sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O AMOR EM VISITA (Herberto Helder)






O Amor em Visita

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas —
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele — imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
— Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
— Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
— Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
— Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra — invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo —
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida ‑ e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.
Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira — para que tudo cante
pelo teu poder fechado.

Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
— Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
— Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
— o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
— E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
— No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
— Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo
— aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto aberto
— no amor mais terrível do que a vida.
Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável —
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água — e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

Herberto Helder, O Amor em Visita (1958)
A Colher na  Boca (1953-1960)
Poesia Toda (1958-1990)


Herberto Helder (PORTUGAL)



    O Amor em Visita
        A publicação de O Amor em Visita, de Herberto Helder, em 1958, representa, para Fernando J. B. Martinho (cf.Tendências Dominantes da Poesia Portuguesa da Década de 50, p. 88), um dos grandes acontecimentos da década, uma vez que a "correlação magia/poesia, posta continuamente em evidência pelos surrealistas portugueses, encontrava finalmente a concretização por que há muito se esperava ao nível da dicção poética e do ritmo". Impregnada de uma comunhão cósmica e libidinal, a sua poesia obriga a uma leitura relacional que ponha em relevo o poder encantatório das palavras e a sua força de nomeação: "Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira / e a eternidade das mãos. / esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas / lâmpadas, todas as coisas. / As coisas que são só uma no plural dos nomes. / - E nós estamos dentro, subtis, e tensos / na música." («As musas cegas»). Ligando-se ao mago e ao visionário, o poeta coloca a linguagem num "tempo em que o sagrado fazia parte da substância íntima dos dias" (ibid., p. 88), recriando-a iniciaticamente sobre um fundo ancestral e elemental a partir do qual o "poema cresce inseguramente / na confusão da carne. / Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, / talvez como sangue / ou sombra de sangue pelos canais do ser." [...] - "E o poema faz-se contra a carne e o tempo" («O Poema»).

in Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2016. [consult. 2016-02-19 00:51:50]. Disponível na Internet: 



“O Amor em Visita”, primeiro livro de Herberto Helder (1958),
editado pela Contraponto de Luiz Pacheco
    
    
O amor revisitado num poema de Herberto Helder
        
Quando, em 1958, nas Edições Contraponto, dirigidas por esse infatigável e notável agitador surrealista, votado à libertação da subversão poética e erótica de todas as censuras, que era Luís Pacheco, foi publicado por Herberto Helder a "plaquette" intitulada O Amor em Visita, logo essa voz se repercutiu com as suas modulações encantatórias, que o incipit feliz, irradiando, deixou a pairar como uma espécie de halo mágico:
"Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher".

E o canto expandia-se, nas volutas circulares e circulantes de um poema de largo fôlego rítmico, onde da recorrência anafórica, espraiando-se em encavalgamentos ora suaves ora abruptos, emergia um flúmen metafórico e metonímico de figuras do desejo incadescente, num clímax poético que culminava num êxtase místico em que o amor e a morte, a "mors-amor", se consumam no cântico infindável:
"Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer."

E a mulher, primeiro invocada no poema como "quase incriada", toma-se ao longo dele um sujeito, uma segunda pessoa, um "tu" dialogando com o próprio canto, que com o do poeta se confunde, no prolongado espasmo final:
" ... Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo".

No corpo mesmo do poema, como no da mulher, se vai escrevendo a poética amorosa e erótica de Herberto Helder, que nesse texto inicial e depois ao longo da sua Poesia Toda, de livro em livro, insaciavelmente se reitera, feita da confluência permanente do Eros e de Tánatos, nas suas pulsões contraditórias mas convergentes no momento extático da união dos corpos. Mas este é para o poeta também o que ele chama "um minuto sobrenatural", em que o corpo da amada se volve, numa metáfora luminosa, uma "carne de vinho roçada pelo espírito de Deus". A "chama dupla" do amor e do erotismo é pois, outrossim, aqueloutra "chama de amor viva" a que o místico tenta poeticamente dar forma, como diz São João da Cruz, através de "figuras, comparações e metáforas" : os "ditos de amor" do falar de Deus e a Deus. E se aqui citamos o poeta de "Noche Oscura" é porque este comparece intertextualmente nessa visitação de amor de Herberto Helder, cuja poesia ressoa - para usar uma das suas muitas imagens de conotação mística - como uma "música nocturna": a da "noite dos sentidos" e a da "noite do espírito".

O "erotismo sagrado" subsume em si, na verdade, tanto o "erotismo dos corpos" como o "erotismo dos corações", em Herberto Helder. O poema faz-se nele por vezes celebração, rito, liturgia, em que a linguagem poética, nas suas figurações corporais e espirituais da mulher, se toma consagração e invocação sacrificial:
"- Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria."

Esta "exaltante alegria da morte", anaforicamente reiterada, não é senão, por obra e graça do poema, enquanto mors-amor que como vimos se dá, uma glorificação religiosa da vida, nos seus elementos matriciais, que a mulher maternalmente encarna: erotismo é "a aprovação da vida mesmo na morte", em O Amor em Visita o enlace de Eros e de Tánatos é um leitmotiv obsessivo, que percorre todo o poema, no seu movimento pendular de diástoles e de sístoles, num vaivém constante, de estrofe em estrofe e de verso em verso, onde as figuras da vida e da morte capilarmente circulam, num fluxo interminável e osmótico:
"As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida."

Por isso é que estamos morrendo na boca um do outro."

Assim se escande este canto de morte e amor: um "amor mais terrível do que a vida" pois é o da morte a dois, em cada espasmo consumada, para que a vida seja sempre a recomeçar, como tempo, em cada instante sagrado:
"Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz",

canta ainda o poeta, recomeçando também sem fim o seu canto. É que ele bem sabe, como escreveu René Char, que "o poema é o amor realizado do desejo que permanece desejo" E do desejo se alimenta a "chama dupla" do amor e do erotismo, que na poesia de Herberto Helder arde alta, até ao êxtase.

Ao revisitarmos O Amor em Visita é como se o espaço de meditação do texto poético se nos oferecesse à leitura como um corpo a desnudar-se. Parafraseando Roland Barthes, trata-se para nós, numa palavra, de surpreender "o modo de manifestação do corpo erótico no perfil do texto". Será seguindo este perfil, minuciosamente delineado, que se tomará possível empreender um estudo da poética de Herberto Helder, a partir do seu poema liminar.

Referir essa poética à esteira do surrealismo, de que sem dúvida soube mobilizar todos os recursos de libertação da linguagem como na célebre "escrita automática", ou apontar nela as marcas da "poesia experimental", é evidentemente importante. O próprio título do poema revisitado, que foi retomado do livro de Alfred Jarry, L'Amour en Visites, de 1898, é nesse sentido uma pista a explorar, por tratar-se de um precursor do surrealismo.

Mas importa não esquecer que, tal como os surrealistas incorporam, transformando-a, a tradição petrarquista, Herberto Helder o mesmo fez pela via camoniana, como mostra um poema anteposto a O Amor em Visita, no livro A Colher na Boca, de 1961, em que o republicou. O soneto intertextual e paratextualmente reescrito - o célebre "Transforma-se o amador na cousa amada ... " - insere-se na verdade numa temática petrarquizante, que já tinha tido entre nós uma afloração, antes de Camões, no Cancioneiro Geral. As transformações a partir dele operadas por Herberto Helder são significativas do seu trabalho poiético de mutação das formas:
"Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas".

Como Camões, Herberto Helder poderia escrever:
"E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma."

É uma forma poética nova que a matéria do amor e do erotismo, de desejo em desejo, sempre busca, numa língua outra, que de metamorfose em metamorfose o poeta reinventa. Talvez seja num metapoema de A Colher na Boca que ele melhor fala do seu "Ofício Cantante":
"Ocupo-me dos símbolos, e gostaria
que meu coração
entontecesse lentamente, que meu coração
caísse numa espécie de extática e sagrada loucura"

Loucura da linguagem: loucura simbólica, loucura mística. Mas antes de mais loucura do Amor, que é a do próprio poeta em busca da Palavra das palavras:
"Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido [...].
Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte - veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.
Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? - Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor."

A desconhecida palavra Amor. É essa a que havemos de infinitamente procurar - porque escrita lá está - ao revisitar, como se não o conhecêssemos, conhecendo-o, O Amor em Visita.

Viseu, Universidade Católica Portuguesa – Faculdade de Letras, 1997.


domingo, 14 de fevereiro de 2016

Arte de vanguarda é impossível na pós-modernidade


Zygmunt Bauman
Zygmunt Bauman
O conceito de avant-garde, a vanguarda, valiosíssimo para os movimentos artísticos da modernidade, precisa ser interpretado como a noção de um grupo (e de um tipo de arte) que serve de ponta de lança para as próximas gerações artísticas. A vanguarda é aquela que aponta o caminho no momento em que ele não existia e no momento em que ele não pode nem mesmo ser entendido, “a vanguarda dá à distância que a separa do grosso da tropa uma dimensão temporal: o que está sendo feito presentemente por uma pequena unidade avançada será repetido mais tarde, por todas”, diz Bauman no Mal Estar da Pós-Modernidade.


Para isso, é necessário ter uma visão clara daquilo que está à frente e aquilo que está atrás. Ou seja, para saber que a vanguarda é o grupo que prepara o terreno para o grosso da sociedade depois percorrer com suavidade é necessário ter uma visão clara daquilo que está em nossa frente, que precisa ser alcançado, e aquilo que está atrás, que precisa ser superado, que está ficando anacrônico. O pressuposto da vanguarda é que a população irá depois seguir o seu exemplo. O trabalho da vanguarda, portanto, nunca é em vão, já que é um trabalho de bandeirante: corta-se a mata para abrir o caminho que todos seguirão.
Entretanto, a pós-modernidade é tudo, menos imóvel. Não é possível declarar uma vanguarda, esta ideia é obsoleta num mundo de fluxo contínuo em que é impossível determinar qual é a frente e qual é a traseira. “Podemos dizer que o que hoje se acha ausente é a linha de frente que outrora nos permitia decidir qual o movimento para frente e qual o de retirada. Em vez de um exército regular, as batalhas disseminadas, agora, são travadas por unidades de guerrilha”, ou seja, não há mais batalhas travadas por grupos que pretendem obter uma mudança global. Agora, as batalhas são travadas por artistas que não pretendem nada mais do que serem artistas.
A Modernidade
Na modernidade existia uma característica em comum dos movimentos artísticos: a tentativa de mudar o mundo, a necessidade de ir além da própria arte e de se utilizar da arte como uma arma para a transformação social. É por isso que diversos movimentos se apoiavam em organizações e em teorias da direita e da esquerda radical. A revolução era gritada e era o objetivo-mor destes movimentos.
O grande objetivo do modernismo era acelerar as mudanças que sempre foram prometidas pelas filosofias do século XIX, essa tentativa de aceleração mostrava a seriedade com que essas ideias eram tratadas. “Eles [os modernistas] também acreditavam firmemente na natureza de sua época como vetor, convencidos de que o fluxo do tempo tem uma direção, de que tudo o que vem depois é também (ou tem de ser, deve ser) melhor, enquanto tudo o que reflui para o passado é também pior — atrasado, retrógrado, inferior. Os modernistas não travaram sua guerra contra a realidade que encontraram em nome de valores alternativos e de uma visão de mundo diferente, mas em nome da aceleração”, ou seja, não se tratava de simplesmente modificar a realidade, mas de empurrar a história, de saber que eles eram o vetor principal da história para a aceleração e para o alcance do mundo perfeito, prometido e desejado.






Max Ernst - o surrealismo como arte moderna
Max Ernst – o surrealismo como arte moderna

Os modernistas tinham um inimigo claro, a burguesia inculta. Essa cambada de filisteus, vulgares e indignos deveriam ser arrasados, eles deveriam ser julgados sumariamente pelo seu gosto artístico inferior (ou melhor, por não terem gosto artístico). A arte moderna não pretendia ser facilmente digerível, na verdade, ela pretendia não ser passível de digestão, já que o papel em que os modernistas se colocavam estava sempre acima da média da população. Os modernistas queriam guiar, ensinar, apontar o dedo para o caminho correto e para isso, era necessário que a massa espectadora fosse composta por incultos.
Bauman explicita, “aos considerados imaturos, não completamente desenvolvidos, retardatários, os modernistas queriam mostrar a luz, ensinar, educar e converter; os modernistas só podiam, afinal, permanecer na posição de vanguarda quando tratando os outros como ainda não realizados, afundados nas trevas, esperando pelo esclarecimento”. Entretanto, pior do que a ignorância é o total entendimento.
Síndrome do underground?
Ao expor uma arte que precisava se distanciar da hegemonia, o modernismo também partiu do princípio de que o sucesso de suas proposições era o signo de seu fracasso. Como uma sociedade fracassada poderia entender em sua maioria as propostas modernistas? O capitalismo responde com a capitalização das obras.
Quando a alta burguesia precisou se distinguir do restante da sociedade, a compra de quadros e esculturas modernistas, a proposta de discussões do modernismo e a crescente procura das obras deste período se transformaram em símbolos de distinção social, de acumulação de capital simbólico e cultural. O modernismo foi pego pelas pernas e transformado em mercadoria banal, já que ninguém mais precisava entender o modernismo, mas tinham que possuir algumas de suas obras.
“O paradoxo da vanguarda, portanto, é que ela tomou como sucesso o signo do fracasso, enquanto a derrota significasse, para isso, uma confirmação de que estava certa. A vanguarda sofria quando o reconhecimento público era negado — mas ainda se sentia mais atormentada quando a sonhada aclamação e o aplauso surgiam finalmente”, explica Zygmunt Bauman.
Pós-modernismo
Já na pós-modernidade, os termos “filisteu” e “inculto” já não encontram mais significação. Toda arte é arte e nenhuma delas precisa estar alinhada com um objetivo político futuro. Não há mais maneiras de se definir o próximo passo, assim como não há como saber que o passado é pior e precisa de melhoras baseadas em um projeto de sociedade. O espaço e o tempo não são mais alinhados da mesma forma, não há mais como estabelecer um ponto fixo e não há como ver aquilo que está adiante. O presente é perpétuo, então, pra que um futuro?






Roy Lichtenstein, In the Car, 1963.
Roy Lichtenstein, In the Car, 1963.

Não há mais estilos e movimentos retrógrados ou progressistas – o retrógrado é não aceitar a impossibilidade de deslegitimar um estilo ou um movimento. Ou seja, cabe aos artistas pós-modernos produzirem algo de grande impacto (para conseguirem se destacar entre a montanha de outros artistas tão legítimos quanto eles) e de fácil obsolescência (para que novas artes possam ocupar o espaço desta nas prateleiras do mercado artístico).
Pela primeira vez na história a arte adquire uma autonomia antes somente imaginada. A arte é pela arte por excelência, já que não há mais motivos para ligá-la à transformação social (qual transformação social é possível em um mundo fluido, sem futuro e sem passado, sem projetos políticos, sem utopias e sem a construção de certezas coletivas?), a arte é toda para o público puramente artístico (as elites culturais) e para o mercado (já que os artistas também precisam comer).
“Como sugere Baudrillard, a importância da obra de arte é medida, hoje, pela publicidade e notoriedade (quanto maior a platéia, maior a obra de arte). Não é o poder da imagem ou o poder arrebatador da voz que decide a “grandeza” da criação, mas a eficiência das máquinas reprodutoras e copiadoras — fatores fora do controle dos artistas. Andy Warhol tornou essa situação uma parte integral de sua própria obra, inventando técnicas que deram cabo da própria ideia do “original” e produziram unicamente cópias desde o início. O que conta, afinal, é o número de cópias vendidas, não o que está sendo copiado”, relata o autor.

É impossível haver uma vanguarda porque esta posição nem mais existe em nossa compreensão da arte.



EM MODERNIDADE LÍQUIDA
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