O PAÇO DO MILHAFRE
À beira de água fiz erguer meu Paço
De Rei-Saudade das distantes milhas:
Meus olhos, minha boca eram as ilhas;
Pranto e cantiga andavam no sargaço.
Atlântico, encontrei no meu regaço
Algas, corais, estranhas maravilhas!
Fiz das gaivotas minhas próprias filhas,
Tive pulmões nas fibras do mormaço.
Enchi infusas nas salgadas ondas
E oleiro fui que as lágrimas redondas
Por fora fiz de vidro e, dentro, de água.
Os vagalhões da noite me salvavam
E, com partes iguais de sal e mágoa,
Minhas altas janelas se lavavam.
À beira de água fiz erguer meu Paço
De Rei-Saudade das distantes milhas:
Meus olhos, minha boca eram as ilhas;
Pranto e cantiga andavam no sargaço.
Atlântico, encontrei no meu regaço
Algas, corais, estranhas maravilhas!
Fiz das gaivotas minhas próprias filhas,
Tive pulmões nas fibras do mormaço.
Enchi infusas nas salgadas ondas
E oleiro fui que as lágrimas redondas
Por fora fiz de vidro e, dentro, de água.
Os vagalhões da noite me salvavam
E, com partes iguais de sal e mágoa,
Minhas altas janelas se lavavam.
Vitorino Nemésio, in Tríptico, nº 2 (1924)
e O Bicho Harmonioso (1938)
TEXTO DE APOIO
[…] a «história» da casa resume-se nisto: «sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço, sentado numa pedra de memória».
Trata-se, pois, de dar expressão a uma realidade de valor metonímico que só tem existência no seu íntimo. Tal como o «Paço do Milhafre»: «O Paço do Milhafre não é ali, mas para mim lá fica o seu mistério. Nem sequer o Paço é paço, bem no sei! O Passo do Milhafre é um passo de passada e fica ao Paço da Areia, acima das de Entre-Muros» (p. 18). Mas o «mistério» do Passo/Paço não fica pelo jogo homofónico: para além do que possa ser entendido como puro ludismo verbal, estão as fluidas associações de imagens, os controles incoerentes de uma interioridade exilada, o real sublimado e tomado discurso, léxico significativo, mito, símbolo.
[…]
Vejamos o texto poético «O Paço do Milhafre» publicado n'O Bicho Harmonioso.
[…]
Poema sem dúvida já profundamente marcado da insularidade açoriana da qual nunca se desligaria. Repare-se, antes de mais, no elevado número de termos da esfera marítima: «beira de água», «distantes milhas», «ilhas», «sargaço», «atlântico», «algas», «corais», «gaivotas», «mormaço», «salgadas ondas», «vagalhões», «sal». Mas Nemésio apodera-se da significação desse léxico, partindo para um plano de antropomorfização. A paisagem marítima cerca-o e invade-o, insinuando-se matéria constituinte do seu próprio ser: «Meus olhos, minha boca eram as ilhas», «Tive pulmões nas fibras do mormaço»; em suma, faz-se «atlântico».
A propósito deste livro diz Martins Garcia que a interioridade de Vitorino Nemésio, «[...], busca, na exterioridade, toda uma série de elementos da vida insular: conchas, algas, mar, poço, nuvem, barco, gaivota, estrela, lume, vento, sol, sal, etc. ‑ mas tudo isso como elementos da 'memória', à semelhança da 'pedra' onde se senta o cansaço do autor [...]» (José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem,Lisboa, Editora Arcádia, 1978, pp. 159-160). Nemésio, de resto, satura-se de reminiscências, refugia-se na reconversão fantástica. Então, confere maior espacialidade ao «regaço», heterogeneidade bizarra aos elementos que o habitam, encarnando preferencialmente alguns, todos tomando como parte vital da sua existência: «Atlântico, encontrei no meu regaço / Algas, corais, estranhas maravilhas! / Fiz das gaivotas minhas próprias filhas, / Tive pulmões nas fibras do mormaço». E é ainda a essa substância salgada que impetuosamente nele bate, a quem é devida a razão da sua subsistência: «Os vagalhões da noite me salvavam / [...] de sal e mágoa, / Minhas altas janelas se lavavam».
Aqui está, ou não, uma forte determinação, um indiscutível poder ‑ pois que faz erguer o seu «Paço / Da Rei- Saudade das distantes milhas»?
«Paço da Rei-Saudade», a personagem-narrador Mateus Queimado, várias outras como vimos, inclusive Margarida do Mau tempo no Canal, são, pois, projeções mais ou menos autónomas da personalidade Nemésio. «[...] nem o fingimento é o puro advento de pseudónimos, de protagonistas, de personagens, mas o cruzamento de seres em estado fantástico com seres de estado civil, meio por meio formados na reminiscência e na inventiva, ao mesmo tempo utópicos e moradores, convividos e sonhados» ‑ confessa o próprio autor (in «O problema do romance», Diário Popular, Lisboa, 1946-05-08). Há unidade nesta multiplicidade de vozes pelo facto de representarem uma atitude mental convertida em experiências literárias. Essa diversidade é, de resto, a prova provada do metaforismo de viagem na obra de Nemésio: em parte porque resposta à ubiquidade da Ilha Perdida; em parte devido ao carácter indefinido, em rumo e extensão, da(s) sua(s) viagen(s) mítica(s) (sobretudo na crónica, autêntica viagem de um navio [que está] no peito como se viu, isto é, uma «rota» de diário íntimo!).
Nemésio não quis, afinal, regressar à ilha Terceira nem ao tempo que lá passara. É certo que lhe é grato recordar factos, episódios vividos; mas nesta «volta atrás não avulta o tempo perdido (isso é só mau costume calculista, ponto de vista económico): [...]» (Vitorino Nemésio, «A cinza do charuto» in Jornal do observador, Lisboa, Editorial Verbo, 1974, p. 91). Se regressa fisicamente às ilhas, mesmo esporadicamente e por curto espaço de tempo, fica-lhe uma sensação de vazio, de falta interior quase hereditária: «[...] nada me falta ‑ senão o que sempre me faltou». «Quando se volta atrás ‑ continua na crónica do Jornal do observador ‑ levanta-se o passado criador, o ingénuo pai do futuro. Pitoresco ou não, superficial ou profundo o que fizemos arranca dele» (sublinhados nossos).
Maria Margarida Maia Gouveia, A viagem em Vitorino Nemésio, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1986, pp. 124-126.
LEITURA ORIENTADA
1. Sem ler o poema, defina as expectativas que lhe cria o título.
2. Leia o texto e recorra ao dicionário para esclarecer o sentido das palavras que desconheça, com particular atenção aos vocábulos «paço», «milhafre», «mormaço», «sargaço», «infusas», «oleiro», «vagalhões».
3. Indique os elementos marinhos que transformam e aproximam o corpo do «Rei-Saudade» das «ilhas» distantes.
4. Analise o valor expressivo da antítese presente no verso «Por fora fiz de vidro e, dentro, de água».
5. Tendo em conta a estrutura estrófica, classifique esta composição poética de Vitorino Nemésio.
6. Proceda à definição do seu esquema rimático, explicitando a relação de sentidos que se estabelecem entre as palavras que rimam.
7. Comente o sentido da estrofe final do poema.
8. Após a análise do texto, faça a interpretação do título e confronte-a com as suas expectativas iniciais.
Antologia. Português 10º Ano/Ensino Secundário, Ana Garrido, Cristina Duarte, Fátima Rodrigues, Fernanda Afonso e Lúcia Lemos, Lisboa Editora, 2007.
Saudade. Paulo Borges, Ponta Delgada, novembro de 2017 |
SUGESTÃO
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/31/POEMA.o.paco.do.milhafre.aspx]