AS
ARMAS DO CRÍTICO
1. A
palavra "crítica" é normalmente detestada. A ela estão associados um
certo número de pressupostos (que, em larga medida, podemos considerar como
preconceitos):
a)
O crítico é alguém que, de uma forma arbitrária e abusiva, vem dizer se o
trabalho de um criador é "bom" ou "mau".
b)
O crítico é alguém que fala sobre o que os outros inventaram na medida em que
ele próprio é incapaz de inventar. Tem necessariamente o estatuto de um
parasita.
c)
O criador está do lado da vida, enquanto o crítico está do lado da arte
enquanto instituição.
d)
O crítico julga na cena de um tribunal em que não há nem critérios para julgar
nem provas que possam ser definitivamente conclusivas.
Digamos
que afirmações deste tipo, ou outras análogas, são parcialmente verdadeiras mas
não constituem o essencial daquilo que se faz sob a designação de
"trabalho crítico".
2. Gostaria
de partir de um ponto de vista bastante diferente. Para mim, atividade crítica
é uma atividade essencialmente poética. Em que sentido? No essencial, em dois
sentidos.
O
crítico exerce uma atividade essencialmente poética na medida em que consegue
encontrar as palavras certas para exprimir algo que eu senti de um modo vago e
confuso quando li (ou vi, ou ouvi) a obra criticada.
Por
conseguinte, podemos falar, nesta aceção, numa atividade de ordem poética (que,
no entanto, é sempre "menos" do que a poesia). E é precisamente
enquanto ator capaz de exercer uma atividade de tipo poético que o crítico
ganha autoridade para formular juízos de gosto. Estes juízos são obviamente
discutíveis, contestáveis e problemáticos.
Digamos
mais: a partir de um certo nível da discussão, o tipo de juízos de gosto que um
crítico formula torna-se até relativamente secundário, tal como são secundários
os juízos de gosto dos grandes criadores (ou melhor: são extremamente
interessantes mas enquanto juízos de gosto do criador X ou do crítico Y). O
mais importante é o modo como, através da manifestação do processo que o conduziu
àqueles juízos de gosto, eu como leitor encontro materiais para conduzir o meu
próprio processo e chegar ao meu próprio juízo de gosto.
Concluindo
de um modo mais ou menos sintético: o processo autoriza o juízo na medida em
que faz que ele se torne o juízo de um autor; mas, precisamente na medida em
que o torna dependente de um autor, faz que o juízo se torne mais relativo,
mais significativo apenas no âmbito de um discurso que o excede.
3. Não
poderemos deixar de considerar também alguns aspetos institucionais. Como é
óbvio, o crítico ganha também autoridade pelo facto de escrever no lugar em que
escreve. Torna-se fácil de compreender que ser crítico de literatura no jornal
"Le Monde" não é para o leitor a mesma coisa que publicar textos críticos
numa folha episódica de um jornal de colégio de província. Torna-se ainda fácil
de compreender que há também urna espécie de determinação geocultural do lugar do
crítico no mundo. Um crítico que escreve num jornal de Huelva parecer-me-á
menos importante do que um crítico que escreve em Nova Iorque. E este tipo de
prevenções funciona de um modo fatalmente inconsciente e não tem em conta a
qualidade intrínseca dos textos (que pode ser muito melhor no texto escrito em
Huelva).
Existem
ainda muitos outros mecanismos de tipo institucional que também funcionam.
Assim, um crítico ganha autoridade na medida em que vai sendo reconhecido pelos
outros críticos (mais velhos ou da mesma geração). Isto passa por diversos
circuitos: quanto maior é a autoridade do crítico, mais ele publica livros,
escreve para catálogos, se torna comissário de exposições, organiza coleções
para fundações, viaja, participa em colóquios internacionais, etc. Nestas
circunstâncias, a autoridade do crítico torna-se poder, e, nessa medida, dá origem
a dois tipos de fenómenos mais ou menos simétricos: por um lado, o crítico tem
discípulos, que, a troco de contribuírem para reforçar a imagem do crítico,
procuram usufruir, por ligação metonímica, de um pouco do prestígio do critico;
por outro lado, o crítico ganha inimigos, isto é, vê crescer à sua volta um
certo número de personagens, que pensam que se podem autorizar um pouco mais
através da contestação da autoridade dos mais autorizados.
4. O que é
engraçado é vermos como estas coisas se repetem com uma ritualidade estrutural.
Um amigo meu ensinou-me um dia: vais ver pela vida fora que em qualquer lugar
que a gente ocupe vamos sempre substituir um incompetente e vamos sempre ser
substituídos por um intriguista. O que ele me pretendia dizer é que, sejam
quais forem as qualidades ou os defeitos das pessoas, eu sou sempre levado a
achar que a pessoa que vim substituir era – "apesar das suas inúmeras
qualidades”, que me não cansarei publicamente de apontar – um incompetente e
que, ao ser substituído num lugar, isso se deve necessariamente às intrigas
desenvolvidas pelo meu sucessor.
Vivemos
num curioso período em que a humanidade se parece dividir em duas categorias:
por um lado, existem os protagonistas das grandes "performances", que
são personagens que o destino escolheu para a prática de feitos notáveis; por
outro, existem os seres comuns, que se relacionam com o mundo da cultura
segundo a modalidade da distração obsessiva e do horror do tédio. Talvez
possamos relacionar este estado de espírito com o processo de aceleração
generalizada da vida (de que um Virilio narra algumas etapas essenciais) e com
o modelo mental do "zapping" televisivo. Daí o sintomático aparecimento
de um novo tipo de "críticos": os que julgam que são tanto mais
autorizados quanto mais se aceleram a si próprios em termos de discurso e de
recusa do aborrecimento (o que vai criando os seus próprios mecanismos retóricos).
5. O
recente Prémio Pessoa – tão justamente atribuído a Fernando Gil – tem, para
além de muitos outros méritos, uma grande qualidade: valoriza o esforço, o
rigor, a paciência, o tempo lento do trabalho. Ninguém pode ter ilusões: os
livros de Fernando Gil são difíceis e exigem um grande esforço de leitura
(amplamente compensado, é verdade, pelo prazer da inteligência). Que esta admirável
"chateza" tenha tido um prémio de grande prestígio é algo que nos
compensa do ritmo de corridinho com que alguns pretendem modelar a cultura em Portugal.
“As armas do crítico”, crónica de Eduardo Prado Coelho para
o suplemento Leituras
do jornal Público.
Sábado, 11 de dezembro de 1993.
CARREIRO, José. “As armas do crítico – Crónica de Eduardo
Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 11-10-2019.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/as-armas-do-critico.html