Depois da luta e depois da conquista
Fiquei só! Fora um ato antipático!
Deserta a Ilha, e no lençol aquático
Tudo verde, verde, ‑ a perder de vista.
Porque vos fostes, minhas caravelas,
Carregadas de todo o meu tesoiro?
‑ Longas teias de luar de lhama de oiro,
Legendas a diamantes das estrelas!
Quem vos desfez, formas inconsistentes,
Por cujo amor escalei a muralha,
‑ Leão armado, uma espada nos dentes?
Felizes vós, ó mortos da batalha!
Sonhais, de costas, nos olhos abertos
Refletindo as estrelas, boquiabertos...
Fiquei só! Fora um ato antipático!
Deserta a Ilha, e no lençol aquático
Tudo verde, verde, ‑ a perder de vista.
Porque vos fostes, minhas caravelas,
Carregadas de todo o meu tesoiro?
‑ Longas teias de luar de lhama de oiro,
Legendas a diamantes das estrelas!
Quem vos desfez, formas inconsistentes,
Por cujo amor escalei a muralha,
‑ Leão armado, uma espada nos dentes?
Felizes vós, ó mortos da batalha!
Sonhais, de costas, nos olhos abertos
Refletindo as estrelas, boquiabertos...
Camilo Pessanha
Interessante também é que mesmo o ato heroico da conquista aparece contaminado, nos versos de Pessanha, por uma aura de deceção. É como se entre o desejo e o instante da sua realização houvesse um intervalo intransponível, um toque mágico que transforma em meros dejetos os objetos outrora revestidos de encanto: “Depois da luta e depois da conquista / Fiquei só! Fora um ato antipático! / Deserta a Ilha, e no lençol aquático / Tudo verde, verde, – a perder de vista.”
Trata-se da presença de algo que deforma os objetos em que toca, que retira a consistência das coisas, transformando-as em projeções, meras imagens de sonho. A perceção da precariedade do mundo conduz o poeta a uma série de interrogações: “Porque vos fostes, minhas caravelas, / Carregadas de todo o meu tesoiro?” ou ainda “Quem vos desfez, formas inconsistentes, / Por cujo amor escalei a muralha, / – Leão armado, uma espada nos dentes?” (PESSANHA, 2003, p. 132)
E é justamente aqui, na perceção aguda da inconsistência dos desejos, no intervalo que assinala de forma explícita a presença de uma força que submete tudo o que se encontra no mundo à mudança, é justamente nesse intervalo que enxergamos nitidamente a ação de um tempo destruidor, de um tempo que desgasta e altera todas as coisas à sua volta, e é também aí que se delimita um ponto essencial da poética de Pessanha, pois, para além da decadência da pátria, e portanto da impossibilidade dessa de alimentar com seu húmus o espírito dos poetas, há, em seus versos, uma problemática muito mais ampla, que não se restringe apenas ao solo português, e que foi compartilhada por muitos outros poetas de sua época. A perceção de uma impotência generalizada, que não é somente a lamentação de um sujeito entediado ou insatisfeito, assume a forma da constatação de que não é possível fazer cessar a finitude e a temporalidade.
“O Naufrágio das Caravelas”, Izabela Guimarães Guerra Leal.
In: O MARRARE ‑ Periódico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ, Número 7 (2006) - ISSN 1981-870X
1425-1450, Tin-glazed earthenware bowl, with lustre; Málaga |
[…] vou comentar brevemente dois textos nos quais se evidencia a questão da perda e do esvaziamento. E nos quais a metáfora das navegações e o intertexto camoniano têm um lugar central.
São eles o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel” – que foi escrito por ocasião do quarto centenário da descoberta da Índia – e o soneto “Depois da luta e depois da conquista”, de data incerta, mas ao que tudo indica escrito em Macau.
Comecemos por este último: “Depois da luta e depois da conquista”.
Podemos discernir nesse poema dois registros bem distintos. Por um lado, temos aqui um eu que nos fala, de forma mais ou menos alegórica, da deceção inerente a toda tentativa de realização de um desejo. Por outro, as imagens e os símbolos de que se vale para fazê-lo fazem presente um conteúdo histórico que não é nada neutro em Portugal: conquista, ilha, muralha, caravelas e tesouros refluem para um fundo mítico que percorre toda a cultura moderna portuguesa e teve sua expressão máxima no poema camoniano.
Quero dizer, pela forma como se apresenta, o soneto opera uma forte identificação entre elementos do passado histórico e do passado pessoal. Mas devemos observar a especificidade dessa formulação simbólica, que se encontra também em outros autores do período (António Nobre, principalmente). O que me parece mais notável nesse poema é que não fica claro qual é o ponto de vista principal e qual é o secundário, isto é, qual é o plano alegorizante e qual é o plano alegorizado. Desse procedimento, resulta aquela superposição, muito sensível na poesia do final do século XIX em Portugal, do destino pessoal do poeta e do destino coletivo da nação. Quero dizer: temos aqui mais um exemplo da particular assimilação, em Portugal, dos estilemas do Decadentismo. De facto, todo o estado de espírito décadent tem um sentido muito específico, quando expresso em língua portuguesa no final do século XIX.
Quando Verlaine dizia, instalado no coração da França: “Je suis l’Empire à la fin de la décadence”, ele frisava, pela contraposição de sua forma de sentir ao sentimento geral do homem comum, instalado na sua inabalável crença no progresso contínuo da civilização, que o poeta e a arte estavam mesmo a rebours, nadavam contra a corrente triunfante no tempo, lutavam contra ela, em nome de outros valores que se sentiam ameaçados.
Mas quando Nobre ou Pessanha falavam em decadência, e expressavam aquele estado de espírito desistente e langoroso que se convencionou chamar de Decadentismo, o sentido social de suas palavras era profundamente diferente. Ecoavam eles, ao assumir os estilemas e as formas de sentir do Decadentismo, as mais profundas comoções da inteligência e da sociedade portuguesa, iniciadas com a constatação da decadência nacional nas conferências de 1870, e levadas à potência máxima nos meses que se seguiram ao Ultimatum de 1890. É por isso que Nobre vai poder terminar o “António” – seu poema mais ostensivamente trabalhado nessa direção, em que é insistente o contraponto entre o dentro e o fora, a vida íntima do poeta e a vida geral da nação – com esta estrofe sinistra:
Moço Lusíada! criança!
Porque estás triste, a meditar?
[...] Vês teu país sem esperança
Que todo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no Ar?
Porque estás triste, a meditar?
[...] Vês teu país sem esperança
Que todo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no Ar?
Memória coletiva e memória individual convergem nessas estrofes: a história de vida do indivíduo e a da nação são símbolos intercambiáveis. Um diz o outro, reflete-se no outro, explica-se por ele no nível imagético.
Também no soneto de Pessanha coincidem os dois níveis de reflexão. E se é verdade que Pessanha nunca é tão clara e minuciosamente confessional quanto Nobre, nem por isso o poema deixa de ter dois registros simultâneos. Por um lado, lê-se o poema perfeitamente numa clave de abstração, como meditação generalizada a partir de uma experiência de deceção: trata ele, nessa chave, do descompasso entre o sonho, que gera a busca, e a realidade conquistada. No intervalo entre a projeção idealizada do desejo e a concretude que pode ser, por fim, apreendida, cresce a frustração, a deceção. A única forma de conservar intacto o ideal, dessa perspectiva, é não realizá-lo, isto é, suspender o desejo, interromper a ação. A frustração prévia decorrente dessa estratégia – quer dizer, a assunção de que é impossível conquistar o ideal buscado – é na verdade uma defesa contra a frustração maior, real e inevitável. Daí o símbolo dos mortos da batalha, considerados felizes por morrerem, por terem paralisada a sua ação no momento em que apenas vislumbravam o objeto irreal de seu desejo.
Lido dessa forma, o poema é uma meditação sobre o descompasso entre os móveis e o resultado da ação dos homens, que termina por aquela paradoxal afirmação da morte como estado de felicidade. Uma felicidade apenas negativa, pois provém apenas da supressão dos motivos da dor, da eliminação da vulnerabilidade do sujeito. Os olhos abertos não retêm o ideal, nem contemplam a sua realização. Apenas o refletem. Desaparece justamente a angústia de apreensão que se encontra magnificamente expressa em outros versos lapidares de um dos sonetos mais célebres do autor: “Imagens que passais pela retina / dos meus olhos, por que não vos fixais?”. Fica apenas o resíduo, o desejo congelado e sem consecução.
O que é notável é a maneira como toda a reflexão de Pessanha vem vazada em símbolos tradicionais da literatura e da história de Portugal. Quero dizer: mesmo lendo o soneto num registro de reflexão íntima, a imagética tradicional está presente, participa do registro da emoção pessoal.
E destaca-se, na leitura, o facto de que uma só palavra é capaz de evocar, inteiro, um universo literário e ideológico que passa a funcionar como um baixo contínuo, a permear todas as demais inflexões do poema. Refiro-me à palavra Ilha, aí grafada com maiúscula, que faz ecoar no soneto a Ilha dos Amores camoniana.
No poema quinhentista, após a descoberta e a conquista, a armada encontra a Ilha, prêmio da alta façanha, onde os argonautas se deleitam com as ninfas e contemplam a máquina do mundo.
No soneto de Pessanha, por outro lado, o prêmio da conquista é também a Ilha. Mas trata-se de uma ilha deserta, e não há afinal prêmio algum, mas apenas perda.
A conquista, ela mesma, recebe uma qualificação forte: um ato de oposição de sentimentos, de antipatia, e não de correspondência, de consonância entre a vontade do homem e a dos deuses, como no poema camoniano. A Ilha de Pessanha, de onde o poeta vê apenas o vasto mar, desabitado a perder de vista, está mais próxima, na geografia espiritual, de uma outra ilha dos amores: o cemitério pedregoso que Baudelaire retratou em “Un voyage à Cythère”.
Entretanto, no poema de Pessanha não há crime, nem castigo violento. Ao ato antipático da conquista sucedem apenas a solidão desabitada, a perda dos tesouros acumulados e o reconhecimento da fatuidade de todos os esforços. O desejo de morte, que comparece no final, não tem qualquer caráter punitivo. É antes evasivo, um anseio pela aniquilação porque ela significa a forma possível de resistência do ideal, preservado do choque com a realidade.
Embora esse soneto não se preste a uma leitura alegórica cerrada, é bastante sensível a forma pela qual nele confluem (por meio da simbólica das navegações), a trajetória nacional e a perceção do destino individual do poeta.
No âmbito das imagens do poema, não parece haver qualquer expectativa da retomada da ação: valoriza-se aqui apenas retrospetivamente o móvel da empresa e invejam-se os que morreram ainda de posse dessa força que, na personagem que nos fala nesse soneto, já não existe senão para lamentar o bem perdido.
Não temos indicação de quando teria sido composto esse soneto. Não podemos, portanto, saber qual a sua posição temporal em relação a outro poema bastante similar na imagética: o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel”, publicado em 1898, para celebrar o quarto centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia.
“Camilo Pessanha e a gruta de Camões”, texto lido no Colóquio
“Camilo Pessanha: orientalisme, exil et esthétiques fin-de-siècle”,
Universidade Paris Oeste/Nanterre, novembro de 2008. Paulo Franchetti
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► “Da ilha deserta ao cruzeiro do sul – uma leitura do motivo das navegações na poesia de Camilo Pessanha”, Mapa da língua, Paulo Franchetti, 2009-04-05.
► Vida
e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de
leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas,
por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio
ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª
edição).
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/19/depois.da.luta.aspx]