sexta-feira, 14 de junho de 2013

O PRETO NO BRANCO (Rui Knopfli)

            
 
    
        
      
PRETO NO BRANCO

Da granada deflagrada no meio
de nós, do fosso aberto, da vala
intransponível, não nos cabe
a culpa, embora a tua mão,
armada pelo meu silêncio,
lhe tenha retirado a espoleta.
De um lado o teu dedo indicador,
de outro a minha assumida neutralidade.
Entre os dois, ocupando o espaço
que vai do teu dedo acusador
à minha mudez feita de medo e simpatia,
tudo quanto não quisemos, nem urdimos,
tudo quanto a medonha zombaria
de ódios estranhos escreve a sangue
e, irredutivelmente, nos separa e distancia.
Tudo quanto há-de gravar o meu nome
numa das balas da tua cartucheira.
Nessa bala hipotética, nessa bala possível
que se vier, quando vier (ela há-de vir)
melhor dirá o que aqui fica por dizer.
          
Rui Knopfli, Mangas Verdes com Sal, 1969
                


ANÁLISE LITERÁRIA
         
É um facto: a guerra colonial praticamente não tem projeção ao nível da melhor poesia de língua portuguesa. Salvam-se alguns (poucos) poemas avulsos, mas o resto não passa de panfleto ou retórica de circunstância. Porque a geração que fez a guerra entreteve-se quase só com uma de duas coisas: pirotecnia verbal ou balada de agit-prop. E a que se lhe seguiu, tendo por meta devolver o real à poesia, escolheu trocar o devir histórico pela deriva dos afetos. Isto tem um ónus, qual seja o de isolar «O Preto no Branco», de Rui Knopfli, como modelo dessa grande poesia a haver.
Logo em 1959, quando publica o primeiro livro ‑ O País dos Outros ‑o autor fixa sem qualquer espécie de ambiguidade a condição do estrangeiro, aquele que escreve no país dos outros, reiterado Leitmotiv de uma obra que atinge mais alto conseguimento nas quatro sequências de Mangas Verdes com Sal (1969), essas que fecham o ciclo que antecede a borrasca imperial. Mas no Moçambique de 1959, distante e glittering, a exatidão do pronome não perturbou a paz dos greens. Ia ser preciso esperar pela brutal investida da UPA, em Angola, para que a perplexidade começasse a fazer-se sentir. E quando, em Setembro de 1964, a luta independentista irrompe nas picadas do Niassa, Knopfli faz o epitáfio da colonização: «Da granada deflagrada no meio / de nós, do fosso aberto, da vala / intransponível, não nos cabe / a culpa, embora a tua mão, / armada pelo meu silêncio, / lhe tenha retirado a espoleta.»(vv. 1-6) Não é já o jogo do aparente não-dito. Agora, o poema range com a evidência do desastre, e Knopfli, um filho da burguesia fundadora, interpela abertamente os herdeiros de Caliban, num misto de espanto e simpatia que desorientará todos os lados da contenda. Ultrapassado o tom premonitório e disfórico dos poemas mais antigos - ‑ «Para nós, todavia, / o tempo é de […] lâminas em cuja brancura / se adivinha já um indício / do nosso sangue», cf. Certidão de Óbito, in Máquina de Areia, 1964 ‑, Knopfli parece resignado a concluir que «não nos cabe / a culpa» (vv. 3-4), mas nem por isso deixa de arrogar o seu quinhão: foi a tua mão que retirou a espoleta, mas foi o meu silêncio que armou a tua mão. E desse modo o poema instaura como nenhum outro o discurso da desocupação colonial: «De um lado o teu dedo indicador, / de outro a minha assumida neutralidade.» (vv. 7 -8) Autêntico balde de água fria na tradição de resistência dos pied noir (qualidade de que o autor se não exonerava), os versos dizem a dilaceração do poeta face aos solavancos da História: «Entre os dois, ocupando o espaço que vai do teu dedo acusador / à minha mudez [...] tudo quanto não quisemos, nem urdimos […]». (vv. 9-12) Foi como se uma onda de choque tivesse percorrido os vários tabuleiros do establisbment. AfinaI, aquela mudez, «feita de medo e simpatia» (v. 11), calava a «medonha zombaria / de ódios estranhos» (vv. 13-14), esses que escrevem a sangue tudo quanto, «irredutivelmente, nos separa e distancia.» (v. 15) O calafrio foi indisfarçável. E podemos hoje avaliar as óbvias dificuldades de um discurso como este, em 1969 – data de publicação, o poema procede de vários anos ­, época de dentes cerrados à questão ultramarina e de sectária afirmação da doxa estruturalista. Ao regime, fosse qual fosse o ângulo de visão, o que menos interessava era o modo profético do autor, muito próximo daquilo a que Ovídio chamou o último adeus. Mais do que simples contrariedade, o ponto de vista de quem assim se intrometia no sistema de valores (ideológico semântico) também baralhava os dispositivos de leitura da crítica então dominante.
A incomodidade acentua-se nos decisivos cinco versos finais: «Tudo quanto há-de gravar o meu nome numa das balas da tua cartucheira. / Nessa bala hipotética, nessa bala possível / que se vier, quando vier (ela há-devir) // melhor dirá o que aqui fica por dizer.» (vv. 16-20) Narrador autodiegético por excelência, Knopfli antecipa o futuro de pólvora e fogo que dele fará o epítome do poeta déraciné. Abrindo o futuro da História ao presente do poema, um verso como «Tudo quanto há-de gravar o meu nome» (v. 16) instala a certeza dessa «bala hipotética […] que se vier […] melhor dirá o que aqui fica por dizer.» (vv. 18-20) É também o modo de sinalizar a organização do tempo no corpo do texto: o último verso é o proémio do conflito. Apanhado na vertigem dos acontecimentos, resta ao poeta dar testemunho da sua irresolução. O apocalipse assim anunciado enformaria toda a obra subsequente: «A História que há-de ler-se é por mim escrita. / Anonimato igual nos cobrirá. A estas palavras não.» (cf. Proposição, in Escriba Acocorado, 1978). Oscilando entre passado, presente e futuro, «O Preto no Branco» mais não é que o primitivo eco dessa memória.
Eduardo Pitta
Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX

Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra
Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.
                  

PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER

Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Rui Knopfli, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/Lit-Afric-de-Ling-Port/Lit-Mocambicana/Knopfli, 2020 (3.ª edição).

           


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/06/14/o.preto.no.branco.knopfli.aspx]

quinta-feira, 13 de junho de 2013

NUM SONHO TODO FEITO DE INCERTEZA (Antero De Quental)


          


À VIRGEM SANTÍSSIMA

Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia.

Num sonho todo feito de incerteza, 
De nocturna e indizível ansiedade, 
É que eu vi teu olhar de piedade 
E (mais que piedade) de tristeza... 

Não era o vulgar brilho da beleza, 
Nem o ardor banal da mocidade... 
Era outra luz, era outra suavidade, 
Que até nem sei se as há na natureza... 

Um místico sofrer... uma ventura 
Feita só do perdão, só ternura 
E da paz da nossa hora derradeira... 

Ó visão, visão triste e piedosa! 
Fita-me assim calada, assim chorosa.
E deixa-me sonhar a vida inteira!
             
Antero de Quental
             


LINHAS DE LEITURA
      
• Mostrar que muito mais do que retratar Virgem Santíssima poeta reconstrói uma visão.
• Confrontar os atributos apresentados com os atributos tradicionalmente indicados aNossa Senhora.
• O sonho e a realidade são duas realidades antinómicas que perpassam muitos dos sonetos de Antero. Apontar causas dessa antinomia.
• Mostrar como o sentido dos 1º e 2º versos está repetido, embora de outra forma, no último verso.
• Salientar a importância do verbo ver dos olhos.
• Inserir o texto na evolução poética psicológica do poeta.
        
João Guerra e José Vieira, Aula Viva – Português A. 12º Ano, 1º vol, Porto Editora, 1999.
             

A REAÇÃO AO PESSIMISMO
           
Passaram anos em que não vi Antero, instalado então em Vila do Conde. Sabia que o meu amigo estava quase são, quase sereno. Mas foi uma preciosa surpresa, quando, ao fim dessa separação, chegando ao Porto e correndo com Oliveira Martins a Vila do Conde, avistei na estação um Antero gordo, róseo, reflorido, com as lapelas do casaco de alpaca atiradas para trás galhardamente, meneando na mão grossa bengala da índia que em Lisboa eu lhe dera para amparar a tristeza e a fadiga. Era uma regressão, quase o antigo Antero coimbrão, mais amadurecido, mais doce: ‑ apenas, no lugar da fulva grenha flamejante romântica, alvejava um sereno começo de calva socrática. Era sobretudo uma restauração moral, à velha maneira de Lázaro uma miraculosa saída do túmulo pessimista das sombras da negação. Findara luta implacável, seu grande coração, enfim, descansava em paz!
Como chegara Antero esse repouso apetecido? Escutando com uma atenção mais grave, mais crente, aquela voz da Consciência, que tanto tempo desconhecera, eque apesar de todos os desenganos sempre em segredo protesta e afirma o Bem.
Fora atendendo reverentemente essa doce voz; conseguindo, por um desesperado esforço do pensamento, penetrar sua significação; refazendo, guiado por ela, sua educação filosófica; procurando depois sua confirmação na história, nas doutrinas dos moralistas, nas confissões dos místicos, que ele chegara descobrir, acompreender bem fim último verdadeiro de tudo, não só do homem moral, mas de toda Natureza, mesmo na sua modalidade física. E essa descoberta é de inefável beleza contentamento ‑ pois que fim de tudo é Bem! O Universo tem por fim osupremo Bem ‑ Bem é o momento final augusto de toda evolução do Universo.
Possuía pois Antero, enfim, "sua filosofia", essa filosofia que ele tantos anos perseguira como deusa esquiva entre selvas duvidosas. […] E lei moral dessa filosofia […] consistia em renunciar tudo quanto limita escraviza espírito ‑ egoísmo, paixões, vaidades, ambições, contingências, materialidades do mundo, ‑em procurar a união do espírito, assim libertado e limpo de todo o pesado lodo terreno, com o seu tipo de perfeição que usualmente se chama "Deus".
Eça de Queirós, "Um Génio Que Era Um Santo",
in 
Notas Contemporâneaspp. 273-274, Edição "Livros do Brasil"
          

   SUGESTÃO DE LEITURA:

à Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/06/13/a.virgem.santissima.aspx]

quarta-feira, 12 de junho de 2013

POEMA DE UMA VIAGEM AO PORTO E DE UMA PARTIDA PARA A BÉLGICA (Vitorino Nemésio)


            
POEMA DE UMA VIAGEM AO PORTO E DE UMA PARTIDA PARA A BÉLGICA
                
As filhas do filho ‑ e o Mundo largamente a elas.
Do Porto, a um céu de banho (o inverno desdourou folha e vinho),
Vai, molhada e rodada, a fita do caminho.
Com essa cor nos pneus, as três ao colo, abalam.
Um sonho ainda, homem avô! e a porta bate,
Bate o destino, o relógio dos Clérigos, o peito,
E mil gotas na chuva podem passar por lágrimas.
Quando voltas, amor que as fez e mas separas,
Filho e mulher do filho pai dos quatro e meu?
Que um filho de homem velho é pai do seu cansaço,
Mão na sua testa tornada ao silêncio e ruga nova:
O caminho que vai sulca o seu coração.
Tão simples, um seguir pela direita e ser testa de ventos!
Volante é o velho que vê voar o que lhe pesa e a noite,
Corpo que tem consigo para durar e dizer.
Como uma estrada é o nosso ser de agora, logo e ontem,
Pedra aberta ao que transe e luze e desaparece:
A cidade nocturna enfia no Douro algumas pérolas,
A ponte que separa vibra, e a água do rio a estrada esquece.
Ó nossa vida, quanto? ‑ um lanço ainda, e a via vai
Como a quadriga a quatro e a oitenta à hora (um sopro a cruza);
Desdobram-se nos vales as árvores; aldeias sem gente lembram o que em suas casas seríamos:
Sossego, lenha, um pouco de tudo e a paz por nada.
Mas não, que já no vento um carro desenhou
Meninas de capuz, sacos e servas (Meu Amor diz um bibe).
Nossa saudade é o antes por agora
Que tudo se suspende e a pausa pesa
Mais que o mundo no adeus.
Se um fogo pega nas palavras que nos ficam,
Ah! não é de lareira a chama do chamado!
Um leve ardor de esperar o regresso nas pombas
Talvez desse vagar e viga à casa vaga.
Mas que faremos nós da chuva contrário ao acalento?
Ao separado e cerce, que aspas achar senão os braços
Nus e caídos sem o peso das meninas?

Deus! tu nisto estás como o horário no incerto,
O que envolve no envolto (e os coelhos se espantam nos faróis).
Nosso ir-sempre é que rasga a lonjura da esperança:
Humidade no chão, um pouco de sangue nos transforma;
Só na casa, à chegada, o cuidado de frente se fez pó.

Se me ficar da vida o tê-la certa noutros,
Como a brasa que passa ao pinhal o clarão,
Fica-me muito: à morte compareço
Pálido do sangue adiante, aonde eles já vão.
É só esse o poema que mereço
Pelos muitos que fez a minha mão.
            
Vitorino Nemésio, 25-11-1960
Canto de Véspera1966.
        

As pontes que separam vibram. O que, simultaneamente, aproxima e distancia aquele que se sabe passageiro daquilo que vai passando provoca uma íntima vibração, que é este poema, este canto de véspera em Canto de Vésperaquando o anúncio da noite, daquela, do ano e da vida, se torna uma presença a pedir voz. Ouve-se assim o lamento e a celebração do transir na vida e da vida, pela voz do que, enquanto e porque tudo passa, fica suspenso na despedida e nessa suspensão do tempo suporta, comovidamente, o peso do mundo. Mas esta é uma sustentação que, ao embate da porta que se fecha, se funda no abalamento com o abalo das meninas, no estremecimento das horas, na agitação do e no caminho, no balanço do mundo, no tremor do coração, na pulsação do sangue. Vibram as pontes que separam.
[…] Se, por um lado, esses dois caminhos se dirigem para direcções opostas, na evidência da separação a que o tempo obriga, por outro, essa linearidade divergente acaba por ser revertida: é a linha que leva as meninas que sulca, fecundando-o, o coração, abrindo nova ruga (vv. 10-11), mas com esse mesmo traço aí se inscreve, cumprindo-se, desta forma, o regresso desejado. […] É o «ir-sempre» que «rasga a lonjura da esperança» e com esse rasgo, também sulco, ao mesmo tempo se desfaz uma distância, a do que é futuro, e se cava ainda mais uma outra, a daquilo que é esperado, o regresso das meninas.
Nesse «ir-sempre» que é a viagem e que é a vida, a casa é o símbolo por excelência da desejada permanência no mundo. É nas casas entrevistas que se idealiza uma aurea mediocritas apaziguante (vv. 23-24). Nas estradas cruzadas pelo vento (vv. 13, 21, 24), o homem que passa é ele mesmo «volante» (v. 14), vai naquilo que lhe vai, evanescente. O que lhe restam são palavras em que, se incendiadas, se reconhece um acendimento de cuja inflamação o próprio não é responsável: «Se um fogo pega nas palavras que nos ficam, Ah! não é de lareira a chama do chamado!». E o fogo ateia o que se chama, o chamado, as palavras convocadas que permanecem naquele que de tudo o mais se vê despojado. E dessa chamada surge uma chama que não é de lareira e que é clarão, relâmpago, revelação súbita. Fogo todavia efémero e incapaz de iluminar o mundo. Este lume verbal, se contagiasse o estado da espera tornando-o num «leve ardor de esperar», tornaria possível suportar o que pesa (vv. 27-28) na leveza de «esperar o regresso nas pombas». […] Como o que a um tempo se inflama se apaga, na casa da chegada, nessa casa vaga, «o cuidado de frente se fez pó» e ficam as cinzas a lembrar o fogo que já se foi. Quando bater a porta da última morada (w. 43-44), essa casa inevitável que é a morte, o exangue sabe que a única chama que pode ficar, «como a brasa que passa ao pinhal o clarão», a verdadeira chama de vida, é a que anima «o sangue adiante», é esse tempo a pulsar «onde eles já vão». Essa contemplação da vida futura descansa o cansaço que percorre todo o poema e reconcilia com o mundo aquele que nele se sente derrelicto.
[…] O homem, em trânsito, procura um sentido para a sua viagem. Deus é sentido no mundo: porque está «nisto», ainda que não se veja; porque é significado oculto desse 'isso'; porque é rumo na rotação do tempo; porque a direcção desejada; porque orientação para o Ser. Mas é um sentido suspenso. Um sentido suspenso que vibra. Uma ponte que separa.
[…] A fluência do poema não é de narrativa, mas decorre dessa simultaneidade, da sujeição desse discurso, por um lado, à cronologia dos vários elementos que aparecem na estrada a quem nela passa e, por outro, ao fluxo de pensamento do viajante, o que, por sua vez, é determinado por esses eventos. […] Entre os lugares deste poema, as pontes que separam vibram.
[…] Esta é uma viagem pelos lugares que Nemésio reconheceu, no «Prefácio: Da Poesia», mapa para a poesia nemesiana, como territórios comuns à poesia e à metafísica: o Ser, o Nada, o Tempo, a Morte.
Essa reflexão comporta uma outra: a que se ocupa da própria natureza da poesia. Como tantas vezes acontece na poesia de Nemésio, a palavra poética volta-se sobre si mesma, no próprio momento de se dizer (v. 7), contempla-se, interroga-se, vê-se a ser poesia. E este olhar, neste texto, comporta, por um lado, a celebração desse fogo que emerge, mas, por outro, o lamento da sua imersão no tempo que tudo apaga.
[…] Mas, neste poema, essa poesia não é mais do que fogo só vislumbrado. Entre aquele que fala e essa plenitude na linguagem há um vazio. E, no poema, esse vazio vibra.
Rita Patrício
Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX
Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra
Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.
                  

Poderá também gostar de ler

► Canto de Véspera (obra completa)
        
    
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/06/12/poema.de.uma.viagem.aspx}

terça-feira, 11 de junho de 2013

MADRIGAL (David Mourão-Ferreira)


David Mourão Ferreira - Parque dos Poetas, em Oeiras

  
            
           
MADRIGAL

Se acrescentares a isto a labial de um istmo
península de lava entendes o que eu digo

Se vires como se alonga em minhas mãos a música
entendes o que eu digo acordeão da lua

Se puseres neste grito a gutural de um rito
Se te lembrar o circo entendes o que eu digo

península de lava acordeão da lua
turíbulo de amor trapézio da ternura
             
David Mourão-Ferreira, Do tempo ao coração, 1966
                   
             
ANÁLISE DO POEMA

Madrigal, do italiano madrigale, possivelmente derivado do latim tardiomatricalis, palavra que evoca a função matricial da mulher, é uma pequena composição poética, diz o dicionário, em que, engenhosa e galantemente, se celebra uma dama.
Muito em voga no Renascimento italiano, tal forma poética geralmente musicada, é revivescida pela pena neoclassicizante do poeta David Mourão-Ferreira, de modo particularmente belo e sugestivo.
Constituída por quatro dísticos alexandrinos (dodecassílabos), com acento na 6ª e 12ª sílabas, a composição desenvolve-se em ritmo binário, de acordo com a mensagem expressa pela sintaxe bimembre: à oração condicional, anaforicamente iniciada pela conjunção se (1º membro) corresponde a oração principal, de teor assertivo ou declarativo (2º membro), veiculadora da decodificação da mensagem pelo destinatário feminino ‑ «entendes o que eu digo».
A rima toante, de sabor arcaizante, tem uma estrutura igualmente binária (2 vozes): -io/-ua, sugerindo um efeito musical alternado, a que não é alheia uma mensagem laudatória e afetiva comum.
Ainda quanto à técnica de construção poética, atente-se em alguns artifícios paralelísticos, em lugares estróficos diversificados, como o efeito geométrico em ziguezague da oração principal:
............ entendes o que eu digo
entendes o que eu digo ............
............ entendes o que eu digo
ou o efeito trovadoresco do dobre em «península de lava» (início de verso) e «acordeão de lua» (fim de verso).
Do ponto de vista fónico, além das sonoridades da rima, saliente-se o recurso da aliteração da ápico-alveolar em labial, península, lava, alarga, lualembrar, turíbuloda gutural (digo, alarga, grito, gutural); e do efeito das nasais (em, in, ão).
Esta incidência em sons fortes como os guturais, em contraste com a leveza das líquidas, bem como o jogo entre sílabas orais e nasais cria uma linha melódica a que não são alheios outros contrastes, agora semânticos, entre masculino e feminino, força e elegância, convenção («rito») e imaginação («lua»).
As figuras geográficas de «istmo» e «península», bem como o gesto alargado das mãos, sugerem precisamente esse elemento masculino, bem pronunciado ao longo do poema, em contraste com as figuras geométricas curvilíneas («lua», «circo»), associáveis ao elemento feminino que se quer cantar.
O amor, tema fundamental do madrigal, é visivelmente notório tanto na carga simbólica dos vocábulos «lava», de origem vulcânica, e «turíbulo», instrumento de culto («rito»), um amor simultaneamente erótico e religioso, espiritual, quanto nos vocábulos abstratos, mas denotativos, «amor» e «ternura».
E porque é um amor cantado, ao mesmo tempo que usufruído, a referência ao elemento e à função comunicativos não pode faltar: os lábios da articulação fónica, o «grito», a «gutural de um rito»; a «música» do «acordeão da lua», e a causa instrumental das «mãos».
Assim, dirigida ao destinatário feminino, investido da função comunicativa de descodificar a mensagem (função apelativa da linguagem), a composição em causa é bem uma celebração engenhosa e galante do amor:
«península de lava                   acordeão de lua
turíbulo de amor                      trapézio da ternura».
                      
__________
Nota: Para além dos aspetos referidos, a propósito da estrutura, pode perguntar-se qual o valor significativo da construção sintática e da própria mancha do poema.
                 
António Moniz e Olegário Paz, Ler para ser. Percursos em Português B. 10º Ano
Lisboa, Editorial Presença, 1993, pp. 102-103
              



ACERCA DO AUTOR

 David Mourão-Ferreira ‑ a Obra e o Homem, José Martins Garcia. Lisboa, Editora Arcádia, 1980.
            


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/06/11/madrigal.aspx]