quarta-feira, 24 de julho de 2019

Quem muito viu..., de Jorge de Sena



Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há de encontrá-lo morto.

Soneto de Jorge de Sena, Brasil, 1956-65
Peregrinatio ad Loca Infecta (1969), incluído em Poesia III (1978)




Sobre “quem muito viu…”

Inscrito na seção “Brasil” de Peregrinatio ad loca infecta (1969), livro dividido em 4 partes mais um epílogo (respectivamente “Portugal (1950-59)”, “Brasil (1959-65)”, “Estados Unidos da América (1965-69)”, “Notas de um regresso à Europa (1968-69)” e o poema “Ganimedes”), o soneto “Quem muito viu…” talvez seja um dos poemas que melhor dê expressão ao título do livro e seu sentido de peregrinação. Talvez até possamos pensar que o sujeito deste poema é o próprio movimento, o próprio peregrinar, numa busca incessante.
Seguindo o trajeto de um sujeito – singular ou coletivo? – apenas designado pelo pronome “quem”, que mais oculta do que revela a sua identidade (ou mais revela que oculta, se pensarmos numa dimensão autobiográfica…), o soneto assinala um movimento contínuo, materializado no discurso pela enumeração e pela sucessão de orações coordenadas (“Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,/ mágoas, humilhações, tristes surpresas;/ e foi traído, e foi roubado, e foi/ privado em extremo da justiça justa”). Esta acumulação de acontecimentos nem sempre correlatos, mas todos ligados ao mesmo sujeito, vai como que arrastando o leitor e tira-lhe o fôlego até poder respirar novamente, no décimo verso, diante do ponto que finaliza o longo período. Percebe então que este se fecha com uma sentença radical: o ser que tanto experimentou, ou que, camoniamente, “errou todo o discurso dos [s]eus anos”, afinal “não sabe nada, nem triunfar lhe cabe/ em sorte como a todos os que vivem.” Tal declaração (que nos recorda “Tabacaria”, de Álvaro de Campos, cuja primeira estrofe enfatiza o não ser nada, o não saber nada) cria enorme surpresa por sugerir a inconsistência ou futilidade daquele somatório de experiências que o sujeito incorporou ao longo dos tempos. Mesmo o ter conhecido “mundos e submundos”, mesmo o ter sido tudo, ainda não foi suficiente e, por isso, em que pese o contraditório, “Apenas não viver lhe dava tudo.”
No entanto, o poema prossegue, semelhante a uma profecia, cujo tom não é menos radical que a afirmação anterior: “Inquieto e franco, altivo e carinhoso, será sempre sem pátria”. Surge aí o termo historicamente ancorado – pátria – que tudo esclarece: esse sujeito indefinido será sempre marcado pelos tempos e espaços do desterro, da condição ex-cêntrica, da condição de exilado, ou seja, do “não viver”. E, ao fim do poema, em outra afirmação voltada para o futuro, lemos, “E a própria morte,/ quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.”, a sugerir uma espécie de sujeito (“altivo”), que, graças à sua trajetória de exílio, de não-vida, é capaz de ultrapassar a própria morte. Antecipando-se a ela, recusa o território que ela lhe poderia oferecer – uma espécie de “pátria” da morte – e, portanto, por ser apátrida acima de tudo, consegue derrotá-la.





    Ligações externas:


Homenagem a Jorge de Sena - Colóquio Letras, N.º 104/105 (Jul. 1988), Disponível em: http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/do?issue&n=104


“Jorge de Sena e o testemunho poético de paisagens ausentes”, Alessandro Santos. Nau Literária, PPG-LET UFRGS, https://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/viewFile/76095/47029, vol. 13, N. 02 2017

Ler Jorge de Sena® 2010 Universidade Federal do Rio de Janeiro

O essencial sobre Jorge de Sena, Jorge Fazenda Lourenço. 2.ª edição revista e aumentada, INCM, 2019






Quem muito viu..., de Jorge de Sena” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 24-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/quem-muito-viu-jorge-de-sena.html



sábado, 20 de julho de 2019

Quem fala de partir, de despedidas, Jorge de Sena

JORGE DE SENA


1    Quem fala de partir, de despedidas...
2    Quantas vezes parti na minha vida,
3    me despedi de vez de gente e de lugares
4    a que voltei para encontrá-los outros...
5    Nem contar posso. E às vezes despedir
6    foi só pisar com vã melancolia
7    as ruas de cidades onde não deixava
8    ninguém que me lembrasse. Às vezes foi
9    apenas receber por um relance vago
10   a imagem de um recanto ou de uma luz
11   iluminando nevoentos muros...
12   Não muitos terão tido a vida inteira
13   esta febre de andar por vários mundos
14   buscando ansioso o nada nosso e deles
15   que ao menos nada finge em gente e coisas...
16   E não terão, portanto, na memória
17   o tanto haver partido para longe,
18   para saberem que se parte sempre,
19   e não se volta nunca. O mesmo amor
20   que fiel aguarda o regressarmos não
21   é o mesmo já, mesmo se mais ardente
22   sob os cabelos que lhe são mais brancos.
Londres, 15/3/1973
Jorge de Sena, Poesia 2, edição de Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa, Guimarães, 2015, pp. 726-727.


QUESTIONÁRIO:

1. Refira dois dos traços que caracterizam a figura de viajante representada no poema.
2. Indique o sentido da expressão «vã melancolia» (verso 6).
3. Neste texto, o sujeito poético realça a diferença entre a sua experiência e a experiência de outros.
Justifique esta afirmação, tendo em conta os versos 12 a 19.
4. Explicite dois aspetos do tema do regresso, tal como é tratado neste poema.

CENÁRIOS DE RESPOSTA:

1. Na resposta, referem-se, adequadamente, dois dos traços que caracterizam a figura de viajante representada no poema, pelo que devem ser desenvolvidos dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.
A figura de viajante representada no poema:
sente uma atração irresistível pela descoberta de «vários mundos» (v. 13);
conhece bem, por experiência própria, o que é partir e regressar;
considera que o facto de muito viajar marca a sua personalidade.

2. Na resposta, indica-se o sentido da expressão, desenvolvendo, adequadamente, dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
A expressão «vã melancolia» (v. 6) remete para:
a tristeza absurda de uma despedida em que não se diz adeus a ninguém;
a inutilidade de se despedir de um lugar a que se é por completo estranho;
o sentimento de partir de uma cidade onde ninguém lembrará aquele que parte.

3. Na resposta, justifica-se a afirmação, desenvolvendo, adequadamente, dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
O sujeito poético realça a diferença entre a sua experiência e a experiência de outros:
sugerindo que faz parte de um grupo restrito («Não muitos» – v. 12), com características próprias;
considerando que quem não integra o grupo restrito a que ele pertence não poderá entender a experiência de «tanto haver partido para longe» (v. 17) e de regressar, pois não o faz com a mesma frequência nem o sente com a mesma intensidade;
supondo que a sua propensão para a viagem não será partilhada por muitos.

4. Na resposta, explicitam-se dois aspetos do tema do regresso, desenvolvendo, adequadamente, dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
Tal como é tratado neste poema, o tema do regresso convoca os seguintes aspetos:
o regresso revela toda a mudança que ocorreu durante a ausência;
o pleno regresso é impossível, pois, ao voltar, o lugar que se deixou encontra-se sempre diferente;
mesmo os que aguardam fielmente o regresso de quem partiu já não são os mesmos.

Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa, 11.º Ano de Escolaridade. Prova 734 (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho; Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho).  Instituto de Avaliação Educativa, I.P. (IAVE), 2019, 2ª fase.




     Ligações externas:
           



Quem fala de partir, de despedidas, Jorge de Sena” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 20-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/quem-fala-de-partir-de-despedidas-jorge.html


sexta-feira, 19 de julho de 2019

Herberto Helder – por sobre as águas

Herberto Helder em Vale de Figueira, Santarém, anos 1960 (José Carlos Lucas/Casa Museu Frederico de Freitas)

Herberto Helder como nunca viu (ou ouviu)

A mais completa exposição sobre o autor madeirense faz casa no Funchal até meio de Setembro. Oportunidade para (re)visitar Herberto Helder: a obra e a vida.
Márcio Berenguer PÚBLICO, 18 de Julho de 2019, 12:13

Herberto Helder – por sobre as águas. A exposição biobibliográfica sobre o poeta madeirense, que abre as portas esta quinta-feira no Funchal, reúne todas as primeiras edições do conjunto de cerca de quatro dezenas de títulos em poesia e em prosa da obra de Herberto, publicadas entre 1958 e 2018.
A mostra, que estará patente até 18 de Setembro na Casa Museu Frederico de Freitas, revela também fotografias inéditas de Herberto Helder (1930-2015), e correspondência particular entre o poeta e alguns nomes maiores da cultura nacional como Sophia de Mello BreynerEduardo Prado Coelho ou Eduardo Lourenço.
Pela primeira vez, destaca ao PÚBLICO Diana Pimentel, curadora da exposição, estará acessível o conjunto das cinco entrevistas dadas entre 1959 e 1968 e uma auto-entrevista feita em 1987. “Revelam, de certa forma, como Herberto Helder foi lido e interpelado à época, dando a possibilidade aos seus leitores de poderem — pela sua própria voz — compreender a lucidez, o desassombro e a ironia que Herberto Helder sempre teve no contexto da poesia portuguesa contemporânea.”



Ao longo da exposição sobre a vida e obra do autor de Os Passos em Volta ou Photomaton & Vox, são documentadas factos “pouco conhecidos do público em geral”, como a apreensão, em 1968, do livro Apresentação do rosto.



Autobiografia do autor, que é de índole esquerdista, escrita em linguagem surreal e hermética que como obra literária não mereceria qualquer reparo se não apresentasse passagens de grandes obscenidades (…) Nestas condições entendo que é de propor a proibição de Circular no País para este livro”, lê-se num relatório da PIDE em Junho de 1968, que integra o acervo da exposição.



Em Herberto Helder – por sobre as águas é “visível e legível” a forma “activa e dedicada” com que colaborou com inúmeras edições de antologias, cadernos e revistas literárias entre os anos 50 e 70 do século passado no Funchal, em Lisboa, em Coimbra e em Paris. “É a travessia, também por sobre as águas, da sua poesia pelas artes plásticas (pintura, escultura, fotografia) ou pelo cinema, num diálogo tão antigo quanto actual”, assinala Diana Pimentel, coordenadora do Núcleo de Estudos Herberto Helder, da Universidade da Madeira, explicando que os visitantes podem aceder a materiais multimédia: registos áudio de poemas lidos pelo próprio, documentários, reportagens e adaptações digitais do trabalho do autor.
A exposição, a mais completa sobre o autor, que cultivou “a ética de um rigoroso silêncio” sobre o ofício de escrever, é promovida pela Secretaria Regional do Turismo e Cultura, integrada nas comemorações dos 600 anos do descobrimento da Madeira e do Porto Santo, e constituiu uma oportunidade de contactar com o projecto artístico inédito de Filipa Cruz (Até Os Tempos Não Mais Serem Interditos), que procura pensar a poesia de Herberto Helder enquanto comentário à materialidade e à imaterialidade.

“O propósito maior desta exposição talvez seja o de acompanhar os leitores (iniciais ou experientes) da prosa e da poesia de Herberto Helder pelas inúmeras águas por e sobre as quais a sua obra se abre, continuamente, e se expande — e expandirá”, resume Diana Pimentel, admitindo o espanto contínuo ao montar a exposição. Mesmo que já estudando a sua obra há algum tempo, ainda me continua a surpreender a intensidade e a potência do seu trabalho de escrita, o extremo rigor do seu ofício poético (e editorial) e o modo como a obra de Herberto Helder, em interacção com os seus contemporâneos e com gerações anteriores e posteriores à sua, se não acomodou — nem está, ainda, acomodada — a um tempo.”

Herberto Helder e o pintor Carlos Fernandes.
Corimba - Luanda, 1971 (Fotografia de Júlio de Saint-Maurice)
Herberto Helder em Vale de Figueira, Santarém, anos 1960
(José Carlos Lucas)
Herberto Helder, 1948
Herberto Helder, 1941


quarta-feira, 17 de julho de 2019

Pus o meu sonho num navio - Canção de Cecília Meireles



CANÇÃO

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles (1901-1964), Viagem, Lisboa, 1939


LINHAS DE LEITURA

"Canção" parece recuperar, nos primeiros versos, uma imagem mental onírica, arquetípica assente em palavras como “navio”, “mar”, “ondas” - o sonho posto no navio, o navio posto no mar, o mar aberto com as mãos.

A evocação lírica inicial precipita, obsessivamente, na vontade de o sujeito lírico sepultar o seu próprio sonho ou algo que leva no seu interior e precisa que seja esquecido, que desapareça. O elemento água é utilizado para realizar a transição do eu lírico, sendo o navio o instrumento dessa difícil travessia.
O poema ilustra a condição negativa do eu poético, já que nasce do naufrágio (ou do sufocamento) de um sonho, na tentativa de superação da angústia.
Pode-se apontar a renúncia como tema do poema, pois o sujeito poético é responsável pelo naufrágio do seu próprio sonho ("... abri o mar com as mãos / para o meu sonho naufragar"), renunciando-o ("e o meu sonho desapareça"). Sem o sonho, o "eu" chega à perfeição, que seria um estado de quietude, paz, ausência de sofrimento ("... tudo estará perfeito; / ... meus olhos secos..."). Portanto, infere-se que o sonho, de alguma forma, provoca a dor e, para evitá-la, é preciso abrir mão dele.
As terceira e quarta estrofes constituem o centro do poema, onde há uma tensão entre a expansiva vontade de chorar e o movimento centrípeto de obliterar o desejo dentro de si.
No final do poema há o estabelecimento da ordem (“praia lisa, águas ordenadas”), mesmo que haja paralelamente danos no eu (“mãos quebradas”). No universo do poema, o ciclo está completo, visto que está atingida a meta proposta na primeira estrofe.
Essa ordem procurada está assente em “areias desertas”, onde os olhos se tornam “secos como pedras”. Visto de fora, matar o sonho parece representar uma dura resignação diante da vida.
Tendo por base a Filosofia Perene, Camila Marchioro apresenta a seguinte interpretação do poema: “primeiro o eu lírico livra-se dos desejos que, representados pelo sonho, podem referir-se aos desejos da mente, vontades abstratas. O eu lírico os coloca no navio e os afoga no mar. O mar, aqui, pode representar a própria mente, ainda turbulenta, cheia de pensamentos. Depois, os desejos são simbolizados pelas mãos. Nesse caso pode-se pensar nas mãos como representação dos desejos materiais. As mãos abriram o mar para afogar o sonho, mas se sujaram com o azul das ondas. [...] Nesse caso pode-se entender que a turbulência dos pensamentos, dos desejos, das ondas, contaminou as mãos, que agora pingam colorindo as areias antes desertas, ou seja, o azul seria mais representativo da ilusão que predomina na mente que se pretende esvaziar. (MARCHIORO, 2014, p. 107).
Cecília Meireles, apesar de fazer parte da chamada “Poesia de 30”, não seguiu rigidamente nenhuma corrente do Modernismo Brasileiro, produzindo uma poesia lírica, mística e musical. Esta poetisa recorre a versos melódicos, explorando as possibilidades sensórias num misto de agonia e beleza, para revelar uma dor profunda, causada pela renúncia de um desejo.
 JC

Bibliografia didatizada:

A análise literária, Massaud Moisés. São Paulo, Cultrix, 2007 (16.ª reimpressão da 1.ª ed. de 1969)
A falta e o mar absoluto em Cecília Meireles, Mariana Neto, São Paulo, FFLCH/USP, 2018
A poeta ao espelho (Cecília Meireles e o Mito de Narciso), José Zambolli. São Paulo, FFLCH/USP, 2002
Cecília Meireles e os Símbolos do Absoluto, Camila Marchioro. Curitiba, UFP, 2014
ITA, SP, Bernoulli Colégio e Pré-Vestibular, 2003
Mar de poeta - A metáfora do oceano nas líricas de CMeireles e Sophia, Karin Backes. Porto Alegre, Faculdade de Letras da PUCRS, 2008
Os quatro elementos e a imagem poética em Cecília Meireles, Viviane Dutra. Santa Cruz do Sul/RS, UNISC, 2016




         Poderá também gostar de:

"Irmã de um Fernando Pessoa, de um Rilke, de um Yeats, como eles filha moderna do simbolismo antigo, é Cecília Meireles daqueles poetas para quem o lirismo é simultaneamente um cântico e um sortilégio: um cântico em louvor dos deuses mortos, um sortilégio pelo qual os mesmos deuses ressuscitam. A poesia de Cecília Meireles é daquelas que invertem, pois, as relações temporais: todo o efémero se fixa em momentânea eternidade, e todo o perene flui na música que o sustenta e cria."
Jorge de Sena, 1988, p. 24

* * *

BEIRA-MAR

Sou moradora das areias,
de altas espumas: os navios
passam pelas minhas janelas
como o sangue das minhas veias,
como os peixinhos nos rios...

Não têm velas e têm velas;
e o mar tem e não tem sereias;
e eu navego e estou parada,
vejo mundos e estou cega,
porque isto é mal de família,
ser de areia, de água, de ilha...
E até sem barco navega
quem para o mar foi fadada.

Deus te proteja, Cecília,
que tudo é mar – e mais nada.

Cecília Meireles, Mar Absoluto. Porto Alegre, ed. Globo, 1948


* * *


CECÍLIA MEIRELES E OS SÍMBOLOS DO ABSOLUTO

"Deus te proteja, Cecília,/ Que tudo é mar – e mais nada." ("Beira Mar"). O verso exprime uma característica central da poesia ceciliana: o simbolismo do mar e a relação deste com Deus. "Tudo é mar e mais nada", em Cecília Meireles, é referência às suas crenças e filosofias e, ao se colocar como eu lírico do poema, a autora não deixa margens para dúvidas, afastamentos e elucubrações críticas, é a própria Cecília, nesse caso, que entende que tudo é mar e mais nada. […]
A poesia de Cecília Meireles é contemplativa. O caminho da renúncia, a consciência de que tudo é ilusão fazem parte do processo de identificação do Absoluto (divino) na obra de Cecília Meireles. […]
Não satisfeita com o tempo linear do cristianismo, Cecília encontra nas religiões orientais o sentido de libertação, pela interioridade, alcançada nesta existência e neste mundo ("this-worldliness"). […]
A propósito disto, Cecília Meireles em carta para Mário de Andrade diz: "Espero que a sua saúde já esteja excelente. Pensei em mandar-lhe um "ata-yoga" [hata yoga], para V. se curar. - respirando como nós, os faquires... Mas V. podia rir, e, em magia, o riso é coisa muito perigosa, Mário" (Cecília e Mário. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 307). […]
Outra face do hinduísmo presente em Cecília Meireles é o Advaita Vedanta. […] O Vedanta em si define a natureza da existência ensinando que o self (Atman) é da mesma natureza que brahman, o Absoluto. A percepção desta realidade é obscurecida no homem pela falsa ideia(vikalpa) que ele faz de si mesmo e do mundo, impedindo-o de viver a plenitude da unidade. Nos Upanishads, a consciência pura, chamada brahman (o Absoluto) é apresentado como o substrato do universo, a partir do qual aparece o mundo e também a consciência individual (ahamkara). Mas todas estas formas, de acordo com o Vedanta, são ilusórias. O mundo inteiro é a manifestação da realidade última, todavia não é ainda o Absoluto (brahman, portanto o homem, segundo esta corrente, não deve se perder buscando a verdade nas coisas aparentes, pois elas são a manifestação do Absoluto, mas não são o Absoluto em si. Nesse sentido, aquele que busca o Absoluto deve livrar-se dos invólucros do Eu a fim de desiludir-se para poder chegar ao Absoluto. Entretanto, esta substância "que é", sem predicados, subjaz a tudo, é a essência última de tudo, mas não pode ser apreendida materialmente. […]
A proposta mística de Cecília foi enriquecida por meio de leituras sistemáticas, tanto de textos tradicionais hindus, quanto de escritores indianos. Segundo Dillip Loundo (que teve acesso à sua biblioteca) a autora leu desde a literatura sânscrita, clássica e antiga: os épicos Ramayana e Mahabharata; os textos dos Vedas e Upanishads, os Sutras, fábulas e sagas históricas. Passando pelo teatro e poesia, traduziu poetas místicos como Kabir, Mirabai e Tulsidas, clássicos como o livro de Simbad e As Mil e Uma Noites. Além disso, leu muitos orientalistas franceses e também se deteve no folclore regional de algumas regiões da Índia. Leu escritos como os de Ramakrishna, Vivekananda, Aurobindo Gosh, Sarojíni Naidu, Abhay Khatau, entre outros. Dessas influências, as mais marcantes foram a do poeta ganhador do prêmio Nobel de 1913, Rabindranath Tagore, e a de Mahatma Gandhi […].
A autora diz no livro O que se diz e o que se entende, em "Meus orientes":

O Oriente tem sido uma paixão constante na minha vida: não, porém, pelo seu chamado "exotismo" - que é atração e curiosidade de turistas - mas pela sua profundidade poética, que é uma outra maneira de ser da sabedoria. Como se cristalizou em mim esse sentimento de admiração emocionada por esses povos distantes, não é fácil de explicar em poucas linhas. Mas foi uma cristalização muito lenta, dos primeiros tempos da infância. E lembro-me nitidamente desses antigos encontros, que me deixavam tão pensativa e interessada, antes que eu pudesse adivinhar, sequer, a sua significação. (MEIRELES, 1980, p. 36).

[…] Neste trabalho utilizaremos para denominar esse algo imaterial e universal, o termo Absoluto, pois é o mesmo termo utilizado por Cecília Meireles, foco das análises desta dissertação. […]
A partir de Viagem (1939), o Absoluto passa a ser buscado e identificado no mesmo universo do eu-lírico, sendo simbolizado pela música, mar, e encontrado no confronto do eu-lírico consigo mesmo. Nesse sentido, a segunda fase da obra da autora pode ser mais bem analisada tendo como base a outra interpretação de Platão, a "thisworldliness", aquela na qual não há dualismo separando o mundo real de um ideal. […]
Como, então, evidenciar as articulações de sentido do Absoluto através da multiplicidade dos símbolos? Tem-se em Cecília, como veremos, construções como a que segue: "bateu-me a palavra na boca,/ e depois no teu ouvido./ Levou somente a palavra,/ deixou ficar o sentido". Esse "sentido" pode se referir ao Absoluto, e está relacionado à outra interpretação de Platão, aquela a que Lovejoy denomina de "thisworldliness". Essa segunda linha de interpretação de Platão compreende um único mundo.("Canção", In Viagem).
Lovejoy defende que a correta interpretação de Platão é a "thisworldliness". Segundo Lovejoy, o mundo sensível nunca foi, para Platão, mera ilusão. Nada na diversidade da natureza é deixado de fora, tudo é simplesmente projetado em outro reino do ser onde cada elemento pode ser mais bem apreciado esteticamente, essa é a noção de "cadeia do ser". O que aparece é. Significa dizer também que não há nada a ser alcançado além do que já aparece, nada a ser feito (diferentemente da corrente que pretende encontrar algo para ser contemplado), portanto só se pode ser, ou, no máximo, e onde reside toda a dificuldade, relembrar que é. Nas palavras de Cecília Meireles: "só resta renunciar", renunciar para ser, ou ainda: "sem noção do mal nem do bem/ — jogo de pura geometria/ que eu pensei que se jogaria/ mas não se joga com ninguém" ("Despedida", In Viagem). Daí deriva a ideia de "plenitude", pois, com base nessa interpretação das ideias de Platão, o universo é completo (pleno), porque se constitui de uma diversidade máxima de formas, em que todas as formas possíveis tornam-se atuais.
Esse modo de ler Platão auxilia nas análises e interpretações dos poemas de Cecília compreendidos nos livros Viagem, Vaga Música e Mar Absoluto. Torna-se profícuo o suporte na interpretação "thisworldliness" de Lovejoy sobre Platão uma vez que, nos livros supracitados, não havendo uma identificação total do eu-lírico com o Absoluto, este pode ser apreendido nas formas do mundo natural, principalmente. Aqui, também, pode-se compreender um pouco a preferência de Cecília Meireles por temas desvinculados do quotidiano da cidade, pode-se vislumbrar uma leve explicação para o fato de a autora não se atrelar aos temas urbanos da poesia modernista que se consolidava contemporaneamente à sua obra: o urbano do modernista era já criação humana, não estando nem o eu-lírico ceciliano (representação do humano)identificado com o Absoluto, quem dirá as suas criações urbanísticas. O eu lírico da poesia de Cecília vê, portanto, na natureza a possibilidade de encontro com o divino Absoluto e, por isso talvez, a opção de não trabalhar com os temas urbanos. Nesse sentido, a ideia de "Cadeia do Ser" cabe para analisar os três primeiros livros da fase madura da autora, ou seja, é possível encontrar nos poemas desse período a presença no mundo natural de algo que reporta ao divino. […]
O termo "realidade transcendente" pode vir a causar enganos, dado o que se vem tentando formular aqui para as análises da poesia ceciliana na sua fase madura. Esse termo pode sugerir a ideia da existência de um mundo separado, portanto aqui se tenta demonstrar que, na segunda fase da poesia de Cecília Meireles, não há mais a ideia de um outro mundo a ser alcançado pelo eu lírico, mas o Absoluto pode ser identificado nos elementos deste mundo, como pela música, por exemplo. […]
A poesia de Cecília é, nesse sentido, predominantemente simbolista. Um dos modos de falar poeticamente do Absoluto (além do casamento místico) é utilizando-se de símbolos. A predominância mística exige que o referente dos símbolos utilizados na poesia de Cecília Meireles esteja nas religiões e filosofias. É calcando-se nisso que esta dissertação propõe como base teórica a Filosofia Perene no lugar de basear-se somente na própria crítica literária e nos símbolos utilizados por poetas anteriores. […]
Leodegário A. de Azevedo Filho mostra que temas como o amor desencontrado, solidão, desencanto, renúncia e indiferença são elementos estéticos constantes nesse livro (AZEVEDO FILHO, Leodegário A. Poesia e Estilo de Cecília Meireles. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970, p.62). Esse caminho, da desilusão à renúncia, da solidão à indiferença, é bem aquele constatado pela Filosofia Perene nas práticas que visam a preparar o sujeito para o encontro com o Absoluto. Nesse sentido, Vaga Música abre o caminho para que o navegador peregrino (serena desesperada) possa de facto, após eliminar seus desejos e completamente desiludido, mergulhar em Mar Absoluto e Outros Poemas. A fim de exemplificar a busca pela eliminação dos desejos em Vaga Música segue a análise:

Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
(Vaga Música, 2001, p. 237-239).

Note-se que todos os versos são octassílabos regulares. Leodegário A. de Azevedo Filho entende que na primeira estrofe há "nota inicial de desencanto" (AZEVEDO FILHO, 1970, p. 45). Todavia, apesar do aparente tom de desencanto, é o próprio eu-lírico que afunda o sonho no mar com as próprias mãos. Nesse sentido, e o que se comprova com o verso "Chorarei quanto for preciso", é ele mesmo que deseja afundar seu sonho, o ato é proposital.
O sonho, na primeira estrofe, pode ser lido como representação dos desejos. Ao colocá-lo em um navio e afundá-lo com as próprias mãos, o eu-lírico está se desvencilhando de seus desejos. Segundo o Vedantasara, a união amorosa do coração com o Absoluto (o casamento místico que vinha sendo representado na primeira fase) não é suficiente para que se chegue a Ele.
Para chegar ao Absoluto é necessário livrar-se do aspecto individual de nossa ignorância. Para realmente se chegar ao Absoluto é necessário passar por várias disciplinas, sendo algumas delas as seguintes (segundo Heirich Zimmer): aparigraha: renúncia a todas as posses que prendem ao mundo e ao ego, as quais constituem um obstáculo no caminho da meditação; santosa: contentamento com o que lhe acontece, equanimidade ante o conforto e o desconforto e a toda espécie de acontecimentos ; e tapas: indiferença com respeito aos extremos de calor e frio, dor e prazer, fome e sede, etc. As necessidades e desejos do corpo devem ser dominados, para que não distraiam a mente na sua busca pelo Absoluto (ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. Trad. Nilton Almeida Silva, Cláudia Giovani Bozza e participação de Adriana Facchini de Cesare. São Paulo: Palas Athena, 2008, p. 305).
Ainda se deve passar por mais obstáculos, sendo o terceiro deles chamado kasaya, que se refere ao apego aos objetos mundanos, paixão, emoção. Essa palavra é usada no Vedanta para expressar um estado de ânimo que impede aquele que quer alcançar o Absoluto de fazê-lo, porque a atividade de sua mente está voltada e perdida em suas paixões, gostos e desgostos. Assim, podemos entender o poema de Cecília Meireles como uma metáfora para o esvaziamento da própria mente.
Primeiro o eu-lírico livra-se dos desejos que, representados pelo sonho, podem referir-se aos desejos da mente, vontades abstratas. O eu-lírico os coloca no navio e os afoga no mar. O mar, aqui, pode representar a própria mente, ainda turbulenta, cheia de pensamentos. Depois, os desejos são simbolizados pelas mãos. Nesse caso pode-se pensar nas mãos como representação dos desejos materiais. As mãos abriram o mar para afogar o sonho, mas se sujaram com o azul das ondas. Leodegário A. de Azevedo Filho assinala que o azul, neste poema, pode ser lido como símbolo de inocência, ilusão e esperança. Nesse caso pode-se entender que a turbulência dos pensamentos, dos desejos, das ondas, contaminou as mãos, que agora pingam colorindo as areias antes desertas, ou seja, o azul seria mais representativo da ilusão que predomina na mente que se pretende esvaziar. Entretanto, enquanto isso, o sonho se afoga, no extremo esforço do eu-lírico para aniquilá-lo: "Chorarei quanto for preciso,/ para fazer com que o mar cresça,/ e o meu navio chegue ao fundo/ e o meu sonho desapareça". Fazer crescer o mar significa desapegar-se de pensamentos mundanos que devem ser deixados para traz a fim de não obstruir o caminho em direção ao Absoluto. O mar, que remete ao próprio pensamento, deve estar só e calmo.
Tendo desaparecido o sonho, tudo estará perfeito. Mas como o azul da ilusão contaminou as mãos é necessário quebrá-las. De mãos quebradas e olhos secos o eu-lírico finalmente estará pronto para ir a caminho do Absoluto. "Olhos secos" remete à morte, os vivos têm sempre olhos húmidos. Sob esse aspecto, retomamos a ideia de morte já presente nos escritos de Festa, ou seja, a morte como metáfora para o aniquilamento do ego.
Este poema pode ser lido como uma metáfora para a meditação, e pode ser comparado ao poema de Bashô, traduzido pela própria Cecília Meireles:

Velho tanque.
Uma rã mergulha.
Barulho da água.
(In. Escolha o seu sonho, 1974, p. 13).

No poema de Bashô, apesar da simplicidade, a ideia é bastante complexa. A água tem como caraterística ser velha e está há muito parada, contida em um recipiente com forma de réptil. Lembra-nos, então, que a Kundalini é representada pela figura da cobra.
Bashô, sendo praticante de Zen Budismo, provavelmente conhecia esse simbolismo. É a ascensão da Kundalini através dos chakras que leva à libertação, encontro com o Absoluto. Talvez a rã, em Bashô, represente a movimentação da Kundalini. O movimento ruidoso da rã permite reconhecer o transitório e o eterno, que não se antagonizam, e se unem num instante único.
São esses elementos que estão postos na poesia de Cecília Meireles. A consciência do eterno e o entendimento da multiplicidade: "Múltipla, venço/ este tormento/ do mundo eterno/ que em mim carrego:/ e, una, contemplo/ o jogo inquieto/ em que padeço." ("Auto Retrato", In Mar Absoluto e Outros Poemas).
Outro elemento que corrobora para que a água seja, neste poema, representativa do próprio pensamento é o fato de isto ter sido usado de modo mais explícito na poesia de Cecília Meireles, em "Medida da Significação", de Viagem. Ocorre no primeiro verso: "Procurei-me nesta água da minha memória/ que povoa todas as instâncias da vida". Aqui a memória é tratada como água e a água permeia tudo, como o Absoluto. Portanto, podemos entender que dentro de si mesmo o eu lírico procura a si própria na água que tudo permeia. É o entendimento de que o Absoluto, como a água, é a essência de tudo e de que, de algum modo, o eu-lírico está contido nisso, podendo encontrar-se ao encontrar o Absoluto.
Tanto o poema de Bashô quanto o de Cecília Meireles representam a meditação, mas em estágios diferentes. No de Bashô a água já está calma e os desejos superados. No poema de Cecília Meireles esse estado é alcançado apenas na última estrofe. O olho, caracterizado como pedra, representa a ausência de sofrimento e sentimento, a morte do próprio ego. As "mãos quebradas" são símbolo da eliminação dos desejos. As mãos quebradas não podem pegar nada, alguém de "mãos quebradas" não pode agarrar-se a nada. Assim, o eu-lírico vai em busca da perfeição "das águas calmas" Nesse sentido, a perfeição da mente está simbolizada pelo mar calmo, mãos quebradas e olhos de pedra, que significam a mente aquietada e vazia, a meditação profunda que permite chegar ao Absoluto num mergulho para dentro de si mesmo.

Cecília Meireles e os Símbolos do Absoluto, Camila Marchioro. Curitiba, UFP, 2014




Pus o meu sonho num navio - Canção de Cecília Meireles” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 17-07-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/07/pus-o-meu-sonho-num-navio-cecilia.html