nos sapatos e não temos paciência para as grandes
esperanças ou para os embustes do estilo. Provoca até uma certa urticária dar
com um texto muito inchado com os seus tiques nervosos, as peles e joias de que
se enchem para passar a ideia de que são finos, têm classe. No Verbo, já se
sabe, os aristocratas são os não agenciados, os batedores que já não voltaram
para denunciar os movimentos do inimigo, os que foram arrastados por alguma
verdade, às vezes para muito longe de si mesmos.
Voltando ao Cioran dos
Silogismos, diz--nos ele que “quando nos recusamos ao lirismo, preencher uma
página torna-se uma prova: de que serve escrever para dizer exatamente o que
tínhamos a dizer?” Sendo o autor de muitas plaquettes - e um dos mais dignos
nisso -, a característica distintiva da escrita de Caeiro é prescindir rapidamente
desse estado de graça e inimputabilidade que usa a generalidade dos poetas. Uma
espécie de farda como a dos malucos no hospício, mas que serve antes para
assinalar o grau superior de tolerância que se deve observar ao lidar com este
ou aquele proferidor de insanidades delicadas, doces impropérios, flores de
ouvido ou, muito raramente, o género de observações tão ferozes que fazem das
mais gerais ideias do mundo pequenas jaulas.
Muita edição de autor depois,
e após muitas cumplicidades com a pequenada do meio da edição que vai
traficando golpes de ar para dentro do reino bafiento, 30 anos depois de ter
começado a publicar, Rui Caeiro não tem prémios, não se tornou um dos notáveis
que figuram em todas as listas, não reúne grandes atenções ou auditórios para o
ouvir dizer imbecilidades, até porque da convivência com os tantos gatos que
deram aulas na sua sala ganhou aquele tipo de autovigilância que não deixa
margem a um rato para escavar os túneis da vaidade (coisa que não deixará de
ter, como todos nós). E três décadas depois de, aos 45 anos, ter publicado a
sua primeira edição de autor, surge-nos uma das raras edições bojudas que deu à
estampa. Um livro duplo, costas com costas: “Diálogos Marados” / “Um Maluco Vem
Pousar-me na Mão”. A edição da Livraria Snob é um desses mimos de bolso, um
pequeno cantil para goles de despertar caminhos.
“Diálogos Marados” é um
repositório de coisas ouvidas, baralhos partidos, episódios, anedotas, aquele
gesto de confidência que já conhecíamos de outros livrinhos, naquele tom de um
“eu” descrito por Vitor Silva Tavares “que recorda e medita, a fala que
sussurra e evita o grito, a delicadeza de focagem e tratamento de pessoas e
anedotas, a subtileza do humor que de sobremaneira incide sobre o próprio para
mais se autorizar”. Um livro de testemunhos, um balanço apurado entre os anos,
entre diversos humores e estados de espírito, mil conversas tidas e recontadas,
até ao grão que no seu diâmetro ínfimo aplica o seu peso de forma tão aplicada
que, afundando-se na pele, vira um sinal. E surgem naturalmente cúmplices e
amigos, alguns dos personagens da baixa mitologia marginal, que normalmente só
aparecem na literatura na chave das libações e homenagens hoje tão vulgares
quanto redondas e exageradas, nos cadernos de ajustes de contas, no rosário das
mesquinhices em feicebuques e coisas que tais... (E disto, em alguma medida, a
culpa no cartório está muito bem distribuída.) Agustina, Sophia, Natália, César
Monteiro, Vitor Silva Tavares, António José Forte, Manuel de Freitas, Eduardo
White, Chaguito e até Le Corbusier surgem nestas páginas na exigente companhia
de malucos e putas, de pequenos danados mais ou menos anónimos, vivos e mortos
trocando lembranças, mas vamos desconfiando que o protagonista não são eles,
mas os acasos maravilhosos, a própria ementa da vida. Neste livro, o elogio é
tirado do caminho, e passando a mão pelo pano também não se sentem engulhos ou
a cabeça de alfinetes. É, de resto, um bom antídoto para o habitual registo
sobre o meio literário, ficando margem para a sanação das aborrecidas quezílias
que vigoram num tão minúsculo quanto espartilhado reduto.
Caeiro não deixa de ser uma
mordaz testemunha, e ao longo dos anos foi fazendo pela paz - essa que não
resolve grandes conflitos mas que, pelo menos, sabe rir-se deles, e alhear-se
quando são insignificantes - o que Sun Tzu fez pela guerra. Não tanto para
seguir uma linha de atuação, mas para trocar antagonismos por equações,
estratégias, trazer perspetiva de fundo, a começar pela morte. Este livro tem
essa presença, a de ter “respirado a Morte”, e o salutar desinteresse por tudo
aquilo que faz da literatura uma zona de sofisticadas intrigas para não pensar
nisso, não se ser avassalado por essa dolorosa certeza.
Num admirável texto a
propósito de uma antologia que surgiu há três anos, o excelente crítico e poeta
José Ángel Cilleruelo encontrou a mais justa definição desta singular voz na
poesia portuguesa contemporânea ao notar que “Rui Caeiro age como um fabulista
clássico com um toque minimalista”. E este livro é uma recolha dessas pérolas
que a memória foi trabalhando, vestindo de cuidados e sentidos, com a força
surpreendente da imagem do cato em que a tempestade pregou os pássaros,
apanhados a meio do voo, ou pendurados por umas quantas penas, nesse balanço de
vida e morte. E o que Caeiro consegue é não apenas recusar o lirismo, mas a
própria literatura, para escrever o silêncio que é, no fim de contas, a
verdadeira estrutura que liga o nosso espanto, essa força que ainda nos dá
corda. No fundo, trata-se de operar nos sentidos uma inversão, escapando às
grandes toadas para ficar atento - como disse Caeiro nuns versos publicados há
20 anos - a esses “ínfimos ruídos de importância extrema/ Que só os surdos/
ouvem”... Ruídos como o do próprio “tempo a passar, o interior da terra/ a
tremer, [e] o bichinho do ouvido/ a escutar”.
É um best-of do que a vida
deixou aos pés de Caeiro, um livro tocante e uma lição sobre o que o convívio
da poesia lhe ensinou, não sobre a enxertia de variações, mas sobre calibre e
precisão, mesmo em condições adversas. Nas costas deste livro temos um dos
ciclos a que o poeta nos foi habituando, neste caso sobre a “Voz da razão dos
loucos. Da razão perdida ou desperdiçada dos loucos./ Voz da sem-razão. Da
razão silenciada, vilipendiada, razão inaudível, intrigante razão dos loucos./
Voz desrazoável, que eternamente busca o seu espaço, a sua lógica./ Lógica que
todavia residirá algures, num nada evidente algures, que não se sabe onde seja
(um farrapo de tempo que se desfez?). Desde sempre aguardando, cansada voz, a
sua vez: um Colombo que a descubra.”
Este é um livro que nos
reconcilia com a noção de que a arte, a poesia, qualquer que seja o desvario
com que o coração se sobressalta e se embebeda ouvindo o seu próprio bater,
podem ser também uma forma de fazer as pazes com a vida. Caeiro sacode o vazio e
o terror trocando com a vida um daqueles abraços que, quando começam a ficar
demasiado apertados e sentimentais, acabam com um apalpão.
Diogo Vaz Pinto, Jornal i, 28/03/2018
Rui Caeiro
(1943-2019). Do que é que se morre enfim senão de uma extrema e tão generosa
lucidez?
Desapareceu uma das
mais queridas presenças do meio literário português. Poeta, tradutor, editor,
e, para muitos, o verdadeiro mestre Caeiro.
Talvez a morte fosse só o que
lhe faltava para que da vida soubesse a história inteira, e o mais fácil é
imaginá-lo sorrindo, já do outro lado – lado nenhum, ou só fantasma nosso –
deitando-nos uma mão, tão levezinha que quase não se sente; que estará cá
sempre. Rui Caeiro morreu esta manhã. Tinha 75 anos, mas ultimamente já levava
como ofensa uns maus tratos desnecessários a quem só queria estar cá mais
um bocado. E nem era só as forças que lhe faltavam, ou a voz, que se lhe
entaramelou há dias, quando, após um enfarte, lhe substituíram o coração por
uma triste coisa artificial, mas começava a faltar-lhe também a paciência. Se
era para morrer, então a decisão dele estava tomada. Afinal, como escreveu
certa vez: “Adiar o acto é passar a viver a vida de um outro. Adiar é, por
isso, uma outra forma de morte – por suicídio também.”
Debatia-se (mas pouco) desde
há uns anos com um cancro, e não estava louco desse heroísmo de o levar
vencido. Só tinha ganas que lhe trouxessem as novidades, afinal, da vida, e
mesmo dos dias, ele gostava. E, se se autoretratava como “um homem de áridas
certezas”, isso também lhe servia para que a coisa não descambasse, e trazia
sempre “uma esperança”, adiantando que “a essa arrasto-a pela mão pelos cabelos
pelas orelhas/ páro escuto e olho antes de atravessar// com ela. E não sei o
nome. E não me preocupo”.
Poeta e tradutor, antes de
tudo foi um leitor desses que qualquer reino que lhe dessem o trocaria por uma
sentença justa, seca, final, como as que fazem os deuses desejarem ser moscas
para escutar os lampejos de alguns homens. De todas as riquezas terrenas,
talvez só as sumptuosas descrições de haréns o fizessem tecer um fio de baba
luzindo de ambição. Isto para dizer que não seria nunca a imortalidade a
tentá-lo, e que, juntamente com os livros, reconhecia o privilégio da
carne, de se estar num corpo e ir com ele para a refrega do encanto. Morrer não
foi, por isso, mais do que a perda desse vínculo com o desejo, com a paixão e o
amor. E se este elenco, para os que não têm o gosto da minúcia, são termos
reversíveis, a sua sabedoria era o despenhadeiro que se cava e que nos
enobrece, sabendo a diferença que faz preferir uma palavra a outra. Afinal, uma
boa descrição de poeta pode ser essa que se recupera de uns versos que se lêem
no seu “Baba de Caracol”, sendo o poeta aquele que tem as “palavras como
rostos, como histórias/ por contar”.
Antes de um retrato mais
abalizado entre essas tombadas trivilidades que representam a vida civil de um
homem, é bom notar que, em tudo quanto foi fazendo, e no amor que dedicava aos
livros, Rui Caeiro nunca o fez para efeitos de selecção anormal da espécie. Não
o atraíam nem comungava com os preceitos e maneirismos dos que, em virtude de
alguma cultura que possam ter adquirido, se julgam eleitos. Não só não tinha
como desprezava os enlevos por “beldades mortas e pianos tuberculosos”. Mas
apreciava as “eternas dúvidas”, essas inquietações que lançam um pano sobre o
espírito, lhe denunciam as formas, e nos tornam sujeitos em comum, implorando
do caos a clemência de um sentido qualquer, por mais mísero que seja. Os mesmos
sujeitos que, por horror ao vazio, o povoam, arrancando os deuses e os mitos às
trevas. Assim, e onde quer que fosse, antes e depois da bengala em que vinha
apoiando os últimos anos, trazia a bater na perna o saco de plástico com dois
ou três livros e algum jornal do dia... Como o mais discreto e parcimonioso
elemento de um prodigioso conselho de sábios, tinha a generosidade de ouvir com
a inabalável confiança de que qualquer um pode dar-nos a frase que salva o dia,
e essa confiança tornava-o uma presença afável, e que deixará, não só a mulher,
Manuela, e o filho, Pedro, ou as netas e o neto, mas muitos amigos a sentir a
solidão como uma coisa física, uma doença dessas que deixa manchas na pele.
Nascido em Vila Viçosa, a 27
de junho de 1943, Rui Caeiro vivia em Oeiras, estava reformado depois de ter
sido advogado nos quadros da EDP. Desse período, as lembranças mais gratas que
guardava relacionavam-se com uma revista cultural de que foi responsável,
ligada àquela empresa, e como isso lhe deu a oportunidade de entrevistar alguns
dos escritores e artistas que mais admirava, figuras como Agustina Bessa-Luís,
José Saramago e Cruzeiro Seixas, entre outros. Só tardiamente começou a
publicar, e, com todo o seu cuidado, vigilância, nas últimas três décadas foi
uma das presenças mais singularmente convincentes do meio literário português,
mas sempre num percurso que se desenhou subterraneamente, fosse em primorosas
edições de autor, através de cumplicidades bem medidas, ou em pequenas
editoras; à glória sempre preferiu o “precipício concreto de um abraço”, e
gabava-se de tratar por tu ou conhecer relativamente bem qualquer dos seus
leitores.
A par da paixão pelos livros,
havia ainda a afinidade que tinha com bêbados e malucos, essas tribos
dispersas, cujos membros nele reconheciam o mesmo sangue destilado pela doideira
e o lirismo, alguém com quem partilhavam a aristocracia desesperada de se ter a
vida por um fio. (“Vida, e vida presa, e apenas por um fio, é coisa que toda a
gente tem. Embora nem toda a gente saiba que tem, ou dê por isso. Nem toda a
gente está cá para o efeito. Dar por isso não deixa de ser, não obstante, a
melhor das razões para cá se estar. E não há assim tantas.”)
Além do importante papel que
teve ao longo de uma década, na ajuda e companhia que fez a Vitor Silva
Tavares, na editora &etc, traduziu uma data de gente, mas sempre e só os
autores e as obras que admirava, e, assim, foi compondo ao acaso um
destrambelhado e vivificador cânone, que contava tanto com os mais distintos
como com os mais indelicados. Ninguém como ele demonstrava uma tão grande
compreensão face a esses que amarram os seus demónios aos postes que demarcam
as zonas hostis do espaço literário. Se Michaux era o seu poeta, e Kafka o seu
prosador, aplicou tanto o instinto como o estudo ao procurar nesta língua uma
mão que fizesse justiça às de autores como Rilke, Desnos, Pavese, Yourcenar ou
Michaux. E mesmo no que toca à poesia, numa das raras entrevistas que lhe
fizeram (para o site “Jogos Florais”), logo a abrir, só teve de dizer a sua
verdade para responder de uma forma que o distingue de quase toda a gente que
escreve neste país e se envaidece com isso. Perguntam-lhe se gosta de poesia, e
ele diz que “não se trata de gostar ou de não gostar, trata-se de que se tem de
a aceitar quando ela se impõe.”
Antes que nos entreguemos a
“diálogos marados” com o fantasma imenso que nos lega – e a sua obra reunida
deverá chegar às livrarias já no próximo mês com selo da editora Maldoror, e
sob o título “O sangue a ranger nas curvas apertadas do coração” –, resta ainda
o velório, amanhã, a partir das 17h30, na capela da Igreja Nova de Oeiras,
ficando o funeral marcado para as 11h de quinta-feira, hora em que o corpo sai
da capela em direcção ao cemitério de Oeiras.
“Vem um dia em que o corpo
não responde/ não acorda não condiz/ não se habitua// É uma primeira e
definitiva recusa: alheio/ não se dá ao trabalho de/ avisar ou despedir-se//– o
corpo”, escreveu ele há muito tempo... Chegou esse dia, e tem graça, Rui, pois
ia ligar-lhe para lhe ler uma coisa. Estou de roda de um livro que me falou de
si. Há uma passagem, muito especialmente, que lhe diz respeito como a muito
poucos. É na recolha de textos de Francisco Umbral sobre outros digníssimos
literatos, e tem como título uma pergunta que, justamente, poderia ser
sua: “E como eram as ligas de Madame Bovary?” Num desses textos, Umbral
lembra-nos uma frase de Voltaire sobre o “Quixote”, adiantando que lhe parece
ser “a mais inteligente glosa ao livro cervantino e à verdadeira personalidade
do fidalgo da Mancha”. Diz-nos que isto foi o que ocorreu a Voltaire, já
maduro: “Eu, como D. Quixote, invento para mim próprio paixões só para me exercitar.”
E o espanhol continua: “A
expressão é bela e melancólica referindo-se ao próprio Voltaire, mas é
absolutamente reveladora referindo-se a D. Quixote. Nunca acreditámos que D.
Quixote estivesse louco, mas ninguém melhor que Voltaire alguma vez lhe
denunciou a lucidez. Chegado ao meio século de vida (o que era muito para um
homem daquela época), Alonso Quijano decide que tem de dar o salto, que começou
para ele a velhice, que começa a ser um homem desapaixonado (excepto quanto às
paixões vicárias pelos romances) e que precisa de ‘inventar’ (hoje diríamos
incentivar) as paixões que já não sente, ou sente apenas de forma muito ténue
(…) Alonso inventa a vida que nunca teve e que lhe falta. E creio que será este
o mais profundo ensinamento do livro, com a permissão dos cervantistas, e que
só Voltaire o viu.”
E, se digo que isto me
lembrou do Rui, isso deve-se à sensação que sempre me deu de que nunca precisou
de fantasiar, mas que, por detrás das suas lentes garrafais, foi aprendendo a
ler mais fundo, e a delirar quando lhe apetecia, com quem lhe apetecia, fosse
um bêbado, um maluco ou um moinho, e não porque estivesse velho ou porque a
vida o tenha decepcionado, mas porque a sua lucidez era essa capacidade de
enlouquecer com as coisas do mundo como quem lê, quem, se lhe fizéssemos o
cumprimento, perguntando como vai, responderia sorrindo: bem muito obrigado.
Afinal, era esse o título de um dos primeiros livros: “Sobre a nossa morte bem
muito obrigado”.
Diogo Vaz Pinto, Jornal i, 29/01/2019
CARREIRO, José. “Rui
Caeiro (1943-2019)”. Portugal, Folha de Poesia, 31-01-2021. Disponível
em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/01/rui-caeiro-1943-2019.html