domingo, 8 de maio de 2011

CINE-FICHA


A ARTE DE SER ESPECTADOR

 

Aparentemente, nada há de mais natural do que ser  espectador. Salvo se se for cego, parece que basta colocar-se no local apropriado, abrir os olhos e... ver. E, no entanto, as coisas são bem mais complicadas. Bastará pensar neste exemplo simples: não apreendemos todos as mesmas coisas, apesar de vermos possivelmente o mesmo. Além disso, a representação (no sentido da encenação e de re-presentação, de voltar a tornar presente) que o cinema é, pressupõe do seu espectador uma formação acerca dos seus códigos, das suas linguagens e dos seus contextos. E esta formação alarga e enriquece o acto de ver. Em conclusão, nada de menos natural do que ser espectador.

     

Manuel Pinto e António Santos, O Cinema e a Escola,

Cadernos PÚBLICO na Escola, 1996, p. 41.

   

   

Diante de um filme, há que ver e ouvir cada plano e cada sequência como unidades que se sucedem sem parar. Há que fixar-se em todos os detalhes que compõem um plano: como se movimentam as personagens que o preenchem e que expressões assumem; como evoluciona a câmara, se é que se movimenta, e o que é que nos mostra em cada momento; o que é que quer dizer quando se ergue por cima do olhar ou quando passa a focar um pormenor, seja um objecto ou um aspecto de um rosto; como intervêm a música ou os ruídos para definir o clima que se quer transmitir; como é que, graças à montagem, se passa a outra cena ou situação distinta e como se encadeiam numa linha narrativa contínua, etc.

    

Joaquim Romaguera y Ramió, El Lenguage Cinematográfico.

 

A CRÍTICA CINEMATOGRÁFICA

    

Que devemos esperar de uma crítica de cinema? Pela minha parte, poderia sintetizar a resposta em três pontos:

    

Em primeiro lugar, procuro que um crítico de cinema me leve a ver num filme um certo número de pontos e de aspectos que me tinham passado despercebidos; e, em última instância, que tenha  sobre a obra em questão uma perspectiva interpretativa original que me obrigue a repensar a minha própria experiência de espectador.

    

Gostaria também que o crítico fosse o agente de cultura, capaz de me situar o filme de que se ocupa no espaço contemporâneo da história, da política, da arte e do pensamento.

    

Por fim, gosto dos críticos que afirmam as suas paixões, que têm os “seus” autores, que são capazes de dialogar com eles e que, de certo modo, participam teoricamente no próprio processo de criação artística.

     

Eduardo Prado Coelho, Público, 13/03/1995.


Clique na imagem para ampliar numa nova janela: 

“A excepção e a regra”, crónica de Eduardo Prado Coelho
 para o suplemento Leituras do jornal Público.
Sábado, 18 de março de 1995, p. 12.

 

LEITURA CRÍTICA DE UM FILME

    

Mariolina Gamba, num artigo publicado na revista Cinema, no número 20, de Maio de 1992, propõe uma sequência de dez pontos para análise de um filme:

    

1.      Divisão do filme em episódios (sequências ou capítulos). Procura das cenas principais (a cena caracteriza-se por uma unidade ambiente).

    

2.      Individualização das personagens que aparecem no filme. (Entende-se por personagem todo o ser que tem uma acção individual no filme. Como tal, pode ser uma pessoa, um animal, uma coisa, um grupo).

     

3.      Individualização do protagonista (elemento central do filme a nível narrativo, à volta do qual se desenrola a história. Pode coincidir com uma personagem ou, em casos extremos, ser uma relação entre personagens).

     

4.      Conclusão da análise narrativa – o filme é a história de...

     

5.      Procura das características das personagens, das relações entre si e com a protagonista, com o fim de individualizar os aspectos técnicos do filme.

    

6.      Formulação do “tema” do filme, aquilo que o autor quis comunicar-nos através da obra.

        

7.      Reflexão sobre o conteúdo do filme. O tema central e outros eventuais temas serão válidos ou discutíveis? Consideração dos comportamentos das personagens e do protagonista.

         

8.      Reflexão sobre os aspectos linguísticos e estéticos (unidade do filme ou sua falta, uso da linguagem das imagens, interpretação dos actores, música, etc.). Consideração estética – como se exprime o tema central do filme e outros eventuais temas. Há harmonia no filme relativamente ao emprego dos diversos elementos da linguagem cinematográfica?

          

9.      Confronto entre o que o filme exprime e a própria experiência pessoal e social.

          

10.  Outras considerações julgadas oportunas (sociais, políticas. históricas. educativas...).

           

Manuel Pinto e António Santos, O Cinema e a Escola,

Cadernos PÚBLICO na Escola, 1996., p.74.

 

 

CINE-FICHA   (apreciação de filmes)

     

-       Título

-       Título original

-       Realizador

-       Argumentista

-       Género

-       País de origem

-       Data

-       Actores principais

-       Actores secundários

       

-       Contextualização histórica, política e social

-       Espaço(s) de acção

-       Breve síntese (“O filme é a história de...”)

-       Procura das características das personagens, das relações entre si e com a protagonista, com o fim de individualizar os aspectos técnicos do filme.

-       Formulação do “tema” do filme, aquilo que o autor quis comunicar-nos através da obra.

-       Reflexão sobre o conteúdo do filme. O tema central e outros eventuais temas serão válidos ou discutíveis? Consideração dos comportamentos das personagens e do protagonista.

-       Reflexão sobre os aspectos linguísticos e estéticos (unidade do filme ou sua falta, uso da linguagem das imagens, fotografia, música, caracterização e interpretação dos actores, guarda-roupa, etc.). Consideração estética – como se exprime o tema central do filme e outros eventuais temas. Há harmonia no filme relativamente ao emprego dos diversos elementos da linguagem cinematográfica?

-       Aspectos que mais apreciei

-       Aspectos que menos apreciei

-       Balanço crítico

 



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/05/08/cinema.aspx]

quinta-feira, 31 de março de 2011

MARIA MADALENA

       
    “Essa experiência me impregnou de uma fantasmagoria católica que eu não consigo abandonar. O castigo, a culpa, o pecado, a elegia da dor, quase como se o sofrimento e martírio fizessem de uma pessoa alguém melhor que Cristo. Isso é umabesteira. Por mais que você estude, viaje, leia, aprenda, você não consegue tirar isso do seu sangue, está impregnado.”
         
João Paulo Cuenca em entrevista ao jornal i 15/03/2011
                 
                            
                  
            
                                
Madalena penitente, versão do Hermitage, sem a cruz sobre as mãos, do escultor italiano Antonio Casanova (1757-1822).
Maria Madalena em êxtase (1606) Caravaggio
     
                     
  
...e lhe regou de lágrimas os pés e os
enxugou com os cabelos da sua cabeça.
        
Evangelho de S. Lucas.
          
    
    
Ó Madalena, ó cabelos de rastos,
Lírio poluído, branca flor inútil,
Meu coração, velha moeda fútil,
E sem relevo, os caracteres gastos,
       
De resignar-se torpemente dúctil,
Desespero, nudez de seios castos,
Quem também fosse, ó cabelos de rastos,
Ensanguentado, enxovalhado, inútil,
         
Dentro do peito, abominável cómico!
Morrer tranquilo, - o fastídio da cama.
Ó redenção do mármore anatómico,
           
Amargura, nudez de seios castos!...
Sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama,
Ó Madalena, ó cabelos de rastos!
     
Clepsidra, Camilo Pessanha (1867-1926)
    
   

    
Neste poema há duas linhas melódicas e de sentido: uma corresponde à alegria da libertação e purificação; a outra é de autopunição e culpa. Quer num quer noutro caso, o domínio é o do sagrado.
     
    
    
I
    
1. A Madalena da Bíblia é a mulher arrependida, redimida de uma vida de pecado.
                     
Atenta no esquema:
   

               
1.1. Faz um comentário à duplicidade desta figura.
2. Explica o simbolismo de: lírio, branca flor, moeda fútil, mármore anatómico.
3. Na Bíblia, o gesto de Madalena redimiu-a. Porque que é que o sujeito poético acha que tal gesto foi inútil?
4. O Poeta pretende identificar-se com Madalena. Porquê?
5. Madalena é o principal símbolo em volta do qual todo o poema gravita.
5.1. Explica o seu sentido.
6. O Poeta tenta recuperar Madalena antes do seu arrependimento. Porquê?
7. Qual o sentido global do texto?
    
(Aula Viva. Português A. 12º Ano, J. Guerra e J. Vieira. Porto Editora, 1999, p. 307)
    



II
    
1. O que inspira Madalena ao eu?
2. Faça o levantamento das expressões que designam Madalena. (Note a conjugação de contrários).
3. De que forma o sentido de «velha moeda fútil» aproxima Madalena do «coração» do eu?
4. Que verso nos remete para a ideia de que o «coração» aceita as máscaras que lhe são impostas?
5. Como se insere a morte no poema?
6. Só resta ao coração assumir-se. Que verso do último terceto nos dá essa ideia?
    
(Ser em Português 12 A. Coord. A. Veríssimo. Porto, Areal Editores, 1999, p. 190)

    
   
    
    
       


            
TEXTOS DE APOIO
           
A ideia de poluição, de queda moral, de mácula, reaparece noutro soneto onde sobressai uma figura feminina: “Ó Madalena, ó cabelos de rastos”.
Neste soneto, todas as imagens conduzem ao desespero, à amargura do sujeito poético, por se ver prostituído, autodesgostoso, penitenciando-se com o mesmo “Sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama” da figura bíblica que lhe serve de paralelo, visto que a evocada Madalena entrelaça-se metonimicamente a “meu coração”.
Sobre tal aproximação afirma José Carlos Pereira: “O homem decadentista, marcado de modo profundo pelo sentimento de Queda, reveste de sublimidade redentiva formas atribuíveis ao próprio universo da condenação — como se o homem superior se elevasse ao Absoluto por uma diferente vivência do Pecado do vulgo(PEREIRA, 1975, p. 41).
   
(Camilo Pessanha em dois temposGilda Santos e Izabela Leal, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, pp. 61-62)
        
          
*
        
         
O DISCURSO ANTICANÓNICO DE CAMILO PESSANHA
O poema possui uma sonoridade absolutamente rara, pressuposto de um poema simbolista. O ritmo dele parece respeitar a cadência clássica de língua portuguesa, no entanto, só é possível vê-la no primeiro verso quando juntamos a vogal final de “Madalena” com o invocativo “ó”, que aparecem separados por vírgula no poema, assim poderíamos ter um esquema rítmico no primeiro verso cambiante, ou ele segue o sáfico; ou aparece com um verso que ficaria troqueu, dátilo, dátilo, dátilo, dátilo e troqueu e fica hendecassílabo. No segundo verso, temos de juntar o hiato de “poluído” para termos um decassílabo, o que não é rotineiro em nosso idioma, mas, com tanto, constrói-se um verso sáfico, que predomina no poema.
Os versos que não adotam esse ritmo são todos os que se referem de maneira mais direta à Madalena: 1, 6, 7 e os dois últimos, considerando aqui que eles também podem ser sáficos a partir de adaptações na sonoridade. Apesar de num primeiro momento uma análise da sonoridade parecer descabida, ela será retomadaposteriormente para complementar a presença do grotesco como tema, construção elinguagem no poema.
A primeira estrofe é dividida pela vírgula em todos os versos, o que também produz um efeito sonoro de quebra, afinal toda a estrofe possui períodos nominais que se não dividem perfeitamente o ritmo do poema, dividem-no visualmente. As rimas -útil-ômico são difíceis em nosso idioma, sendo a segunda uma esdrúxula, rareza da língua portuguesa. Os constantes anacolutos constroem um sentido sonoro aos versos, como podemos observar logo no início, o que também interfere na construção imagética do interlocutor ao qual o eu lírico se refere.
Se o poema tem um motivo bíblico, como a própria didascália adaptada do Evangelho de São Lucas indica, a primeira estrofe é construída com uma sequência de invocações. Após o segundo verso, há uma quebra das invocativas do eu poemático à personagem bíblica e os dois últimos versos da estrofe quebram a semântica do texto. Assim sendo, já no início do poema temos uma quebra da lógica da língua portuguesa de manter a coerência sintática e semântica sobre o que se fala.
Pensando em Ferdinand de Saussure e seu Curso de linguística geral, as relações de sentido entre as palavras são estabelecidas pelo leitor, tal qual as relações associativas entre as mesmas. A fragmentação sintática e semântica do poema exige do leitor um conhecimento histórico e uma capacidade de abstração que dificultam a leitura do texto. O hermetismo da poesia de Pessanha, no entanto, permite ao leitor estabelecer relações simbólicas diversas.
A pessoa a quem a voz poemática se refere é Madalena. Com a didascália do Evangelho de São Lucas que o poema possui, torna-se óbvia a intertextualidade com a personagem bíblica. Os dois primeiros versos do poema são descrições de Madalena, no entanto, além do anacoluto e do assíndeto descritivo, a estranha construção, “cabelo de rastos”, aponta para as descrições contraditórias feitas no segundo verso: lírio poluído” e “branca flor inútil”. É curioso notar que o Evangelho de São Lucas não diz ser Madalena a mulher que arrasta seus cabelos e chora aos pés de Cristo.
O texto indica apenas ser uma mulher. A única referência que Lucas faz a Madalena é dizer que seu corpo possuía sete demônios. Assim, a santa carrega um arquétipo inverso ao de Maria virgem e mãe. No entanto, segundo os hebraicos antigos, os demónios são doenças, não pecados. Afora a problemática da interpretação bíblica, entende-se pelo primeiro verso do poema que, para Pessanha, quem arrasta os cabelos em Cristo é Madalena.
A simbologia de pureza e castidade que “lírio” e “branca flor” carregam é completamente desconstruída pelos adjetivos subsequentes. O paradoxo, figura estranha por si só, ressignifica a flor causando aquela mudança necessária que Baudelaire sugere à poesia moderna, que é a criação de novas alegorias. Além disso, um outro símbolo deve ser considerado aqui, o do cabelo. Inclusive, o poeta parece estabelecer uma hiperonímia entre Madalena (mulheres) e cabelo. Ainda que no Ocidente cristão o cabelo tenha uma significação vária, neste poema parece haver uma relação de intimidade:
Acredita-se que os cabelos, assim como as unhas e os membros de um ser humano, possuam o dom de conservar relações íntimas com esse ser, mesmo depois de separados do corpo. Simbolizam suas propriedades ao concentrar espiritualmente suas virtudes: permanecem unidos ao ser, através de um vínculo de simpatia. (CHEVALIER, Jean. e GHEERBRANT, Ajam. Op. Cit. p. 153.)
     
Madalena, então, carrega em si um paradoxo, pois é a flor, o lírio poluído. A união do irreconciliável é um elemento ligado ao grotesco de Wolfgang Kayser. A contradição, tanto em Kayser quanto em Bakhtin, é grotesca por si só. Madalena carrega simbolicamente em si a ambivalência do pecado e do arrependimento. Ainda na primeira estrofe, o poeta interrompe a descrição e insere em seu discurso o eu lírico metonimicamente representado no substantivo “coração”. A fragmentação de sentido que o poema adquire exige do leitor uma postura de associação dos dois temas abordados: os cabelos de rastos da mítica e bíblica Madalena, e a sensação do eu poemático, que através da intertextualidade é o arrependimento.
O símbolo de vida e/ou amor que geralmente se vincula ao coração está completamente desconstruído, afinal a comparação dele é feita com uma moeda, ambos “sem relevo” e “gastos”. Se a moeda é um símbolo de cobiça, uma nova alegoria recai sobre o eu lírico: a ductilidade material impingida ao coração no primeiro verso da segunda estrofe é uma resignação culposa: “E sem relevo, os caracteres gastos,/ De resignar-se torpemente dúctil...“
O período possui uma inventividade simbólica, estrutura elaborada através de um hipérbato que não pode ser desfeito. O verbo “resignar” com o pronome reflexivo “se” refere-se a “coração” ou a “moeda”, mas a quebra da sintaxe não nos dá tal certeza gramatical. O autor se utiliza de uma fragmentação de ideias no poema que proporciona ao leitor uma apreciação de pequenas partes atadas hermeticamente numa espécie de entendimento do todo do poema sem, no entanto, respeitar a sintaxe da língua. Outro aspeto que corrobora essa fragmentação na primeira estrofe é a divisão de todos os versos em dois sintagmas nominais que carregam em si o paradoxo, já referido acima.
Então, o experimentalismo linguístico não é uma falha coesiva, uma lacuna do poeta, mas subversão do analogismo do idioma. A língua abandona todas as suas subtilezas coesivas e parte para uma construção em que o dito é o essencial. Seja no som ou no sentido, não há mais preocupações com a lógica interna do idioma. A língua, então, faz-se subversão e abandonando seu analogismo toma-se grotesca no sentido de ser uma inversão dos paradigmas determinados pela gramática. Como explicar a essência do poema sem o signo Madalena? Por outro lado, como explicar a presença do signo no poema?
Não é correto pensarmos aqui em uma sugestão simbolista. A questão é que falta ao eu lírico palavras para expressar sua sensações. Para tanto, o uso de um ícone do arrependimento, a Madalena arrependida, ainda que incerta, pode representar imageticamente o que a lógica do idioma não consegue. Como se tivéssemos no poema um símbolo sonoro-ideogrâmico questionando a capacidade de uma língua analógica expressar conflituosos estados de interioridade. Ainda assim, a semântica da língua portuguesa também traz um indício de modernidade que é o estranhamento proporcionado pelas imagens, senão, como explicar “cabelos de rastos”?
“Cabelos arrastados” seria a saída mais lógica dentro do analogismo gramatical, mas podemos pensar também em “cabelos que deixam rastos” ou em “encabelar rastos” e ainda ‘encabelar arrastado”, enfim o que melhor explica a imagem é ela mesma, “cabelos de rastos”, numa hipálage que constrói um universo grotesco e aparece em outros sintagmas da primeira estrofe: “lírio poluído”, “branca flor inútil”, “coração, moeda fútil”. Apesar de ser uma figura semântica, a hipálage interfere numa espécie de sinestesia absoluta, em que as representações, em um sentido schopenhaueriano, são construídas apenas para a poesia. Cria-se uma poesia que só não é metafisica pura pelo fato de estar grafada, ou seja, existir enquanto signo e palavra.
A segunda estrofe do poema apresenta o primeiro verbo do poema que começa com um anacoluto. Além de estar acompanhado por um pronome reflexivo, “resignar” indica uma passividade que é construída também pelos termos posteriores: “torpemente” dúctil”. Há uma espécie de contemplação de Madalena, metonímia do arrependimento. Note-se que Madalena é também um espelho do eu poemático. Aliás, são os arquétipos que Madalena carrega em si que refletem à voz lírica o que ela é, a saber: arrependimento e arquétipo de pecado.
O poema trabalha com uma interessante ambiguidade que é a dureza da contemplação do arrependimento personificado, ou seja, o olhar que o eu lírico tem sobre Madalena é o mesmo desenvolvido ao longo dos séculos, condenatório, ou é uma visada de insensibilidade ao arrependimento dela e do próprio eu poemático. O campo semântico de “dúctil” possibilita essa segunda interpretação. Para o poema manter seu analogismo, a sequência poderia ficar: “Meu coração, velha moeda fútil, está com os caracteres gastos de resignar-se torpemente dúctil”.
Ainda assim, “De resignar-se torpemente dúctil” ganha uma função adverbial e “torpemente” possibilita esta dupla interpretação, afinal a torpeza da dureza do eu lírico se refere à contemplação do arrependimento, ou é o próprio fato de se arrepender? O advérbio geralmente modifica o verbo e o adjetivo completando-lhe o sentido, no entanto aqui, vemos que a operação é contrária — o advérbio ajuda a indefinir. Sendo esta característica simbolista-decadentista, podemos dizer que esse elemento da escola se faz presente aqui, todavia numa perspetiva que prenuncia a reinvenção gramatical da modernidade.
No segundo verso, o poema volta a ser dividido em duas instâncias e, no último verso, em três. Apesar de semelhante à primeira estrofe o verbo aparece mais uma vez no terceiro verso e formas verbais nominais aparecem na última estrofe. A divisão dos versos em duas partes segmenta-os. A relação se estabelece com os dois campos semânticos principais do poema, Madalena e o eu lírico. Em dois versos onde não ocorre esse fracionamento ocorre, cada um deles se dedica a um dos arrependidos: “De resignar-se torpemente dúctil...” se dirige ao eu lírico e “Ó redenção do mármore anatômico” a Madalena; além deles, há uma instância dividida em três parte ao final do poema que se refere a ambos os seres. No entanto, é necessário ressaltar, Madalena personifica o arrependimento e tudo no poema se dirige indiretamente a ela de maneira sugerida, fragmentária e incompleta.
Se Bakhtin indica que para haver grotesco é necessário um universo incompleto, neste poema ele se faz presente através da lacuna e da incompletude, seja ela gramatical ou semântica, apesar disso não tem nenhum vínculo com o realismo grotesco. No entanto, aproxima-se do grotesco romântico, teorizado por W. Kayser, que podemos entender aqui, tal qual Bakhtin, como moderno: “[...] em geral, podem-se distinguir duas linhas principais. A primeira é o grotesco modernista (...). Esse grotesco retoma (...) as tradições do grotesco romântico; atualmente se desenvolve sob a influência das várias correntes existencialistas. (BAKHTIN Mikhail. Op. Cit. p. 40.)
Já analisamos o grotesco pensado por Kayser como moderno anteriormente. Das suas características, a mais importante presente no poema é a fragmentação das imagens, da semântica da língua e da própria linguagem. A estranheza na receção de tal produção de linguagem cria um grotesco alheado, com regras próprias de conceção e destruição. Pessanha, cônscio de seu trabalho inovador, aniquila a lógica da linguagem e a reconstrói sob um novo viés, e é através da associação do recetor de elementos extratextuais que a obra ganha significado. Este é próprio ao poema e à Clepsidra. A escrita dos poemas é a demonstração de uma existência única, de um ser-em-si; e a obra, com todos os poemas formando pequenos universos particulares, é, também, uma coisa-em-si.
Se o que Maria Madalena representa para a cristandade é constantemente revisitado, o poema expressa um invocativo, “ó cabelo de rastos”, absolutamente imagético, sugestivo e metonimicamente grotesco, tal qual aparece no imaginário francês e em suas “madonas negras”, inspiradas pela reclusão da santa em uma caverna do país. Faz-se necessário um aparte: dadas a intelecção de Pessanha e a própria didascália do poema ser retirada da Bíblia, parece-nos óbvio que ele conhecia o episódio bíblico e sabia não ser Madalena a mulher a prantear os pés de Cristo.
Retomemos o aspeto sonoro do poema. Pessanha adota o verso clássico, mas sempre os subverte em seus poemas. A cesura não ocorre apenas na tonicidade das palavras, mas com sinais de pontuação e com a própria fragmentação discursiva. Franchetti destaca em “Imagens que passais...” enjambements violentos e a ordenação sintática por parataxe como elementos desestabilizadores da leitura do soneto. O mesmo ocorre aqui. A sonoridade contribui para a fragmentação da linguagem no poema. A busca por uma música poética rara permitiu a esta tornar-se grotesca à sensibilidade do leitor. A partir da análise que faz de outro soneto, Paulo Franchetti concorda com tal estranhamento:
Mas, de um ponto de vista tradicional, é mesmo um momento de quebra, em que o ritmo expressivo se impõe, com flagrante desrespeito à convenção métrica. O verso seguinte, entrecortado sintaticamente, não representa um problema, do ponto de vista do metro, mas o último embora mantendo-se dentro dos limites silábicos,sintetiza todo o estranhamento que marca esse soneto, ao apresentar uma acentuação completamente estranha aos esquemas tradicionais, e que dá ao verso um andamento algo grotesco e bastante inusual.” (Nostalgia, exílio e melancolia: leituras de Camilo Pessanha, Paulo Elias Allane Franchetti, São Paulo, Edusp, 2001, p. 43)

Além da estranheza sonora do poema, os dois tercetos estão recheados de imagens estranhas. A parataxe impossibilita a definição de um sujeito para as frases, porisso tudo se direciona ao eu poemático e/ou a Madalena. Por aproximação semântica,entende-se que é o “Meu coração” que está “Dentro do peito”. Ainda assim, o que é“abominável cômico”? Afora o paradoxo inerente à expressão, seria a espetacularizaçãodo arrependimento? Ou o próprio arrependimento de um coração dúctil? A resposta,como não poderia deixar de ser, é absolutamente fragmentária. “Amargura” se aproxima visual e semanticamente do Desespero” que aparece na segunda estrofe.
O poema permite uma remontagem plástica em que o leitor, apesar de não ver nenhum trabalho visual diferenciado com a estrutura do poema, pode remontar o texto através de uma aproximação de palavras. Teríamos assim, alguns termos diretamente ligados a Madalena, sendo ela a personagem bíblica, ou um monumento artístico; e palavras ligadas ao campo semântico do próprio eu poemático. Algumas expressões, obviamente, associam-se a ambos. Assim, temos:
        

Madalena

     

Eu lírico (“Meu coração”)

   

“Cabelo de rastos”, “Lírio poluído’, “Branca flor inútil”

“Velha moeda fútil”, “sem relevo”, “os caracteres gastos”,

 

“De resignar-se torpemente dúctil”

 

“Nudez de seios castos”

 

“Desespero”

“Ensanguentado, enxovalhado, inútil,”

 

“Ó redenção do mármore anatômico”

 

“Dentro do peito”, “abominável cômico!”

“Nudez de seios castos”

 

“Amargura,”

“Sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama”

 


As expressões foram divididas para demonstrar a quem parecem se referir no poema. Então, ou o poema é um complexo palíndromo ou trabalha de maneira sul generis a escrita ideogrâmica em língua portuguesa. Se lermos o poema de maneira diferente, sempre assomando a cada lado da tabela as expressões que servem para ambas, temos uma possibilidade de leitura. A experiência grotesca da modernidade de fragmentar o texto para reconstruí-lo é absolutamente pertinente neste caso.
A última expressão colocada na tabela, “Sangrar, poluir-se, ir de rastos na lama”, é o penúltimo verso do poema. Ele parece ser o ponto de intersecção entre o eu lírico e Madalena, tanto no que diz respeito a uma humilhação absoluta, quanto no que tange ao arrependimento. Se ao final do poema, paira uma atmosfera de humilhação àpersona lírica, o rebaixamento (lágrimas de arrependimento) corrobora a forma como amulher aparece na Bíblia: para a pecadora ter direito ao perdão quando reconhece ofilho de Deus, ela deve se arrepender e/ou humilhar.
Para corroborar a ideia de um ciclo, de uma poética do oroboro, o verso que encerra o poema é também o que o inicia, O oroboro é a serpente egípcia que circunda um ovo e morde a própria cauda como símbolo da criação do universo. O poema, além de criar seu universo semântico-linguístico próprio, também sugere com tal estrutura o eterno retorno do mesmo de Nietzsche. Seu aforismo de número 56 em Além do bem e do mal, é autoexplicativo:
Quem, como eu, impelido por um afã misterioso, se esforçou em pensar o pessimismo até o fundo, e libertá-lo da estreiteza e singeleza meio cristã, meio alemã, com que ele afinal se apresentou neste século, na forma da filosofia schopenhaueriana; quem verdadeiramente, com uma visão asiática e mais-que asiática, penetrou o interior e a profundeza daquele que mais nega o mundo, entre todos os possíveis modos de pensar — além do bem e do mal, e não mais, como Buda e Schopenhauer, no fascínio e declínio da moral —, talvez esse alguém, sem que o quisesse realmente, tenha aberto os olhos para o ideal contrário: o ideal do homem mais exuberante, mais vivo e mais afirmador do mundo, que não só aprendeu a se resignar e suportar tudo o que existiu e é, mas deseja tê-lo novamente, tal como existiu e é, por toda a eternidade, gritando incessantemente “da capo” [do início], não apenas para si mesmo, mas para a peça e o espetáculo inteiro, e não apenas para um espetáculo, mas no fundo para aquele que necessita justamente desse espetáculo — e o faz necessário: porque sempre necessita outra vez de si mesmo — e se faz necessário — Como? E isso não seria circulus vitiosus deus [deus como círculo vicioso]? (NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro. 2ª edição. Trad. De Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2003. p. 59)
      
O poema, um ato estético em si, produz uma linguagem outra, não referendada pelo cânone, ou seja, todas as pequenas subversões feitas por Camilo Pessanha indicam uma poética de linguagem grotesca em sua obra. Neste poema, a sonoridade, a imagem estranha de uma personagem bíblica famosa, os anacolutos, os paradoxos, as lacunas discursivas e a metonímia formam uma linguagem que apenas subverte o bom tom sintático semântico para construir algo novo e raro, artístico, e a beleza dessa nova construção está em todas estas estranhezas, o que forma um grotesco lacunar, um indizível sobre o dito, um estranhamento gerador de incompletude.
Em uma perspetiva diferente, mas não completamente afastada dessa ótica construtiva, este poema parece-nos um típico exemplo de poésie pure:
Talvez Mallarmé não fizesse literalmente suas as seguintes palavras: um belo verso sem significado é mais valioso do que um menos belo com significado”; ele não acreditava, de facto, na renúncia a todo o conteúdo intelectual em poesia, mas exigia que o poeta renunciasse a despertar emoções e paixões, bem como ao uso de motivos extra-estéticos, práticos e racionais. [...] para que um poema nos proporcione prazer, não é necessário ou, pelo menos, não ë suficiente apreender seu significado racional; com efeito, como mostra a poesia popular, é inteiramente desnecessário que o poema em si tenha um significado” exato. (HAUSER, Arnold.História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.927)
    
Ainda que Bakhtin não caiba como referencial para a análise deste poema, a expressão “quintessência da incompletude”, cunhada pelo russo, é perfeita para exprimir a presença do grotesco na linguagem desse texto.
    
      
     

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Madalena – História e Mito, Helena Barbas, Lisboa, Ésquilo Edições e Multimedia, 2008.
   
Livro resultante da tese de doutoramento “Imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas ‑ a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses” (Fevereiro de 2003), cujo índice é apresentado a seguir, incluindo um atalho para a respectiva Antologia:
    
I - Construção de uma personagem: Maria Madalena
   
    1. A invenção de uma hagiografia  
        1.1  A Legenda Aurea
        1.2  O Flos Sanctorum de 1513
    2. A constelação dos afectos
        2.1  Os evangelhos canónicos
        2.2  Contribuições apócrifas
        2.3  Heranças bíblicas e pagãs
    3. Amplificações heréticas
        3.1  O evangelho de Maria Madalena
              3.1.1  O andrógino
    4. Outras sobrevivências medievais
        4.1  Um exemplo do folclore
    5. Individualização e identidade
        5.1  A biografia imaginária
        5.2  A cristalização de uma imagem-tipo
              5.2.1  Iconografia e retórica
    6. Imagens da imagem
        6.1  Do estatismo à acção
              6.1.2  Madalena «à icona»
              6.1.3  Madalena teatral: de penitente a castelã
        6.2  «Oo Magdalena que andaste ao sancto sepulcro»
   
II - Metamorfoses: do sagrado ao profano
   
    1. A(s) querela(s) da identidade
        1.1  O argumento da fidelidade histórica
              1.1.2  Repercussões em Portugal
    2.  Penitência, demanda e lágrimas - I
          2.1  Do amor sagrado ao profano
    3.  O Concílio de Trento
         3.1  Madalena e Trento: a atomização da personagem
                3.1.1  A pintura - mudanças no corpo e nos gestos
                3.1.2  Dos gestos à Vida: a lenda reformada
                3.1.3  De castelã às Vaidades do Mundo - do teatro à ópera
                3.1.4  Da contemplação à Melancolia: as lágrimas
         3.2  O concílio em Portugal
    4.  Penitência, demanda e lágrimas - II
         4.1  Sobrevivências: Madalena grão mestra do amor
         4.2  Mísera e mesquinha - Madalena épica
               4.2.1  Conversão e lágrimas
               4.2.2  Tratado da Maravilhosa Conversão
         4.3  «Lágrimas com fezes de pecado» - Os sermões de Vieira
         4.4  Madalena lavadeira - as paródias
               4.4.1  A paródia aos gestos
               4.4.2  O burlesco
               4.4.3  A paródia pelas palavras
    5.  Penitência demanda e lágrimas - III
         5.1  Da lenda reformada à literatura edificante
         5.2  A fénix da lascívia
    6.  Madalena mulher fatal
   
III - Conclusão: O regresso de Madalena no séc. XX
     1.  Madalena em Portugal: a bruxa branca
      2.  Madalena Negra e pulverizada
          2.1 A reescrita de ecos antigos
   
          
           
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/03/31/madalena.aspx]



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"Jesus e as prostitutas", crónica de Frederico Lourenço:

Voltando à eterna questão «cristão e gay, uma equação difícil de resolver» a que fiz brevemente alusão a propósito do homossexual casado com um homem que foi impedido de ser padrinho de crisma por um padre que leva à letra a letra da doutrina cristã sobre a homossexualidade (Romanos 1:26-32; 1 Coríntios 6:10), gostaria de focar agora um aspecto curioso que, na minha qualidade de gay ex-católico, que toda a vida dialogou com entusiasmo (e dialoga ainda) com cristãos de todas as denominações, me chama a atenção há muitos anos.

Não falo agora de diálogos com cristãos como o padre literalista que recusou aceitar como padrinho de crisma alguém que, na opinião dele, não levava uma vida consentânea com a fé cristã. Falo, antes, dos muitos diálogos que tenho tido com cristãos progressistas, com padres católicos de espírito arejado e aberto (felizmente eles não faltam «no terreno»), com protestantes eclesiásticos e laicos.

Um tema que vem sempre à baila é, em primeiro lugar, a questão de a mensagem de Jesus ser «Deus é amor» (frase que nunca é atribuída no Novo Testamento a Jesus, mas que não é impossível que ele realmente tenha dito; cf. 1 João 4:8); outra questão é a pretensa amizade e solidariedade de Jesus com profissionais do sexo: com prostitutas.

Já ouvi muitas vezes as pessoas dizerem-me com a melhor das intenções, «se Jesus conviveu com prostitutas e as perdoou e disse que elas entravam à frente dos sumo-sacerdotes no reino de Deus, também teria a mesma atitude em relação aos gays».

Bom, não vou comentar a facilidade com que ocorre à mente de certos cristãos a equivalência «gay ~ puta», mas vou comentar a ideia fantasiosa do excelente relacionamento que as pessoas projectam na pessoa de Jesus face às prostitutas. É uma ilusão.

Se lermos todas as frases que são atribuídas a Jesus pelos evangelistas, vemos que ele pronuncia a palavra «prostituta» apenas três vezes, sendo que a terceira é em discurso indirecto, quando pela boca de Jesus ouvimos o irmão do Filho Pródigo a acusá-lo de ter torrado o dinheiro do pai com prostitutas (Lucas 15:30). De resto, Jesus só fala em prostitutas em duas frases consecutivas do Evangelho de Mateus: 21:31 e 21:32.

Em Mateus 21:31, o contexto é uma discussão de Jesus com os sumo-sacerdotes e anciãos sobre o homem que tinha dois filhos. A um deu uma ordem a que o filho obedeceu primeiramente, mas depois desistiu dela; ao outro, deu uma ordem a que o filho desobedeceu, mas à qual ele depois decidiu obedecer. Jesus pergunta aos sumo-sacerdotes: qual dos dois filhos fez a vontade do pai, o primeiro ou o segundo? A resposta deles é: «o primeiro». É face a esta resposta, que valoriza o comportamento de alguém que deu a aparência de obedecer ao pai mas cuja obediência não passou de fachada hipócrita, que Jesus exclama: «Amém vos digo que os cobradores de impostos e as prostitutas entram antes de vós no reino de Deus».

A frase parece maravilhosa, porque dá a entender que as prostitutas entrarão no reino de Deus. Mas não é essa a única interpretação possível da frase. O que Jesus está a dizer também se presta a ser interpretado como uma condição impossível, análoga à frase «no dia de São Nunca à tarde». O que ele parece estar a dizer aos sumo-sacerdotes é que, para eles entrarem no reino de Deus, teriam primeiro de entrar os cobradores de impostos (!!) e as prostitutas (!!!).

No versículo seguinte (Mateus 21:32), Jesus critica os mesmos sumo-sacerdotes por não terem acreditado em João Baptista, quando (diz Ele) até os cobradores de impostos e as prostitutas acreditaram. Mais uma vez, o uso do termo «prostitutas» parece funcionar mais para fustigar e humilhar os sumo-sacerdotes do que para dar uma imagem reabilitável das prostitutas. «Vocês são piores do que prostitutas!» é uma interpretação válida das duas únicas frases em que Jesus fala em profissionais do sexo. Porque, na realidade, Ele está é a falar dos sumo-sacerdotes.

Agora: onde é que se foi buscar a ideia de que Jesus convivia com prostitutas e as aceitava ao ponto de, por indução «lógica», se extrapolar para a probabilidade de ele poder ter tido a mesma atitude em relação aos gays (e volto a não comentar a equação, que salta à vista de tantos cristãos, «gay ~ puta»)?

Muitas pessoas parecem pensar que Maria Madalena era uma prostituta que Jesus acolheu como discípula; mas isso nunca é dito em nenhuma frase do Novo Testamento. Também a «mulher pecadora» («gunê hamartôlós») de Lucas 7:36-50, que lava os pés de Jesus e os seca com os seus cabelos, é muitas vezes vista como prostituta; mas isso, mais uma vez, não está no texto. O que Jesus diz de concreto sobre a vida passada desta mulher é que ela «amou muito» («êgápêsen polú»). Não me parece que isso seja um eufemismo para «prostituiu-se muito» (até porque, em linguagem bíblica, quando é isso que está a ser dito, é dito com todas as letras: basta ler as versões gregas de Oseias e de Ezequiel).

Talvez a mulher que seca os pés de Jesus com os seus cabelos tenha sido uma mulher que AMOU mais do que um homem – como a Samaritana, ou a Mulher Adúltera, do Evangelho de João. De nenhuma delas se diz no Novo Testamento que eram prostitutas. «Amaram muito». Talvez demais. Mas isso é outra coisa. Não é prostituição.

Na verdade, das quatro vezes que Jesus pronuncia a palavra «prostituição» (Mateus 5:32; 15:19; 19:9; Marcos 7:21), a conotação é fortemente negativa. Em dois casos constitui motivo de divórcio: é a única justificação para o divórcio, aliás, coisa em relação à qual Jesus é tão taxativamente reprovador nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas (mas não no de João, evangelho em que o tema do divórcio está ausente).

Em jeito de conclusão: a tod@s @s amig@s homossexuais, aconselho que, da próxima vez que vos disserem que Jesus vos aceita porque «aceitava as prostitutas», por favor recomendem aos vossos interlocutores que leiam o Novo Testamento.


(na imagem: o quadro de Anton Mengs de Jesus ressuscitado
 com Maria Madalena – QUE NÃO ERA UMA PROSTITUTA).

Frederico Lourenço, 2017-06-06
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