domingo, 24 de maio de 2020

OVA ORTEGRAFIA, Maria Velho da Costa



UM TEXTO DE MARIA VELHO DA COSTA
Em Outubro de 1973, recebi no interior da Guiné mais uma daquelas encomendas que o meu querido amigo e poeta J. H. Santos Barros me ia fazendo chegar como contributo para a minha sanidade mental e sobrevivência no pântano. Era a manifestação possível de amizade por parte de quem já fizera a sua experiência de sobrevivência em Angola.
Essa encomenda incluía um precioso livrinho de Maria Velho da Costa, «Desescrita», editado nesse mesmo ano e que trazia um notável texto curto intitulado «Ova ortegrafia». Publicado anteriormente no jornal «República» em Junho de 1972, era um inteligente e sagaz exercício literário e linguístico sobre a censura, melhor dizendo, sobre os censores, os «cortadores» da palavra, da língua.
Convocando, em registo derrisório,  alguns chavões do discurso político dominante e também os preconceitos contra o experimentalismo literário, mimetizando  a «escrita do corte»  (a cortegrafia), «Ova Ortegrafia» constituía ainda assim uma manifestação de experimentalismo, instaurava no seu interior imprevistas e subtis derivas semânticas e constituía uma denúncia da instituição censória, jogando abertamente no terreno do inimigo, a quem o texto seria dado a  ler.
Deixo abaixo o texto, em dupla evocação:  da autora e  de J. H. Santos Barros, falecido abruptamente a 20 de Maio de 1983.
 Urbano Bettencourt, 2020-05-24



OVA ORTEGRAFIA
Maria Velho da Costa
Ecidi escrever ortado; poupo assim o rabalho a quem me orta. Orque quem me orta é pago para me ortar. Também é um alariado. Também ofre o usto de ida. Orque a iteratura deve dar sinal da ircunstância, e não tem ustificação oral. E ais deve ter em conta todos os ofrimentos, esmo e rincipalmente os daqueles ujo rabalho é zelar pela oralidade e ordem ública – os ortadores.
Eu acho que enho andado esavinda omigo e com a grei, com tanta iberdade de estilos e emas e xperimentalismos e rocadilhos  que os ríticos e  eitores dizem arrocos e os ortadores, pelo im pelo ão, ortam. A iteratura eve ser uma oisa éria e esponsável. Esta é a minha enúncia ública. (Eço esculpa de esitar nalguns ortes, mas é por pouco calhada neste bom modo de scrita usta ao empo e aos odos).
Izia eu que o ortuguês que ora, nesta ora de rudência e sforço, se não reduz à orma imples, não erve a vera íngua da Pátria. (Por enquanto só orto ao omeço, porque a arte de ortar não é fácil; rometo reinar-me até udo me aír aturalmente ortado e ao eio e ao im).
Outros jovens me eguirão o rilho. Odos não eremos emais para ervir na etaguarda os que, em árias frentes, por nós se mputam.
A issão do scritor é dar estemunho e efrigério aos e dos omentos raves da istória, ao erviço dos ideais da sua omunidade; ervir a oz do ovo, espeitar a oz dos overnantes egítimos.
Olegas, em ome da obrevivência da íngua, vos eço pois:
Reinai-vos a ortar-vos uns aos outros
como eu me ortei.
(«Desescritas». Afrontamento, 1973)
 
 

CARREIRO, José. “Ova Ortegrafia, Maria Velho da Costa”. Portugal, Folha de Poesia, 24-05-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/05/ova-ortegrafia-maria-velho-da-costa.html


 
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quinta-feira, 21 de maio de 2020

Morrer de Brasil



Morrer de Brasil

A Flávio Migliaccio
e aos sem ração ou conforto
sem-terra
sem-teto
aos movimentos de mulheres
LGBTI
às centrais sindicais
às organizações de favelas
de olhos aparelhados em campo de pregos
- tantos houvesse
jamais votei em facho,
esse que da vida é porcino.
Menino de perdidos cantos,
dai engenho a uma vida inteira
pois de sorte boa do planalto nem votos
apenas sangue e língua viperina.

José Carreiro, 2020-05-21

Análise textual

O poema "Morrer de Brasil", de José Maria de Aguiar Carreiro, é uma espécie de manifesto contra a opressão e a injustiça social que afetam os mais vulneráveis da sociedade brasileira. O título é uma frase forte que sugere a situação desesperante de muitos brasileiros, especialmente os mais pobres e marginalizados. A homenagem ao ator Flávio Migliaccio, que na sua carta de despedida lamenta a situação do país e a desilusão com a humanidade, dá uma dimensão ainda mais trágica ao poema.

O poema começa com uma referência direta aos mais pobres da sociedade e aos grupos que lutam por uma vida digna: "sem-terra/sem-teto/aos movimentos de mulheres/LGBTI/às centrais sindicais/às organizações de favelas". Trata-se, pois, de uma homenagem aos "sem ração ou conforto" que são vítimas de opressão e exclusão social. O sujeito poético reconhece a importância dos movimentos de mulheres e LGBTI, bem como das organizações de favelas e das centrais sindicais, que lutam pela igualdade e justiça social.

Ele mostra solidariedade para com essas pessoas e afirma que nunca votou em "facho", um termo pejorativo para designar os políticos de extrema direita que promovem a intolerância e apoiam medidas autoritárias e repressivas. A escolha da palavra "porcino" para caracterizar o facho é significativa, pois o porco é um animal que muitas vezes é associado à sujidade. Deste modo, o sujeito poético critica os políticos fascistas e sua falta de humanidade, comparando-os a porcos.

O sujeito poético utiliza ainda a imagem de um menino que canta canções perdidas e que precisa encontrar engenho para enfrentar as dificuldades da vida. É como se este menino representasse as comunidades marginalizadas que lutam pela sobrevivência num país que as marginaliza. A sorte boa do planalto, que o sujeito poético menciona, não é compartilhada por estas comunidades, que só conhecem a viperina língua dos opressores. Diante das dificuldades do país, não se pode contar com a sorte ou com a benevolência do poder político. É necessário lutar, com todas as armas à disposição, para se fazer ouvir e transformar a realidade: "dai engenho a uma vida inteira/pois de sorte boa do planalto nem votos/apenas sangue e língua viperina".

O poema "Morrer de Brasil" é um grito de dor e de esperança, um apelo à consciência de todos os que se preocupam com a justiça social e com o futuro da sociedade brasileira. É também uma homenagem àqueles que, como Flávio Migliaccio, lutaram e sofreram por um país mais justo e mais humano.

Análise textual solicitada em 19-02-2023 a ChatGPT (Feb 13 Version)disponível em https://chat.openai.com/chat (texto revisto e adaptado)






Cajuína

Existirmos, a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria-vida era tão fina
e éramos olharmo-nos intacta a retina
A Cajuína, cristalina em Teresina

“Cajuína” in Cinema transcendental, 1979, Caetano Veloso


“Existirmos: a que será que se destina?” é o primeiro verso de “Cajuína”, uma canção de Caetano Veloso. Bela, solar e dançante, “Cajuína” refere-se a uma bebida homónima à base de sumo de caju, típica de Teresina, capital do Piauí.

Caetano inspirou-se no néctar cristalino e doce para escrever um forró em homenagem a Torquato Neto, poeta e parceiro que suicidou-se muito novo, em 1972, não só mas também por não aguentar os anos de chumbo da ditadura militar brasileira.

Torquato escreveu, Caetano musicou e Gal Cantou: “Mamãe, mamãe não chore / Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz, Mamãe, seja feliz / Mamãe, mamãe não chore / Não chore nunca mais, não adianta eu tenho um beijo preso na garganta / Eu tenho um jeito de quem não se espanta / Eu tenho corações fora peito / Mamãe, não chore, não tem jeito.”


Não teve jeito. Para Torquato. Nem para Flávio Migliaccio, ator veterano de tantas novelas que também passaram aqui em Portugal e que há alguns dias se enforcou. Flávio deixou uma carta a dizer: “Tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este e com esse tipo de gente que acabei encontrando.”

Alguém escreveu que Migliaccio morreu de Brasil. A frase faz sentido, mas é imprecisa. Morrer de Brasil refere uma doença mais geral, endémica, que atravessa séculos. Sempre se morreu de Brasil, às vezes de escravidão, seca no sertão, outras pela inflação ou por corrupção e tantos outros “ãos”, que fazem boas rimas pobres, mas nunca uma solução.

Para se morrer de Brasil não é necessário estar no Brasil. O mundo morre de Brasil a cada árvore queimada da Amazónia, a cada criança favelada que não sobrevive pela ação do tráfico, pela falta de esgotos, pela subnutrição. Crescida, tal criança poderia ser um Pelé, um Vinicius de Morais, uma Elis Regina, um Ayrton Senna e assim deixar o mundo mais vivo. Mas não.

Portugal também morre de Brasil pois a tragédia moral e social de um país, qualquer país, é uma tragédia que contagia, que ensombra toda uma ideia de civilização. Mais ainda quando acontece a um povo com quem partilhamos o sangue e a língua.

Mas, repito, a doença agora é outra. Ou outras. Há a covid e há o bolsonarismo. São vírus de cepas parecidas, levam à falência de órgãos vitais, seja um pulmão ou o coração ou cérebro ou o congresso nacional.

Pode não parecer, mas este texto é sobre a vida. Falar de mortos é lembrar aos vivos (inclusive eu) que sobramos nós para fazer alguma coisa.

“Existirmos: a que será que se destina?”

Humildemente, respondo: para vencer as trevas é preciso luz, é preciso arte, é preciso diálogo, é preciso poesia, é preciso redescobrir a empatia.

O antídoto para uma coisa má costuma ser o seu antónimo: uma coisa boa. Esta aí: pessoas boas (e o Brasil tem destas quase duas centenas de milhão) precisam compreender isto e atuar enquanto há tempo. Só assim é que poderemos (todos) não morrer mais de Bolsonaro.

Edson Athayde, “Como não morrer de Bolsonaro”, Lisboa, Jornal de Negócios, 2020-05-20




CARREIRO, José. “Morrer de Brasil”. Portugal, Folha de Poesia, 21-05-2020 (última atualização: 19-02-2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/05/morrer-de-brasil.html


domingo, 10 de maio de 2020

A poética pandémica



Há uma espécie de poética pandémica, um discurso levantado do vocabulário que subitamente se inventou ou colocou a uso, e que vai procurando dar sentido a tanto que começámos por não saber explicar.

Metidos em cárcere, por mais privilegiado, expressões novas ou recuperadas procuram servir de clarões naquilo que tentamos dizer, não apenas para sabermos como nos sentimos mas, sobretudo, numa ansiosa estratégia para entender como ficaremos depois disto.
O vocabulário anda à procura do sentido, anda à procura do futuro, naturalmente que para nos educar acerca de como chegar ao desejável. Os nomes que damos aos assuntos deste cárcere é também como pensamos que sairemos dele.
Uma das razões para que os escritores se encontrem detidos no monotema do Mundo passa pela sensação desnatural de convocar outras dimensões da vida que não a sobrevivência elementar a um inimigo invisível e ubíquo. Qualquer esforço para apelar a causas e interesses que não se relacionem com o espectro da realidade atual acaba por parecer uma pretensão arrogante, até uma forma de inconsciência ou desrespeito para com quem batalha, padece, morre ou arrisca morrer.
Os escritores estão como oráculos a auscultar na página branca, a partir de seus obstinados diários da pandemia, o que a sorte, a ciência e a política ditam para amanhã. Contudo, o mais que se vai lendo são deriva e angústia. Os escritores encontrarão uma solução tão à sorte quanto o mais afincado cientista. A intuição aponta mas não é concreto esclarecimento. É uma inclinação. Tem mais de medo ou desejo do que de evidência puramente racional.
O esforço que nos está a competir a todos - nós, aqueles cujo contributo maior é o isolamento mais rigoroso possível - passa por uma revisão ética e pela higienização dos gestos e dos compromissos. E isso começa no cuidado com o discurso, e a força de não compactuar com as narrativas extremas.
Estamos num tempo em que os grandes jogadores apostam nos extremos. Pois é exatamente contra quem nos devemos atempar. Entre tudo quanto se procura desenhar, parasitando agora o susto da pandemia e as inevitáveis faltas que acontecerão, o mais grave do futuro será colaborarmos ingenuamente com quem dissemina já discursos de intolerância e ódio para ratificar a intolerância e o ódio e, naquela poética pandémica que define sobretudo como nos preparamos para uma nova normalidade, convencer as pessoas a quererem isso mesmo: a intolerância e o ódio.
Se puderem atentar no modo como falam do que nos acontece, escolham a paritária, livre, construção humana. Só assim fará sentido que mereçamos sequer voltar às ruas um dia.

Valter Hugo Mãe, Jornal de Notícias, 2020-05-10
LUSOFONIA Plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Barcas novas - variações de uma cantiga de Joan Zorro

Em Lixboa, sobre lo mar  |  Joan Zorro




A cantiga de amigo “Em Lixboa, sobre lo mar” (texto que a seguir transcreve, integrado num poema do século XX) encontra-se registada nos cancioneiros B (Biblioteca Nacional, nº 1157) e V (Vaticana, nº 759).
Trata-se de uma cantiga de amigo (marinha), de dístico de rima toante (í-o e á-o), com refrão composto de duas partes (uma intercalada entre o 1º e o 2º verso do dístico e a outra no final da estrofe): fala a donzela (namorada) da sua decisão ou desejo de ir ver o barco / navio, que o rei mandou preparar para uma missão e nela deseja partir com o seu amigo. É seu autor João Zorro, o jogral de Lisboa e do Tejo (viveu certamente durante o reinado de D. Dinis), e sobretudo das suas barcas, tão bem evocadas no século XX por Fiama Hasse Pais Brandão. https://estrolabio.blogs.sapo.pt/394297.html

Em Lixboa, sobre lo mar,
barcas novas mandei lavrar,
       ai mia senhor veelida!

Em Lixboa, sobre lo lez,
barcas novas mandei fazer,
       ai mia senhor veelida!

Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
       ai mia senhor veelida!

Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
       ai mia senhor veelida!

                           João Zorro

Lisboa tem suas barcas
agora lavradas de armas

Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens

Barcas novas levam guerra
as armas não lavram terra

São de guerra as barcas novas
no mar deitadas com homens

Barcas novas são mandadas
sobre o mar com suas armas

Não lavram terra com elas
os homens com sua guerra

Nelas mandaram meter
os homens com sua guerra

Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas

Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas.

Fiama Hasse Pais Brandão, Barcas Novas, Lisboa: Editora Ulisseia, 1967, p.9.


Tópicos de análise:
  • Estrutura formal do poema e sua relação com o conteúdo;
  • Poema de intervenção;
  • Relações intratextuais com a lírica trovadoresca;
  • Atualidade do tema.


Sobre o poema “Barcas novas”, de FHPB:
Este poema é constituído por dois poemas para mostrar o próprio processo de recriação:  o segundo poema retoma a forma da Cantiga de Amigo e canta o sentimento de dor e tristeza causado pela  partida dos soldados para a guerra colonial. O ritmo e a repetição das palavras produzem um jogo de sentidos  que mostram que a Guerra não tem sentido. Este poema  faz referência a uma fase dolorosa da história de Portugal: a Guerra Colonial.

Fiama Hasse Pais Brandão toma como epígrafe um poema antigo – mais especificamente uma cantiga de amor de João Zorro (B 1151ª-1152ª, V 754) – que, citado integralmente, se incorpora ao texto do presente como parte essencial dele.
Inicialmente, somos levados a ler esse poema a partir dos con­ceitos de dialogismo e bivocalidade propostos por Bakhtin (2008). Em um movimento paródico, o poema de Fiama toma o texto de João Zorro como ponto de partida, e, usando o mesmo vocabulário e o mesmo estilo da Cantiga de Amor original, cria com ela um diálogo no qual se contra­põem perspectivas passadas e presentes. Na epígrafe, é dado um tema, o do trabalho humano ligado ao mar que se materializa na forma de barcas; no desenvolvimento feito por Fiama, as barcas são qualificadas, não são barcas quaisquer, mas barcas lavradas de armas que partem para destruir. Assim, o segundo texto propõe em relação ao primeiro uma mudança significati­va: nele o lavrar do poema base – que tem o teor de sacrifício, trabalho e também de oferenda (afinal as barcas parecem estar sendo ofertadas à bela senhora aludida no refrão) – se faz presente, mas ganha por complemento uma série de novos objetos perversos e malignos. Em um movimento de contínuas substituições, que mimetiza em parte a estrutura paralelística da cantiga de Zorro,5 a autora termina por fazer com que todos esses termos – a saber, homens, armas, barcas e guerra – se equivalham ao final. O re­sultado é um suplemento de sentido que subverte a integridade do poema original: o que está aqui em questão não é mais um trabalho que gera valor (barcas), mas um trabalho que produz só perda e morte, uma vez que é um trabalho de guerra.
O contexto português, no qual ambas as produções se inserem, torna essa contraposição particularmente significativa. Lembremos que o trabalho com o mar é uma das tradições mais fortes desse país que é rico em litoral e pobre em terras agricultáveis. Assim, ao se colocarem frente a frente, os dois poemas mostram dois lados (ou ainda, dois momentos) de uma discussão maior que toca questões relativas a história e a identidade nacional portuguesa. No primeiro desses momentos, teríamos represen­tado o mundo da tradição: um mundo no qual os objetos são produzidos a partir de saberes e técnicas aprendidas com os antepassados, carregam uma experiência humana e comunitária, inserindo-se de maneira integra­da na vida daqueles que os fabricam e utilizam. Nesse mundo, o poeta, que naturalmente se vincula ao seu meio, aos costumes orais do seu povo e à memória herdada do passado, lembra muito o próprio artesão em seu fazer (BENJAMIN, 1980, p. 63). Em oposição direta e contrária a isso, temos, no segundo momento, o mundo moderno do trabalho reificante e alienado. Aqui, não está em questão a manufatura de um novo objeto que se integra a seu meio (como a barca, que depois de pronta ganha o mar e toca o coração da bela dama do refrão); o lavrar invocado por Fiama não indica um fazer real, mas é metáfora de um antitrabalho (o trabalho de destruição que já mencionamos acima).
O que Fiama Hasse Paes Brandão nos mostra – e a disposição dos dois blocos de texto na página sugere justamente isso – é que os gestos en­cenados por ela e por Zorro em seus respectivos poemas são equivalentes e complementares. No momento em que o povo português coloca seus barcos no mar, descobre o caminho para as Índias e posteriormente para a América, ele inaugura a empresa colonial. Com ela tem início um grande movimento socioeconômico que culminará não só na subversão de todo um modo de produção tradicional,6 mas, em última instância, na própria guerra.
O que temos aqui, ao final das contas, é um modo único de in­vocar poeticamente uma obra do cânone. Segundo nossa interpretação, o texto de João Zorro não entra aqui como simples ponto de diálogo, ou como referência a ser ratificada ou desconstruída. Ao citar na integralidade a cantiga e dar a ela um espaço na página equivalente a do seu próprio texto, Fiama a conclama, com toda a sua força, a vir integrar o tempo presente. O resultado é que ela passa a ter, dentro do poema, o mesmo estatuto que os versos da poeta portuguesa, com os quais se conjuga então para formar algo novo. Opostas e espelhadas, a Cantiga de João Zorro e as estrofes de Fiama se unem como as duas metades de um mesmo problema para for­mar então o texto maior que é “Barcas novas”.

O mar, a nau, a batalha: a sobrevivência das formas na Antologia da memória poética da Guerra Colonial, Lisa Carvalho Vasconcellos. ABRIL – Revista do NEPA/UFF, Niterói, v.10, n.20, p. 79-90, jan.-jun. 2018






Atentemos, agora, noutra variação contemporânea a partir da cantiga do jogral medieval. 

EM LISBOA, SOBRE O MAR
Cantiga à maneira de Joan Zorro

Em Lisboa, sobre o mar,
minha senhora tão linda,
barcas novas vou lavrar
e dentro delas cantar
uma canção que não finda.

Nessas barcas, sobre o mar,
esta cantiga tão linda
em Lisboa vou cantar,
Senhora, por te louvar
Queria uma vida infinda.

Barcas novas vou levar,
senhora minha, tão linda,
e nessas águas cantar
em teu louvor, sobre o mar,
uma canção de atafinda.

Uma canção sobre 0 mar,
minha senhora tão linda,
Em Lisboa vou cantar
Apenas por te louvar
Meu coração pulsa ainda.

José Rodrigues de Paiva, O breve fulgor do tempo: poesia reunida
Companhia Editora de Pernambuco - Cepe, 2019
 
A cantiga é, na verdade, uma forma medieva "equivalente à cansó provençal ou à chanson francesa", uma estrutura poética tradicionalmente destinada ao canto e à instrumentação. À maneira de Joan Zorro — trovador que viveu entre o final do século XIII e o início do século XIV —, José Rodrigues de Paiva utiliza a quintilha com o esquema rimático ABAAB e o verso heptassilábico, a redondilha maior, medida que, como leciona Amorim de Carvalho (1904-1976) em Teoria geral da versificação, é o verso "[...] por excelência das canções populares e dos nossos romanceiros. De grande maleabilidade, pela sua acentuação incerta, presta-se a todas as expressões emocionais e a todos os temas." A composição evoca o mar lisboeta com as suas barcas. Enquanto trovador, o sujeito lírico louva a beleza da senhora. Mas exalta, também, como num metapoema moderno, o seu próprio canto. 
Partindo da cantiga medieva de João Zorro, organizada em dois pares de dísticos de paralelismo semântico — anafóricos e intercomunicantes (o 2º v. do 1º é o 1º do 3º e o 2º do 2º é o 1º v. do 3º), unificados pelo refrão, José Rodrigues de Paiva cria o seu poema — Em Lisboa sobre o mar. 
Mantém um verso tradicional, a redondilha maior, mas amplia a estrofe e o seu número. Opta, assim, pela quintilha, elaborando quatro, e funda a intertextualidade, prendendo-se de imediato ao 1.9 verso e disseminando vocábulos que configuram uma ordem lexemática de marinha ou barcarola: barcas novas. 
O sujeito poético entra num discurso dialógico mitigado: distribui pelo poema uma série de apóstrofes que, recorrentemente, constroem uma cantiga de amor: minha senhora tão linda, Senhora, senhora minha, minha senhora tão linda. De notar que é na circularidade da 1.ª, na força expressiva da sua função emotiva, que o texto se conclui. O movimento de adoração é verdadeiramente em anábase, uma vez que ao ritmo contínuo dos três versos finais se soma a declaração do trovador moderno: 
Apenas por te louvar
Meu coração pulsa ainda
 
Misto de cantiga de amor e de barcarola ou marinha, o poema de José Rodrigues sugere o fluxo e refluxo das águas, o seu movimento dual, não só por meio do isomorfismo, mas também do esquema rimático regular, igualmente dual: a / . A rima predominante é em vogal oral aberta, seguida de consoante líquida, em palavras oxítonas, e sugere liberdade, ausência de fronteiras, vontade ilimitada de cantar, de louvar, de unir ao mar o amor. A rima em vogal nasal in , muito mais intimista, frui a beleza da amada cujo louvor quer levar até ao fim, usando o nome do artifício poético medieval da atafinda. Cria-se um ritmo encantatório.
O trovador do século XX, cônscio da função especular da sua poesia, do seu amor nela refletido, inscreve na trama textual fios de metalinguagem, desde cantar — presença nas quatro quintilhas — até canção e cantiga como seu objeto interno. A sua hipervalorização prolonga-se sucessivamente — que não finda; tão linda; de atafinda. Bem no coração do poema, o eu lírico aspira a uma vida infinda, reencontrando, talvez, a expressiva sabedoria camoniana — para tão grande amor, tão curta a vida.
 
A poesia da Geração 65, Marcos Alexandre Faber.
Companhia Editora de Pernambuco - Cepe, 2019



CARREIRO, José. “Barcas novas - variações de uma cantiga de Joan Zorro”. Portugal, Folha de Poesia, 08-05-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/05/barcas-novas-variacoes-de-uma-cantiga.html