in "Literatura Agora", RTP 2, janeiro de 2015)
Tomemos a
palavra borboleta. Para usar esta palavra não é preciso fazer com que a voz
pese menos de um grama nem dotá-la de asinhas poeirentas. Não é preciso
inventar um dia de sol nem um campo de narcisos. Não é preciso estar-se
apaixonado, nem estar-se apaixonado por borboletas. A palavra borboleta não é
uma borboleta real. Existe a palavra e existe a borboleta. Se confundires estas
duas coisas darás razão a quem queira rir-se de ti. Não atribuas grande
importância à palavra. Estarás a tentar insinuar que amas as borboletas de uma
forma mais perfeita do que qualquer outra pessoa, ou que compreendes a sua
natureza? A palavra borboleta não passa de informação. Não é uma oportunidade
para pairares, levitares, aliares-te às flores, simbolizares a beleza e a fragilidade,
nem de modo nenhum personificares uma borboleta. Não representes palavras.
Nunca representes palavras. Nunca tentes tirar os pés do chão ao falares de
voar. Nunca feches os olhos, tombando a cabeça para um dos lados, ao falares da
morte. Não fixes em mim os teus olhos ardentes ao falares de amor. Se quiseres
impressionar-me ao falares de amor mete a mão no bolso ou por baixo do vestido
e toca-te. Se a ambição e a sede de aplausos te levaram a falar de amor deverás
aprender a fazê-lo sem te envergonhares a ti mesmo nem às tuas fontes.
Qual é a expressão exigida pela nossa época? A época não exige
expressão nenhuma. Já vimos fotografias de mães asiáticas enlutadas. Não
estamos interessados na agonia dos teus órgãos remexidos. Não há nada que
possas estampar no teu rosto que se equipare ao horror desta época. Nem sequer
tentes. Apenas te sujeitarás ao desdém daqueles que sentiram profundamente as
coisas. Já assistimos a películas de seres humanos em pontos extremos de dor e
desenraizamento. Toda a gente sabe que andas a comer bem e que estás até a ser
pago para estares aí em cima. Estás a atuar diante de pessoas que passaram por
uma catástrofe. Tal facto deverá tornar-te bastante discreto. Diz as palavras,
transmite a informação, chega-te para o lado. Toda a gente sabe que estás a
sofrer. Não poderás contar à plateia tudo o que sabes sobre o amor a cada verso
de amor que disseres. Chega-te para o lado e as pessoas saberão o que tu sabes
por já o saberes. Nada tens para lhes ensinar. Tu não és mais belo do que elas.
Não és mais sábio. Não lhes grites. Não forces uma penetração a seco. É mau
sexo. Se revelares o contorno dos teus genitais, então cumpre o que prometes. E
lembra-te que as pessoas não desejam propriamente um acrobata na cama. De que é
que nós precisamos? De estar perto do homem natural, de estar perto da mulher
natural. Não finjas que és um cantor adorado com um público vasto e leal que
tem vindo a acompanhar os altos e baixos da tua vida até ao momento presente.
As bombas, os lança-chamas e essas merdas todas não destruíram apenas árvores e
aldeias. Destruíram igualmente o palco. Achaste que a tua profissão escaparia à
destruição geral? Já não há palco. Já não há ribalta. Tu estás no meio das
pessoas. Portanto, sê modesto. Diz as palavras, transmite a informação,
chega-te para o lado. Fica a sós. Fica no teu canto. Não te insinues.
Trata-se de uma paisagem interior. É por dentro. É privado.
Respeita a privacidade do texto. Estas obras foram escritas em silêncio. A
coragem da atuação é dizê-las. A disciplina da atuação é não as violar. Deixa
que o público sinta o teu amor pela privacidade ainda que não haja privacidade.
Sejam boas putas. O poema não é um slogan. Não poderá publicitar-te. Não poderá
promover a tua reputação de seres sensível. Tu não és um garanhão. Tu não és
uma mulher fatal. Toda essa treta relacionada com os bandidos do amor. Vocês
são estudantes da disciplina. Não representes as palavras. As palavras morrem
se as representares, murcham, e a única coisa que sobrará será a tua ambição.
Diz as palavras com a exata precisão com que verificas uma
lista de roupa suja. Não te comovas com a blusa de renda. Não fiques de pau
feito ao dizer cuecas. Não te arrepies todo só por causa da toalha. Os lençóis
não deverão suscitar à volta dos olhos uma expressão sonhadora. Não é preciso
chorar agarrado a um lenço. As meias não estão lá para te recordar viagens
estranhas e longínquas. É só a tua roupa suja. São só as tuas peças de roupa.
Não espreites através delas. Veste-as.
O poema não é senão informação. É a Constituição do país
interior. Se o declamares e deres cabo dele com nobres intenções, então não
serás melhor do que os políticos que desprezas. Não passarás de uma pessoa a
agitar uma bandeira e a realizar o apelo mais reles a uma espécie de
patriotismo emocional. Pensa nas palavras como sendo ciência e não arte. Elas
são um relatório. Tu estás a falar num encontro do Clube de Exploradores da
National Geographic. As pessoas que tens à tua frente conhecem todos os riscos
do montanhismo. Honram-te partindo desse princípio. Se lhes esfregares isso na
cara, será um insulto à sua hospitalidade. Fala-lhes da altura da montanha, do
equipamento que usaste, sê rigoroso em relação às superfícies e ao tempo que
demoraste a escalá-la. Não manipules o público à caça de bocas abertas e
suspiros. Se mereceres as bocas abertas e os suspiros, isso não se deverá à
avaliação que fizeres do acontecimento, mas à que o público fizer. Resultará da
estatística e não do tremer da tua voz nem das tuas mãos a cortar o ar.
Resultará dos dados e da discreta organização da tua presença.
Evita os floreados. Não tenhas medo da fraqueza. Não tenhas
vergonha do cansaço. O cansaço dá-te bom ar. O ar de quem seria capaz de nunca
mais parar. Agora, entrega-te aos meus braços. Tu és a imagem da minha beleza.
Leonard Cohen
(tradução de Vasco Gato)
(tradução de Vasco Gato)
HOW TO SPEAK POETRY
Take the word butterfly. To use this word
it is not necessary to make the voice weigh less than an ounce or equip it with
small dusty wings. It is not necessary to invent a sunny day or a field of
daffodils. It is not necessary to be in love, or to be in love with
butterflies. The word butterfly is not a real butterfly. There is the word and
there is the butterfly. If you confuse these two items people have the right to
laugh at you. Do not make so much of the word. Are you trying to suggest that
you love butterflies more perfectly than anyone else, or really understand
their nature? The word butterfly is merely data. It is not an opportunity for
you to hover, soar, befriend flowers, symbolize beauty and frailty, or in any
way impersonate a butterfly. Do not act out words. Never act out words. Never
try to leave the floor when you talk about flying. Never close your eyes and jerk
your head to one side when you talk about death. Do not fix your burning eyes
on me when you speak about love. If you want to impress me when you speak about
love put your hand in your pocket or under your dress and play with yourself.
If ambition and the hunger for applause have driven you to speak about love you
should learn how to do it without disgracing yourself or the material.
What is the expression which the age
demands? The age demands no expression whatever. We have seen photographs of
bereaved Asian mothers. We are not interested in the agony of your fumbled
organs. There is nothing you can show on your face that can match the horror of
this time. Do not even try. You will only hold yourself up to the scorn of
those who have felt things deeply. We have seen newsreels of humans in the
extremities of pain and dislocation. Everyone knows you are eating well and are
even being paid to stand up there. You are playing to people who have
experienced a catastrophe. This should make you very quiet. Speak the words,
convey the data, step aside. Everyone knows you are in pain. You cannot tell
the audience everything you know about love in every line of love you speak.
Step aside and they will know what you know because you know it already. You
have nothing to teach them. You are not more beautiful than they are. You are
not wiser. Do not shout at them. Do not force a dry entry. That is bad sex. If
you show the lines of your genitals, then deliver what you promise. And
remember that people do not really want an acrobat in bed. What is our need? To
be close to the natural man, to be close to the natural woman. Do not pretend
that you are a beloved singer with a vast loyal audience which has followed the
ups and downs of your life to this very moment. The bombs, flame-throwers, and
all the shit have destroyed more than just the trees and villages. They have
also destroyed the stage. Did you think that your profession would escape the
general destruction? There is no more stage. There are no more footlights. You
are among the people. Then be modest. Speak the words, convey the data, step
aside. Be by yourself. Be in your own room. Do not put yourself on.
This is an interior landscape. It is
inside. It is private. Respect the privacy of the material. These pieces were
written in silence. The courage of the play is to speak them. The discipline of
the play is not to violate them. Let the audience feel your love of privacy
even though there is no privacy. Be good whores. The poem is not a slogan. It
cannot advertise you. It cannot promote your reputation for sensitivity. You
are not a stud. You are not a killer lady. All this junk about the gangsters of
love. You are students of discipline. Do not act out the words. The words die
when you act them out, they wither, and we are left with nothing but your
ambition.
Speak the words with the exact precision
with which you would check out a laundry list. Do not become emotional about
the lace blouse. Do not get a hard-on when you say panties. Do not get all
shivery just because of the towel. The sheets should not provoke a dreamy
expression about the eyes. There is no need to weep into the handkerchief. The
socks are not there to remind you of strange and distant voyages. It is just
your laundry. It is just your clothes. Don't peep through
them. Just wear them.
The poem is nothing but information. It is
the Constitution of the inner country. If you declaim it and blow it up with
noble intentions then you are no better than the politicians whom you despise.
You are just someone waving a flag and making the cheapest kind of appeal to a
kind of emotional patriotism. Think of the words as science, not as art. They
are a report. You are speaking before a meeting of the Explorers' Club of the
National Geographic Society. These people know all the risks of mountain
climbing. They honour you by taking this for granted. If you rub their faces in
it that is an insult to their hospitality. Tell them about the height of the
mountain, the equipment you used, be specific about the surfaces and the time
it took to scale it. Do not work the audience for gasps and sighs. If you are
worthy of gasps and sighs it will not be from your appreciation of the event
but from theirs. It will be in the statistics and not the trembling of the
voice or the cutting of the air with your hands. It will be in the data and the
quiet organization of your presence.
Avoid the flourish. Do not be afraid to be
weak. Do not be ashamed to be tired. You look good when you're tired. You look
like you could go on forever. Now come into my arms. You are the image of my
beauty.
Leonard Cohen
Pequeño Vals Vienés: Take This Waltz, por Leonard Cohen.
PEQUEÑO VALS
VIENÉS
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TAKE THIS WALTZ
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En Viena hay diez muchachas,
un hombro donde solloza la muerte y un bosque de palomas disecadas. Hay un fragmento de la mañana en el museo de la escarcha. Hay un salón con mil ventanas. ¡Ay, ay, ay, ay! Toma este vals con la boca cerrada.
Este vals, este vals, este vals,
de sí, de muerte y de coñac que moja su cola en el mar.
Te quiero, te quiero, te quiero,
con la butaca y el libro muerto, por el melancólico pasillo, en el oscuro desván del lirio, en nuestra cama de la luna y en la danza que sueña la tortuga. ¡Ay, ay, ay, ay! Toma este vals de quebrada cintura.
En Viena hay cuatro espejos
donde juegan tu boca y los ecos. Hay una muerte para piano que pinta de azul a los muchachos. Hay mendigos por los tejados. Hay frescas guirnaldas de llanto. ¡Ay, ay, ay, ay! Toma este vals que se muere en mis brazos.
Porque te quiero, te quiero, amor mío,
en el desván donde juegan los niños, soñando viejas luces de Hungría por los rumores de la tarde tibia, viendo ovejas y lirios de nieve por el silencio oscuro de tu frente. ¡Ay, ay, ay, ay! Toma este vals del "Te quiero siempre".
En Viena bailaré contigo
con un disfraz que tenga cabeza de río. ¡Mira qué orilla tengo de jacintos! Dejaré mi boca entre tus piernas, mi alma en fotografías y azucenas, y en las ondas oscuras de tu andar quiero, amor mío, amor mío, dejar, violín y sepulcro, las cintas del vals.
Federico García Lorca
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Now in Vienna there's ten
pretty women
There's a shoulder where Death comes to cry There's a lobby with nine hundred windows There's a tree where the doves go to die There's a piece that was torn from the morning And it hangs in the Gallery of Frost Ay, Ay, Ay, Ay Take this waltz, take this waltz Take this waltz with the clamp on its jaws Oh I want you, I want you, I want you On a chair with a dead magazine In the cave at the tip of the lily In some hallways where love's never been On a bed where the moon has been sweating In a cry filled with footsteps and sand Ay, Ay, Ay, Ay Take this waltz, take this waltz Take its broken waist in your hand This waltz, this waltz, this waltz, this waltz With its very own breath of brandy and Death Dragging its tail in the sea There's a concert hall in Vienna Where your mouth had a thousand reviews There's a bar where the boys have stopped talking They've been sentenced to death by the blues Ah, but who is it climbs to your picture With a garland of freshly cut tears? Ay, Ay, Ay, Ay Take this waltz, take this waltz Take this waltz it's been dying for years There's an attic where children are playing Where I've got to lie down with you soon In a dream of Hungarian lanterns In the mist of some sweet afternoon And I'll see what you've chained to your sorrow All your sheep and your lilies of snow Ay, Ay, Ay, Ay Take this waltz, take this waltz With its "I'll never forget you, you know!" This waltz, this waltz, this waltz, this waltz ... And I'll dance with you in Vienna I'll be wearing a river's disguise The hyacinth wild on my shoulder, My mouth on the dew of your thighs And I'll bury my soul in a scrapbook, With the photographs there, and the moss And I'll yield to the flood of your beauty My cheap violin and my cross And you'll carry me down on your dancing To the pools that you lift on your wrist Oh my love, Oh my love Take this waltz, take this waltz It's yours now. It's all that there is
Adaptação de Leonard
Cohen
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THE BOOK OF LONGING
I can't make the hills The system is shot I'm living on pills For which I thank G-d I followed the course From chaos to art Desire the horse Depression the cart I sailed like a swan I sank like a rock But time is long gone Past my laughing stock My page was too white My ink was too thin The day wouldn't write What the night pencilled in My animal howls My angel's upset But I'm not allowed A trace of regret For someone will use What I couldn't be My heart will be hers Impersonally She'll step on the path She'll see what I mean My will cut in half And freedom between For less than a second Our lives will collide The endless suspended The door open wide Then she will be born To someone like you What no one has done She'll continue to do I know she is coming I know she will look And that is the longing And this is the book
Leonard Cohen
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LIVRO DO
DESEJO
Não consigo superar as colinas O sistema foi abaixo Vivo de comprimidos Coisa que agradeço a D--s Segui o trajecto Do caos à arte Desejo o cavalo Depressão a carruagem Naveguei como um cisne Afundei-me como uma rocha Mas o tempo passou há muito Pelas minhas reservas de riso A minha página era demasiado branca A minha tinta era demasiado fina O dia não quis escrever Aquilo que a noite rabiscara O meu animal uiva O meu anjo aborreceu-se Mas não me é permitida Uma réstia de remorso Pois alguém há-de utilizar Aquilo que eu não soube ser O meu coração será dela De uma forma impessoal Ela pisará o caminho Perceberá a minha intenção A minha vontade partida em duas E a liberdade pelo meio Por menos de um segundo As nossas vidas colidirão O interminável suspenso A porta de par em par Então ela há-de nascer Para alguém como tu O que nunca ninguém fez Ela continuará a fazer Sei que ela vem aí Sei que ela irá olhar E esse é o desejo E este é o livro
Leonard Cohen - Livro do Desejo (edições quasi) tradução de Vasco
Gato
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MISSION
I've worked at my work I've slept at my sleep I've died at my death And now I can leave Leave what is needed And leave what is full Need in the Spirit And need in the Hole Beloved, I'm yours As I've always been From marrow to pore From longing to skin Now that my mission Has come to its end: Pray I'm forgiven The life that I've led The Body I chased It chased me as well My longing's a place My dying a sail
Leonard Cohen
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MISSÃO
Trabalhei no meu trabalho Dormi no meu sono Morri na minha morte E agora posso abandonar Abandonar aquilo que faz falta E abandonar aquilo que está cheio Necessidade de espírito E necessidade no Buraco Amada, sou teu Como sempre fui Da medula aos poros Do anseio à pele Agora que a minha missão Chegou ao fim: Reza para que me seja perdoada A vida que levei O Corpo que persegui Perseguiu-me igualmente O meu anseio é um lugar O meu morrer, uma vela.
Leonard Cohen,
Livro do Desejo (edições quasi) tradução de Vasco Gato
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YOU'D SING TOO
You'd sing too if you found yourself in a place like this You wouldn't worry about whether you were as good as Ray Charles or Edith Piaf You'd sing You'd sing not for yourself but to make a self out of the old food rotting in the astral bowel and the loveless thud of your own breathing You'd become a singer faster than it takes to hate a rival's charm and you'd sing, darling you'd sing too
Leonard Cohen
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TAMBÉM TU CANTARIAS
Também tu cantarias se desses por ti num lugar como este Não te preocuparias se serias tão bom como o Ray Charles ou a Edith Piaf Cantarias cantarias não para ti mas para criar um eu a partir do velho alimento que apodrece na entranha astral e na pancada surda, sem amor, da tua própria respiração Tornar-te-ias uma cantora mais depressa do que o tempo necessário até odiarmos o encanto de um rival e cantarias, querida também tu cantarias.
Leonard Cohen, Livro do Desejo (edições quasi)
tradução
de Vasco Gato
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FOR MY OLD LAYTON
His pain, unowned, he left in paragraphs of love, hidden, like a cat leaves shit under stones, and he crept out in day, clean, arrogant, swift, prepared to hunt or sleep or starve. The town saluted him with garbage which he interpreted as praise for his muscular grace. Orange peels, cans, discarded guts rained like ticker-tape. For a while he ruined their nights by throwing his shadow in moon-full windows as he spied on the peace of gentle folk. Once he envied them. Now with a happy screech he bounded from monument to monument in their most consecrated plots, drunk to know how close he lived to the breathless in the ground, drunk to feel how much he loved the snoring mates, the old, the children of the town. Until at last, like Timon, tired of human smell, resenting even his own shoe-steps in the wilderness, he chased animals, wore live snakes, weeds for bracelets. When the sea pulled back the tide like a blanket he slept on stone cribs, heavy, dreamless, the salt-bright atmosphere like an automatic laboratory building crystals in his hair.
Leonard Cohen, Flowers for Hitler
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PARA O MEU
VELHO LAYTON
Ele oculta a sua dor sem dono em frases de amor da mesma maneira que um gato esconde as fezes debaixo das pedras e aparece durante o dia, arrogante, limpo, rápido, disposto a caçar ou dormir ou a perecer de fome. A cidade recebe-o com lixo que ele interpreta como um elogio a sua musculatura. Cascas de laranja, latas, tripas chovendo como papel de teletipo. Durante algum tempo ele destruiu as suas noites com a sua sombra refletida na janela da lua cheia enquanto espiava a paz da gente vulgar. Uma vez invejou-os. Agora com um feliz uivo saltava de monumento em monumento, penetrava nos seus lugares mais sagrados, ébrio de saber quão perto vivia dos mortos debaixo da terra, ébrio de sentir o muito que queria aos seus irmãos que ressonavam, os velhos e as crianças da cidade. Até que por fim, cansado como Tímon do odor humano, ressentindo-se mesmo das suas próprias pegadas no deserto, dedicou-se a caçar animais, e adornou-se com braceletes de serpentes vivas e cizânias. Enquanto a maré decia como uma manta, ele dormia em cavidades das rochas um sono pesado sem sonhos, a aragem brilhante do sol como se fosse um laboratório automático formando cristais no seu cabelo.
Tradução de Carlos Besen
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Quando Leonard Cohen chorou junto com o público durante um show
A história de um show em que o músico abandonou o palco desolado, mas momentos depois retornou para fazer uma apresentação memorável
Leonard
Cohen entrou abruptamente no camarim. Sentou-se abatido em um canto e disse:
“Não posso, estou me dilacerando”. Tinha deixado precipitadamente o palco
diante do assombro dos espectadores. Era 1972 e aquele era um de seus primeiros
concertos em Israel, importantíssimo por ele ser judeu. Mas o músico, que
morreu nesta quinta-feira, com 38 anos na época, não pôde terminar o recital na
sala Binyanei Ha'uma de Jerusalém.
Antes de
deixar o tablado, já alertara o público: “Não estou sentindo profundamente as
canções. E acho sinceramente que estou enganando vocês. Vou tentar de novo. Se
não funcionar, eu os deixo e lhes devolveremos o dinheiro. Há noites nas quais
a gente se eleva no ar e outras em que simplesmente não decola”. A honestidade
brutal do músico pegou de surpresa tanto os espectadores como os músicos, que
não tinham uma opinião tão sombria do que estavam presenciando.
Naquela
noite tão importante para ele, Cohen estava torturado pela responsabilidade e o
compromisso, por elevar a pureza artística a um nível místico. Embora o público
não estivesse percebendo, ele, sim. Levantou-se, e disse, como se vê no
documentário de Tony Palmer Bird on a Wire: “Vamos deixar o palco agora e
meditar profundamente no camarim para tentar recuperar a forma. Se
conseguirmos, voltaremos”.
O músico
mergulhou em uma atitude de melancolia profunda, arrasado por sua derrota em um
de seus concertos mais relevantes. Sua exigência artística estava acima de
tudo. Tão alta que tanto fazia que o público estivesse desfrutando plenamente
da atuação. Segundo conta Sylvie Simmons no livro I’m Your Man: The Life of
Leonard Cohen (Sou teu Homem: a Vida de Leonard Cohen), o representante do
músico se aproximou de Cohen e lhe disse: “Temos de honrar o negócio e terminar
a apresentação, ou pode ser que não saiamos daqui admirados”. O materialista
contra a arte.
o lado de
fora, ninguém havia abandonado a sala. Nem um só pedido de devolução do
dinheiro. Nem uma só vaia. Pelo contrário: começaram a cantar Hevenu shalom
aleichem (A paz esteja contigo), um poema judaico de felicidade. Nesse momento,
aconteceu. Cohen seguiu o conselho de sua mãe: “Quando as coisas estão indo mal
para você, barbeie-se". Alguém lhe levou uma navalha e creme de barbear,
ele se aproximou do lavabo e começou a raspar a barba enquanto escutava ao
fundo os cânticos dos espectadores: “Que a paz esteja convosco, anjos do
altíssimo. O supremo rei dos reis é o santo abençoado”.
Quando
terminou de se barbear, Leonard Cohen retornou ao palco seguido de seus
músicos. Ninguém tinha ido embora. A ovação foi estrondosa. Depois, fez-se
silêncio. O músico pegou seu violão e começou a cantar So Long Marianne:
"Nós nos conhecemos quando éramos jovens. Foi em um parque de cor lilás e
verde. Você me agarrou como se eu fosse um crucifixo enquanto entrávamos de
joelhos na escuridão. Adeus, Marianne, já é hora de começarmos a rir e a
chorar, e chorar, e rirmos de tudo”.
Enquanto
cantava, as lágrimas do músico começaram a deslizar por suas bochechas.
Ouviram-se soluços na multidão. A angústia envolveu os músicos. Agora sim:
Leonard Cohen estava sentindo profundamente as canções.
Óscar Tévez, brasil.elpais.com,
2016-11-11
A missa fúnebre do irmão Cohen
Com o novo disco, Leonard Cohen perde o pudor e desafia o Todo-Poderoso para um último combate. Que o fim esteja distante e que estas canções passem por outros funerais. Bruno Vieira Amaral diz quais.
- Para funerais dos convertidos
- Para funerais dos hesitantes
- Para os funerais dos que fizeram as escolhas erradas
- Para os funerais dos que acabam as discussões com “leva lá o triciclo”
- Para os funerais dos hiperbólicos
- Para os funerais dos cautelosos
- Para os funerais dos que mudaram de ideias
- Para os funerais dos que se preocupam muito com a opinião dos outros
- (Bruno Vieira Amaral, Observador, 2016-10-26)
Agora que tem as contas arrumadas, literalmente, Leonard Cohen diz-se preparado para morrer. É por isso que este novo álbum tem o som de um adeus antecipado, com a carga religiosa de muitas das suas músicas sublimada pela proximidade da morte e de um tête-à-tête despojado com Deus. Com o fim a aproximar-se, Cohen perde o pudor e desafia o Todo-Poderoso para um último combate. Como sabe que o vai perder, permite-se ser sincero e mostrar-se vulnerável (e assumir a vulnerabilidade é também uma derradeira manifestação de força), “eis-me aqui, estou pronto, vamos lá”, sem perder no entanto o humor e um cinismo que nunca azeda.
No fundo, é o drama da humanidade: se tudo o que há é silêncio, então que sejamos nós a falar, nem que seja para invectivar o Deus de que tanto precisamos. No outro dia, ao ver “Os Dez Mandamentos”, essa megalomania exuberante de Cecil B. De Mille, fiquei a saber, num dos documentários do DVD, que foi Charlton Heston quem propôs que a voz de Deus na cena no Monte Sinai fosse a sua própria voz, alterada, porque estava convencido de que, numa situação semelhante, Moisés teria ouvido a voz de Deus no interior da sua cabeça. E é isso que acontece aqui, a voz de Cohen, mais grave que nunca, dirige-se a Deus – que nas suas canções assume muitas vezes a forma de uma mulher, normalmente de uma amante que se perdeu, de um amor impossível – e se há resposta, é a do eco da sua própria voz, um homem a falar com Deus, um homem a falar sozinho, um Deus a falar com um homem, um Deus a falar sozinho.
Este é um álbum de canções sagradas e profanas, música para igrejas, sinagogas e apartamentos onde se sofre pelo fim do amor, pelo fim da vida. Salmos fúnebres, finais, cheios de serpentes, pecados, anjos e diabos, tentações, luz, graça, verdade, caminho, cálices de sangue, culpa e mulheres. Que o fim de Cohen esteja distante e que estas canções possam embelezar outros funerais. Como estes, canção a canção:
Para funerais dos convertidos
“You Want it Darker”. O funeral de alguém que se converteu tardiamente à religião (ou ao amor) merece uma canção como You Want it Darker, que dá título ao álbum. Pode ser aquele amigo que só descobriu a religião ao mesmo tempo que encontrou o frigorífico vazio depois de a mulher o ter deixado. A certa altura, Cohen, acompanhado de um coro, canta “hineni, hineni” que é como quem diz “Senhor, já que estamos aqui faz o que achares melhor.” Na história da religião há muitos casos de conversão, o mais célebre dos quais daqueles senhor que viu a luz a caminho de Damasco. Mas, tal como as finanças, aparentemente Deus aceita formulários submetidos fora do prazo. Se se tem de pagar multa ou não, é assunto para se debater no além, a dois, preferencialmente numa conversa regada a vinho. Nunca é tarde para amar. É sempre cedo para morrer.
Para funerais dos hesitantes
“Treaty”. A quem se dirige Cohen quando canta “I’m so sorry for that ghost I made you be / Only one of us was real and that was me”? A uma mulher que o abandonou ou ao Deus de cuja existência ele, afinal, duvida? À mulher que não podia ser o que não era ou ao Deus em que ele acreditou em vão? A tensão entre amor incondicional (ágape) e amor romântico (eros) manifesta-se em muitas das canções de Cohen. O homem sente-se dividido pelo amor a Deus e aquela sensação de calor no baixo ventre quando a vizinha do rés-do-chão vai à janela de roupão. Se conhece alguém com tendências para Santa Teresa de Ávila e confunde orgasmos com êxtases místicos (e quem, na verdade, sabe onde começam uns e acabam os outros?), guarde-lhe esta canção para o dia final.
Para os funerais dos que fizeram as escolhas erradas
“On the Level”. “Se o arrependimento matasse…” O arrependimento não mata, mas mói. E para que possamos celebrar as escolhas certas somos obrigados a reconhecer que, por vezes, optámos pela pior solução. Há uma canção dos Pulp, “Something Changed” (letra, como sempre, de Jarvis Cocker) que fala sobre como uma decisão menor pode afetar o rumo da nossa vida e talvez afastar-nos, sem que tenhamos maneira de o saber, do verdadeiro amor. O que teria acontecido se, naquele dia, tivéssemos ficado na cama até mais tarde? “Do you believe that there’s someone up above? / And does he have a timetable directing acts of love?” Ah, os fios do acaso. Mas quando somos nós que deliberadamente viramos costas ao que o acaso pôs no nosso caminho? Que mandamos embora os nossos anjos pensando que estamos a renegar os nossos demónios? Cohen responde: “They oughta give my heart a medal / For letting go of you”. Uma medalha para os corações impacientes, nem mais.
Para os funerais dos que acabam as discussões com “leva lá o triciclo”
“Leaving the Table”. Todos nós conhecemos alguém que, à segunda jogada de uma partida de xadrez, começa logo a dizer “pronto, pronto, já ganhaste”. Ou que, no calor de uma discussão que lhe foge do controlo, admite a derrota com “pronto, leva lá o triciclo.” Esta canção é para eles. Não são desistentes, nem perdem os jogos por falta de comparência. São mais hábeis e obtêm uma vitória moral quando resolvem sair com estrondo. Quer dizer, saem lentamente, mas arrastam a cadeira. Qual é o nome que se dá a estas pessoas? Ah, passivo-agressivas. Que fique claro que Cohen, apesar de dizer “You don’t need a lawyer / I’m not making a claim / You don’t need to surrender / I’m not taking aim”, não é desses. Ele é um velho guerreiro, Leonardo Baptista cansado das guerras do amor: “I don’t need a lover, no, no / The wretched beast is tame”.
Para os funerais dos hiperbólicos
“If I Didn’t Have Your Love”. Toda a gente precisa de um amigo “larger than life”, daqueles que dão grandes abraços por tudo e por nada, dos que gostam tanto de dizer “és o meu melhor amigo” que o dizem a todos os amigos e até a alguns conhecidos, benfiquistas que julgavam que o Benfica ia acabar depois da saída de Jorge Jesus e agora celebram Rui Vitória como o maior génio táctico desde Aníbal, sportinguistas que julgavam que o Sporting ia ser campeão europeu com a chegada de Jorge Jesus e tiveram vontade de morrer após o primeiro empate, amigos que assinam petições contra o fecho de salas de cinema e depois se lançam pesadamente para o sofá para ver o que está a dar no Hollywood, amigos que são oito de manhã e oitenta ao fim do dia, que acham que uma borbulha no pé é um tumor maligno e que um tiro a meio da noite é o início da Terceira Guerra Mundial mas que, minutos depois, mais calmos, já estão convencidos de que vão durar para sempre e que o sorriso de um amigo compensa todas as tristezas do mundo.
Para os funerais dos cautelosos
“Traveling Light”. O amigo que vai de férias uma semana e leva a casa atrás, o amigo que numa noite de verão leva casaco porque “pode arrefecer”, o amigo que não sai de casa sem confirmar que os bicos do fogão estão fechados, o amigo que repete “cautelas e caldos de galinha…”, o amigo que consulta sites de meteorologia para ver o tempo dos próximos dez dias, o amigo que confirma a pressão dos pneus sempre que põe gasolina, o amigo “porque isto nunca se sabe”, o amigo que faz um seguro de vida e quer estar protegido contra raios, o amigo do “dia de amanhã”, o amigo que comprou um balão para fazer testes de alcoolemia depois dos jantares de grupo, o amigo que acredita que ainda há empregos para a vida toda e casamentos até que a morte os separe. Relaxa, companheiro. Temos de estar sempre prontos para partir e o excesso de bagagem só atrapalha. “I’m not alone, I’ve met a few / Traveling light like we used to do.”
Para os funerais dos que mudaram de ideias
“It Seemed the Better Way”. Pode ser, embora não seja obrigatório, aquele amigo que ao fim de anos de militância no Partido Comunista descobriu as virtudes do ioga e da meditação transcendental, ou o seguidor de uma seita evangélica que se cansou de pagar o dízimo e agora gasta tudo em raspadinhas, ou o fã de heavy metal que agora é mais fado, ou o leitor indefectível de James Joyce que agora prefere um bom thriller de Daniel Silva, ou do capitalista que resolver procurar conforto espiritual num mosteiro no Sul de França. A ideia é esta. “Sounded like the truth / Seemed the better way / Sounded like the truth / But it’s not the truth today”, canta o bardo e com razão. Quando passamos a juventude a dar a outra face chega uma altura em que só temos vontade de dar murros aos que nos ofendem. E se a noite é boa conselheira, a velhice também não é das piores. Perguntem a Leonard Cohen.
Para os funerais dos que se preocupam muito com a opinião dos outros
“Steer your Way”. Desvia-te de tudo o que te magoa.