quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre David Mourão-Ferreira, um admirável leitor de poesia

por Eduardo Prado Coelho


UM ADMIRÁVEL LEITOR DE POESIA

1. Os primeiros versos eram assim: "Esse baixel nas praias derrotado / foi nas ondas Narciso presumido". Era um famoso soneto da Fénix Renascida, sobre a fragilidade da vida humana. Para nós, estudantes universitários de literatura, seria apenas mais um desses bordados barrocos em que o sentido se evaporava na acumulação das palavras. Foi então que o professor leu. Não leu apenas as palavras, leu verdadeiramente o poema. Melhor: não leu apenas um poema; disse-nos, através das palavras do poeta, toda a fragilidade da vida humana. Pouco a pouco, o texto poético transformava-se num quadro cheio de lugares vazios, que as palavras, inevitáveis, certeiras, absolutas, vinham preencher. Começámos a perceber que ler um poema não é envolvê-lo numa toada maís ou menos arfante e indiferenciada, mas um percurso inteligentemente preciso, em que a voz explicita as camadas de sentido, as suas flutuações, os pontos de equívoco e desequilíbrio. Começávamos a aprender a ler poesia – a ler verdadeiramente a poesia, isto é, essa linguagem de todos os dias subitamente intensificada para melhor se tornar cúmplice da intensidade que inconscientemente existe em nós próprios.
Depois, o professor começou a analisar o poema. Alguns, incuravelmente românticos, no sentido mais pejorativo da palavra, pensavam que um poema só existia como joia sagrada, flor selvagem, que se não pode tocar sem risco de destruição. É verdade que sendo a poesia o mais alto dizer, nas imediações do sublime (como o mesmo professor nos explicaria a propósito do Pseudo-Longino), nenhum dizer vai mais longe do que o do próprio poema. Mas essa altura e essa distância não nos são dadas à partida; pelo contrário, ganham-se no trabalho da leitura, constroem-se, adquirem-se.
O que o professor nos ensinava era precisamente o modo de construir em nós o poema que já existia antes de nós. Ensinava lendo, e ensinava pela análise do poema: a leitura oral do poema, na nitidez solar da voz, era apenas o resultado da leitura analítica do poema. Uma não ia sem a outra, leituras de uma só leitura.
O nome desse meu professor na Faculdade de Letras de Lisboa era David Mourão-Ferreira. Dos anos 60 até hoje, David continua a ser um admirável leitor de poesia.


2. Querem uma prova? É simples. Comprem um disco recente: poemas de David Mourão-Ferreira ditos pelo próprio, sob o título de Um monumento de palavras. São 35 poemas, traçando uma espécie de arco autobiográfico, escolhidos e "montados" com extrema inteligência, porque permitem a hábil dosagem de todas as dimensões essenciais da obra de David Mourão-Ferreira, segundo uma espécie de pulsação profunda que transforma estes textos numa espécie de poema único. Quase todos as poesias foram escolhidas na Obra Poética (1948/1988), na edição da Presença (curiosamente, o texto lido nem sempre corresponde à versão do texto escrito: é o caso do final da ''Xácara dos campos deElvas").
Uma nota de David Ferreira, filho do autor, e responsável por esta edição, esta "gravação doméstica", como ele próprio diz, explica-nos que o trabalho se realizou em casa do poeta, e por isso tem imperfeições. "Podem ouvir-se, aqui e além, uma folha de papel, o movimento na cadeira, um carro a passar lá fora ou o vento a entrar pelas frinchas da janela". Os leitores de David vão talvez lembrar-se: "Eram, na rua, passos de mulher. / Era o meu coração que os soletrava / Era na jarra, além do malmequer, / espectral o espinho de uma rosa brava… // … // Era o ladrar dos cães na vizinhança. Era, na sombra, um choro de criança.". Por isso, a cadeira, o carro, o papel e o vento, como no poema da Fénix Renascida, dizem apenas, e uma vez mais, a fragilidade da vida humana. Estão certos na gravação, como as palavras no texto. São o incessante ruído de fundo da nossa existência: "as cigarras de Cnossos", “este canto rouco rouco / das cigarras de Cnossos".
3. Os meus pais levavam-me a ouvir recitais de João Villaret. Era uma maneira de dizer que reconduzia o poema ao espaço do teatro, tornando-o dolorosamente palavroso e incomodativamente dramático. Veio depois o modo austero, a prática jansenista de inscrever o texto na voz, deixando todos os efeitos ao cuidado de quem escuta. É claro que há textos e textos, e nós percebemos que é mais fácil ler em voz alta Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro (mais fácil, mas mais arriscado) do que ler Ricardo Reis. Luís Miguel Cintra, em múltiplas e modelares leituras de poetas clássicos e contemporâneos, tem escolhido a via intermédia entre a histeria e o recalcamento. No caso de David Mourão-Ferreira, o paradigma é o mesmo: essencial é que as palavras existam, uma a uma, sem falhas, sem esmagamentos; e depois é preciso que o som das palavras, o corpo sonoro das palavras, seja ele próprio significante e que isso passe através daquilo que se convencionou chamar "o grão da voz". Os grandes leitores são aqueles que sustentam na sua própria voz as configurações desse granulado semântico. Isso exige que se comece a aceitar a ideia de que uma poesia é habitada por vozes. Há poetas inteiramente áfonos, incapazes de dizerem os seus próprios poemas (ou massacrando-os horrivelmente). Com David Mourão-Ferreira, passe-se exatamente o contrário. A poesia circula entre o texto e a voz, entre a voz e o texto – é um escrever-dizer, é um dizer-viver (daí que o texto incorpore, como se fossem palavras, a cadeira e o papel, o carro e o vento).
Se David Mourão-Ferreira nos “explicava" tão bem o poema da Fénix Renascida, é porque tinha um visível prazer em encontrar uma espécie de geometria oculta, que se baseava no jogo dos quatro elementos (a água, o ar, a terra, o fogo). Qualquer leitor de David sabe que a sua poesia se constrói segundo figuras geométricas muito rigorosas, e que nesse trabalho repousa a grande sageza de saber encontrar a harmonia do mundo. Mas “nós temos cinco sentidos: / são dois pares e meio d'asas. // - Como quereis o equilíbrio?" Uma das extraordinárias lições da leitura que David Mourão-Ferreira faz dos seus próprios poemas é esta capacidade de desenhar na voz os diversos planos, criando perspetivas, estratos, patamares, simetrias, e, depois, de permitir que a voz transborde para o lado do excesso até se deixar sufocar numa espécie de crepitação noturna. Tomemos o exemplo a que já aludi do "Romance de Cnossos". O importante é que as seis vezes em que se dizem os versos “este canto rouco rouco / das cigarras de Cnossos" nunca sejam idênticas, e que pela voz se diga a diferença na repetição. O mesmo se poderia afirmar do magnífico poema que é "As últimas vontades". Aqui a expressão reiterada é "deixa ficar a flor". É o tipo de expressão que facilmente poderia convidar à "teatralização". David evita-a cuidadosamente. A leitura é uma oscilação extramente cautelosa entre uma certa coloquialidade e um retraimento da emoção mais óbvia. Um último exemplo: quando se escreve "que as espadas / de amor se cravem no teu ventre", há uma vacilação entre a metáfora mais pregnante, "as espadas de amor", e o efeito de transporte (“as espadas / de amor"), que permite ler "de amor" como um advérbio (que as espadas se cravem amorosamente no teu ventre). A leitura de David Mourão-Ferreira consegue com subtileza manter esta indecisão.
É por isso que este disco não é apenas a melhor iniciação à obra de um grande poeta. É também uma lição de ler e uma prova provada de que é preciso analisar primeiro para ler bem depois. A análise implica rigor, pudor, reserva, distância – tudo formas de intensificar as emoções. Porque "é quando o poeta menos grita / que mais se crê nas suas lágrimas". E fica isto, que já não é mau: a vida toda num monumento de palavras. Será que alguns julgam que as palavras são pouco, muito pouco, quase nada? Que importa? "Há de vir um Natal e será o primeiro / em que o Nada retome a cor do Infinito".

Um admirável leitor de poesia”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 30 de dezembro de 1995, p. 12.




CD-ÁUDIO

Título: Um monumento de palavras
Publicação: Portugal : EMI-Valentim de Carvalho, p1995
ISRC: EMI: 7243 8 36922 2 4
Descrição Física: 1 disco (CD) (58 min.) : stereo; 12 cm + folheto (30 p.)
Notas: Gravado por David Ferreira em Setembro e Outubro de 1995 em Cascais; No do Serviço de Aquisições e Tratamento Técnico
Cota: 690.FER.05805

FAIXAS / ÁUDIO
  1. Certidão de nascimento
  2. Dos anos 30
  3. Natal à beira-rio
  4. Casas caiadas
  5. Teoria das marés
  6. Prelúdio
  7. Encontro
  8. Aviso de mobilização
  9. Xácara dos campos de Elvas
  10. Grito
  11. Ternura
  12. Casa
  13. Retrato de rapariga
  14. Legenda
  15. Pervigilium Veneris
  16. Ilha
  17. Capital
  18. E por vezes
  19. Voto de Natal
  20. Preâmbulo
  21. Música de cama
  22. Momento
  23. Deriva
  24. Romance de Cnossos
  25. Axis mundi
  26. Bicho da terra
  27. Os ramos
  28. Segunda elegia de Natal
  29. As últimas vontades
  30. Entre a sombra e o corpo
  31. Crepúsculo
  32. Interior
  33. A meio da noite
  34. Ladaínha dos póstumos Natais
  35. Testamento




CARREIRO, José. “Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre David Mourão-Ferreira, um admirável leitor de poesia”. Portugal, Folha de Poesia, 06-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/david-mourao-ferreira-um-admiravel.html


segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Se a morte fosse uma rosa obscura – Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Roberto Juarroz




SE A MORTE FOSSE UMA ROSA OBSCURA

1. Foi tarde, por volta de 89, a partir de uma antologia de Roger Munier, um dos seus tradutores franceses, que descobri a poesia de Roberto Juarroz. Anteriormente, este nome designava alguém que me aparecia vinculado ao amplo círculo de amizades e cumplicidades de António Ramos Rosa. Era já uma excelente referência. Mas as primeiras leituras de Juarroz são absolutamente decisivas quanto ao desenrolar do processo de informação: ou há uma rejeição, e isso sucede frequentemente, por motivos a que tentarei voltar com mais cuidado e demora, ou há uma fascinação, que faz que durante meses e meses esta poesia passe a intervir abusivamente em tudo o que escrevemos ou lemos, como uma espécie de horizonte silencioso e voraz. No meu caso, reconheço-o com prazer, foi a fascinação que prevaleceu.
Nunca cheguei a ver Juarroz ao vivo. Sei que passou pelo Centro Pompidou, onde leu alguns dos seus poemas, sei também que era um leitor espetacular, com uma elocução apaixonada e dramática. Tomo agora conhecimento pelos jornais que morreu há semanas, em Buenos Aires, com setenta anos de idade. Numa obra que obstinadamente se chamou desde o princípio Poesia Vertical, e de que pude ler até ao décimo terceiro volume, pergunto-me em que termos se concluiu: com poemas disseminadamente verticais, ou com novos volumes prolongando a academia implacável da numeração?
Num belo volume de pensamentos e aforismos, também eles designadamente como "verticais", para o qual o meu amigo Albano Martins me chamara a atenção, pode-se ler a dada altura: "Cada coisa traz em si a sua própria antítese. Não poderia existir sem ela. A condição da realidade é a sua própria contradição. Imaginar uma realidade sem contradição é uma outra contradição". Isto explica um pouco o mecanismo que move os textos de Juarroz – uma espécie de vocação exacerbada para a dialética. Noutros termos, podemos até recear que o comando das operações não pertença às palavras (o que geralmente acontece, mas nem sempre), mas, sim, a uma lógica abstrata e exangue do pensamento. Porque Juarroz não aposta nem numa metaforicidade expansiva, nem numa relação privilegiada com a realidade. As metáforas, quando existem, constroem-se quase sempre no próprio poema, à vista do leitor, e parecem encaixilhadas. O real, esse, é convocado sempre como um tipo de "exemplo" ou como um "motor de arranque". Os textos são essencialmente silogismos alargados, em que o leitor sente as linhas de recorte, os pontos em que as colagens se fizeram, o peso das dobradiças que rangem.
No entanto, funciona. E de que modo! Porque esta poesia em que o pensamento parece sobrepor-se à linguagem tem a extraordinária coragem de nos propor um pensamento em incessante derrota, continuamente confrontado com tudo o que lhe falta, e nos falta, com tudo o que nos escapa, com tudo o que é invisível, pela razão muito simples de ser excessivamente visível, próximo, fraternal: "Y aprender la transparência es el comienzo/ de aprender el invisible".
Àqueles que poderiam censurar Juarroz pela construção ostensivamente geométrica dos seus poemas, ele poderá responder que a poesia é em si mesma "uma outra ordem do espaço: uma geometria do aberto": "Hay ángulos que no pueden cerrarse / y que ninguna linea convertirá en figura. / ElIos resumen el destino. / Tampoco el destino puede cerrarse. // EI amor conoce esos ángulos / y con frecuencia acude a ellos. / También el pensamiento y la palabra. / También los párrafos deI viento. // Pero no hay instrumento que puede medirlos, / no hay geometria que los abarque. / ElIos resumen a otro orden deI espacio: / la geometría deI abierto."


2. Leia-se esse brevíssimo poema de Juarroz: "Rostros que van, / rastros ue vuelven. // Hay una sola diferencia: la lluvia, en el camino, / moja más a los que vuelven." De certo modo, grande parte da poética de Roberto Juarroz pode ser deduzida a partir destes versos. O esquema fundamental é o do quiasmo, figura que designa uma espécie de simetria cruzada. No entanto, o termo final nunca é idêntico ao termo inicial. Precisamente pelo caminho há rastro de uma diferença quase invisível, mas que vem desequilibrar o todo, desconjuntá-lo, barrar de impossibilidade qualquer ideia de sistema ou clausura, esvaziar o pensamento até à nudez do mundo, ao deserto imenso das palavras.
A ideia de verticalidade responde a este efeito siderante da diferença, "este defeito fundamental que o acaso distribui": “El errar que comete una cosa / aI caer de tus manos, la absurda equivocación de una hoja / al no caer sobre la tierra, / la confusíon de un aroma / que emigra de una flor / y se va perfurmar un pensamíento / no deben atribuirse / a sus modales inexpertos / sino al defecto fundamental que el azar distribuye / como una noche quebrada / por el apocalipsis encubierto de los dias." E daí a ideia obsessiva de que, no jogo dos extremos aparentemente simétricos, há um que sempre falta: "El misterio no tiene dos extremos: / tiene uno. / El unico extremo del mistério está en el centro / de nuestro proprio corazón. // sin embargo, / no dejaremos nunca de buscar otro extremo, / el extremo que no existe".
3. É por isso que a energia de pensamento que move esta poesia não deve assustar-nos. Ela propõe-se como a linha rasa da humildade mais obstinada perante o imenso desafio que é o das palavras e o da realidade. Este pensamento não forma conceito, é evanescente e biodegradável, desfaz-se numa lógica de fumo, no tecido mais ralo da matéria: "Habrá partículas tan finas, / tan leves, tan discretas, / que duren siempre en suspensíon?".
Roberto Juarroz sabe que tudo é sempre começo ("Hasta dios no es más que un comienzo") e afloramento ("Vivir parece sólo un roce con el ser"). Esta poesia confronta-se permanentemente com a ausência e com a fuga incoativa das formas. Combate permanente que encontra o seu espelho de metáforas da morte: "La muerte no tiene forma. / La vida dona sus formas a la muerte. / No sabemos si ésta a veces las adopta / porque las formas no regresan. // Si la muerte fuese una rosa oscura / y el hombre tivera ojos para verla, / sabríamos que sucede con las formas. // Pero entonces y no sería necessário / conocer el destino de las formas: / basteria con aspirar profundamente / el oscuro perfume de esa rosa.”

Se a morte fosse uma rosa obscura”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 29 de abril de 1995, p. 12.




CARREIRO, José. “Se a morte fosse uma rosa obscura – Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Roberto Juarroz”. Portugal, Folha de Poesia, 04-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/se-morte-fosse-uma-rosa-obscura.html


domingo, 3 de novembro de 2019

Maria Gabriela Llansol, por Eduardo Prado Coelho



ERVILHAS E BACH

1. Página 24: "e a um dado momento senti que o Diário ia tornar· se um livro/obra, com seus moventes e figuras contracenando comigo na primeira pessoa." Donde, "Lisboaleipzig 1 – o encontro inesperado do diverso" (Rolim), texto de Maria Gabriela Llansol, surge sob a forma de Diário – isto é, os fragmentos de escrita têm lugar e data, embora, primeira transgressão às normas do género, a sequência cronológica apareça redistribuída segundo uma lógica que vai para além da mera ordenação dos dias. Digamos que a "forma diário" pode ser definida como uma estrutura material, na medida em que "são estruturas materiais que permitem a transformação da matéria em matérias mais leves".
Vale a pena ainda sublinhar outro ponto. Este livro inclui a abertura de Lisboaleipzig, mas na página 82 encontramos uma frase-dobradiça, "Dedico-vos estes textos", que permite a passagem para uma categoria de textos que podem ser classificados num duplo e talvez paradoxal estatuto: são textos circunstanciais, isto é, forçados por circunstâncias ditas "exteriores" (a entrega de um prémio, uma viagem ao estrangeiro, uma solicitação para uma conferência, o prefácio para um livro), mas, ao mesmo tempo, são textos "teóricos" (isto é, parecem estruturar a concetualidade emergente no textos "literários", embora, na medida em que são textos que deliberadamente “se escrevem”, cada estrutura que se faz é no mesmo gesto uma estrutura que se desfaz, porque "o pensamento é uma região nebulosa que se torna clara através de linhas geométricas que se fraturam, finalmente, quando escrevo").
Como propõe Llansol, ao sair da leitura (donde se não sai) de Spinoza, e de um dos seus comentadores, Martial Guéroult, o texto que "vou escrever" é já o texto que "voo a escrever": "quem voa, trabalha para tornar mais complexa, e aberta, a natureza”.


2. Nunca Maria Gabriela Llansol explicitou tão bem as dificuldades que se colocam à aproximação da sua obra. Ela própria nos fala num "pacto de inconforto". Arranca do exemplo de uma frase: "Uma parte da minha vida ajustou-se ao pátio." E comenta-a assim: "Quando escrevi esta frase, eu estou a ver o pátio, mas quem não lê não sabe de quem é a vida que se ajustou ao espaço do pátio."
Notemos: primeiro, a passagem do passado ("escrevi") para o presente ("estou a ver"); segundo, a distinção entre aquele-que-lê-não-lê ("mas quem não lê não sabe) daquele que lê-e-sabe-o-que-é-ler.
E Maria Gabriela Llansol acrescenta: "Muitos dos que me leem têm dificuldade em ajustar-se ao pacto de leitura que os meus textos supõem: o de saberem quem está emancipado. E sabê-lo sem sombra de dúvida. Os meus textos supõem um pacto de inconforto." E um pouco mais adiante surge este dizer luminoso: "Devo reconhecer que o meu texto, ao deixar inseguro o sujeito que enuncia, se dirige de facto ao ansiar do coração, e o coloca na sombra da dúvida. E, se o coração persiste em ler, é, porque há nele um fulgor estético que o ilumina o próximo passo, e o faz apoiar no detalhe justo e irrecusável."
Permitam-me que volte a sublinhar alguns pontos. Primeiro, a passagem do "saber sem sobra de dúvida", expressão comum, que designa um saber de claridade absoluta, sem sombra, sem resto, sem réstia de noite, solar e diurno, pretendendo ser capaz de olhar o sol, e a morte, de frente, para um saber que viaja na sua própria sombra, que a aceita, que a trata por tu, que se abriga nela, que se coloca à sombra da sua sombra. Llansol nunca enfatiza o enigma: domestica-o sem o açaimar, torna-o doméstico: "o meu real é estar a descascar estas ervilhas e ouvir Bach" (note-se a insistência do concreto: "estas").
Segundo ponto: o texto deixa inseguro, mas quem? "O sujeito que enuncia." Isto é, não se trata apenas da insegurança do leitor face a um texto que o autor dominaria, mas da insegurança liminar daquele que escreve. Escrever não é mais do que este passar a insegurança de mão em mão. Ou, se preferirem, de coração em coração. Porque, se o leitor que eu sou continua a ler, mesmo quando o sentido vacila e a razão se desassossega, é porque, em mim, ou melhor, em nós, é o coração que persiste em ler. Donde, aquele que sabe ler com o coração. Mas Llansol acrescenta algo que corresponde precisamente ao que eu aqui mesmo tenho tentado fazer: a leitura-do-coração apoia-se no "detalhe justo e irrecusável".
Este aspeto é absolutamente fundamental: porque, como acontece com quase todos os grandes autores, o leitor pode pegar no último livro de Llansol e supor que se trata "do que já conhece" (ou do [que] se habitou a desconhecer). Só a leitura rasante ao texto é capaz de captar "o detalhe justo e irrecusável". Só a leitura encostada ao coração do texto, só a leitura clínica de uma respiração, desabitua e permite surpreender a diferença, ou melhor, a microscópica explosão de diferenças, ou melhor ainda, porque já nem sou eu quem o diz, mas um coração partilhado "o encontro inesperado do diverso". Donde “escrever é levar a leitura pelo seu caminho de modo que quem lê sobreviva ao seu encontro".
Barthes propôs um dia a distinção entre textos de "plasir" e textos de "jouissance". Os textos de "plasir" são uma arte de viver – situam-se na face interna do enigma da vida, percorrem-no frase a frase, como uma carícia, um afago animal antes do sono. Os textos de "jouissance" são, na sua verticalidade inexorável, um exercício de sobrevivência – suspendem-se, como um suicida no rebordo da janela, na face externa do enigma da vida, mas escrevem-se letra a letra, tropeçando na ilegibilidade destas letras, e por isso resistem à queda: o texto é "um espaço matinal de contra-sangue".
3. Devemos, portanto, dizer claramente que "Lisboaleipzig" é um texto de “jouissance", com os riscos inerentes para quem escreve e para quem lê. Porque a "jouissance" passa por um eclipse, uma rasura, uma síncope do sentido, um momento de autismo transcendental, que só a violência do texto pode ultrapassar. Neste livro podemos encontrar o relato de uma cena primitiva que é aquela, admirável, em que Maria Gabriela conduz a criança emudecida, Ad, até ao lugar do "texto sem fim" – "feito de sinais, gatafunhos, que escrevem, mutuamente, que as nossas presenças não nos fazem mal, nem medo". Esta cena repete a crise criativa de outra figura autobiograficamente fundamental: a da rapariga que temia a impostura da língua.
Mas é afinal em cada dia, em cada manhã do livro, em cada despertar do texto, que esta cena regressa, volta e se revolta; "Sentei-me na cama, com a mão na boca, levantada pela palavra; a primeira fase de articulação é inaudível, depois, a garganta sussurra, desce o papel de pensar para a mão direita que guia o sussurro sobre o lápis; enfim, é manhã de sábado, e o dia que amanhece – vital para mim. Estas emoções, em certos períodos, repetem-se quotidianamente.”


“Ervilhas e Bach”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 15 de outubro de 1994, p. 12.




CARREIRO, José. “Maria Gabriela Llansol, por Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 03-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/maria-gabriela-llansol-por-eduardo.html