por Eduardo Prado Coelho
UM
ADMIRÁVEL LEITOR DE POESIA
1.
Os primeiros versos eram assim: "Esse baixel nas praias derrotado / foi
nas ondas Narciso presumido". Era um famoso soneto da Fénix Renascida, sobre
a fragilidade da vida humana. Para nós, estudantes universitários de
literatura, seria apenas mais um desses bordados barrocos em que o sentido se
evaporava na acumulação das palavras. Foi então que o professor leu. Não leu
apenas as palavras, leu verdadeiramente o poema. Melhor: não leu apenas um
poema; disse-nos, através das palavras do poeta, toda a fragilidade da vida
humana. Pouco a pouco, o texto poético transformava-se num quadro cheio de
lugares vazios, que as palavras, inevitáveis, certeiras, absolutas, vinham preencher.
Começámos a perceber que ler um poema não é envolvê-lo numa toada maís ou menos
arfante e indiferenciada, mas um percurso inteligentemente preciso, em que a
voz explicita as camadas de sentido, as suas flutuações, os pontos de equívoco
e desequilíbrio. Começávamos a aprender a ler poesia – a ler verdadeiramente a
poesia, isto é, essa linguagem de todos os dias subitamente intensificada para
melhor se tornar cúmplice da intensidade que inconscientemente existe em nós
próprios.
Depois,
o professor começou a analisar o poema. Alguns, incuravelmente românticos, no
sentido mais pejorativo da palavra, pensavam que um poema só existia como joia
sagrada, flor selvagem, que se não pode tocar sem risco de destruição. É
verdade que sendo a poesia o mais alto dizer, nas imediações do sublime (como o
mesmo professor nos explicaria a propósito do Pseudo-Longino), nenhum dizer vai
mais longe do que o do próprio poema. Mas essa altura e essa distância não nos
são dadas à partida; pelo contrário, ganham-se no trabalho da leitura,
constroem-se, adquirem-se.
O
que o professor nos ensinava era precisamente o modo de construir em nós o
poema que já existia antes de nós. Ensinava lendo, e ensinava pela análise do
poema: a leitura oral do poema, na nitidez solar da voz, era apenas o resultado
da leitura analítica do poema. Uma não ia sem a outra, leituras de uma só
leitura.
O
nome desse meu professor na Faculdade de Letras de Lisboa era David
Mourão-Ferreira. Dos anos 60 até hoje, David continua a ser um admirável leitor
de poesia.
2.
Querem uma prova? É simples. Comprem um disco recente: poemas de David
Mourão-Ferreira ditos pelo próprio, sob o título de Um monumento de palavras.
São 35 poemas, traçando uma espécie de arco autobiográfico, escolhidos e
"montados" com extrema inteligência, porque permitem a hábil dosagem
de todas as dimensões essenciais da obra de David Mourão-Ferreira, segundo uma
espécie de pulsação profunda que transforma estes textos numa espécie de poema
único. Quase todos as poesias foram escolhidas na Obra Poética (1948/1988),
na edição da Presença (curiosamente, o texto lido nem sempre corresponde à
versão do texto escrito: é o caso do final da ''Xácara dos campos deElvas").
Uma
nota de David Ferreira, filho do autor, e responsável por esta edição, esta
"gravação doméstica", como ele próprio diz, explica-nos que o
trabalho se realizou em casa do poeta, e por isso tem imperfeições. "Podem
ouvir-se, aqui e além, uma folha de papel, o movimento na cadeira, um carro a
passar lá fora ou o vento a entrar pelas frinchas da janela". Os leitores
de David vão talvez lembrar-se: "Eram, na rua, passos de mulher. / Era o
meu coração que os soletrava / Era na jarra, além do malmequer, / espectral o
espinho de uma rosa brava… // … // Era o ladrar dos cães na vizinhança. Era, na
sombra, um choro de criança.". Por isso, a cadeira, o carro, o papel e o
vento, como no poema da Fénix Renascida, dizem apenas, e uma vez mais, a
fragilidade da vida humana. Estão certos na gravação, como as palavras no texto.
São o incessante ruído de fundo da nossa existência: "as cigarras de
Cnossos", “este canto rouco rouco / das cigarras de Cnossos".
3.
Os meus pais levavam-me a ouvir recitais de João Villaret. Era uma maneira de
dizer que reconduzia o poema ao espaço do teatro, tornando-o dolorosamente
palavroso e incomodativamente dramático. Veio depois o modo austero, a prática jansenista
de inscrever o texto na voz, deixando todos os efeitos ao cuidado de quem escuta.
É claro que há textos e textos, e nós percebemos que é mais fácil ler em voz
alta Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro (mais fácil, mas mais arriscado) do que
ler Ricardo Reis. Luís Miguel Cintra, em múltiplas e modelares leituras de
poetas clássicos e contemporâneos, tem escolhido a via intermédia entre a
histeria e o recalcamento. No caso de David Mourão-Ferreira, o paradigma é o mesmo:
essencial é que as palavras existam, uma a uma, sem falhas, sem esmagamentos; e
depois é preciso que o som das palavras, o corpo sonoro das palavras, seja ele
próprio significante e que isso passe através daquilo que se convencionou chamar
"o grão da voz". Os grandes leitores são aqueles que sustentam na sua
própria voz as configurações desse granulado semântico. Isso exige que se
comece a aceitar a ideia de que uma poesia é habitada por vozes. Há poetas
inteiramente áfonos, incapazes de dizerem os seus próprios poemas (ou
massacrando-os horrivelmente). Com David Mourão-Ferreira, passe-se exatamente o
contrário. A poesia circula entre o texto e a voz, entre a voz e o texto – é um
escrever-dizer, é um dizer-viver (daí que o texto incorpore, como se fossem
palavras, a cadeira e o papel, o carro e o vento).
Se
David Mourão-Ferreira nos “explicava" tão bem o poema da Fénix Renascida,
é porque tinha um visível prazer em encontrar uma espécie de geometria oculta,
que se baseava no jogo dos quatro elementos (a água, o ar, a terra, o fogo).
Qualquer leitor de David sabe que a sua poesia se constrói segundo figuras geométricas
muito rigorosas, e que nesse trabalho repousa a grande sageza de saber
encontrar a harmonia do mundo. Mas “nós temos cinco sentidos: / são dois pares
e meio d'asas. // - Como quereis o equilíbrio?" Uma das extraordinárias
lições da leitura que David Mourão-Ferreira faz dos seus próprios poemas é esta
capacidade de desenhar na voz os diversos planos, criando perspetivas,
estratos, patamares, simetrias, e, depois, de permitir que a voz transborde para
o lado do excesso até se deixar sufocar numa espécie de crepitação noturna.
Tomemos o exemplo a que já aludi do "Romance de Cnossos". O
importante é que as seis vezes em que se dizem os versos “este canto rouco
rouco / das cigarras de Cnossos" nunca sejam idênticas, e que pela voz se
diga a diferença na repetição. O mesmo se poderia afirmar do magnífico poema
que é "As últimas vontades". Aqui a expressão reiterada é "deixa
ficar a flor". É o tipo de expressão que facilmente poderia convidar à
"teatralização". David evita-a cuidadosamente. A leitura é uma
oscilação extramente cautelosa entre uma certa coloquialidade e um retraimento
da emoção mais óbvia. Um último exemplo: quando se escreve "que as espadas
/ de amor se cravem no teu ventre", há uma vacilação entre a metáfora mais
pregnante, "as espadas de amor", e o efeito de transporte (“as
espadas / de amor"), que permite ler "de amor" como um advérbio (que
as espadas se cravem amorosamente no teu ventre). A leitura de David
Mourão-Ferreira consegue com subtileza manter esta indecisão.
É
por isso que este disco não é apenas a melhor iniciação à obra de um grande
poeta. É também uma lição de ler e uma prova provada de que é preciso analisar
primeiro para ler bem depois. A análise implica rigor, pudor, reserva, distância
– tudo formas de intensificar as emoções. Porque "é quando o poeta menos
grita / que mais se crê nas suas lágrimas". E fica isto, que já não é mau:
a vida toda num monumento de palavras. Será que alguns julgam que as palavras
são pouco, muito pouco, quase nada? Que importa? "Há de vir um Natal e
será o primeiro / em que o Nada retome a cor do Infinito".
“Um admirável leitor de poesia”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras
do jornal Público. Sábado, 30 de dezembro de 1995, p. 12.
CD-ÁUDIO
Título: Um monumento de palavras
Autor: David
Mourão Ferreira
Publicação: Portugal : EMI-Valentim de Carvalho, p1995
ISRC: EMI: 7243 8 36922 2 4
Descrição
Física: 1 disco (CD) (58
min.) : stereo; 12 cm + folheto (30 p.)
Notas: Gravado por David Ferreira em Setembro e
Outubro de 1995 em Cascais; No do Serviço de Aquisições e Tratamento Técnico
Área: Fonogramas
Não Musicais
Cota: 690.FER.05805
Disponível em: http://fonoteca.cm-lisboa.pt/cgi-bin/info3.pl?5805&CD&0
FAIXAS / ÁUDIO
- Certidão de nascimento
- Dos anos 30
- Natal à beira-rio
- Casas caiadas
- Teoria das marés
- Prelúdio
- Encontro
- Aviso de mobilização
- Xácara dos campos de Elvas
- Grito
- Ternura
- Casa
- Retrato de rapariga
- Legenda
- Pervigilium Veneris
- Ilha
- Capital
- E por vezes
- Voto de Natal
- Preâmbulo
- Música de cama
- Momento
- Deriva
- Romance de Cnossos
- Axis mundi
- Bicho da terra
- Os ramos
- Segunda elegia de Natal
- As últimas vontades
- Entre a sombra e o corpo
- Crepúsculo
- Interior
- A meio da noite
- Ladaínha dos póstumos Natais
- Testamento
CARREIRO, José. “Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre David Mourão-Ferreira, um admirável leitor de poesia”. Portugal, Folha de Poesia, 06-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/david-mourao-ferreira-um-admiravel.html